Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
17/08.7IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: CRIME FISCAL
MATÉRIA DE FACTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 01/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARAÇÃO DE NULIDADE
Legislação Nacional: ART. 412, N.º 3, DO CPP; ART. 50.º, DO CP; ART. 14.º DO RGIT
Sumário: I - Da lei resulta que, na especificação dos factos, o recorrente terá que indicar o(s) facto(s) individualizado(s) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado(s). Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

II - Quando o recorrente se socorra da prova documental, tem que especificar o documento ou o excerto do documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada, tem que indicar o(s) depoimento(s) em questão (por identificação da pessoa em causa), tem que relatar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra o erro em que incorreu a decisão, e tem que localizar este excerto no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo de gravação. É este o iter procedimental a seguir quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto com recurso à prova gravada.

III - O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012 do S.T.J. decidiu que, na suspensão da execução da pena por crime de abuso de confiança fiscal, o tribunal tem que fazer um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal imposta à suspensão por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, decidindo ainda que a falta desse juízo gera nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

IV - Não tendo o tribunal recorrido feito o juízo de prognose sobre a satisfação da condição imposta pelo art. 14.º do RGIT, incorre a sentença, nos termos decididos, em omissão de pronúncia, omissão que gera a nulidade da sentença, no segmento relativo ao estabelecimento de condição.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi o arguido A... condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, do art. 105º, nº 1, 2, 4, 5 e 7 do RGIT, na pena de 1 ano de prisão, suspensa por 3 anos, sob a condição de, até ao termo do prazo de suspensão, pagar as quantias de IVA retidas, no valor de 227.371,12 €, e acréscimos legais.

A arguida B..., Ldª, foi condenada pela prática do mesmo crime na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 10 €.

2.

Inconformado, o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«I. Foi o recorrente condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal pela falta de entrega de IVA referente aos períodos de Janeiro, Março, Agosto, Setembro e Dezembro de 2006 e Fevereiro, Março e Maio de 2007.

lI. Tendo sido apurado IVA a pagar no montante de € 235.415,15, sendo o montante que constitui ilícito criminal de € 227.371,12, por ter sido este considerado efectivamente recebido pela sociedade arguida.

IlI. Do mesmo resulta que o IVA foi oficiosamente apurado pelos Serviços de Inspecção Tributária pelo facto de não ter sido, pela sociedade originária, apresentadas as respectivas declarações periódicas de IVA nos períodos de 0601 a 0707, que, como ficou demonstrado pelo depoimento das testemunhas lida C...e D..., se deveu ao facto de a referida Técnica Oficial de Contas ter renunciado àquelas funções, obrigando, a sociedade devedora originária, a reorganizar-se - cfr. notas n.ºs 1 e 2.

IV. O montante do IVA a pagar, de acordo com o Relatório de Inspecção junto aos autos, foi apurado tendo em conta a contabilidade da sociedade arguida, sendo que o efectivo recebimento do IVA alegadamente devido foi confirmado através dos recibos constantes na contabilidade, conforme resultou do depoimento da testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento, E..., parcialmente transcrito nas notas de rodapé n.º 3 e 5.

V. Sucede, porém, que facturas houve cujo recebimento não se verificou, o que facilmente poderia - e deveria - ter sido verificado pelos serviços de inspecção tributária, conforme resulta da prova feita em sede de audiência de julgamento, através do depoimento da testemunha D... - cfr. nota de rodapé n.º 4.

VI. Com efeito, do depoimento da testemunha resultou que houve, pelo menos, duas facturas, de elevada monta, que não foram efectivamente pagas à sociedade arguida.

VII. Uma delas, respeitante a negócios assumidos entre a sociedade arguida e uma outra empresa do grupo, a B... lI - Promoções Imobiliárias, Lda., no montante de € 71.616,94 - cujos recibos resultam dos presentes autos a fls. 135, 137 e 154 - por traduzirem operações que não existiram na realidade.

VIII. E a outra, referente ao período de Janeiro de 2006, emitida à sociedade J..., Lda., cujo montante por receber foi de € 119.239,05, a que corresponde um valor de IVA de € 19.038,17 - conforme resulta do extracto de conta a fls. 114 dos presentes autos - cujo recibo foi emitido na expectativa de o pagamento ser efectuado através de um terreno propriedade da sociedade devedora, que veio mais tarde a frustrar-se por força de um arresto de que foi o referido terreno objecto.

IX. Donde resulta não ter sido o IVA referente àquelas facturas recebido pela sociedade arguida, sendo certo que, como resultou do depoimento, tal recebimento não foi verificado pela Administração Tributária - cfr. depoimento parcialmente transcrito na nota de rodapé n.º 5.

X. E nem se diga que tal verificação não lhe estava acometida, porquanto o critério de fiscalização, seja a favor, seja contra a Administração Tributária, terá que ser o mesmo, em estrito cumprimento do princípio da legalidade e igualdade tributária.

XI. E sendo certo que o crime que foi o aqui recorrente condenado se consuma com a apropriação do montante efectivamente recebido a título de IVA e não entregue nos cofres do Estado, tal verificação impunha-se, ao abrigo do princípio da descoberta da verdade material, por forma a demonstrar tal apropriação, que, nos presentes autos, não foi, confessadamente, demonstrada.

