Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
247/15.5GARSD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
IMPEDIMENTO DE JUIZ
PROCESSO PENAL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º, 34.º, N.º 1, E 39.º, DO CPP; ARTIGO 115.º, N.º 1, ALS. I) E H), DO CPC
Sumário: O artigo 115.º, n.º 1, do CPC, é subsidiariamente aplicável no âmbito do processo penal.
Decisão Texto Integral:




I. Relatório:

1. Uma das Sr.ªs Juízas em exercício de funções na Comarca de Viseu (doravante designada apenas como “Juíza Substituta”), suscitou, no âmbito do processo comum n.º 247/15.5GARSD, a resolução de conflito negativo de competência existente entre a própria e outra Sr.ª Juíza da mesma Comarca (Secção Criminal da Instância Local de x...), porquanto ambas se atribuem reciprocamente competência, negando a própria, para a tramitação dos autos acima individualizados.

2. Cumprido o disposto no art. 36.º, n.º 1, do CPP, a segundo das duas referidas Magistradas apresentou alegações escritas, onde reiterou a posição antes manifestada, no sentido de se encontrar impedida de praticar os actos processuais conducentes à realização de julgamento no aludido processo e, em aditamento, a título subsidiário, apresentou pedido de escusa (cfr. fls. 21/22 deste apenso).


*

Por sua vez, o Sr. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação de Coimbra emitiu parecer, que concluiu nestes termos:

«II. Para a resolução do presente conflito negativo de competência, entre a Mm.ª Juiz de Direito da Instância Local de x... - Secção Criminal - J1, da Comarca de Viseu, e a Mm.ª  Juiz de Direito sua substituta legal, há que ter em consideração:

a) Que a circunstância de ser testemunha de acusação no processo o marido da Senhora Juiz titular pode afectar ou dar a aparência de poder afectar a sua imparcialidade subjectiva, o que pode ser fundamento para se considerar impedida de intervir no processo;

b) Tal situação podia ser resolvida com um pedido de escusa da Mm.ª Juiz titular (art. 43.º, n.ºs 4, 1 e 2, do CPP), mas, provavelmente, por não contar com a reacção da sua colega e legal substituta, outra foi a opção, invocando o regime do Cód. Proc. Civil (art. 115.º);

c) Porém, não tendo sido essa a opção e encontrando-nos perante um bloqueio processual, há que decidir o conflito, sendo de parecer que deve considerar-se válido o impedimento invocado e competente, para a tramitação subsequente e decisão a proferir, a Senhora Juiz de Direito substituta.»


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II. Fundamentação:

A) Elementos relevantes:

1. Após dedução da acusação, introduzido o processo 247/15.5GARSD na fase de julgamento, e uma vez proferido o despacho previsto no artigo 311.º do CPP, a Sr.ª Juíza subscritora daquele exarou afinal:

«A testemunha de acusação A... é marido da signatária e com quem vive em economia comum.

Atenta esta circunstância, e o disposto no artigo 115.º, n.º 1, als. h) e i) do código Civil, entendo estar impedida de exercer as minhas funções enquanto juiz nos presentes autos, que nesta parte se considera subsidiariamente aplicável.

Neste sentido veja-se por exemplo Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal, Comentado, página 128, ed. 2014, “A norma do artigo 39.º não prevê com completude as situações de impedimento do juiz; a finalidade dos impedimentos como modo de garantia da imparcialidade subjectiva exige que outras situações relacionadas devam ter o mesmo efeito, por revelarem os mesmos riscos no plano pessoal e nas percepções externas sobre a imparcialidade do juiz (…), que nesta parte deve ser subsidiariamente aplicável”.

Assim, declaro-me impedida nos presentes autos.

Notifique.

Comunique à M.ª Juiz de w... que me substitui nos impedimentos.

(…)».

2. Por sua vez, a Sr.ª Juíza substituta despachou como se passa a transcrever (segmento relevante):

«(…).

Estamos no âmbito do processo-crime, pelo que serão aplicáveis as disposições constantes do Código de Processo Penal.

Assim, o disposto nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal estabelece o regime de impedimentos do processo penal.

E, conforme consta do douto Acórdão do STJ de 07-07-2010, e cujo entendimento perfilhamos, “O regime de impedimentos do processo penal previsto nos arts. 39.º e 40.º, para além de específico, é de enumeração taxativa. Não contém lacunas que devam ser integradas por analogia. Por tal motivo, não é lícito recorrer ao CPP, ex vi do art. 4.º do CPP, para integração do pretenso caso omisso[1]”.

