Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
640/13.8TBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: LEGITIMIDADE PLURAL
AÇÕES DE CONDENAÇÃO
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JL CÍVEL DE LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 33º DO NCPC.
Sumário: I – Sendo o objectivo da legitimidade, em última análise, o de que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de molde a não voltar a repetir-se, a aferência da legitimidade plural terá necessariamente que passar pela natureza e fim da acção.

II – Se, nas acções meramente declarativas, deverão estar em juízo as pessoas que disputam a situação activa ou passiva em causa, e se nas acções constitutivas se requererá a presença de todos os sujeitos da relação jurídica a constituir, modificar, ou extinguir, nas acções de condenação, o normal é que baste à legitimidade plural a presença passiva na lide de quem se encontre a violar o direito do autor.

III- A A. nos presentes autos não pretende uma alteração na ordem jurídica existente, mas apenas que, reconhecendo-se que tem direito à água da barroca pelo instituto da preocupação e à água das duas nascentes pelos institutos da usucapião e destinação do pai de família, esses seus direitos sejam reintegrados com a condenação dos RR. a limparem o rego e a permitir-lhes, a ela e aos seus familiares, o acesso à barroca, mina, rego e poças.

IV – Por isso, basta que a A. intente a acção contra quem se encontra a violar aqueles direitos.

V – Exigir a presença passiva dos proprietários dos prédios em que se situam as nascentes, a barroca, a mina e as poças, bem como a de todos os proprietários por cujos prédios a água passe, implicaria denegar ou dificultar substancialmente direitos.

VI - Quando a A. na petição inicial, depois de evidenciar os laços familiares entre ela e os RR., e os reconduzir aos falecidos seus pais, se diz proprietária de determinado prédio, diz ser a R. proprietária de um outro, e os demais RR, por sua vez, de outro ainda, alega factos de que decorre a aquisição do respectivo direito de propriedade pela usucapião, e reconduz cada um daqueles prédios a verbas da relação de bens junta ao Processo de Imposto Sucessório por óbito do pai, está a pretender invocar ter existido uma partilha verbal dos bens aí relacionados, e que a mesma terá tido lugar há mais de 20 anos, tendo por referência a propositura da ação, desde logo porque, se estivessem em causa co-herdeiros, não poderiam adquirir por usucapião.

VII - Tendo a A. produzido uma alegação incompleta ou insuficiente, devia ter sido providenciado o aperfeiçoamento da petição, nos termos do art 590º/2 al b) e nº 4 do CPC, convidando-se a mesma a concretizar a existência de partilha verbal e o momento em que teve lugar.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – F... intentou acção declarativa na forma comum, contra ..., pedindo que seja reconhecido:

- o seu direito de propriedade sobre o artº ..., e à R. H... o direito de propriedade sobre o artº ..., e aos restantes RR. o direito de propriedade em comum e sem determinação de parte ou direito sobre os arts ..., todos da freguesia de ...; 

- à A. e RR., o direito às águas da barroca por as haverem adquirido pelo estatuto da preocupação, cfr art 1386º al d) do CC;

- à A. o direito de propriedade às águas que nascem das duas nascentes existentes nos prédios identificados;

-  à A. o direito de servidão de passagem para aproveitamento das águas da barroca e das nascentes existentes nos próprios prédios;

- à A. o direito de servidão de aqueduto para aproveitamento das águas da barroca e das duas nascentes;

- à A. o direito a depositar e a guardar/acumular as águas que correm no rego e a que se reporta a presente acção nas duas poças;

Pedindo ainda que,

- sejam condenados todos os RR. a limpar o rego e a permitir o acesso à A. e seus familiares à barroca, mina, rego e poças;

- seja a R. H... condenada a pagar €500  pelos danos que a A. sofreu com a perda da água, e os restantes RR. condenados a pagar, em comum e partes iguais, também o montante de €500.

Refere que é irmã da R. H..., cunhada do R. ... e tia dos RR. ..., e é dona e possuidora do prédio rústico, inscrito na matriz da freguesia de ... sob o art ..., possuído por ela e seus antepossuidores há mais de 20 e 30 anos, de forma pública, pacífica, contínua e de boa fé, e a R. H... do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de ... sob o art ..., sendo os demais RR. donos e possuidores do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de ... sob os arts ..., referindo que o art ... é propriedade de M... (irmã dela, A. e da R. H...), mais referindo terem ela e os RR. recebido os referidos prédios por herança dos seus pais, sogros e avós, ... Refere ainda que todos os referidos prédios, hoje individualizados, constituíam um só prédio rústico possuído pelos referidos ... Desde há mais de 200/300 anos até hoje, esse prédio rústico e hoje todos os prédios rústicos identificados, eram, e são regados, com a água que corria, e corre, na barroca ou linha de água que passava, e passa, ao fundo dos mesmos, e entre paredes com uma largura média de 60 cm e altura 1,80/2 m, e que nascia e nasce, no lugar de ..., e bem assim por duas nascentes que nasciam, e nascem, a nascente dos mesmos prédios, ao lado do rego ou vala, referindo que uma das nascentes foi explorada através da construção de uma mina aberta há mais de 100 anos e cujo interior entra num prédio rústico vizinho. A A. e os RR. e antepossuidores desde há mais de 200/300 anos dirigem-se à barroca pelo cimo dos prédios rústicos acima identificados – e também a M... titular do art ...-  e procedem à derivação da água que por ali corre, fazendo deslocar um penedo que ali está. Refere ainda que a nascente de todos os prédios referidos e desde a barroca até ao prédio rústico dos herdeiros de ... há, desde há mais de 200/300 anos, um rego ou sulco aberto pelos antigos, numa distância de mais de 100 m e com 22 cm de largura por 15 cm, de profundidade, ladeado pelo caminho ou carreiro por onde passam os titulares das águas para seu controlo, boa condução e utilização. E que ao lado desse rego havia e há, duas poças, uma perto da habitação que era dos falecidos ..., com 3 m de diâmetro, e outra, com 5 m, mais a norte e a uns 33 m daquela. E que A. e RR. e antepossuidores há mais de 200/300 anos, ora conduzem as águas da barroca ou linha de água e das duas nascentes directamente para os referidos prédios rústicos, ora as ajuntam/acumulam nas duas poças de forma a obter um caudal suficiente para irrigação daqueles prédios rústicos. Refere ainda que as referidas duas poças foram construídas para regular o caudal e racionalizar a rega de todos os campos. Entende a A. que assim procedendo, ela e os RR e antepossuidores, de forma continua, e pública de boa fé e na convicção de que não violam direitos de outrém, adquiriram o direito à água da barroca pelo estatuto da preocupação e das águas das nascentes pelo da usucapião e destinação do pai de família. Sucede que a A. está impedida de utilizar as ditas poças, as águas, as nascentes, o rego e o caminho, porquanto o R. A..., ameaça com zaragata, com a GNR e participação crime quem passar nos prédios rústicos arts ... ambos da secção B, não permitindo que a A. e seus familiares façam uso do rego, das águas da barroca, das nascentes, das poças e da mina; a R. H... obsta com iguais ameaças e  tapou com pedras o rego, inutilizou o carreiro e colocou plantas no leito do rego e destruiu a poça mais próxima do urbano, tornando-a inutilizável, sofrendo a A. os correspondentes danos por não poder regar as suas culturas, dano esse que estima em 1.000 € .