XII. Não podendo, como tal, comprovar-se o efectivo recebimento do IVA cuja entrega foi o recorrente acusado de não efectuar, através de um mero recibo que pode não traduzir - de resto, tal como tantas vezes defendido pela Administração Tributária noutros processos crime de natureza tributária - o recebimento efectivo.

XIII. É de notar que a testemunha E... diz, no seu depoimento, "... o recibo é um documento de quitação. A partir do momento em que a empresa emite o recibo, parte-se do princípio que a empresa recebeu ..." - cfr. nota de rodapé n.º 3 - donde resulta que o efectivo recebimento do IVA que é dado como provado nos autos está alicerçado numa mera presunção.

XIV. Ora, in casu, se a testemunha D..., consultor da sociedade arguida, afirma, com toda a convicção e credibilidade, que os montantes acima referidos, entre outros, não foram efectivamente recebidos - cfr. depoimento parcialmente transcrito na nota de rodapé n.º 4 - e se a testemunha E... afirma, também convictamente, que não verificou o efectivo recebimento, apenas dando como bons os recibos existentes na contabilidade da sociedade arguida - cfr. notas de rodapé n.ºs 3 e 5 - não poderia, pelo tribunal a quo, ter sido dado como provado o seu efectivo recebimento.

XV. Acresce que, os resultados apurados no Relatório de Inspecção, dados como provados nos presentes autos, não poderiam ter merecido qualquer credibilidade pelo tribunal a quo, senão vejamos:

XVI. Resulta do Relatório de Inspecção que a Administração Tributária apurou, do IVA contabilizado, o montante de € 20.323,13 de IVA que não foi efectivamente recebido pela sociedade arguida.

XVII. Ora, ainda que seja considerado que os recibos juntos aos autos reflectem o efectivo recebimento das facturas a que correspondem, certo é que da contabilidade da sociedade arguida - a que a Administração Tributária deu toda a credibilidade - resultam facturas não pagas, nos períodos em crise, no montante de € 289.740,20 - cfr. extracto de contas insertos a fls. 115, 116, 117, 119, 120, 125, 127, 128, 129, 130 e 134 - como segue no quadro infra:

Cliente                            Fls. dos autos                         Facturas não pagas            IVA liquidado e não recebido

M...                   Fls. 105 e 93                10.378,03 €                          1.657,00 €

N...                   Fls. 103 e 108               35.500,00 €                          5.668,07 €

O...                      Fls. 97                          10.726,50 €                          1.712,63 €

P...       Fls. 94 e 106                 33.880,00 €                          5.409,41 €

Q...                    Fls. 112                         48.264,04 €                          7.706,02 €

L...                          Fls. 107                         78.427,50 €                         12.522,04 €

R...              Fls. 98                           72.564,13 €                         11.585,87 €

          TOTAL                                                        289.740,20 €                       46.261,04 €

XVIII. Em relação às quais foi liquidado IVA no montante de € 46.261,04, e que não foi recebido, sendo que, inexplicavelmente, do relatório de inspecção cuja matéria foi dada como provada pelo tribunal a quo resulta um montante de IVA não recebido de apenas € 20.323,13 - cfr. pág. 3 do relatório de inspecção inserto nos autos a fls. 3.

XIX. Mas mais grave ainda: facturas existem cujo IVA foi liquidado e recebido, não pela sociedade arguida, mas pela própria Administração Tributária.

XX. O que se deixou   

XXI. Com efeito, a factura identificada no extracto de conta a fls. 134, foi paga em 20 de Novembro de 2007, através de uma penhora de créditos efectuada ao abrigo do processo de execução fiscal n.º 1348200701007114, cujo IVA, claro está, no montante de € 3.121,80, foi recebido directamente nos cofres do Estado - cfr. doc. n.º 1.

XXII. Da mesma forma, o montante de € 6.501,81, respeitante ao pagamento parcial da factura n.º 262 - cfr. extracto de conta a fls. 129 - foi pago, pela sociedade L..., Lda. directamente à Administração Tributária, no âmbito de uma penhora de créditos e aplicada no processo de execução fiscal n.º 1348200601010220 e apensos - cfr. doc. n.º 2, cujo IVA, no montante de € 1.038,10, foi recebido pela Administração Tributária e não pela sociedade arguida ou pelo aqui recorrente.

XXIII. Também a factura n.º 252 de 20 de Setembro de 2006 - cfr. extracto de conta a fls 120 - emitida à sociedade Construmansos, Lda., no valor de € 72.564,13 foi, na sua totalidade, paga através de penhora de créditos no âmbito do mesmo processo de execução fiscal, em 18 de Julho de 2007 - cfr. doc. n.º 3 - à qual correspondeu um IVA liquidado e pago nos cofres do Estado de € 11.585,87.

XXIV. Ora, respeitando aquela factura ao período de Setembro de 2006, deveria a Administração Tributária, em concreto, os serviços de inspecção tributária, ter apurado IVA liquidado e não recebido pela sociedade arguida, pelo menos, no montante correspondente ao referido IVA de € 11.585,87; contudo, como resulta do quadro presente na página 3 do relatório de inspecção, daquele período resulta apenas, a título de IVA liquidado e não recebido, o montante de € 6.851,74.

