Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
452/13.9PBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: REGIME DE PROVA
PLANO INDIVIDUAL DE READAPTAÇÃO
Data do Acordão: 10/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º, N.º 4, E 53.º, DO CP
Sumário: 1 - O que constitui verdadeiro pressuposto material do regime de prova é a consideração pelo juiz de que se mostra conveniente e adequado a facilitar a reintegração do condenado.

2 - O plano individual de readaptação é, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, “a peça indispensável deste mecanismo de socialização”, o “testemunho da estratégia (e da tática) que o tribunal entende dever seguir …”, “… a articulação do cumprimento dos deveres e regras de conduta impostas com as tarefas de vigilância a cargo do trabalhador especializado ou técnico de reinserção social”.

3 - A sujeição ao regime de prova obedece exclusivamente a um juízo de adequação às necessidades de prevenção especial de socialização do condenado.

4 - Não é, por isso, justificado que se sujeite alguém a acompanhamento no sentido de se verificar se padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias sem uma fundamentação concreta sobre a necessidade dessa exigência, apenas com fundamento numa razão de natureza de prevenção geral.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 452/13.9PBTMR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, por sentença de 14/5/2014, depositada em 22/5/2014, o arguido A..., com os demais sinais dos autos, foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, b) do Código Penal, na pena de 15 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período, acompanhada de regime de prova, assim como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias.

2. Inconformado com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«A.- O presente recurso vem interposto do despacho que condenou o arguido a 15 meses de prisão suspensa com regime de prova, com elaboração de um plano de reinserção social pela DGRS, o qual deve incidir na educação e respeito pela cidadania e o respeito das normas estradais e outras, para além de que devem acompanhar o arguido no sentido de se verificar se o mesmo padece de alguma problema aditivo com drogas ou outras substâncias, tudo nos termos do artigo 53º/1 e 2 do CP.

B.- Há insuficiência para a decisão da matéria de facto tida por provada, nos termos e para os efeitos do artigo 410.º n.º 2 al. a) do C.P.P.

C.- Nada consta nos autos quanto a qualquer dependência de drogas ou algo similar e ainda assim a pena de prisão é suspensa entre o mais com o dever de o arguido ser acompanhado no sentido de se verificar se padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias?!

D.- Importaria, talvez, porventura, averiguar da personalidade, traços de carácter e situação sócio económica, porventura pela solicitação de elaboração de concernente relatório social, como postula o artigo 370º do CPP, o que não foi feito.

E.- Ora em momento algum ficou demonstrado qualquer problema conexionado com produto estupefaciente.

F.- E o limite do tribunal e da sua intervenção está limitado e balizado na mínima intervenção penal!

G.- Não pode o Tribunal obrigar a ser acompanhado no âmbito de um alegado problema de adição de drogas, pois extravasa o âmbito do processo, estando desta forma ultrapassada a culpa e bem assim foi de forma assaz ultrapassado o limite da prevenção especial.

H.- Tais lacunas comprometem a sentença no que toca à natureza e medida punitiva dos factos imputados, conduzindo à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – n.º 2 a) 410º do CPP, tendo sido violado o disposto o disposto no artigo 370º do CPP e 53º do CPP.

I.- Neste sentido deve a condenação ser limitada à suspensão da pena de prisão condicionada tão só “com elaboração de um plano de reinserção social pela DGRS, o qual deve incidir na educação e respeito pela cidadania e o respeito pelas normas penais estradais”,

J.- Sem qualquer obrigação de frequência ou acompanhamento de programa de despistagem de adição de drogas

K.- Entende-se assim que as necessidades de tutela do mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico ficam satisfeitas com as condições exposta no ponto I das conclusões.

Decidindo-se de acordo com o alegado, suprindo, doutamente, o que há a suprir, VV. Exas. farão como é hábito, a

CORRECTA E SÃ

                                                        JUSTIÇA!»

3. O Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1]), subscrevendo a posição do Ministério Público em 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

5. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada disse.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida.

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«1- No dia 20 de Outubro 2013, cerca das 21H00, Os Agentes da PSP de Tomar B... e C..., em exercício de funções de patrulhamento, seguiam em veículo caracterizado daquela entidade policial.