A R. H... contestou arguindo a ilegitimidade passiva, nos termos do art. 33º CPC, referindo que, pretendendo a A. o reconhecimento como adquirente por usucapião do prédio ..., tenho o mesmo advindo da herança de ... e sua mulher, não estando junto aos autos qualquer documento matricial ou predial ou escritura do qual conste a mesma como proprietária desse prédio, a acção deveria ter sido intentada contra os demais herdeiros – irmãos dos AA. e descendentes – dos falecidos ... mulher, para se pronunciarem quanto à alegação da pretensa propriedade sobre tal prédio rústico. Também a A. pretende, por parte dos RR., o reconhecimento da existência de servidões de águas, de aqueduto, sobre os prédios indicados como pertencentes à A. e RR, tendo inclusive feito referência de que o art ... é da propriedade da irmã, sendo que o rego, passagem e servidões alegados pela mesma envolvem esse prédio rústico, o qual usufruirá (ou onera) quer do rego, água e passagens (servidões), segundo a versão dos factos apresentados pela A., pelo que a acção deveria ter sido também intentada contra a proprietária desse prédio rústico. No mais, impugnam os factos alegados pela A., não deixando, no entanto, de referir que se de facto existiu e existe uma barroca, distante do prédio da A., tais águas pertencem na totalidade a vários consortes que são proprietários de outros terrenos, que nada tem a ver com os referidos na petição, tendo cada uma deles os seus dias e horas próprios da água, sendo que se a A. pretende reivindicar água dessa barroca deveria ter intentado também a acção contra esses consortes, mais referindo que, de todo o modo, nem a A. nem os RR. têm utilizado a água da barroca, porque tais prédios rústicos têm sido regados com agua do poço que cada um deles possui.

O R. A... contestou, arguindo igualmente a ilegitimidade passiva nos termos do art. 33º CPC, referindo que é pai dos RR. ..., e viúvo da falecida ..., mãe daqueles, e que a acção deveria ter sido proposta contra a herança ilíquida indivisa aberta por óbito da referida ..., por ainda não terem sido efectuadas partilhas, alegando no mais, e ainda referentemente à excepção de ilegitimidade passiva, o mesmo que a R. H...

O R. B... contestou e arguiu a referida excepção nos mesmos termos que o R A...

A R. M... - cuja citação ocorreu bem mais tarde – contestou igualmente e, essencialmente nos mesmos termos que os anteriores RR, pondo apenas em destaque a circunstância de ter saído de Lamego com 18 anos, ter sido criada pela tia ..., e muitos dos factos  não os conhecer pessoalmente mas por ouvir dizer.

 Foi proferido despacho de aperfeiçoamento, sendo a A. convidada a concretizar alguns aspectos da matéria de facto, concretamente: de onde provém a propriedade dos prédios rústicos cuja propriedade pretende ver reconhecida; em que prédio, dos três referidos como pertencentes aos RR., nasce cada uma das nascentes em causa; proceder à individualização dos prédios que são onerados pela servidão de passagem para aproveitamento das águas da barroca e das nascentes e fazer intervir esses proprietários dos demais prédios onerados.  

A A. acolheu o convite, referindo que, conforme se depreende do doc 6 junto com a petição, é dona do prédio ...; o art ... é propriedade da R. H...; o prédio inscrito na matriz sob o art ... é propriedade de M... e é onde está aberto o caminho e o rego; os prédios inscritos sob os arts ... são propriedade do R A...; e que todos os prédios referidos integravam o acervo hereditário de ..., mais referindo que M... é viúva há mais de 50 anos, “e está sempre ao lado da A. na defesa dos direitos que a todos assiste, e que é o da utilização da água da ribeira ou linha de água e das duas nascentes – uma com mina – existentes nos prédios rústicos ...”.

Requerimento este a que a R. H.... contrapôs a necessidade, a que já se referira na contestação, da intervenção de todos os interessados na acção para que a decisão possa produzir o seu efeito normal, no mais impugnando os factos ali alegados, tendo a R. M... produzido resposta semelhante.

 Foi proferido novo despacho convidando a A. para, no intuito de se conhecerem as características físicas dos prédios de que derivam as águas e a localização dos mecanismos de captação e derivação da água, juntar aos autos croqui/planta, fotografia a cores/aérea dos prédios em referência, aqui incluindo os prédios alegadamente beneficiários da dita água e da concreta passagem da mesma até ao prédio da A, devendo constar da referida planta, ainda que manual, as confrontações e localização dos prédios.

Não tendo sido satisfeito o convite, foi determinada a realização de uma verificação não judicial ao local em causa, a realizar por pessoa idónea, tendo por objecto  a descrição das características físicas dos prédios em referência, localização das nascentes /minas de água, dos mecanismos de captação, derivação da água e da sua concreta passagem, identificando os prédios alegadamente onerados pela servidão de passagem invocada, por referência aos arts 6, 10, 16 a 22, 26 e 27 da petição, devendo constar do auto fotografias possíveis de captar quanto à indicada matéria.

 Veio então A. apresentar requerimento com o mesmo conteúdo do anterior, juntando um documento, que os RR. ..., em requerimentos separados, impugnaram por não legível.

O relatório da referida verificação não judicial mostra-se junto a fls 296/319.