XXV. Pelo que dúvidas não podem existir quanto ao facto de a Administração Tributária ter considerado o referido montante de IVA como tendo sido recebido pela sociedade arguida, imputando-lhe a ela e aos demais arguidos, a responsabilização penal por se terem aqueles apropriado de um montante de IVA, por não o terem entregue nos cofres do Estado, o mesmo IVA que a Administração Tributária recebeu nos seus cofres directamente, o que constituiu acto ilegítimo, ilegal e imoral.

XXVI. Ora, o tribunal não só não relevou a prova, quer testemunhal, quer documental, produzida nos presentes autos quanto a esta matéria, como nem sequer da mesma fez qualquer tipo de apreciação relativamente à mesma, como resulta da sentença recorrida.

XXVII. Acresce que, no âmbito do referido procedimento inspectivo, foi também apurado um montante de IVA a recuperar de € 119.620,02, isto é, um crédito de IVA.

XXVIII. Que, de acordo com a prova documental produzida nos presentes autos - rectius, relatório de inspecção - e com a prova testemunhal (cfr. nota de rodapé n.º 8), não pôde ser considerado porquanto, alegadamente a sociedade arguida teria perdido o direito ao referido crédito por força do incumprimento das suas obrigações declarativas.

XXIX. Sem prejuízo de se deixar a nota, deixada outrossim em sede de audiência de julgamento, que não só assim não é, como jamais se poderá penalizar criminalmente os arguidos por não terem apresentado as declarações periódicas, pois que tal incumprimento é punido exclusivamente a título contra-ordenacional, pois que da mesma forma que é relevante o efectivo recebimento do imposto para preencher o ilícito criminal, também o deve ser a existência de créditos de IVA, que, no decurso de acção inspectiva, foram comprovados e aceites pela Administração Tributária.

XXX. Certo é que não foram considerados para efeitos de apuramento efectuado para efeitos criminais, o que não se alcança, porquanto tais montantes que a sociedade arguida tinha direito a recuperar foram considerados para efeitos de liquidação de imposto.

XXXI. Mutatis mutandis, a Administração Tributária apenas liquidou IVA no montante global de € 136.118,26 - conforme foi admitido pela representação da Fazenda Pública na contestação apresentada à Impugnação Judicial das liquidações de IVA referentes aos anos de 2006 e 2007, apresentada pela sociedade arguida, no seu art.º 6º, o qual refere que "Vem atribuído ao presente processo o valor de € 235.415,15, o qual não se coaduna com as notas de cobrança que são juntas e cuja soma ascende apenas ao montante de € 136.118,26 (...)" - cfr. doc. n.º 4, o qual se junta apenas para demonstrar a veracidade da citação transcrita.

XXXII. Virtualidade que é ainda aferida pelo print emitido pelo Serviço de Finanças de Leiria 1, à data de 20/05/2014, referentes a todas as liquidações adicionais efectuadas à sociedade arguida ao diante junto como doc.s n.ºs 5 e 6, aqui dados por integrados, por forma a demonstrar a actualidade da informação.

XXXIII. Assim sendo, temos que, à sociedade arguida, apenas foi liquidado IVA pela Administração Tributária, resultante da acção inspectiva que deu origem aos presentes autos, o montante de € 136.118,26.

XXXIV. Ora, tendo em conta os períodos descriminalizados por despacho proferido nos presentes autos, por serem inferiores a € 7.500,00, resulta um valor de IVA liquidado e não entregue nos cofres do Estado - sem prejuízo do que acima ficou dito – de € 125.695,87.

XXXV. Não obstante o sob redito, foi o requerente acusado e condenado pela não entrega do IVA no montante de € 227.371,12, e, bem assim, condenado na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, sob condição do pagamento daquele mesmo valor, e, ainda, condenado, a título de pedido de indemnização cível, a pagar à Fazenda Nacional aquele mesmo montante, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos até integral pagamento.

XXXVI. Tudo quando a Fazenda Nacional, demandante cível nos presentes autos, apenas efectuou liquidações de IVA e emitiu as respectivas notas de cobrança, referente aos períodos em crise, no montante de € 125.695,87.

XXXVII. Atenta a transcrição (supra) dos factos que se julgam provados, importa proceder à indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal a quo, em relação à quais se entende, salvo o devido respeito, se verifica erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea e), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP.

XXXVIII. Na decisão proferida nos presentes autos, verifica-se um erro notório na apreciação da prova, ressaltando da sentença que o tribunal a quo valorou incorrectamente a prova produzida e constante dos autos, vindo a resultar numa gravosa subsunção jurídica - ou seja, a condenação com a qual não se pode o aqui recorrente conformar, quanto às seguintes questões:

"2. Porém, no que se refere ao imposto devido, liquidado e recebido no período de Janeiro, Março, Agosto, Setembro e Dezembro de 2006 e Fevereiro, Março e Maio de 2007 o arguido A... e a arguida não remeteram o correlativo meio de pagamento.

