Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1351/11.4T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONTRAORDENAÇÕES
RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS COLETIVAS
Data do Acordão: 06/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA- AVEIRO - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 7º Nº 2 DO RGCO
Sumário: As pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, nestes se integrando os seus funcionários, designadamente aqueles que decidem, em concreto ou definem perante a situação concreta, a sua política e a vontade de quem dirige superiormente, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas.
Decisão Texto Integral: I.
W... & Cia., sociedade comercial com sede na Rua … , interpôs recurso para o tribunal de comarca da decisão da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade, proferida em 29/04/2011, que a condenou na coima de € 5.000,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista nos termos dos artigos 3° e 4° do Regulamento (CE) nº 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril, conjugado com o Capítulo I, do Anexo II, do mesmo Regulamento e punido nos termos da alínea a) [a decisão administrativa refere a alínea b) por manifesto lapso, como se verá melhor infra] do nº 1 do artigo 6°, do Decreto-Lei nº 113/2006, de 12 de Junho.
Após audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença na qual o tribunal de comarca decidiu:
- Julgar procedente o recurso, revogando a decisão proferida pela autoridade administrativa e absolvendo a arguida da contra-ordenação que lhe era imputada.
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Inconformado com a decisão do recurso, dela recorre o MºPº.
Na respectiva motivação são formuladas as seguintes CONCLUSÕES
I - A sociedade arguida é responsável pela conduta, in casu, omissiva, dos seus trabalhadores.
II - Para efeitos do n° 2 do art. 7° do R.G.C.C., a expressão "órgãos" integra os trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva ou equiparada, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas".
III - Uma interpretação restritiva do normativo legal em análise conduz a uma total irresponsabilidade das sociedades pois que, sempre que os actos ou omissões forem praticados pelos seus trabalhadores, independentemente de serem ou não praticados de acordo com as instruções da entidade patronal, no exercício de funções e no interesse da mesma, não haveria responsabilidade da sociedade.
IV - Não pode interpretar-se o conceito que decorre dos artigos 3º e 4° do Regulamento (CE) nº 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril de 2004, de "operadores de empresa" como trabalhadores da empresa, o que parece resultar da decisão recorrida.
V - O conceito de empresa/operador de empresa, inserto num diploma comunitário, há que ser interpretado à luz do direito comunitário e, nessa medida, o operador da empresa do sector alimentar" a que se reporta o Regulamento Comunitário é a própria "W... & CIA".
VI - O facto de a sociedade arguida ter criado e difundido um Manual de Procedimentos baseado nos princípios de HACCP assim como uma Norma Interna de Qualidade e Segurança, não a desresponsabiliza, por si só, do facto de um trabalhador seu não cumprir tais normas e procedimentos.
VII - No caso em aná1ise, impõe-se, pois, conc1uir que a arguida agiu com negligência ao omitir a diligência fiscalizar que se lhe impunha concreta de controlar e a conduta do(s) seu(s) trabalhador(es) que, em seu nome e no seu interesse, actuavam.
VIII. Foi operada a alteração da qualificação jurídica a que se reportam fls. 6 e 7 da decisão recorrida, não tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º do C.P.P. aplicável ex vi art. 32º do R.G.C.O.
IX - Em face do supra exposto, a decisão recorrida violou o disposto no art. 358º do C.P.P. e encontra-­se ferida dos vícios enunciados nas alíneas a) e b) do n°2 do art. 410º do C.P.P. aplicáveis ex v i o art. 32 ° do R. G. C. O.: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente.
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Respondeu a arguida rebatendo a motivação do recurso e concluindo pela sua improcedência.
Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
Corridos vistos, após conferência, cumpre decidir.
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II
1.

2. Resulta provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 13 de Novembro de 2007, pelas 11.45 horas, o estabelecimento comercial, comercialmente designado por "W...", sito na Estrada …, Aveiro, pertencente à arguida, encontrava-se em pleno funcionamento.
2. Nessa altura, no âmbito de uma fiscalização ali realizada por uma brigada da ASAE, foi constatado na zona de armazém: a existência de lixo diverso e sujidade acumulada na parte lateral (de difícil acesso) de uma câmara de refrigeração; existência de algumas teias de aranha no tecto e paredes; a existência de uma palete em madeira deteriorada; a existência de sujidade por debaixo de uma palete; vassouras e outros materiais de limpeza encontravam-se em local não resguardado. E foi constatada, na zona da loja: a existência de algumas teias de aranha junto a algumas janelas; a existência de lixo acumulado (em local de difícil acesso) junto à porta de acesso ao supermercado e no rodapé.