Deste reclamou a R. H..., tendo o Exmo Perito procedido aos esclarecimentos pretendidos.

Foi então proferido, ao abrigo do art 6º/2 e 590º/2 als a) e b) do CPC, convite, uma vez mais, à A. para, em 10 dias, regularizar a presente demanda por forma a figurarem na causa como partes todos os herdeiros dos seus pais, a individualizar os prédios que são onerados pelas servidões que pretende ver reconhecidas fazendo intervir nos autos os proprietários dos demais prédios onerados, juntando no mesmo prazo as certidões dos prédios a que faz menção no seu dispositivo.

Na não satisfação deste convite, foi ainda proferido despacho para as partes se pronunciarem a respeito da excepção invocada pelos RR.

Apenas estes reiteraram o já exposto nos articulados e requerimentos.

Foi, então, proferida decisão, julgando procedente a excepção de ilegitimidade e, em consequência, absolvendo os RR. da instância (art. 577º al. e) do CPC).

II – Do assim decidido, apelou a A., que concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:

...

Os RR. apresentaram contra alegações, sustentando nelas o decidido.

III –Resultam provados os seguintes factos, que se afiguram com relevo para a apreciação das questões implicadas no recurso, advindos tais factos dos documentos juntos aos autos e do relatório da perícia realizada:

...

IV – Do confronto entre as conclusões das alegações e a decisão recorrida resulta para apreciação no presente recurso, correspondendo ao seu objecto, se a sentença enferma das nulidades a que se reportam as als b) e c) do art 615º CPC; se a alegação de que a A. e RR. possuem os respectivos prédios há mais de 20 anos, conjugada com a data do óbito constante da certidão junta à petição, se mostraria suficiente para assegurar a legitimidade de AA. e RR.;; se nenhum sentido faz chamar à acção quem não praticou qualquer acto ofensivo dos direitos que a A. invoca; se, mesmo que assim não se entenda, sempre a acção podia e devia prosseguir em função do disposto no art  2074º CC.

Ponderou-se e decidiu-se o seguinte na decisão recorrida:  

«In casu, a A. pretende ver reconhecido direito de propriedade, constituída e reconhecida uma servidão de passagem e de aqueduto a onerar o prédio que identifica em benefício do seu prédio, resultando dos autos, por um lado, que o alegado direito de servidão onera outros prédios além dos dos réus e, por outro lado, que existem outros herdeiros para além dos RR., cuja intervenção se impõe para apreciação do direito de propriedade sobre o prédio que alega ter adquirido por herança de seus pais.

Configurada nestes termos a relação material controvertida, por referência aos pedidos concretamente formulados, torna-se evidente que o litígio concreto a dirimir diz respeito à autora, aos réus, aos restantes herdeiros de ..., pais da A. e aos titulares inscritos dos prédios alegadamente onerados com a servidão.

A segurança e a paz jurídica que se pretende alcançar com a intervenção processual dos demais proprietários dos prédios servientes e dos demais herdeiros da indicada herança, não se mostra assegurada nos autos.

Com efeito, a noção de “efeito útil normal” referida no nº 2 do art 33º do CPC traduz-se no seguinte: «Não se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais» (Lebre de  Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 58).

In casu, estamos perante a constituição de uma servidão, através de um ou mais prédios (cujos proprietários inscritos não foram demandados), isso implica que o direito do titular do prédio dominante tem de ser feito valer (i.e., accionado) perante todos os proprietários desse(s) prédio(s) onerados, sob pena de esse direito não poder ser oposto a todos, caso em que não se obteria o efeito pretendido com a passagem, que é o de se alcançar a via pública a partir do prédio dominante.

Por outro lado, o litisconsórcio necessário imposto pelo art. 2091º n.º 1 do Código Civil, diz respeito aos herdeiros enquanto tais, enquanto co-titulares do património autónomo de afectação especial, que é a herança.

Para a presente acção, tal qual se encontra configurada pela demandante e contestada pelos demandados, não resultando dos autos que o prédio reivindicado tenha sido objecto de partilha, falece a estes legitimidade para serem demandados, desacompanhados dos restantes herdeiros.

 Cremos, pois, estar perante uma situação em que «a natureza da relação controvertida exige a intervenção dos vários interessados nesta relação», ou seja, será um caso de litisconsórcio necessário natural (passivo), ao qual se refere o artº 33º, nº 2, do CPC: «É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal». E este conceito de efeito útil normal traduz-se no seguinte: «Não se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais» (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 58).

Portanto, a presente acção deveria ter sido proposta contra todos os herdeiros das indicadas heranças e os proprietários dos prédios em causa, que alegadamente se encontram onerados com a servidão de passagem e de aqueduto e não tendo a A. feito intervir os proprietários do prédio em questão, conforme para tal foi notificada, é de concluir que há uma ilegitimidade decorrente da preterição de litisconsórcio necessário passivo.

Pelo exposto, julga-se procedente a excepção de ilegitimidade e, em consequência, absolvem-se os RR. da instância (art. 577º al. e) do C.P.C.).

Custas pela A. (art. 527º nºs 1 e 2 do C.P.C.).

 Registe e notifique»

A reprodução da decisão recorrida tem a vantagem de tornar claro que não se verifica a nulidade da mesma com o fundamento da al c) do art 615º: não se vê que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, nem, afinal, a apelante fundamenta a arguição dessa nulidade.

Também não se vê que da decisão recorrida não resultem especificados os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão, a que se refere a al b) desse art 615º, posto que, como é uso evidenciar-se a propósito desta nulidade, a mesma só existe na total ausência de fundamentos seja de facto seja de direito, o que não é, manifestamente, o caso.

Improcedem assim as arguidas nulidades da decisão.

O que caracteriza o litisconsórcio necessário é a circunstância do interesse de qualquer dos interessados não poder ser regulado judicialmente sem a presença de todos eles. Quer dizer: as situações de litisconsórcio implicam uma legitimidade plural, e esta não resulta do facto de quem se apresenta isoladamente em juízo carecer de interesse em demandar ou contradizer, como sucede com a legitimidade singular, mas da circunstância de nas situações que conformam os litisconsórcios necessários o interesse em demandar ou contradizer não poder ser regulado judicialmente sem a presença concomitante de todos os interessados.