3. Nem o fizeram nos noventa dias posteriores ao mês correspondente à apresentação da declaração.

4. Apesar da « B..., Lda.», ter recebido dos clientes os montantes do imposto liquidado.

5. Dessa forma, a arguida e o arguido A..., não entregaram nos cofres do Estado, a título de IVA, as seguintes quantias:

- no mês de janeiro de 2006 a quantia de € 22.274,93;

- no mês de março de 2006 a quantia de € 14.777,30;

- no mês de agosto de 2006 a quantia de € 8.295,60;

- no mês de setembro de 2006 a quantia de € 93.097,65;

- no mês de dezembro de 2006 a quantia de € 37.330,75;

- no mês de fevereiro de 2007 a quantia de € 19.017,36;

- no mês de março de 2007 a quantia de 23.258,23;

- no mês de maio de 2007 a quantia de € 9.319,30;

6. No total de €227.371.12.

10. Todas as quantias supra indicadas, por decisão do arguido A... foram integradas no respetivo património e no da « B..., Lde.»,

11. Que, no período em causa foi gerida por todos os arguidos.

12. Os quais agiram sempre em nome e no interesse daquela.

13. Obrigando-a pela assinatura de dois.

14. O arguido A..., atuou de forma livre, consciente e deliberada.

15. Não obstante saber que a sua conduta era proibida por lei.

24. A sociedade arguida e o arguido A... causaram ao Estado um prejuízo patrimonial no montante de€ 227.371,12 €."

XXXIX. Resultando do processo e das gravações efectuadas todos os elementos ou meios de prova que serviram de base à decisão de facto, é de concluir que se encontra assegurado um efectivo recurso em matéria de facto, através do qual o tribunal superior procede a uma ampla sindicação da actividade decisória do tribunal de 1.ª instância, tribunal a quo, por via do reexame ou reapreciação de todas as provas, pelo que se passa a invocar e valorar criticamente as mesmas:

XL. No que respeita à produção de prova testemunhal, foram ouvidas três testemunhas: i). E..., jurista a exercer funções no núcleo de inquéritos da Direcção Geral de Finanças, prestou depoimento em substituição da testemunha inicialmente arrolada pelo Ministério Público I..., lnspectora Tributária que procedeu à acção inspectiva efectuada à sociedade arguida que deu origem aos presentes autos e quem subscreveu o relatório de inspecção inserto nos autos.

XLI. Como já foi aqui referido, do depoimento da referida testemunha resultou que a Administração Tributária apenas verificou o efectivo recebimento do imposto através dos recibos emitidos pela sociedade arguida e existentes na contabilidade da sociedade e que presumiu retractassem um efectivo recebimento pela sociedade arguida - cfr. depoimento parcialmente transcrito nas notas de rodapé n.ºs 3 e 5.

XLII. Não tendo efectuado qualquer reconciliação bancária, aferido junto dos devedores das facturas se esse pagamento foi efectivamente realizado, ou qualquer outra diligência passível de demonstrar o efectivo recebimento por forma a poder demonstrar a apropriação dos montantes de IVA em crise que foi dada como provada nos presentes autos.

XLIII. Por outro lado, ficou demonstrado, quer da prova documental junta aos autos e acima melhor identificada, quer do depoimento prestado por D..., resultar demonstrada a existência de várias facturas cujo recebimento não se efectivou, não obstante, em alguns casos constar, da contabilidade da sociedade arguida o correspectivo recibo de quitação, ou seja, facturas que, ou não foram efectivamente pagas, ou foram recebidas directamente pela Administração Tributária, aqui demandante cível, no âmbito de penhoras de créditos da sociedade arguida.

XLIV. Ou seja as facturas foram pagas directamente ao ESTADO, logo foi o ESTADO quem recebeu o IVA, o mesmo que agora acusa os arguidos de não o terem entregue nos seus cofres.

XLV. Da mesma forma, resultou do depoimento da testemunha E..., funcionária da Demandante Cível, que, pese embora tenha sido apurado um montante de IVA a recuperar, o mesmo não teria qualquer relevância para os presentes autos - cfr. depoimento parcialmente transcrito na nota de rodapé n.º 8.

XLVI. No entanto, tal montante foi considerado - e bem - pela Administração Tributária que apenas liquidou e cobrou o montante do IVA em crise nos presentes autos deduzido do montante a recuperar apurado em sede de acção inspectiva, conforme resultou demonstrado supra, sendo que tal montante a recuperar se encontrar presente no relatório de inspecção que deu origem aos presentes autos - cfr. pág 4 do relatório de inspecção inserto a fls. 3 dos presentes autos.

XLVII. Pelo que o depoimento da testemunha E... não deveria ter merecido qualquer credibilidade por parte do tribunal, que, desde logo, conhecia o facto de a mesma não ter directamente participado na acção inspectiva realizada e que apenas se encontrava a substituir a Sr.ª lnspectora Dr.ª I..., que conduziu a referida inspecção.

XLVIII. De onde se conclui que sobre a alegada prática dos factos não foi produzida prova categórica que permita, em segurança, afastar o princípio do in dubio pro reo.

