Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2738/11.8TBCLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
SEGURANÇA SOCIAL
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – ALCOBAÇA – JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 734.º DO C. CIVIL
Sumário: Os juros de mora dos créditos da Segurança Social gozam dos privilégios creditórios apenas no que diz respeito aos dois últimos anos (cfr. art. 734.º do C. Civil) e não em todo o limite temporal do respectivo prazo prescricional.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Por apenso à execução, para pagamento de quantia certa, que A..., Lda, com os sinais dos autos moveu a B..., também id. nos autos, veio o Instituto da Segurança Social - Centro Distrital de C... reclamar créditos de contribuições, como trabalhador independente do executado supra identificado, sendo € 12.899,40 de capital, € 3.782,05 de juros de mora (calculados de Outubro/2005 a Agosto/2012) e € 481,83 de custa processuais.

Não foi deduzida qualquer impugnação.

Conclusos os autos e estando a instância totalmente regular, foi proferida sentença em que se expendeu o seguinte:

(…) por não ter sido impugnado, está reconhecido o crédito reclamado, acima devidamente identificado.

O credor reclamante tem a seu favor o privilégio próprio das dívidas por contribuições à Segurança Social. O crédito exequendo é comum, apenas beneficiando de penhora registada a seu favor.

Nos termos do disposto no art.º 11.º, do Dec. Lei n.º 103/80, de 9.05, o crédito da Segurança Social goza de privilégio imobiliário.

Das disposições legais acabadas de citar, verifica-se que o crédito reclamado pela Segurança Social, porque goza de privilégio imobiliário, prefere ao crédito exequendo.

Para o credor poder reclamar o seu crédito, tem, antes de mais, de ter garantia real sobre os bens penhorados (cfr. art.º 788.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), dispor de título exequível (n.º 2 disp. legal cit.) e apresentar a reclamação no prazo de 15 dias.

Compulsados os autos, verifica-se que todos os mencionados requisitos legais de que depende a admissão da presente reclamação, se encontram genericamente verificados, com excepção do que infra se apreciará, pelo que o crédito de que o reclamante dispõe pode ser reclamado nos presentes autos, já que se trata de crédito da Segurança Social e a reclamação foi atempadamente apresentada.

Chegados a este ponto, importa verificar como devem o crédito reclamado e o exequendo ser graduados entre si.

Constata-se, pelos fundamentos acima aduzidos, que deverá prevalecer o crédito da Segurança Social, conforme acima enunciado.

Uma nuance apenas cumpre assinalar: vem a credora reclamante requerer a graduação dos créditos provenientes de dívida de capital, juros vencidos custas processuais.

Relativamente aos créditos provenientes da dívida de capital, dúvidas não restam de que os mesmos gozam do mencionado privilégio creditório. O mesmo cumpre referir quanto aos juros vencidos no prazo dos dois anos anteriores à data da penhora, a qual teve lugar em 23.04.2012, ou seja, em conformidade com o disposto no art.º 734.º, do CC, gozam ainda do mesmo privilégio creditório os juro moratórios vencidos desde Abril de 2010 (porque estão abrangidos pelos dois anos anteriores à penhora). Quanto aos juros vencidos e anteriores a esta data e quanto às despesas de execução, já não gozam os mesmos de tal privilégio, pelo que deverão ser graduados enquanto crédito comum e, nesta qualidade, não beneficiando de privilégio, não podem ser reconhecidos no âmbito da presente reclamação.

Assim, dos créditos reclamados e que beneficiam de garantia para serem reconhecidos e graduados nos presentes autos apenas há a considerar o crédito de capital de 12.899,40€ e os créditos de juros vencidos desde Abril de 2010 (no total de 157,08€), não beneficiando os demais créditos invocados de qualquer privilégio, pelo que não poderão ser admitidos nos presentes autos.

Após o que se concluiu do seguinte modo:

“ (…) atento o disposto no art.º 791.º/2 do CPC, tem-se como reconhecido o crédito reclamado, no total de 13.056,48€ e consequentemente, gradua-se o mesmo, com o crédito exequendo, pela ordem e forma seguinte:

1.º - Crédito de capital e dos juros vencidos contados desde Abril de 2010 da Segurança Social pelas contribuições devidas, no total de 13.056,48€.

2.º - Crédito exequendo. (…) ”

Inconformado, interpôs o Instituto da Segurança Social recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “reconheça, verifique e gradue os créditos reclamados (…) sem qualquer restrição temporal, referentes ao capital e respectivos juros de mora, no valor total de no valor de € 16.681,45”.

Terminou a sua alegação com as seguintes “conclusões”:

1.º - O ora Apelante, citado nos termos do n.º 2 do Artigo 865.º e da alínea d) do n.º 3 do Artigo 864.º do Código de Processo Civil, em 04/09/2012, reclamou créditos, no montante global de 17.163,28€, no âmbito do processo execução comum supra identificado.