No litisconsórcio necessário distingue-se o legal, o convencional e o natural, consoante a fonte da obrigatoriedade da presença conjunta na lide de todos os interessados na relação material controvertida emirja directamente da lei, da convenção das partes, ou não emergindo directamente da lei resulte da própria natureza da relação jurídica para que a “decisão produza o seu efeito útil normal”.

Tripartição esta em rigor superficial, pois, como salientam Lebre de Freitas/ João Redinha/Rui Pinto [1] em anotação ao então art 28º, «litisconsórcio necessário legal e litisconsórcio necessário natural constituem, na realidade, uma mesma categoria, definida pelas normas aplicáveis do direito material. Quanto ao litisconsórcio necessário convencional, resulta de uma convenção pela qual uma situação que, segundo a lei, seria de litisconsórcio voluntário é convertida pelas partes em situação de litisconsórcio necessário». É que, como referem ainda aqueles autores, «tanto no caso do litisconsórcio necessário legal como no natural regista-se o mesmo pressuposto base – a necessidade de obtenção de uma decisão una em face de todos os interessados, sendo que quanto ao legal é a lei que expressamente exige a intervenção de todos os sujeitos da relação jurídica, enquanto que no natural, essa mesma necessidade retira-se implicitamente do regime legal da relação jurídica em causa».

               Explicita o art 33º/2 2ª parte CPC, que «a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado».

               O CPC 39 não definia o conteúdo de “efeito útil normal”, como hoje o faz o art 33º/2 2ª parte, debatendo-se, então, a doutrina e jurisprudência com uma sua interpretação lata e uma sua restrita.

               Na interpretação restrita, defendida por Manuel de Andrade [2], o litiscorsórcio em virtude da natureza da própria relação jurídica, só existiria quando a decisão a proferir não pudesse produzir efeito estável e definitivo entre as próprias partes caso não abrangesse todos os sujeitos da relação. Referia o mesmo que quando a sentença defina uma situação jurídica que embora não possa mais ser contestada por qualquer das partes, se mostra ineficaz em confronto dos demais co-interessados e possa ser por eles alterada, então, esta possibilidade da mesma relação jurídica poder vir a obter soluções contraditórias de um ponto de vista prático implicaria a exigência de litisconsórcio. Por isso, do seu ponto de vista, só seria relevante para a interpretação do conteúdo do “efeito útil normal” a contradição prática entre as decisões.

               Para a interpretação lata, a expressão “efeito útil normal” abrange não apenas a situação atrás referida, mas também a da decisão que embora susceptível de aplicação restrita às partes, fica em contradição -  ainda que meramente lógica, teórica ou técnica – com outra divergente que sobre a mesma relação viessem a obter os restantes sujeitos.

               Com o CPC 61 e a definição de “efeito útil normal” do então art 28º/2 2ª parte, consagrou-se explicitamente a doutrina de Manuel Andrade, isto é, a interpretação restrita.

Em apoio desta, refere Anselmo de Castro[3], que se tem vindo a seguir de perto, que se «se tiver presente que a lei se limita a facultar e não a impor, o litisconsórcio nas relações com pluralidade de interessados com unidade de causa de pedir (art 27º/1ª parte),conclui-se que lhe é indiferente a coexistência de decisões divergentes e logicamente contraditórias, e portanto, que a situação a evitar pela obrigatoriedade do litisconsórcio, é tão só a de decisões, além de divergentes, praticamente inconciliáveis - interessa mais neste plano a viabilidade concreta das decisões, do que a sua rigorosa coerência lógica». Dizendo ainda: «Por maior que possa eventualmente vir a ser a contrariedade lógica entre as decisões, desde que sejam susceptíveis de aplicação sem inconciliabilidade prática, a decisão produz o seu efeito útil normal, e o litisconsórcio não se impõe pela natureza da relação jurídica».

 Teixeira de Sousa [4] chama, no entanto, a atenção para a circunstância da jurisprudência, não obstante a adopção pela lei da interpretação restrita, ter vindo a impor o litisconsórcio natural quer por razões de compatibilidade lógico-jurídica quer por motivos de ordem prática. Tem imperado jurisprudencialmente o ponto de vista de que o litisconsórcio deve constituir-se não apenas nos casos em que a repartição dos vários interessados por acções distintas impeça uma composição definitiva entre as partes na causa[5], mas também nas situações em que a repartição dos interessados por acções distintas possa obstar a uma solução uniforme entres todos eles[6]. E se, assim, nas acções de divisão de coisa comum, há litisconsórcio natural para evitar contradições práticas, nas acções de declaração de nulidade, ou nas acções de anulação de contratos, há litisconsórcio natural para garantir apenas que uma nova acção sobre a mesma relação não obtenha decisão contraditória.

Alberto dos Reis refere [7]: «O efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando o caso julgado material. Se este resultado não pode conseguir-se sem que estejam em juízo todos os interessados, estaremos em presença de um caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica. Por outras palavras, se a relação litigiosa for de tal natureza que, para se formar o caso julgado substancial, seja indispensável que a sentença vincule todos os interessados, todos eles têm de figurar na acção, visto, por um lado, ser inadmissível que se profira uma sentença inútil, e por outro, ser intolerável, em princípio, que uma sentença tenha eficácia contra interessados directos que não foram chamados à acção».

Referindo a este respeito Lebre de Freitas, citado na decisão recorrida, que não «se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais»[8] .

Parece que para a adopção em concreto do entendimento lato ou restrito do “efeito útil normal” contribuirá relevantemente a natureza da providência solicitada no litisconsórcio, constituindo exemplo de que assim é a presente acção.

Por isso, analisar-se-á, de seguida, a situação de ilegitimidade decorrente da decidida necessidade de se mostrarem demandados todos os proprietários que se encontrem onerados com a servidão de passagem e de aqueduto.

Entendeu a decisão recorrida – apoiando-se em despacho proferido anteriormente  à sua prolação -  que, pretendendo a A. ver «constituída e reconhecida uma servidão de passagem e de aqueduto», a relação material controvertida dizia respeito (também) aos titulares inscritos dos prédios alegadamente onerados com a servidão, referindo explicitamente: «In casu, estamos perante a constituição de uma servidão, através de um ou mais prédios (cujos proprietários inscritos não foram demandados), isso implica que o direito do titular do prédio dominante tem de ser feito valer (i.e., accionado) perante todos os proprietários desse(s) prédio(s) onerados, sob pena de esse direito não poder ser oposto a todos, caso em que não se obteria o efeito pretendido com a passagem, que é o de se alcançar a via pública a partir do prédio dominante». E conclui que a «presente acção deveria ter sido proposta contra todos (…) os proprietários dos prédios em causa, que alegadamente se encontram onerados com a servidão de passagem e de aqueduto».