XLIX. Por todo o sobredito, entende o recorrente que, não poderia o tribunal a quo, ter valorado os depoimentos das testemunhas, como efectivamente o fez, dando como assente os pontos 2., 3., 4., 5., 6., 10., 14., 15. e 24., identificados na sentença como integrando a matéria de facto provada e que o tribunal a quo, julgou erradamente ao dar como assente.

L. Ora, salvo o devido respeito, mal andou o tribunal a quo que formou a sua convicção com base em meros indícios e presunções, que violam, como se disse, o princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, princípio este que não pode ser discricionário, pois tem limites que não podem ser tacitamente ultrapassados, constituindo apenas uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material.

LI. Pelo aqui demonstrado, (vários) pontos essenciais da matéria de facto foram incorrecta e erroneamente apreciados, o que redundou numa deficiente apreciação da prova e na injusta condenação do arguido, ora recorrente, pela prática do crime pelo qual vinha acusado.

LII. Da prova testemunhal produzida nestes autos resultou demonstrado que a sociedade arguida não recebeu efectivamente o montante do IVA relativa a várias facturas, melhor identificadas supra, tendo também ficado demonstrado que tal recebimento não foi efectivamente constato - de resto, nem sequer verificado - pela administração tributária na sua veste de órgão de polícia criminal;

Llll. Mas, ainda que outro pudesse ser o entendimento, nunca poderia o tribunal a quo deixar de entender que se suscitaram dúvidas suficientes sobre essa matéria e que, em última instância, sempre teriam que ser resolvidas a favor do recorrente, beneficiando a sua defesa e não como ocorreu, salvo o devido respeito, julgando o tribunal a quo a fundada dúvida em desfavor do recorrente.

LIV. Na verdade, resulta da exposição da motivação da decisão de facto que a mesma formou-se a partir das declarações dos arguidos que, segundo a sentença, admitiram a não entrega das quantias em causa nos autos, o que, como resultou das declarações dos mesmos, assim não sucedeu - cfr. notas de rodapé n.ºs 14 e 15.

LV. Acresce que o tribunal a quo valorou - dir-se-á exclusivamente - o depoimento da testemunha E..., que designou de inspectora tributária, mas que, como a própria afirmou, era apenas a jurista encarregue dos actos do inquérito dos presentes autos.

LVI. Quanto ao depoimento da testemunha D..., o tribunal a quo apenas relevou o seguinte: "No mais, para além de pôr em causa a forma como foi realizada a acção inspective, esclareceu que a empresa tem um crédito de vários milhões de euros." - cfr. motivação da decisão de facto da sentença de que ora se recorre - sendo que, como resulta do depoimento da testemunha, parcialmente transcrito nas notas de rodapé n.ºs 2 e 4, a testemunha referiu, com interesse para discussão, muito mais do que apenas o sumariado e que, claramente, o tribunal não valorou nem, tão pouco, apreciou.

LVII. Ora, devia constar da motivação do julgamento da matéria de facto, quais os meios concretos de prova que, relativamente a cada facto provado e não provado, contribuíram para a formação da convicção do julgador, bem como as "razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova" porquanto, para dar cumprimento às exigências legais, o julgador terá não só indicar os meios de prova que contribuíram para formar a convicção do julgador, mas proceder à sua análise crítica, explicitando os motivos porque determinado meio de prova foi relevante e outro não o foi para formar tal convicção.

LVIII. Posto isto, o tribunal a quo deveria ter indicado expressamente, por um lado, quais dos factos provados que cada testemunha revelou conhecer e, por outro, explicitar quais os elementos que dos mesmos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou, sendo que, não o tendo feito, violou o tribunal a quo o estatuído no actual nº 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, pelo que resulta patente a falta de fundamentação de facto de que padece a sentença, o que a lei comina com nulidade da mesma, e que aqui expressamente se deixa invocada.

LIX. Por esta ordem de razões, deve a sentença recorrida ser anulada e substituída por outra que faça quer uma correcta apreciação da prova, quer uma acertada subsunção dos factos ao Direito.

LX. Acresce que, em audiência de discussão e julgamento, a acusação deve apresentar de uma forma concreta e precisa, fundamentos que criem no espírito do julgador a convicção de que as provas produzidas têm um valor "irrefutável', o que, no caso, (seguramente) não sucedeu.

LXI. Com efeito, entende o recorrente que o princípio da presunção da inocência do arguido, bem como o seu corolário in dubio pro reo, impunham uma decisão (diametralmente) diversa daquela que foi proferida.

LXII. Sucede que o princípio da livre apreciação da prova "(...) não pode de modo algum sequer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida”.

LXIII. A livre apreciação da prova comporta, como se sabe, duas vertentes, (i), por um lado, o juiz decide segundo a sua íntima convicção, em face do rol de provas apresentadas no processo, em especial na audiência de julgamento, quer arroladas pela acusação, quer pela defesa, quer as que o tribunal oficiosamente decida ouvir; (ii), por outro lado, essa convicção deve ser objectivamente formada com apoio em regras técnicas e de experiência, sem sujeição a cânones pré-estabelecidos.

LXIV. ln casu, e face quer ao depoimento das testemunhas, quer face à prova documental junta aos presentes autos, entende o recorrente que o tribunal a quo fez uma errada aplicação do princípio consignado no artigo 127.º, do CPP, ou seja, o tribunal a quo procedeu a uma errada apreciação da prova.