Neste jaez, e atento o invocado pela Mma. Juíza de Direito da Instância Local de x..., Secção Criminal - J1, no despacho proferido a 19.09.2016, cfr. fls. 63-64, designadamente que a testemunha de acusação A... é marido desta e com quem vive em economia comum, cremos que, nos presentes autos não se encontra preenchida nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 39.º do Código de Processo Penal, nem os n.ºs 2 e 3 do referido preceito legal, nem as alíneas constantes do artigo 40.º do Código de Processo Penal.

Por outro lado, e conforme supra referido, entendemos que o regime de impedimentos do processo penal previsto nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal, para além de específico, é de enumeração taxativa, e não contém lacunas que devam ser integradas por analogia.

Pelo exposto, consideramos não haver lugar ao impedimento invocado (…).»


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B) Cumpre decidir:

1. Preliminarmente, importa verificar se estamos perante um conflito de competência, nos termos em que a figura é definida no artigo 34.º do Código de Processo Penal.

Dispõe este normativo, no seu n.º 1:

«Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido».

A lei é clara sobre os pressupostos legais do conflito referido. Consiste na divergência entre dois ou mais tribunais em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal, e surge quando mais do que um tribunal da mesma espécie (v.g. tribunal judicial) ou de espécie diversa (v.g. tribunal judicial e tribunal não judicial) se reconhecem ou não se reconhecem competentes para investigar e apurar a existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.

Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.

Assim, no vertente caso, é apodíctico não existir um conflito típico porquanto, desde logo, uma das duas Sr.ªs. Juízas em conflito alicerçou a declarada incompetência no seu impedimento para os já anunciados fins processuais.

Porém, sendo irrecorrível o despacho em que o juiz se considere impedido (cfr. artigo 42.º, n.º 1, do CPP), sem intervenção deste tribunal, a situação exposta redundaria, no domínio dos actos em causa, numa paralisia da relação processual penal, impasse a determinar que se considere verificar-se um conflito de competência atípico, definidor de uma situação que urge solucionar.


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2. O dissídio fonte do conflito evidenciado nestes autos assenta na dimensão normativa dos impedimentos de juiz em processo penal, mais concretamente na questão de saber se a previsão do artigo 39.º do Código de Processo Penal é taxativa, como defende a Sr.ª Juíza substituta, ou, pelo contrário, não revela completude, devendo ser também aplicáveis, por força do disposto no artigo 4.º daquele diploma legal, a situação elencada no n.º 1, alíneas h) e i), do Código Civil, tese manifestada pela outra Sr.ª Juíza conflituante.

A doutrina e a jurisprudência dos nossos tribunais superiores não tem sido consensual neste domínio, prevalecendo, na sustentação da primeira das duas enunciadas posições, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, Anotado, 16.ª edição, 2007, Almedina; Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas, Coimbra Editora, anotação ao artigo 39.º do CPP, pág. 93; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 116; M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I Volume, 2.ª Edição, 1999, Rei dos Livros, pág. 233; Despacho de 02-03-2011, do então Presidente da 4.ª Secção (Criminal) da Relação de Coimbra, não publicado; e Ac. do STJ de 19-05-2010, proferido no proc. n.º 36/09.6GAGMR.G1-A.S1, publicado em www.dgsi.pt.

Na defesa da segunda, registam-se a anotação de António Henriques Gaspar, inscrita no Código de Processo Penal dos “Srs. Conselheiros do STJ”, 2014, Almedina, págs. 127/8, e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 21-03-2007 e 13-10-2010, procs. n.ºs 64/07.6YRCBR-A-C1 e 106/09.0GAFCR-A.C1, respectivamente, e do STJ de 08-01-2015, proc. n.º 6099/13.2TDPRT.P1-A.S1, e de 21-03-2013, proc. n.º 19/13.1YFLSB, todos publicados no site do ITIJ.

Está escrito, a dado passo, no último dos referidos arestos:

«Os impedimentos específicos previstos no processo penal não são, todavia, exaustivos, valendo também, por igualdade de razão e por realizarem as mesmas finalidades, as normas do processo civil, que aqui são inteiramente compatíveis com os princípios do processo penal (artigo 4.º do CPP).

É o caso do impedimento previsto na norma do artigo 122.º, nº 1, alínea g) do CPC, que determina que o juiz não pode intervir quando a parte tiver deduzido contra o juiz acusação penal em consequência de factos praticados no exercício das funções ou por causa delas, mas apenas desde que a acusação tenha sido deduzida».