A propósito da influência da natureza da providência solicitada no litisconsórcio, refere Anselmo de Castro[9] a posição de autores como Chiovenda e Liebman, para quem «nas relações com pluralidade de sujeitos, se a lei nada disser, é sempre licito accionar isoladamente ou demandar só um dos interessados, desde que a acção, pelo facto de ser proposta só por um ou apenas contra um, não perca toda a utilidade prática». O que, segundo esses autores, sucede nas acções (meramente) declarativas e nas acções de condenação -  num caso e noutro a sentença tem sempre alguma utilidade prática, ainda que a acção tenha sido proposta só por um ou contra um dos interessados. «A condenação e a declaração do direito é sempre subsistente, independentemente da contradição com outras decisões de condenação ou de declaração .«Só no campo dos direitos potestativos, e especialmente dos que tendem a uma sentença constitutiva, é que pode surgir o caso da sentença “inutiliter data”, se não for proferida com relação a todos os interessados».

Acrescentando Anselmo de Castro, repetindo ipsis verbis o que refere J. Alberto dos Reis: «É o que sucede quando a sentença haja de modificar um estado ou um acto jurídico que se apresenta com carácter de unidade em relação a várias pessoas, ou seja, quando a acção diga respeito a situações unitárias- o que é uno a respeito de vários, não pode cessar ou modificar-se senão quanto a todos os participantes», sendo que, «para além deste tipo de casos, estaria excluída a necessidade do litisconsórcio, mesmo quando a lei material considere a situação como unitária».[10]

Não deixa, no entanto, Anselmo de Castro de evidenciar que «se parece ser esse o domínio normal do litisconsórcio, não há razão alguma para que não se estenda também às acções não constitutivas, quando a decisão proferida perante uma das partes seja susceptível de ser prejudicada por uma sentença divergente, proferida perante as restantes», exemplificando com a acção de declaração de inexistência de sociedade irregular, acção que deve ser proposta contra todos os sócios, «pois de outro modo a questão não ficaria definitivamente resolvida nem sequer em relação às próprias partes intervenientes no processo», referindo ainda outro caso que «cai sobre o domínio de aplicação do litisconsórcio, apesar de se tratar de providência condenatória -  as acções por acidentes de viação, quando a lei limite o montante das indemnizações deles emergentes, em que se torna necessária a intervenção de todos os lesados na respectiva acção de indemnização (…), uma vez que a sentença terá de fixar e dividir o quantitativo da indemnização por todos os interessados».

Mas – acrescenta e conclui - «não há dúvida, porém, que o ser ou não a providência meramente declarativa ou de condenação tem o seu reflexo na necessidade ou desnecessidade do litisconsórcio», aplaudindo a jurisprudência que sustenta «que, estando determinada água a ser utilizada em regime de coutência, se algum ou alguns dos utentes vier a ser prejudicado no exercício do seu direito por outro coutente, a respectiva acção deve ser proposta apenas contra o violador-coutente, e não contra todos os coutentes, desde que eles se hajam mantido estranhos à violação. Mas já quando se trate de determinar a parcela de coutência de vários interessados no uso da mesma água – acção constitutiva – deve a acção correr contra todos. Importa que, dado estarem colectivamente interessadas várias pessoas, todos intervenham na causa».  

O que significa que não pode deixar de se atribuir relevância em sede de litisconsórcio necessário natural à natureza da providência solicitada no litisconsórcio, sendo em função desta e do conceito de utilidade da acção que se deverá, em última análise, decidir pela existência ou não daquele, solução que coloca a legitimidade plural de acordo com a definição de legitimidade adoptada pelo legislador – são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor. Se o objectivo da legitimidade é, em última análise, o de que «a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de molde a não voltar a repetir-se», como o evidencia Anselmo de Castro[11], a aferência da legitimidade plural terá necessariamente que passar pela natureza e fim da acção.

De tal modo que pelo menos como linha geral, se poderá concluir que, se as  acções meramente declarativas, «pelo seu característico e típico efeito de certificação da relação jurídica através do caso julgado, impõem a radicação da legitimidade nos sujeitos da relação jurídica, ou para usar de uma formulação mais genérica, nas pessoas que disputam a própria situação activa ou passiva em causa», e se «nas acções constitutivas se requererá a presença de todos os sujeitos da relação jurídica a constituir ou a modificar [12]», nas acções de condenação o normal é que baste à legitimidade plural a presença na lide de quem se encontre a violar o direito do autor.

Na situação dos autos a A. pretende que seja reconhecido:

 -a ela e aos RR., o direito às águas da barroca por as haverem adquirido pelo estatuto da preocupação, cfr art 1386º al d) do CC;

-a ela, o direito de propriedade às águas que nascem das duas nascentes existentes nos prédios identificados; o direito de servidão de passagem para aproveitamento das águas da barroca e das nascentes existentes nos próprios prédios; o direito de servidão de aqueduto para aproveitamento das águas da barroca e das duas nascentes; o direito a depositar e a guardar/acumular as águas que correm no rego e a que se reporta a presente acção nas duas poças.

Este tipo de pedidos de reconhecimento pressupõem, salvo melhor entendimento,  situações jurídicas já constituídas – o que a A. pretende não é que se declare a  constituição dessas situações, mas, meramente, que se reconheça a sua existência.

O que corresponde ao pressuposto específico de uma acção de condenação, pois que ao propor este tipo de acção o autor deverá alegar a titularidade de certo direito como sendo aquela que está a ser violado pelo réu, ou que prevê que venha a ser pelo mesmo violado. Com efeito, dispõe o art 10º/2 b) que as acções de condenação têm por fim «exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito». Quando o autor propõe uma acção de condenação afirma-se titular do direito de exigir do réu «a prestação de uma coisa ou de um facto», e é esse direito que ou já se encontra a ser violado pelo R. ou se prevê que o venha a ser, dando origem a uma condenação in futurum – cfr art 577º. Assim, o autor nesse tipo de acção invocará a violação por parte do réu desse direito e pedirá ao tribunal, não só que confirme por declaração judicial (por sentença) tal titularidade e violação, como condene o demandado a realizar uma prestação reintegradora desse direito.