2 -Quando circulavam na Rua Dr. José Tamagnini em direcção à Avenida Egas Moniz, nesta cidade, os Agentes da PSP verificaram que no entroncamento formado por estas duas artérias se encontrava o veículo de matrícula ...ED em cima do passeio e em manobra de marcha atrás.

3 - Quando se aproximaram de tal veículo, os agentes policiais verificaram que quem o conduzia era o arguido e no mesmo seguia uma passageira sentada à frente do lado direto.

4 - Tendo em vista a sua fiscalização, foi de imediato efectuado inequívoco sinal de paragem.

5 - O arguido apercebeu-se da presença dos Agentes da PSP, do sinal de paragem que lhe fizeram e da intenção destes em o fazerem parar mas, ao contrário de imobilizar o veículo que conduzia, o arguido acelerou a marcha descendo a Avenida Egas Moniz e, ao chegar ao cruzamento desta com a Rua dos Construtores Civis, mudou de direcção para a direita, rumo à Rua Fábrica da Fiação.

6 - Ao aperceberem-se das manobras irregulares efectuadas pelo arguido e da sua intenção de se furtar à fiscalização policial e se colocar em fuga, os agentes policiais ligaram os sinais luminosos da viatura policial e seguiram em perseguição do veículo conduzido pelo arguido.

7- No entroncamento formado entre a Rua Fábrica de Fiação e a Azinhaga dos Bacelos o arguido voltou a mudar de direcção para a direita prosseguindo a sua marcha e, sem respeitar o sinal de sentido proibido que se lhe apresentava, subiu a rua em direcção à Rua Timóteo Verdier, deslocando-se para o interior do Bairro 1º de Maio por cujas artérias circulou a alta velocidade.

8 -Prosseguindo a sua marcha e no entroncamento formado pela Rua Timóteo Verdier e a Rua dos Bacelos o arguido não parou perante o sinal de Stop aí existente, virou à esquerda e, de imediato, à direita para a Rua Semanário A Verdade e no entroncamento desta com a Rua Faustino Tio virou de novo à esquerda desrespeitando, uma vez mais, um sinal de paragem obrigatória, Stop, seguindo na direcção de Choromela.

9 - Sempre com o veículo policial em sua perseguição, o arguido prosseguiu a sua marcha em direcção à Ponte de Peniche passando então a circular por uma estrada de terra batida, altura em que, por questões de segurança, os agentes policiais cessaram a perseguição.

10 - Ao proceder à condução do veículo da forma supra descrita, em ostensivo desrespeito das regras de circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de paragem, à mudança de direcção, à passagem de peões, ao limite de velocidade e à obrigação de apenas circular em sentidos permitidos, o arguido sabia que colocava em perigo a integridade física e mesmo a vida de outros condutores e, designadamente, dos Agentes Policiais que no exercício das suas funções o seguiam, bem como dos peões que seguiam nos passeios e nas ruas por onde circulou, sendo certo que conduziu por diversas artérias situadas no centro da cidade de Tomar, com grande movimento de pessoas, perigo este que não só previu como aceitou.

11 - Sabia ainda que a sua conduta era idónea a causar prejuízos patrimoniais elevados com a danificação ou destruição de veículos nos quais podia ter embatido.

12 - O arguido é solteiro, vive em união de facto com uma companheira.

13 - Tem um filho de 4 anos que vive com a mãe em Lisboa.

14 - Vive em casa da sua mãe com a companheira.

15 - Contribui para o seu filho com 100€ euros mensais.

16 - É mecânico de automóveis.

17- Tem um rendimento mensal entre os 300€ e os 500€.

18- Tem o 9º ano através de curso profissional na área de Carpintaria.

19- Do certificado de registo criminal, consta que o arguido já respondeu duas vezes por furto qualificado, duas vezes por furto simples, uma vez pelo crime de receptação e uma vez por furto qualificado na forma tentada.»

*

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):

«Com interesse para a boa decisão da causa, não resultaram não provados quaisquer factos.»

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1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«A convicção do tribunal assentou desde logo na análise de toda a prova documental junta aos autos e ainda nas declarações do próprio arguido e demais testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e no seu CRC de fls. 43 e ss..