LXV. Com efeito, confrontando a prova produzida nos autos e a matéria de facto dada como assente, apenas resta concluir que o tribunal a quo haverá de ter formado a sua convicção com base numa errada apreciação da prova, dando preferência a umas e não relevando outras igualmente válidas, sem sequer fundamentar tal escolha ou o seu critério de selecção, o que viola o princípio da livre apreciação da prova.

LXVI. Assim, resulta aqui demonstrado que, a sentença proferida se encontra viciada no que respeita quer à violação do princípio do in dubio pro reo, quer à valoração da prova efectuada, designadamente por violação do princípio da livre apreciação da prova artigo 127.º, do CPP,

LXVII. Pelo que, também, por esta ordem de razões, não pode a sentença recorrida manter validade no nosso ordenamento jurídico.

LXVIII. Acresce que foi o recorrente condenado na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, sob a condição de, até ao termo desse período, proceder ao pagamento das prestações em falta e acréscimos legais nos termos do disposto no artº 14º nº 1 do RGIT, no montante de € 227.371,12.

LXIX. Ora, cumprirá reforçar que o arguido A... aufere, a título de rendimentos, a quantia de € 485€ mensais e vive com a mulher que aufere igual montante, tal como resulta da matéria assente nos presentes autos.

LXX. Pelo que o recorrente não tem qualquer possibilidade de cumprir a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada.

LXXI. É verdade que a norma contida no n.º 1 do artigo 14.º do RGIT impõe ao julgador a inelutável obrigatoriedade - sem mais - de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada pela prática de crimes fiscais previstos e punidos por aquele diploma legal ao pagamento dos valores tributários em crise, mas no caso dos autos reverteria na praticamente incondicional condenação do arguido ao efectivo cumprimento da pena de prisão em que foi condenado.

LXXII. Ou, pelo menos, impedir in limine a aplicação ao arguido de uma solução legal que nunca seria excluída - nas mesmas condições - caso a condenação o fosse pela prática de crimes não fiscais.

LXXIII. O que é certo - e inultrapassável - é que a efectivação da pena de prisão deve ser sempre o último recurso, deve ser sempre o último meio de que o Estado lança mão na reinserção do arguido, e só quando comprovadamente falharam todos os outros.

LXXIV. De facto, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição no caso sub judice, importando também salvaguardar as razões de política criminal que determinaram a estatuição do instituto em apreço, designadamente a não desinserção do condenado na sociedade e os evidentes inconvenientes da efectiva pena da prisão.

LXXV. E, considerando as concretas circunstâncias de vida do recorrente, seria manifestamente inviável a estipulação de condições de suspensão a deveres de conduta.

LXXVI. Tal entendimento ficou fixado no acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 12/09/201228, que fixou jurisprudência no sentido que «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50.º, n.º 1, do CP, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».

LXXVII. Acresce que a norma em crise - o n.º 1 do artigo 14.º do RGIT - contende com a ratio legis subjacente à estatuição da legal faculdade de suspensão da execução da pena de prisão, qual seja, a ideia de que "... a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição'', para transformar tal faculdade num instrumento de cobrança coerciva dos créditos do Estado.

LXXVIII. Assim, a instrumentalização da mesma norma para cobrança coerciva dos créditos do Estado - mascarada sob a capa de necessidades de prevenção geral que devem ser salvaguardadas na determinação da medida concreta da pena e não na decisão sobre a suspensão da sua execução - ultrapassa em larga medida a culpa do agente e não pode sobrestar, impondo-se uma inversão do sentido da apreciação da sua constitucionalidade.

LXXIX. O que tudo resulta numa clara violação dos princípios da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena consagrados nos artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

LXXX. Ora, da matéria dada como provada nos presentes autos resulta que o aqui recorrente aufere € 485 mensais, vive com a mulher que aufere o mesmo montante e que tem o 6.º ano de escolaridade - cfr. pontos 17 e 18 dos factos provados. E nada mais.

LXXXI. Sendo que o que ficou provado é suficiente para demonstrar a manifesta impossibilidade para o pagamento de € 227.371,12, ainda que num prazo de três anos, pois que, com os rendimentos do arguido, nem em vinte anos seria possível ao arguido efectuar tal pagamento, ainda que afectasse todo o seu rendimento ao pagamento de tal prestação.

LXXXII. Raciocínio que se impunha tivesse sido feito pelo tribunal a quo antes de impor tal condição de suspensão da execução da pena.

LXXXIII. Pelo que, não tendo o tribunal a quo realizado, como se impunha, um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, padece a presente decisão de nulidade por omissão de pronúncia.

LXXXIV. Quanto ao pedido de indemnização cível, dá-se aqui por reproduzido o supra alegado, por motivos de economia processual, pugnando o recorrente pela improcedência do mesmo.

LXXXV. Sendo certo que o mesmo terá que ser reduzido ao montante que está, oficialmente, a ser exigido pelo demandante cível e que se cifra apenas em € 125.695,87.