È o que a A. faz nos autos, ao pedir, subsequentemente ao reconhecimento dos direitos que sejam condenados todos os RR. a limpar o rego e a permitir-lhes, a ela e aos seus familiares, o acesso à barroca, mina, rego e poças, e que seja a R. H... condenada a pagar € 500 pelos danos que ela sofreu com a perda da água, e os restantes RR. condenados a pagar, em comum e partes iguais, também o montante de € 500.

A A. não está a pedir a constituição de uma servidão ou a mudança de uma servidão pretendendo produzir um novo efeito jurídico material a declarar na respectiva sentença, criando uma situação jurídica nova, ou modificando ou extinguindo uma relação jurídica já existente e, por isso, introduzindo uma mudança na ordem jurídica existente, como se refere na al c) do art 10º CPC.

O que a A. pretende não é uma alteração na ordem jurídica existente, mas que, reconhecendo-se que tem direito à água da barroca pelo instituto da preocupação e à água das duas nascentes[13] pelos institutos da usucapião e destinação do pai de família, esses seus direitos sejam reintegrados com a condenação dos RR. a limpar o rego e a permitir-lhes, a ela  e aos seus familiares, o acesso à barroca, mina, rego e poças, não se vendo que a acção para produzir o seu efeito útil normal – que é a condenação destes RR. nos termos referidos – tenha de ser intentada senão contra quem viola aqueles direitos, afinal, as  pessoas que disputam a situação  passiva em causa. [14]

Veja-se ainda que o entendimento do tribunal recorrido em termos práticos e levado às últimas consequências revelar-se-ia em situações bem frequentes nos nossos meios rurais, como uma forma de denegar ou dificultar substancialmente direitos, em função da dificuldade de se identificarem e chamarem à acção a totalidade dos proprietários relativamente a cujas propriedades em que, porventura, a água, nascida muito além das mesmas, vá passando, para ser aproveitada, por quem, muito aquém dessas nascentes, se afirma titular de algum direito sobre as mesmas.

Por isso se entende – independentemente de até agora os autos não terem potenciado, nem pelas alegações, nem pelos documentos juntos (incluindo o de fls 284 que mal se percebe), nem sequer pelo relatório do acto inspectivo que neles teve lugar, a percepção clara da realidade física a ter neles em consideração – que os RR. demandados na acção são neles parte legítima, devendo, em consequência, a decisão recorrida ser revogada quando exige para a legitimidade passiva a intervenção nos autos dos  proprietários dos prédios que alegadamente se encontram onerados com a servidão de passagem e de aqueduto.[15]

Pondere-se agora a segunda das situações, também em função da qual a decisão recorrida absolveu os RR. demandados da instância.

Reporta-se a mesma à circunstância do direito de propriedade da A. sobre o art ..., raiz dos demais direitos que a mesma pretende ver reconhecidos na acção, resultando dos autos a existência de outros herdeiros (do direito a essa propriedade) para além dela e dos RR., não poder ser reconhecido sem a presença dos mesmos nela.

De facto, e como acima se assinalou na matéria fáctica são herdeiros, na qualidade de filhos de ..., falecido viúvo, não apenas a A. e a R. H... e a falecida Mª A... (cujos herdeiros foram demandados), mas também M...

Entende a decisão recorrida que «não resultando dos autos que o prédio reivindicado tenha sido objecto de partilha, falece a estes legitimidade para serem demandados, desacompanhados dos restantes herdeiros».

E de facto, não foi alegado na petição que por óbito do pai da A., os seus herdeiros, acima mencionados, tivessem procedido por acordo verbal à partilha dos bens que o mesmo deixou por morte e que se encontram relacionados, como consta da certidão junta à petição, e que, desde essa partilha, e em função dela, a A. possui há mais de 20 anos o art ..., a R. H... o art ..., e os restantes RR. o direito de propriedade em comum e sem determinação de parte ou direito sobre os art ..., todos da freguesia de ...   

E tendo tido a A. diversas oportunidades – tantas quantas os convites que a Exma Juiz lhe dirigiu para suprir a ilegitimidade passiva provocando a intervenção dos demais herdeiros não demandados –  a verdade é que, em nenhum dos articulados que produziu em acolhimento desses convites, se lembrou de alegar a existência de partilha verbal entre os herdeiros do falecido e viúvo pai. Afinal, invoca-o agora nas alegações do presente recurso, mas, ainda aí de forma incompleta, por não referir a concreta data em que tal partilha verbal terá ocorrido.

Não tendo ocorrido partilha judicial, tão pouco partilha verbal dos bens que integravam a herança do pai da A., todos os interessados na mesma  - consequentemente todos os herdeiros daquele A... – teriam que estar na acção, por a todos dizer respeito, aqui incindivelmente, o (mero) reconhecimento do direito de propriedade  por usucapião da A. sobre  o art ..., do da R. H... sobre o art ..., e o dos restantes RR., em comum e sem determinação de parte ou direito, sobre os arts ...

Isso mesmo foi posto repetidamente em evidência pelos RR. demandados, referindo que  pretendendo a A. o reconhecimento como adquirente por usucapião do prédio ..., tenho o mesmo advindo da herança de A... e sua mulher, não estando junto aos autos qualquer documento matricial ou predial ou escritura do qual conste a mesma como proprietária desse prédio, a acção deveria ter sido intentada contra os demais herdeiros – irmãos dos AA. e descendentes – dos falecidos A... e mulher, para se pronunciarem quanto à alegação da pretensa propriedade sobre tal prédio rústico.

Na verdade, se os prédios a que a A. faz referência, entre eles o ... de que se afirma proprietária, estivessem em indivisão não poderia a mesma adquiri-lo por usucapião, o mesmo sendo dito relativamente aos demais herdeiros no concernente aos prédios a que aquela lhes atribui a propriedade. Pela simples razão de que nunca tendo havido partilhas cada um dos herdeiros se limitaria a ter uma posse precária.

Dizia Vaz Serra [16], ainda no domínio do C de Seabra, mas com validade no domínio do actual CC – que «só …. uma partilha legalmente feita, pode localizar o domínio de cada um dos consortes em bens certos e determinados. Enquanto não houver inversão do tiíulo da posse, cada um dos consortes possui por si e pelos outros, não podendo, portanto, adquirir, por prescrição bens certos e determinados do património indiviso».