Assim, o arguido no uso do seu direito legal de prestar declarações fê-lo, sendo que o tribunal não acreditou na versão dos factos que apontou, isto é, começou por dizer que nunca teve um carro destes e nunca o conduziu desconhece quem estava ao volante deste carro no dia dos acontecimentos; que é possuidor de um veículo automóvel de matrícula 62-82-HT, Renault branco e que não fugiu de ninguém, negando os factos.

Ora, isto conjugado com o reconhecimento claro e inequívoco que os dois agentes que andaram a perseguir o ora arguido e o carro em que se fazia transportar no dia em que aconteceram os factos relatados na acusação pública, fizeram de si em conjugação com a forma convincente e clara com que ambos depuseram, levam-nos a não considerar credível o que o arguido afirmou.

Assim, B... e C..., foram os dois agentes da PSP que perseguiram o arguido na noite de 20 de Outubro de 2013, data em que decorria a feira de Santa Iria na cidade de Tomar em que falaram com imparcialidade e com convicção sendo que o primeiro já conhece o arguido há vários anos por ser da freguesia onde reside e o segundo devido às suas funções.

Em suma disseram que, começaram por ver o carro em que o arguido se fazia transportar um Renault Megane, branco com a matrícula ...ED, e que estava em cima do passeio e fazia manobra de marcha atrás; que olharam para ele e o reconheceram de imediato, sem dúvidas e vinha com a moça com quem vive; que em vista de o fiscalizarem mandaram-no parar mas, a partir daqui o arguido viu a polícia e ainda assim não parou e encetou uma fuga deles acelerando de modo excessivo para o local e aquela hora descendo a Av. Egas Moniz e depois mudou para a Rua da Fábrica da Fiação e depois virou para a Azinhaga dos Bacelos, onde tem um sinal de Stop que o arguido não respeitou e ainda assim sempre a acelerar prosseguiu; que no momento havia pessoas a circular nos passeios e carros que se cruzavam com ele e prosseguiu para a Rua Timóteo Verdier; aqui deslocou-se para o interior do Bairro 1º de Maio em Tomar, onde àquela hora havia pessoas e crianças na rua; cruzaram-se ainda com um táxi o qual teve de se desviar para evitar embater ou ser embatido pelo arguido atenta a velocidade que imprimia ao carro em que seguia; houve outro sinal de stop que não respeitou; seguiu depois para a ponte de Peniche, passando a circular em estrada de terra batida e aí os declarantes pararam por questões de segurança e não continuaram a perseguição ao arguido.»

Quanto à determinação das penas, diz-se na sentença recorrida:

«Importa neste momento graduar dentro da moldura abstrata da pena aplicável ao arguido a natureza e medida da sanção a aplicar em concreto.

Ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário p e p no artigo 291º/1-b) do CP, é prevista na lei penal pena de prisão que vai no mínimo de 1 mês a 3 anos de máximo, e quanto à pena de multa vai no mínimo de 10 dias a um máximo de 360 dias, e com os montantes que podem variar entre 5 € e 500 €, pelo máximo.

A determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, visando sempre evitar a prática pelo agente de futuros crimes e a sua ressocialização - artº. 71º do CP.

Assim, tenham-se em conta os seguintes fatores:

- a consciência da ilicitude, com que nos deparamos com a prática deste tipo de crime, muitas vezes estando na origem da ocorrência de acidentes de viação;

- o facto de se desconhecer consequências da sua conduta;

- o facto do arguido já ter respondido 2 vezes por crime de furto qualificado, 1 vez por furto simples, 1 vez por crime de receptação, e 1 vez por furto qualificado na forma tentada, e não possuir qualquer averbamento de crime relacionado com regras estradais como in casu;

- dolo por si evidenciado ser de elevada intensidade;

- a sua atitude em julgamento, onde nega os factos;

- o encontrar-se inserido socialmente.