E, na apreciação de pedido de escusa de juiz, ficou exarado no outro Ac. do STJ:

«Assim sendo, se no âmbito do processo civil foram considerados diversos motivos de impedimentos dos juízes, como os constantes do art. 115.º do CPC, não se vê como não devam também ser como tal entendidos no âmbito do processo Penal. Na verdade, seria absurdo, por exemplo, considerar que no âmbito de processo civil o juiz esteja impedido de exercer funções “quando tenha intervindo na causa como mandatário judicial e o seu cônjuge ou algum seu parente ou afim na linha recta ou no 2.º grau da linha colateral [art. 115.º, n.º 1, al. d), do CPC], e todavia já concluamos que não está impedido de exercer funções se se tratar de uma acção penal».

A meu ver, não poderá deixar de ser esta última a interpretação mais consentânea com os princípios, constitucionalmente consagrados, orientadores do direito penal moderno, decorrentes do Estado de Direito Democrático, com prevalência para a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Constituindo os impedimentos um amplexo de situações em que o juiz fica impossibilitado de intervir num processo, visando garantir as condições contextuais de imparcialidade do juiz, como condição estatutária, funcional e pessoal essencial ao exercício da função jurisdicional, afastando a participação do julgador nos casos em que circunstâncias pessoais ou objectivas sejam adequadas a gerar fundadas dúvidas sobre a existência de condições para a afirmação e para a percepção externa da sua imparcialidade [cfr. Henriques Gaspar, obra já citada (Código de Processo Penal Comentado), pág. 125], e sendo também certo que, por força dos ditos princípios estruturantes do processo penal, a necessidade de confiança comunitária dos juízes é mais intensa em processo penal do que em processo civil, redundaria em patente incongruência o afastamento de qualquer uma das circunstâncias de impedimento também previstas na lei adjectiva civil.

Revela o caso concreto a existência de uma relação de economia comum entre a Sr.ª Juíza a quem o processo abreviado n.º 247/15.5GARSD foi distribuído e a única testemunha arrolada na acusação pública, circunstancialismo expressamente previsto, como de impedimento de juiz, nos textos, conjugados, das alíneas h) e i) do n.º 1 do artigo 115.º (anterior artigo 122.º) do CPC.

Tais normas são subsidiariamente aplicáveis no domínio da jurisdição penal (cfr. artigo 4.º do CPP).

Consequentemente, por força do impedimento daquela Magistrada, a competência para a fase de julgamento no aludido processo pertence à Sr.ª “Juíza Substituta” da mesma.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, decidindo o presente “conflito negativo”, atribuo competência para o fim acima indicado à Sr.ª “Juíza Substituta”.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 15 de Dezembro de 2016

[Elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra]

(Alberto Mira)          

 


[1] Vide ainda, entre outros, Acórdão do STJ de 19-05-2010, onde consta que “V. Tal diversidade conduziu a que o legislador optasse também por técnicas diferentes no que concerne à previsão dos impedimentos e suspeições. Quanto aos primeiros optou pela sua enumeração taxativa (arts. 39.º, n.º 1, e 40.º), enquanto que relativamente às segundas optou pela consagração de uma fórmula ampla, abrangente dos motivos que sejam «adequados» a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (n.º 1 do art. 43.º), acrescida da previsão de situação (exemplificativa) susceptível de constituir suspeição (n.º 2 do art. 43.º)”; Paulo Pinto Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem”, 4.ª edição, págs. 121 e 123, onde se refere que “o artigo 39.º, n.º 1, estabelece um elenco taxativo de causas de impedimento do juiz”; bem como Manuel Lopes Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal”, anotado, 1992, 5.º edição, págs. 108 a 110, onde se refere que “No domínio do CPP de 1929, entendia-se geralmente que era taxativa a enumeração dos casos de impedimento feita nesse diploma. Figueiredo Dias, loc. cit., expendeu porém solução contrária, demonstrando que o Código tinha lacunas que deviam ser integradas pelas normas do CPC. Esta doutrina, escudada em argumentos convincentes, parecia-nos então a mais defensável, mas perdeu consistência porque o presente Código pretendeu estabelecer mais vincadamente que o anterior uma regulamentação autónoma do processo penal, diminuindo a dependência do processo civil. Deve, por isso, entender-se que não há outros casos de impedimento, além dos que estão previstos no CPP.”.