Um dos casos indicados por Vaz Serra para inverter o título, é o de ter havido partilha de facto que, embora «juridicamente irrelevante», faz inverter o título, «passando cada herdeiro a ter uma posse exclusiva sobre certa parte determinada da herança»,  sendo assim possível a usucapião. Consoante é referido no Ac R P 23/9/2008 [17] «a divisão de facto não tem consequências sobre o domínio dos bens, mas tem relevância jurídica ao nível da posse, desagregando a posse conjunta dos herdeiros, gerando-se posses autónomas e individuais sobre as coisas partilhadas». 

È indiscutível que «com a celebração de uma partilha entre os vários interessados, inválida por falta de forma, em que os vários intervenientes transmitiram mútua e reciprocamente a sua composse, cada um perde a sua composse na respectiva quota ideal, passando a ter a posse exclusiva sobre os bens em que, então, se convencionou materializarem a sua quota».[18]

 Já não é indiscutível que à partilha verbal se deva atribuir o conteúdo de inversão do título da posse, como o assinala o STJ [19], referindo que «não faz sentido falar-se em acto de oposição contra o transmitente voluntário. A partir dessas reciprocas transmissões, se bem que inválidas, porque consensuais, não faz sentido falar-se em acto de oposição contra o transmitente voluntário. Não se está, neste caso, perante a figura da inversão de posse».

Para o que está em causa nestes autos irreleva que assim seja ou não.

O que importa é perceber que quando a A. na petição inicial, depois de evidenciar os laços familiares entre ela e os RR. e os reconduzir aos falecidos seus pais A..., se diz proprietária do prédio correspondente ao inscrito na matriz predial ...,  bem como diz que a R. H... é proprietária do prédio inscrito na matriz sob o art ... e os sucessores de M... – eles próprios demandados  - são proprietários dos prédios inscritos na matriz sob o arts ..., referindo que ela «cava, lavra, planta … por si e antepossuidores, desde há mais de 20 anos e de forma pública, pacífica, contínua e de boa fé», isto é, «na convicção de que exerce direito que lhe assiste, e de que não viola direitos de outrem, pelo que adquiriu o direito pelo estatuto da usucapião que aqui invoca para os legais efeitos», e que o art ... constitui a verba nº 82, o art ... constitui a verba nº 34, e os arts ... as verbas 36 e 37 da relação de bens junta ao Processo de Imposto Sucessório nº ... por óbito de A..., cuja certidão se mostra junta aos autos a fls   82 e ss, está a pretender invocar ter existido  uma partilha verbal dos bens aí relacionados e que a mesma terá tido lugar há mais de 20 anos, tendo por referência a propositura da acção.

 È certo que não o refere, mas isso deverá pressupor-se: desde logo porque, como acima se evidenciou, se fosse co-herdeira não poderia adquirir por usucapião, na medida em que a posse como compossuidora é precária; não tendo alegado uma específica inversão do titulo de posse, não tendo alegado uma partilha devidamente formalizada, por inventário ou escritura pública, teria, então, que estar a pressupor a referida partilha verbal, não formalizada, ocorrida há mais de 20 anos e que teria permitido que ela e os referidos irmãos tivessem adquirido por usucapião, cada qual, a propriedade das referidas verbas.

O fundamento da aquisição por ela, e pelos irmãos, cada qual relativamente aos acima referidos específicos artigos matriciais do respectivo direito de propriedade é a usucapião, ou seja, a posse pública e pacífica por um período de tempo superior a 20 anos, na sequência de uma partilha verbal efectuada entre os irmãos, e na sequência da qual cada um deles entrou na posse em nome próprio dos acima referidos prédios, posse essa, ainda que não titulada – porque não correspondente a um modo legitimo de adquirir,  cfr  1259º CC – e, porque não titulada, presumivelmente de má fé, porque mantida continuadamente desde há mais de 20 anos. lhes permitiu a aquisição por usucapião do respectivo direito de propriedade que a A. pretende seja reconhecido na acção.

Tudo isto foi dito para se perceber que a A., embora não alegando especificamente a existência da referida partilha verbal, necessariamente que a estava a pressupor.

Acresce que o primeiro dos documentos que se mostra junto à petição, corresponde a uma carta que a mesma terá enviado à R. H..., na qual se diz no respectivo 2º parágrafo: «Alguns anos após o óbito de A..., pai em 14.12.1993, fizemos partilhas em que, por sorte, ficamos com metade do art ..., ambos da Freguesia de ..., facto que V Exª bem conhece».

O que significa que a A., relativamente ao direito em questão – o da propriedade adquirida por usucapião após a partilha por “sortes” – alegou, dos factos essenciais necessários à procedência dessa pretensão, os bastantes para a individualizar, mas não os suficientes para a sua subsunção à norma cuja protecção requeria, que passava pela invocação da referida partilha verbal.

Tendo, pois, produzido uma alegação incompleta ou insuficiente, teria cabido ao Exmo Juiz  no  despacho pré-saneador providenciar pelo aperfeiçoamento da petição  ( nº 2 al b) e nº 4 do art 590º do CPC) no aspecto acima referido, ao invés de, na sequência da defesa produzida pelos RR., ter subsumido a questão necessariamente à ilegitimidade passiva plural, fazendo correlativamente uso do disposto na al a) do nº 2 do invocado art 590º, providenciando pelo suprimento de excepção dilatória, nos termos do nº 2 do art 6º.

È evidente, salvo o devido respeito, que, no aspecto em apreço, tão inábil se mostrou ser o Julgador quanto a própria A., cada um obstinando-se a, apenas, ver a sua perspectiva, não tendo confluído em momento algum com o que importava esclarecer.

È, por assim ser, que, também relativamente a este conspecto da ilegitimidade passiva, se entende ser de revogar a decisão recorrida para que o Exmo Juiz  convide a A. a suprir a insuficiência alegatória acima referida, concretizando a existência de partilha verbal e o momento em que a mesma teve lugar.