Em face dos fatores acabados de descrever e considerando que o juiz deve dar prevalência às medidas não privativas da liberdade (artº 70º do CP), desde que aquelas realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e considerando ainda o passado criminal do arguido, sendo que já na sua última condenação o foi com pena de prisão suspensa, o que não se mostrou suficiente para o afastar de querer praticar outro crime, no caso em apreço não se mostra adequada a aplicação duma sanção não detentiva, pois que parece não funcionar as exigências de reprovação do crime, pelo que julgo em consequência adequada a aplicação no caso concreto duma pena de prisão que fixo em 15 meses de prisão.

Quanto ao artigo 50º do CP determina esse dispositivo legal que, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

O período de suspensão tem duração igual à data da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão (artigo 50º/5 do CP).

Ora, não obstante o dito supra, o arguido nunca praticou qualquer crime na área da criminalidade em apreço, enfim tudo me leva a considerar que ainda neste caso em concreto, é suficiente a simples censura do facto e a ameaça da prisão, pelo que decido suspender a pena de prisão a aplicar em concreto ao arguido, pelo período de 15 meses.

Sucede que face à situação específica a que o arguido se encontra sujeito, ao seu passado criminal, considero conveniente que a suspensão antes ordenada se encontre sujeita a regime de prova, com elaboração de um plano de reinserção social pela DGRS, o qual deve incidir na educação e respeito pela cidadania e o respeito das normas penais estradais e outras, para além de que devem acompanhar o arguido no sentido de se verificar se o mesmo padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias, tudo nos termos do artigo 53º/1 e 2 do CP.

Quanto à sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos a motor, atendendo aos fatores supra mencionados e aos factos dados como provados e a moldura abstrata prevista na lei, considero adequado aplicar-lhe uma inibição de conduzir, pelo período de 3 meses e 15 dias.»

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([2]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([3]).

Atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- âmbito do regime de prova.

2.1. Da insuficiência para decisão da matéria de facto provada

De acordo com o disposto no artigo 410.º, n.º 2, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Em qualquer das referidas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos estranhos àquela para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([4]).

Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

Neste caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.

Saliente-se que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, a qual já cai no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

Também a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada.

Para que exista aquele vício é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria necessária para uma decisão de direito.

Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar.

Assim balizado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de factos provada, há que concluir pela sua ausência da decisão recorrida.

Na verdade, do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do apontado vício posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou, ou seja, a factualidade provada que consta da sentença em crise preenche o tipo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário por cuja prática foi o recorrente condenado, assim como contém todos os elementos de facto necessários à determinação da medida da pena, não se descortinando que tenha ficado por investigar um qualquer aspecto relevante.

Improcede, pois, a invocação do referido vício.

2.2. Do âmbito do regime de prova

O arguido A... foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, b) do Código Penal, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova “com elaboração de um plano de reinserção social pela DGRS, o qual deve incidir na educação e respeito pela cidadania e o respeito das normas penais estradais e outras, para além de que devem acompanhar o arguido no sentido de se verificar se o mesmo padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias, tudo nos termos do artigo 53º/1 e 2 do CP.”.

O arguido insurge-se contra esta obrigação de frequência ou acompanhamento de programa de despistagem de adição de drogas por entender que ultrapassa a culpa e bem assim o limite de prevenção especial.

O regime de prova está previsto no artigo 53.º do Código Penal, onde, especificamente, se prescreve o seguinte:

«1- O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a facilitar a reintegração do condenado na sociedade.

2- O regime de prova assenta num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social

3- O regime de prova é ordenado sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade ou quando a pena de prisão cuja execução for suspensa tiver sido aplicada em medida superior a três anos»

Por sua vez, o artigo 494.º do Código de Processo Penal refere o seguinte:

«1 - A decisão que suspender a execução da prisão com regime de prova deve conter o plano individual de readaptação social que o tribunal solicita aos serviços de reinserção social.

2 - A decisão, uma ver transitada em julgado, é comunicada aos serviços de reinserção social.

3 - Quando a decisão não contiver o plano de reinserção social ou este deva ser completado, os serviços de reinserção social procedem à sua elaboração ou reelaboração, ouvido o condenado, no prazo de 30 dias, e submetem-no à homologação do tribunal.»

O regime de prova mostra-se como uma modalidade da suspensão de execução de pena e é consagrado, de modo atenuado, quando comparativamente com o do sistema anglo-americano, de onde recebeu inspiração, a partir do regime da “probation”, por se não cingir à mera declaração de culpabilidade e à suspensão do processo, antes as excedendo.