LXXXVI. Por tudo, violando a douta sentença os artigos 13.º e 18.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, os artigos 50.º e 51.º e 70.º e 71.º do Código Penal, 12.º, 13.º e 105.º do RGIT e, ainda, os princípios da legalidade no exercício da actividade da administração pública, da igualdade, da boa-fé e da imparcialidade».

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

A Exmª P.G.A. promoveu o reenvio dos autos para que, nos termos decididos pelo acórdão do S.T.J. nº 8/2012, o tribunal a quo se pronuncie sobre a razoabilidade do cumprimento, por parte do condenado, da condição imposta.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

4.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

5.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«1. A « B..., Lda.», é sujeito passivo de IVA, no regime normal de periodicidade mensal, pelo que está obrigada a enviar, à Administração Fiscal, mensalmente, a declaração de liquidação do imposto, acompanhada do respetivo meio de pagamento, no valor correspondente à diferença entre o imposto liquidado e o imposto suportado.

2. Porém, no que se refere ao imposto devido, liquidado e recebido no período de Janeiro, Março, Agosto, Setembro e Dezembro de 2006 e Fevereiro, Março e Maio de 2007 o arguido A... e a arguida não remeteram o correlativo meio de pagamento.

3. Nem o fizeram nos noventa dias posteriores ao mês correspondente à apresentação da declaração.

4. Apesar da « B..., Lda.», ter recebido dos clientes os montantes do imposto liquidado.

5. Dessa forma, a arguida e o arguido A..., não entregaram nos cofres do Estado, a título de IVA, as seguintes quantias:

- no mês de janeiro de 2006 a quantia de €22.274,93;

- no mês de março de 2006 a quantia de € 14.777,30;

- no mês de agosto de 2006 a quantia de € 8.295,60;

- no mês de setembro de 2006 a quantia de €93.097,65;

- no mês de dezembro de 2006 a quantia de €37.330,75;

- no mês de fevereiro de 2007 a quantia de €19.017,36;

- no mês de março de 2007 a quantia de 23.258,23;

- no mês de maio de 2007 a quantia de €9.319,30 €;

6. No total de €227.371.12.

7. A « B..., Lda.» iniciou a atividade no dia 25 de Abril de 2000.

8. Encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Leiria.

9. E tem como objeto a «Construção de edifícios de obras públicas e particulares e construção para venda».

10. Todas as quantias supra indicadas, por decisão do arguido A... foram integradas no respetivo património e no da « B..., Lda.»,

11. Que, no período em causa foi gerida por todos os arguidos.

12. Os quais agiram sempre em nome e no interesse daquela.

13. Obrigando-a pela assinatura de dois.

14. O arguido A... atuou de forma livre, consciente e deliberada.

15. Não obstante saber que a sua conduta era proibida por lei.

16. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

17. O arguido A... aufere 485 € mensais e vive com a mulher que aufere o mesmo montante.

18. O arguido A... tem o 6º ano de escolaridade.

19. O arguido F... encontra-se desempregado e vive do vencimento da mulher a qual aufere 485 € mensais.

20. O casal tem uma filha de 15 anos de idade a seu cargo.

21. O arguido tem o 6º ano de escolaridade.

22. O arguido G... aufere 1000 € mensais e vive com a mulher que recebe 485 €, sendo que o casal tem um filho ainda menor a seu cargo.

23. O arguido tem a 4ª classe da instrução primária.

24. A sociedade arguida e o arguido A... causaram ao Estado um prejuízo patrimonial no montante de € 227.371, 12 €.

25. A arguida B..., Lda.,  foi declarada insolvente por sentença proferida no Proc. 972/09.0TBLRA do 5º Juízo do Tribunal Judicial de Leiria, transitada em julgado a 2.3.2010».

6.

E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente:

«1. Sempre tiveram conhecimento do referido nos pontos 2 a 6 dos factos provados e deram a sua concordância.

2. Atuaram sempre em conjugação de esforços e intentos.

3. De forma livre, consciente e deliberada.

4. Aproveitando a oportunidade favorável à prática dos ilícitos descritos.

5. Quer por não terem sido alvo de qualquer fiscalização após a prática dos primeiros factos.

6. Quer por terem verificado persistirem as possibilidades de repetirem as suas condutas.

7. Não obstante saberem que mesmas eram proibidas».

7.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«A convicção do tribunal formou-se a partir das declarações do arguido A..., que esclareceu que até 2006 os impostos estiveram sempre em dia e admitiu a não entrega das quantias em causa nos autos, pelo facto de também a ele não lhe terem pago os trabalhos de obras que realizaram. O que foi corroborado pelos restantes arguidos e acrescentaram que apenas trabalhavam como pedreiros, sendo o irmão A... e a testemunha D... quem fazia a contabilidade. No mais, esclareceram a sua situação sócio económica.
Sopesado o depoimento das testemunhas E..., inspetora tributária, que de forma segura, isenta e credível, corroborou a inspeção efetuada, bem como a forma como a mesma decorreu e qual o resultado da mesma. Acrescentou que a contabilidade não estava organizada. H..., foi TOC da empresa arguida até janeiro de 2006, tendo renunciado às funções por não haver condições para continuar. D..., foi colaborador da sociedade arguida e afirmou que quem mandava na faturação era o arguido A..., sendo que os irmãos não tinham poder decisório. No mais, para além de por em causa a forma como foi realizada a ação inspetiva, esclareceu que a empresa tem um crédito de vários milhões de euros.
Com efeito o tribunal valorou o depoimento da inspetora tributária, que de forma segura, isenta, e reveladora de conhecimento dos factos depôs de modo credível, conjugado com a valoração de toda a documentação junta aos autos, v. g. fls. 76 a 112, 165 a 169, 173, 430 a 440,  certidão de fls. 342 a 344, fls. 788 a 820, fls. 1254 a 1256.
Os certificados de registo criminal dos arguidos junto a fls. 1212 a 1215.
Por seu turno, beneficiaram os arguidos F...e G... dos princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência, uma vez que no tribunal ficou a dúvida se os mesmos, tinham participação ativa na sociedade, independentemente de serem sócios e gerentes, nomeadamente na tomada de decisões, para além de exercerem as suas profissões de pedreiros».