3. Na sequência da intervenção dos inspectores da ASAE que detectaram a situação atrás descrita, e para colmatarem aquelas deficiências, quer a chefe de loja quer o chefe de zona logo diligenciaram para que fossem imediatamente removidas aquelas sujidades, limpos aqueles locais e colocados os utensílios e outros matérias de limpezas dentro de um armário, o que foi feito.
4. Já à data dos factos a arguida tinha criado e difundido pelos vários estabelecimentos, tal como aquele de … , um Manual de Procedimentos baseados nos princípios de HACCP, assim como uma Norma Interna de Qualidade e Segurança, manual e norma essas que, caso tivessem sido totalmente cumpridos pelos operadores da arguida evitariam aquilo que foi detectado pelos inspectores da ASAE.
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3. Apreciação
Nulidade
Alega o digno recorrente, como fundamento da invocada nulidade que “Foi operada a alteração da qualificação jurídica a que se reportam fls. 6 e 7 da decisão recorrida, não tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º do C.P.P. aplicável ex vi art. 32º do R.G.C.O.”
Certo é que na decisão administrativa faz-se alusão à al. b) do n.º1 do art. 6º do Decreto-Lei nº 113/2006.
No entanto, quer pela matéria de facto apontada à arguida, quer pelos diversos elementos do autos, não subiste dúvida que vem imputada à arguida a prática de uma contra-ordenação prevista pelos arts. 3° e 4° do Regulamento (CE) nº 852/2004, de 29 de Abril e punida pelo art. 6° nº 1, al. a) do Decreto-Lei nº 113/2006, de 12 de Junho - relativa à falta de requisitos gerais e específicos de higiene a que, claramente se reporta o auto de notícia, bem como sobre que foi exercido, insofismavelmente, o direito de defesa.
Com efeito, a falta de requisitos gerais e específicos de higiene reportados como fundamento infracção estão previstos na al. a) do preceito. Em conformidade, aliás, com o enquadramento efectuado no auto de notícia (cfr. fls. 2), sobre o qual foi exercido o direito de defesa.
Assim, como refere a decisão recorrida (o que é reconhecido na resposta da arguida ao recurso) a decisão administrativa enferma de lapso manifesto respeitante à norma punitiva dos factos. A matéria de facto imputada – relativa à falta de requisitos gerais e específicos de higiene – apenas podia ser enquadrada na alínea a) do mesmo preceito legal, tanto mais que em lado algum da decisão é dito que a arguida não tivesse implementado qualquer processo de baseado nos princípios do HACCP a que se reporta a citada al. b).
A alínea b) nada tem a ver com o caso dos autos em que está em causa, exclusivamente, o não cumprimento de regras de higiene, punido, precisamente, na alínea a).
Constituindo a alínea a) o enquadramento efectuado no auto de notícia (cfr. fls. 2), sobre o qual foi exercido o direito de defesa. Nunca se tendo, aliás, levantado dúvidas, materialmente, sobre a previsão legal correspondente à matéria de facto imputada.
Assim, não se trata de uma alteração da qualificação jurídica que implicasse o exercício do direito de defesa (exercido com base no auto de notícia, onde constava o enquadramento correcto. Mas de mero lapso de escrita, resultante do contexto dos autos, sem prejuízo algum para a acusação ou para a defesa, uma vez que sempre esteve em causa a qualificação repostara no auto de notícia, única possível, uma vez que a da al. b) não tem qualquer correspondência nem com o auto de notícia nem com a matéria ali imputada à arguida.
Não se verifica, pois, a invocada nulidade.
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Apreciação de mérito
È consabido que as conclusões definem o objecto do recurso.
Estando assim em causa, no presente recurso – interposto pelo MºPº de decisão judicial absolutória - apurar se a matéria de facto dada como provada, integra os pressupostos da contra-ordenação, designadamente se a matéria provada permite responsabilizar a pessoa colectiva. Não eventuais fundamentos do recurso para o tribunal de comarca. Tanto mais que a arguida não recorreu subsidiariamente, ficando assim prejudicados os fundamentos do recurso para o tribunal de comarca que extrapolam a motivação do presente recurso.
O digno recorrente invoca os vícios previstos no n.º2 do art. 410º do CPP - contradição insanável e insuficiência.