O que constitui verdadeiro pressuposto material do regime de prova é a consideração pelo juiz de que se mostra conveniente e adequado a facilitar a reintegração do condenado, ou seja, sempre que se reconheça utilidade para reinserção social do delinquente, desempenhando a maior relevância como peça essencial de todo o processo a elaboração de um plano individual de readaptação social nos termos do n.º 2 do artigo 53.º do Código Penal.

Esse plano individual, que pode ser acompanhado de deveres, de teor essencialmente pecuniário, ou regras de conduta, referidos nos artigos 51.º e 52.º do Código Penal e outras obrigações ainda ajustadas ao plano individual de readaptação e ao aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do condenado – nºs 1 e 2 do artigo 54.º do Código Penal –, na sua execução cabe a um técnico de reinserção social.

O plano individual de readaptação é, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, “a peça indispensável deste mecanismo de socialização”, o “testemunho da estratégia (e da táctica) que o tribunal entende dever seguir …”, “… a articulação do cumprimento dos deveres e regras de conduta impostas com as tarefas de vigilância a cargo do trabalhador especializado ou técnico de reinserção social” (…), que não deve ceder à tentação de tornar a sua tarefa em “missionarismo paternalista e predicante”, mas ater-se aos limites de “legalidade externa” impostos na sentença, o que vale particularmente para tudo quanto respeite à vida íntima e familiar do condenado([5]).

Estabelece o n.º 4 do artigo 50.º do Código Penal que a decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condenações, o que mais não é do que um afloramento do dever geral de fundamentação das decisões judiciais imposta em comando constitucional desde a revisão operada pela Lei n.º 1/97 - artigo 205.º da CRP - e presente nos artigos 97.º, n.º 4, 194.º, n.º 3, 213.º, n.º 4, 374.º, n.º 2 da lei penal adjectiva e ainda no artigo 375.º, nº 1 com o seguinte teor:

«A sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, indicando nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social.».

Diz-se na decisão para fundamentar a aplicação do regime de prova:

«Sucede que face à situação específica a que o arguido se encontra sujeito, ao seu passado criminal, considero conveniente que a suspensão antes ordenada se encontre sujeita a regime de prova, com elaboração de um plano de reinserção social pela DGRS, o qual deve incidir na educação e respeito pela cidadania e o respeito das normas penais estradais e outras, para além de que devem acompanhar o arguido no sentido de se verificar se o mesmo padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias, tudo nos termos do artigo 53º/1 e 2 do CP.»

A sujeição ao regime de prova obedece exclusivamente a um juízo de adequação às necessidades de prevenção especial de socialização do condenado([6]), não sendo, por isso, justificado que se sujeite alguém a acompanhamento no sentido de se verificar se padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias sem uma fundamentação concreta sobre a necessidade dessa exigência, apenas com fundamento numa razão de natureza de prevenção geral.

Ora, a factualidade provada não revela uma necessidade de sujeitar o arguido a acompanhamento por técnicos da DGRS no sentido de se verificar se o mesmo padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias pois não está em causa qualquer tipo de ilícito relacionado com aquelas substâncias, assim como também não resulta dos autos que o arguido padeça de algum problema aditivo.

Assim, inexistindo fundamento para a imposição de acompanhamento do arguido no sentido de se verificar se o mesmo padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias, a decisão recorrida deve, nesta parte, ser revogada.

Procede, portanto, nesta parte, o interposto recurso.

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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que determinou o acompanhamento do arguido no sentido de se verificar se o mesmo padece de algum problema aditivo com drogas ou outras substâncias, confirmando, quanto ao mais, a sentença recorrida.

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Sem tributação o recurso, atento o seu provimento (artigo 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).

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Coimbra, 29 de Outubro de 2014

                  

Fernando Chaves  - relator

Orlando Gonçalves - adjunto


[1] - Diploma a que se reportam as demais disposições legais citadas sem menção de origem.
[2]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e seguintes.
[5] - Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 630, 640 e 646.
[6] - Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Lisboa, 2010, pág. 232.