2.º - Os créditos reclamados respeitavam a contribuições do Regime de Independentes da Segurança Social dos meses de Outubro de 2005 a Julho de 2012, no valor de 12.899,40€  juros de mora vencidos calculados ao mês de agosto de 2012, no valor de 3.782,05€  e respetivas custas processuais, no valor de 481,83€.

(…)

6.º - O ora apelante, nada tem a dizer quanto ao não reconhecimento das custas processuais, uma vez que concorda que as mesmas não gozam de privilégio creditório.

7.º - No entanto, já no que se refere ao entendimento de que os juros de mora peticionados na reclamação de créditos, anteriores aos últimos dois anos, não gozam de privilégio creditório, nos termos do artigo 734.º do Código Civil, salvo o devido respeito, não pode, nem deve conformar-se com a referida decisão, discordando dos fundamentos da mesma e perfilhando de entendimento diverso.

8.º - De acordo com o artigo 734.º do Código Civil, “o privilégio creditório abrange os juros relativos aos últimos dois anos, se forem devidos.”

9.º - Contudo, o Decreto-Lei nº 512/76, de 3/7 veio estipular que os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e os respectivos juros de mora gozam: - de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na al. a) do n.º 1 do art.º 747.º do Código Civil (art. 1º, n.º 1) - de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades, patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no art. 748.º do CCivil (art. 2.º).

10.º - O n.º 2 do artigo 150.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS) “(…) Os trabalhadores independentes são, no que se refere à qualidade de contribuintes, equiparados às entidades empregadoras.(…)”.

11.º - O mesmo sucede, atento o DL n.º 103/80, de 9/5, nos artigos 10.º e 11.º, para os créditos das caixas de previdência por contribuições, também sem quaisquer restrições, para os juros de mora.

12.º - Atualmente o mesmo resulta da aplicação do Artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS) “(…) Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil. (…)”

13.º - Trata-se de diplomas especiais, que, assim, afastam as regras gerais, como resulta, a contrario, do disposto no art.º 7.º, n.º 3, do Código Civil.

14.º - Sublinhe-se, ainda, que, de acordo com o preâmbulo do DL n.º 512/76, de 3/7, o escopo visado por este diploma é o de definir as garantias que assistem aos créditos por contribuições do regime geral de previdência e aos respetivos juros de mora, por forma a acautelar mais eficazmente os interesses da população beneficiária.

15.º - Por certo que se o legislador, que não desconhecia a limitação temporal estabelecida para os juros no art. 734.º do Código Civil, não estabeleceu qualquer limitação para os juros foi porque manifestamente não quis estabelecê-la.

16.º - É esta, aliás, a orientação quase unânime da jurisprudência que, assim, vem entendendo que o privilégio de que gozam os créditos de contribuições à Segurança Social e respetivos juros de mora não está sujeito aos limites temporais fixados nos artigos. 734.º e 736.º do Código Civil, neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/02/2010 (1411/05.0TBTVD-A.L1-6), acórdão do STJ de 11/02/2010 (Apelação n.º 4492/04.OTBVFR-C.P1), acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/11/2010 (50/08.9TBACN-B.C1).

17.º - Nestes termos, o crédito reclamado pelo apelante, no valor total de 17.163,28€, correspondendo a contribuições no montante de 12.899,40€ a que acrescem juros de mora vencidos calculados ao mês de agosto de 2012, no valor de 3.782,05€ e respetivas custas processuais, no valor de 481,83€, deve ser parcialmente reconhecido, verificado e graduado, no valor de 16.681,45€ .

18.º - Os juros relativos aos anos anteriores a abril de 2010, dispõem de uma garantia real e o montante reclamado relativo a contribuições do Regime de Independentes da Segurança Social dos meses de outubro de 2005 a julho de 2012, gozam de privilégio imobiliário geral sobre os bens existentes no património do executado, uma vez que não está dependente da data da sua constituição e é graduado logo após os créditos referidos no artigo 748.º do C.C.

19.º - A douta decisão violou, além do mais o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80 de 9 de Maio, Artigo 204.º do CRCSS e 733.º do Código Civil.

Não foram apresentadas quaisquer contra alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

a) Encontra-se penhorada nos autos de execução a que os presentes se encontram apensos, uma quota-parte do direito de propriedade sobre o bem imóvel, devidamente identificada a fls. 15 e 16 dos autos.

b) O exequente tem, a seu favor, tão só a penhora sobre o direito identificado.

c) O executado tem, para com a Segurança Social, dívidas provenientes da falta de entrega das respectivas contribuições; que ascendem à quantia de 17.163,28, sendo de capital € 12.899,40 e de juros € 3.782,05, entre Outubro/2005 a Agosto de 2012, conforme descriminação constante de fls. 4 a 6 dos autos.


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III – Fundamentação de Direito

O recorrente circunscreve, como claramente resulta das suas conclusões, a sua divergência – em relação à recorrida sentença de verificação e graduação de créditos – ao não reconhecimento, verificação e graduação dos juros de mora anteriores a Abril de 2010.

Não tem, a nosso ver, razão, desde já se antecipa.