Postula o art. 410º n.º2 do CPP:
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de fato provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
(…)
Trata-se de vícios relativos à estrutura interna da sentença que hão-de emergir do texto da decisão propriamente dito e/ou do mero confronto da decisão com as regras da experiência comum.
Repercutindo todavia os seus efeitos ao nível da decisão de mérito, uma vez que a sua consequência típica é o reenvio para novo julgamento - cfr. art. 426º do CPP.
Constituindo “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – cfr. Ac. STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224.
Daí que sejam de conhecimento oficioso – cfr. Acórdão do STJ de para fixação de jurisprudência 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
Em conformidade com a letra da lei, os aludidos vícios apenas se verificam quando “resultem do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum” – cfr. SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68 e jurisprudência ali citada.
O vício da “insuficiência … da matéria de facto provada” radica na insuficiência de investigação/apuramento de matéria de facto relevante - resultante da acusação, da contestação, da discussão da causa ou que o Tribunal tivesse o dever de investigar oficiosamente dentro do objecto do processo e da aplicação da pena. E não da “insuficiência da prova” para a decisão da matéria de facto apreciada pela sentença.
Como referem Simas Santos/Leal Henriques (Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 61) “Trata-se de uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito (…) havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.
contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão verifica-se quando são afirmadas, em simultâneo, duas proposições que reciprocamente se excluem logicamente, em que portanto se uma é verdadeira a outra não o pode ser, tendo por referência, como se disse, o texto da decisão por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
Existe quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão oposta; entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa, ou a emissão de duas proposições que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas – Cfr. Ac.s do STJ de 13.03. 1996 e de 08.05.1996, citados por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos, cit. p. 65.
Ora, no caso, o que está em causa, na motivação do recurso, é a contradição entre a matéria de facto e a solução jurídica encontrada, bem como a insuficiência da qualificação jurídica efectuada. Não, portanto contradição entre matéria de facto propriamente dita ou entre esta e a sua motivação probatória. Nem falta de investigação da matéria de facto r relevante.
Não se verifica, assim, qualquer dos apontados vícios, uma vez que o que está em causa é a responsabilidade da arguida, pela contra-ordenação, com base na matéria de facto provada.

Em matéria de direito, a sentença recorrida, embora considerando resultaram provados factos objectivos da infracção - atinente à violação de requisitos gerais de higiene plasmados no Anexo II do mencionado Regulamento - absolveu a arguida, alijando a responsabilidade, exclusivamente, para os meros agentes que não teriam cumprido as normas emanadas dos órgão directivos.
Com efeito o fundamento material da sentença recorrida é o de que resulta da matéria de facto provada que a arguida tinha criado e difundido um Manual de Procedimentos baseados nos princípios de HACCP, assim como uma Norma Interna de Qualidade e Segurança, manual e norma essas que, caso tivesse sido efectivamente cumpridos pelos operadores da arguida evitariam aquilo que foi detectado pelos inspectores da ASAE – cfr. ponto 4 da matéria de facto provada.
Concluindo a sentença que não pode, assim, a arguida ser responsabilizada pelos factos/contra-ordenação imputados.
Em contrapartida sustenta-se, como fundamento do recurso, que “a expressão «órgãos» integra os trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva ou equiparada, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas" (conclusão II). E que “No caso em aná1ise, impõe-se, pois, conc1uir que a arguida agiu com negligência ao omitir a diligência fiscalizar que se lhe impunha concreta de controlar e a conduta do(s) seu(s) trabalhador(es) que, em seu nome e no seu interesse, actuavam” - conclusão VII.
Estabelece o Artigo 3° do Regulamento (CE) nº 852/2004:
Obrigação geral
Os operadores das empresas do sector alimentar asseguram durante todas as fases de produção, transformação e distribuição de géneros alimentícios sob o seu controlo satisfaçam os requisitos pertinentes em matéria de higiene estabelecidos no presente regulamento.
Mais estabelece o Artigo 4° do mesmo Regulamento, sob a epígrafe “Requisitos gerais e específicos de higiene”:
1. Os operadores das empresas do sector alimentar que se dediquem à produção primária e a determinadas actividade conexas enumeradas no Anexo I cumprem as disposições gerais de higiene previstas na Parte A do Anexo I e em quaisquer disposições específicas previstas no Regulamento (CE)
2. Os operadores das empresas do sector alimentar que se dediquem a qualquer fase da produção, transformação e distribuição de géneros alimentícios a seguir às fases a que se aplica o nº 1, cumprem os requisitos gerais de higiene previstas no Anexo /I e em quaisquer outras disposições específicas previstas no Regulamento (CE).