Antes de terminar, cumprirá - porque se trata de matéria oficiosa sobre a qual não incidiu a decisão recorrida ou qualquer outra anterior nos autos  – agora, efectivamente, ao abrigo da al a) do nº 2 do art 590º CPC,  que nesse despacho se convide também a A. a tornar claro que a acção se dirige à herança de A..., visto que, como o esclareceu o demandado ..., a herança daquela  continua indivisa, retirando-se, após esse esclarecimento, as necessárias consequências relativamente à presença na acção de ...

V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação e revogar totalmente a decisão recorrida, devendo fazer-se prosseguir a acção com os convites à A. acima referidos.

Custas pelos apelados.

Coimbra, 2 de Abril de 2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)

              


[1]Código de Processo Civil Anotado», 1999, vol I,
[2] - «Scientia Jurídica» VII, 1958, 34
[3] -  «Direito Processual Civil Declaratório»,II, 205,
[4] - Obra referida «Estudos…» e em «As partes, O Objecto e a Prova na Acção Declarativa», p 72
[5]- Refere Lopes do Rego, no Ac STJ de 22/10/2015: «É absolutamente indiscutível a necessidade do litisconsórcio naqueles casos em que a repartição dos vários interessados por acções distintas fosse de molde a impedir uma composição definitiva mesmo entre as próprias partes na causa, ficando a própria afectação ou repartição dos bens, operada no confronto de A e de B, sujeita a uma inevitável e incontornável precariedade, já que tal afectação teria necessariamente de ser rediscutida e reapreciada no âmbito das acções que viessem a ser ulteriormente movidas pelos restantes interessados: é a situação típica dos juízos divisórios (acção de divisão de coisa comum, rateio de um montante indemnizatório legalmente fixado entre os vários lesados de um mesmo acidente - cfr. assento de 29/5/56), em que o rateio, a repartição ou a divisão de um bem unitário pelos vários consortes ou interessados só pode sedimentar-se se todos elas estiverem, cumulativa e simultaneamente, em juízo - sob pena de a divisão do bem, operada apenas no confronto de alguns, ser posta em cheque quando os restantes consortes pretenderem realizar, em acção por eles desencadeada, nova divisão global do bem, afectando naturalmente a quota fixada na acção proposta entre A e B… »

[6] - Refere ainda Lopes do Rego no mesmo acórdão: «A doutrina e a jurisprudência têm, porém, desde há muito, operado uma interpretação mais ampla do conceito de efeito útil normal, admitindo o litisconsórcio necessário natural nas situações em que, por ser o objecto do processo um interesse indivisível e incindível dos vários interessados ou contitulares, se impõe o litisconsórcio por prementes razões de coerência jurídica, que ficaria relevantemente afectada pela possibilidade de serem proferidas, em causas separadas, decisões divergentes acerca desse mesmo objecto unitário e indivisível».
[7]- « Código de Processo Civil Anotado»,  I, 95,
[8] - «Código de Processo Civil Anotado»2008, I, 58
[9] Através de considerações que, como reconhece (nota 1 a p 209), são quase literalmente as de J. Alberto dos Reis no «Código de Processo Civil Anotado», II, 208 e ss 

[10]-  José Alberto dos Reis faz notar que não basta que a sentença produza «qualquer efeito útil»: «é necessário que produza o seu efeito útil normal». Ora, «o efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando o caso julgado material. Se este resultado não puder conseguir-se sem que estejam em juízo todos os interessados, estaremos em presença de um caso de litisconsórcio emanado da própria natureza da relação jurídica. Por outras palavras, se a relação litigiosa for de tal natureza, que, para se formar o caso julgado substancial, seja indispensável que a sentença vincule todos os interessados, todos eles têm que figurar na acção, visto, por um lado, ser inadmissível que se profira uma sentença inútil, e, por outro, intolerável, em princípio, que uma sentença  enha eficácia contra interessados directos que não foram chamados à acção».

[11] - Ainda «Direito Processual Civil Declaratório», II,  p 167/168
[12] - Obra citada, p 173/174
[13]- Que, no requerimento de fls 257/258, já na sua parte final, situa nos prédios rústicos ..., prédios estes da falecida irmã Mª A...
[14] - As próprias servidões legais embora radiquem num direito potestativo - por ser facultado ao proprietário dominante impor a servidão ao prédio serviente – podem constituir-se de forma voluntária: quando os dois titulares acordarem na concretização do ónus, ou quando se constituam por usucapião. Só quando se constituam por decisão judicial a respectiva acção corresponderá a uma acção constitutiva, cfr  Tavarela Lobo, «Manual do Direito de Águas», Vol II, 2ª ed,  256/258 
[15]- No sentido defendido veja-se o Ac R G 22/2/2011 (Manuel Bargado),  cujo sumário, na parte que aqui releva, é o seguinte: «1. Se os autores pedem que o réu seja condenado a reconhecer que aqueles são os proprietários das águas com que irrigam o seu prédio rústico e que o prédio do réu está onerado com uma servidão de aqueduto em benefício do seu prédio, e ainda a sua condenação a desobstruir o rego que corre a céu aberto no seu prédio por forma a permitir que as águas sejam conduzidas até ao prédio dos autores e a abster-se, no futuro, de praticar quaisquer actos que impeçam essa mesma condução da água, não é necessária a demanda do proprietário do prédio onde se situa a poça donde provém aquela água, para que esteja assegurada a legitimidade do réu na acção (…) ».
Veja-se também o Ac STJ de 23/9/1997 (Martins da Costa) de que apenas consta em www dgsi pt o respectivo sumário, que é do seguinte teor: «1- O litisconsórcio necessário exigido “pela própria natureza da relação jurídica” apenas se destina a evitar decisões praticamente inconciliáveis, sendo indiferente a coexistência de decisões logicamente contraditórias. II – Não se verifica litisconsórcio na acção em que se pretende o reconhecimento da existência de servidão de passagem, constituída, por usucapião, a favor de prédio encravado e sobre dois prédios, podendo a acção ser intentada só contra o proprietário de algum dos prédios servientes, designadamente aquele que tiver levantado obstáculo ao exercício da servidão (…) »
[16]-– Revista da Legislação e Jurisprudência,  Ano 91 p 161
[17] - Relatora, Mª Eiró; no mesmo sentido, Ac RE 27/4/2017 (Tomé Ramião)
[18]- Durval Ferreira, «Posse e Usucapião», p 202
[19] - Cfr Ac STJ 3/3/2009 (Alves Velho), Ac STJ 19/10/2004, Ac STJ 27/6/06