Tudo está em saber, a propósito dos privilégios creditórios da Segurança Social (sucessivamente consagrados nos art. 1.º e 2.º do DL 512/76, de 03-07, nos art. 10.º e 11.º do DL 103/80, de 09-05, e nos art. 204.º e 205.º do CRCSS), se os juros de mora dos créditos da Segurança Social gozam dos privilégios creditórios apenas no que diz respeito aos dois últimos anos (cfr. art. 734.º do C. Civil) ou, ao invés, durante o prazo de 10 anos do art. 14.º do DL 103/80 (ou, actualmente e desde 01/01/2011, durante o prazo de 5 anos do art. 187.º/1 do CRCSS[1])

Questão em que, atento o modo como se encontravam redigidos os art. 1.º/2.º do DL 512/76, os art. 10.º/11.º do DL 103/80 e os art. 204.º/205.º do CRCSS – dizendo-se que “os créditos pelas contribuições e os respectivos juros de mora gozam de privilégio,” (mobiliário ou imobiliário, conforme o preceito legal) – é possível sustentar tanto a interpretação da sentença recorrida como a interpretação defendida pelo recorrente.

Por um lado, pode dizer-se que tais preceitos consagram a existência de privilégios creditórios a favor da Segurança Social e que, ao efectuar-se tais consagrações, está-se a remeter para o recorte geral que os privilégios creditórios têm no C. Civil[2], incluindo/acoplando tudo o que aí é típico e próprio dos privilégios creditórios, designadamente a abrangência dos juros dos últimos dois anos e nada mais.

Por outro lado, pode dizer-se que, se fosse assim, não seria necessário incluir a expressão “e respectivos juros” – uma vez que, então, tal abrangência (de 2 anos) já resultaria como que “por remissão/defeito” do art. 734.º do C. Civil – pelo que tal expressão tem o sentido de estabelecer a mesma inexistência de limites temporais que se tem entendido inexistir para o crédito/capital.

Seja como for – e reconhecendo pertinência a ambos os argumentos – uma coisa é um crédito e o juro dum crédito serem exigíveis (por não se encontrarem prescritos) e outra coisa, diferente, é ao crédito e aos juros de tal crédito serem atribuídos um privilégio creditório; seja por todo o período do crédito (até à prescrição), seja por todos os respectivos juros de tal crédito (até à prescrição).

E tal distinção – o estabelecimento de diferentes prazos para a prescrição e para o privilégio – é feita/admitida pelo próprio C. Civil, quando, por ex., estabelece um prazo de dois anos para o privilégio consagrado no art. 736.º/1 do C. Civil ou quando não faz questão de harmonizar o prazo de prescrição dos juros (de 5 anos, cfr. art. 310.º/d) do C. Civil) e o período em que os mesmos estão cobertos pelo privilégio (os 2 anos do art. 734.º do C. Civil)[3].

Assim, em termos interpretativos, inclinamo-nos para o seguinte:

 - Na ausência duma menção explícita a limitar temporalmente o privilégio sobre o crédito/capital, entendemos que se deve considerar/interpretar que este goza do privilégio creditório até ao termo do prazo prescricional[4]; mas (e é este o caso sub-judice),

- Na ausência duma menção explícita/categórica a derrogar o disposto no art. 734.º do C. Civil, entendemos que se deve considerar/interpretar que os juros de mora dos créditos da Segurança Social têm o tratamento que resulta de tal art. 734.º do C. Civil, isto é, que gozam dos privilégios creditórios apenas no que diz respeito aos dois últimos anos[5].


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Em face de tudo isto, bem andou a sentença recorrida ao não reconhecer, verificar e graduar os juros de mora anteriores a Abril de 2010; assim improcedendo tudo o que o apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio do recurso e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.

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IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas, nesta instância, pelo apelante.


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Coimbra, 26/04/2016

(Barateiro Martins)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)


[1] Efectivamente, o CRCSS revogou o DL 103/80 e reduziu o prazo prescricional para 5 anos, o que convoca a aplicação do art. 297.º/1 do C. Civil (sem repercussão prática no caso sub-judice, uma vez que da sua aplicação não resulta, por causa do prazo mais curto, a prescrição de qualquer crédito/capital aqui reclamado pela S. Social).
[2] Para a “figura” dos privilégios creditórios, como ela está desenhada na lei (C. Civil) “fundadora” dos mesmos.

[3] O mesmo acontecendo com os créditos laborais, que podem não estar prescritos (cfr. art. 337.º/1 do CT) e, contudo, não estarem cobertos pelo privilégio nos termos do art. 737.º/1/d) do C. Civil.

[4] Aliás, no art. 11.º do DL 103/80 (mas não no art. 10.º) até constava a expressão “independentemente da data da sua constituição”, porém, após “os créditos pelas contribuições”, ou seja, “os respectivos juros de mora” não estavam abrangidos, numa estrita interpretação literal, pela referida expressão “independentemente da data da sua constituição”.
[5] Cfr. neste sentido, Miguel Lucas Pires, Dos Privilégios Creditórios, 2.ª ed., 276/7; e, em sentido oposto, Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 1.ª ed., pág. 172.