3. Os operadores das empresas do sector alimentar, tomarão, se for caso disso, as seguintes medidas específicas de higiene:
a) Respeito dos critérios microbiológicos aplicáveis aos géneros alimentícios;
b) Os processos necessários para respeitar os alvos estabelecidos para cumprir os objectivos do presente regulamento;
c) Respeito dos critérios de temperaturas aplicáveis aos géneros alimentícios;
d) Manutenção da cadeia de frio;
e) Recolha de amostras e análises.
4. Os critérios, requisitos e alvos a que se refere o nº 3 são adoptados nos termos do nº 2 do artigo 14°.
Os métodos de amostragem e análise que lhes estão associados são estabelecidos nos mesmos termos.
5. Quando o presente regulamento, o Regulamento (CE) nº 852/2004 e as suas medidas de execução não especificarem os métodos de amostragem ou de análise, os operadores das empresas do sector alimentar podem utilizar métodos adequados que atinjam resultados equivalentes aos obtidos com o método de referência, caso sejam cientificamente validados em conformidade com regras ou protocolos internacionalmente reconhecidos.
6. Os operadores das empresas do sector alimentar podem utilizar os códigos previstos nos artigos 7° e 8° para os auxiliar no cumprimento das suas obrigações a título do presente regulamento.

Por outro lado, o incumprimento dos requisitos gerais e especiais de higiene a que se referem os artigos 3° e 4° do Regulamento (CE) nº 852/2004 é punido, por força do artigo 6° nº 1 a) do Decreto-Lei nº 113/2006, de 12 de Junho, com coima de €500 a €44.890 - por em causa estar uma pessoa colectiva.
Postulando ainda com interesse o nº 2 do art. 6º do citado Decreto-Lei nº 113/2006, que A negligência é punível.

Não sofre dúvida a responsabilidade das pessoas colectivas em matéria de contra-ordenações – onde não estão em causa bens jurídicos de relevância ética fundamental mas apenas de mera ordenação social.
Com efeito, postula o art. 7º do RGCC:
1. As coimas podem ser aplicadas tanto ás pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.
2. As pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

A vontade das pessoas colectivas não é uma ficção ou um mito. Essa vontade nasce e é corporizada na congregação de múltiplas vontades individuais, concretizando-se através da reunião, do voto, da deliberação, enfim da vontade individual dos seus representantes estatutariamente incumbidos ou mandatados para definir a vontade colectiva.
Não obstante, a responsabilização do ente colectivo deve ter-se por excluída quando o agente actue contra ordens ou instruções do mesmo ou ainda quando actue no seu próprio interesse – cfr. Parecer da PGR n.º 10/94, de 07.07.1994, DR IIS de 28.04.1995, cotado por Oliveira Mendes/Santos Cabral em Notas ao regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, Almedida, 2ª ed. p. 36.
Isto porque em tais situações, manifestamente, a actuação transcende a definida pela vontade colectiva definida pelos órgãos competentes da pessoa colectiva.
No entanto tal apenas se poderá concluir, em concreto, tendo em vista a matéria concreta em questão e as pessoas que, in casu, actuaram ou deixaram de actuar em nome do ente colectivo – desde que demonstrado que os factos são da responsabilidade exclusiva de algum agente ou auxiliar não imbuído no escopo social ou contrários a indicações específicas do órgão ou pessoa a quem competiam.
Focando o caso dos autos, verifica-se que estão em causa situações ocorridas dentro do estabelecimento da arguida, de venda directa ao público, a saber: na zona de armazém: a existência de lixo diverso e sujidade acumulada na parte lateral de uma câmara de refrigeração; existência de algumas teias de aranha no tecto e paredes; a existência de uma palete em madeira deteriorada; a existência de sujidade por debaixo de uma palete; vassouras e outros materiais de limpeza encontravam-se em local não resguardado. E dentro da área de circulação do público: teias de aranha junto a algumas janelas; lixo acumulado junto à porta de acesso ao supermercado e no rodapé.
Realidades que melhor se alcançam das fotografias incorporadas nos autos complementares do auto de notícia.
Trata-se, pois, de situações objectivas perfeitamente identificáveis por qualquer pessoa, quanto mais por qualquer funcionário da arguida que percorresse as instalações com um mínimo de diligência, perfeitamente identificáveis/visíveis para os responsáveis da loja. Perfeitamente detectáveis não só pelos funcionários como ainda pelos responsáveis da loja com um grau de diligência mínimo.
Certo é que a arguida tinha criado e difundido um Manual de Procedimentos baseados nos princípios de HACCP, bem como uma Norma Interna de Qualidade e Segurança que, caso tivessem sido efectivamente cumpridos pelos operadores da arguida evitariam a situação fáctica objecto do auto de contra-ordenação.
No entanto a responsabilidade da arguida não pode quedar-se pela emissão de normas abstractas de conduta dos seus agentes – no caso em Manuais, de natureza genérica, que contemplam uma infinitude de obrigações descritas, em prosa estereotipada - e em “letra miudinha” - que seguramente muitos dos empregados da arguida no ramo da higiene/limpeza (em que se situam os factos dos autos) não conseguem ler, quanto mais assimilar e/ou aplicar em concreto. Aliás, em concreto, não se refere qual o artigo, parágrafo, ponto concreto dos extensos manuais supostamente violados pelo pessoal da Loja (pessoal subalterno, auxiliar, de chefia?).
Parece manifesto, em termos de diligência do “bonus pater familias”, quanto mais de alguém encarregado, especificamente, da manutenção/exploração da loja, que a titular de um estabelecimento deste género não pode desinteressar-se da implementação prática do “Manual de Procedimentos HACCP” e/ou da “Norma Interna de Qualidade e Segurança” - não de Higiene, repare-se, que é o que está em causa nos autos.
A empresa titular do estabelecimento tem que ser responsabilizada pela verificação, em concreto, do dever de diligência dos seus funcionários, designadamente aqueles que decidem, em concreto ou definem perante a situação concreta, a sua política e a vontade de quem dirige superiormente.
Aliás o entendimento oposto levaria ao absurdo de, emitindo a sede da multinacional uma norma, abstracta, dirigida aos seus agentes, em circular com centenas de cláusulas de letra miúda, ficasse automaticamente desresponsabilizada da sua implementação prática, precisamente nos locais onde surge como mais candente a necessidade de protecção dos bens jurídicos tutelados pela norma – os estabelecimentos de venda ao público/consumidor final, em cujo interesse são estabelecidos todos os procedimentos de higiene. Consumidor que assim ficaria protegido (melhor dizendo totalmente desprotegido, tendo em vista a economia do Regulamento e do correspondente sancionamento) apenas nos gabinetes rutilantes onde são lavrados os Regulamentos mas onde o público/consumidor não entra nem corre riscos. Mas não nos estabelecimentos onde abastece a sua mesa e onde corre riscos efectivos pela imputada falta de higiene.
A violação do dever de diligência reporta-se ao caso concreto, aos deveres dos agentes da pessoa colectiva que naquelas circunstâncias tinham dever de definir e conformar a sua vontade.
Ora, no caso, embora questionando a prática da contra-ordenação, a própria arguida, de tanto porfiar, acaba por reconhecê-la, ainda que alijando-a sobre um seu funcionário.
Com efeito, alega, além do mais – cfr. ponto 41. da motivação do recurso – que sancionou, pela ocorrência em questão, a chefe de loja .
Como tal reconhecendo a culpa dessa chefe da loja - tanto que a puniu pelas faltas de higiene detectadas no auto de notícia e reproduzidas na matéria de facto provada.
Por outro lado a chefe da loja - para quem a própria recorrente, reconhecendo-a alijou toda a culpa - não é, manifestamente, um simples agente/auxiliar indiferenciado que se limita a cumprir ordens superiores. Muito menos que tivesse inventado, no caso, fosse o que fosse, nomeadamente as situações fácticas descritas. Muito menos no seu interesse pessoal ou contra qualquer indicação específica, da cadeia de comando. Pelo contrário, como chefe de loja define superiormente (dentro do âmbito da loja) a vontade da instituição ou de quem dirige do alto topo, conformando-a com as circunstâncias concretas.
Pelo que se conclui pela sua responsabilidade, nos termos do citado art. 7º do RGCC. E, em decorrência, pela procedência do recurso.
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III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelo MºPº, revogando a decisão recorrida e mantendo a decisão administrativa que condenou a arguida na coima de € 5.000,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista nos termos dos artigos 3° e 4° do Regulamento (CE) nº 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril, conjugado com o Capítulo I, do Anexo II, do mesmo Regulamento e punido nos termos do artigo 6°, n.º1, alínea a) do Decreto-Lei nº 113/2006, de 12 de Junho.
Custas pela recorrida (oposição) fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.