*

*


DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:

I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

II – Impugnação da condição imposta à suspensão da execução da pena


*

            Antes de entrar na decisão do recurso cabe pronúncia sobre o facto de o arguido, a acompanhar o recurso, ter juntado ao processo 6 documentos.

O art. 165º do C.P.P., inserido no capítulo relativo à prova documental, determina no seu nº 1 que os documentos devem juntar-se aos autos no decurso do inquérito ou da instrução e, excepcionalmente, até ao encerramento da audiência.

Este limite temporal de admissibilidade de junção de prova por documento visa, desde logo, garantir o respeito pelo princípio do contraditório, fundamental de processo. Mas não só. Com ele a lei pretendeu, ainda, garantir que nem o julgador nem qualquer dos demais intervenientes possam ser, ao longo do processo e a qualquer momento, surpreendidos com novas provas, de modo a que este direito pudesse redundar em chicana processual: se qualquer interveniente processual pudesse juntar provas a qualquer momento é fácil perceber o caos que se instalaria na tramitação do processo, com sucessivas e infindáveis novas notificações para dar a conhecer as novas provas.

Para além o recurso ordinário destina-se a apreciar a decisão recorrida, à luz das provas disponíveis na altura da sua prolação. A bondade da decisão recorrida é aferida pelo confronto entre o seu conteúdo e os elementos que o julgador dispunha naquele momento. Ao tribunal de recurso não compete decidir a causa, não compete proferir uma decisão nova sobre a causa: o que lhe cabe é analisar a decisão recorrida, aferir da sua conformidade com a prova e com a lei, donde resulta que nesta análise ele tem que se circunscrever aos elementos a que o tribunal recorrido teve acesso. Daí que estes devam manter-se inalteráveis. Feita esta análise caberá, então, confirmar ou infirmar a decisão recorrida.

Em suma, o tribunal de recurso julga a decisão, não julga a causa.

Pelas razões expostas a junção de prova documental neste momento é ilegal, assumindo tal comportamento natureza manifestamente incidental. Para além disso não será considerada, com excepção daquela que, sendo uma repetição, já constava do processo.


*

I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do art. 428º do C.P.P. o poder de cognição da relação abrange, sempre, a decisão da matéria de facto, isto desde que esta seja impugnada, caso em que ela pode mesmo ser alterada pois que, conforme decorre do art. 431º do C.P.P., «sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova».


            O arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto na base de alegados erros de julgamento cometidos – erradamente apelidados de erro notório na apreciação da prova -, no que aos factos constantes dos pontos 2 a 6, 10 a 15 e 24 da matéria dada como provada.

A fundamentar a pretensão invoca os depoimentos prestados pelas testemunhas E..., D... e documentos do processo.

            E quando a impugnação se fundamenta no disposto no art. 412º do C.P.P., como é o caso, diz o seu nº 3 que «o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas».

            Acrescenta o nº 4 que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

   Da lei resulta que na especificação dos factos o recorrente terá que indicar o(s) facto(s) individualizado(s) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado(s).

Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Quando o recorrente se socorra da prova documental tem que especificar o documento ou o excerto do documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o(s) depoimento(s) em questão (por identificação da pessoa em causa), tem que relatar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra o erro em que incorreu a decisão e tem que localizar este excerto no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo de gravação. É este o iter procedimental a seguir quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto com recurso à prova gravada.

Esta é a interpretação que respeita a letra da lei e é a única forma que permite o exercício efectivo do princípio do contraditório e da imparcialidade do juiz. A indicação genérica, sendo certo que seria confortável para o recorrente, prejudicaria de forma intolerável todos os demais intervenientes no processo e poderia, mesmo, inviabilizar o exercício do contraditório. Se fosse aceitável que o recorrente arguisse um qualquer erro e pudesse basear a sua alegação nos “documentos do processo”, ou nos “documentos de fls…”, sem necessidade de expor as razões da relevância de tais documentos, e/ou nos “depoimentos de A, B e C”, também sem necessidade de outras especificações, todo o trabalho de indagação se transferia para os demais intervenientes. Eram os outros sujeitos do processo, nomeadamente o juiz, que teriam que catar dentre toda a prova produzida as partes que, eventualmente, relevariam para as pretensões do recorrente. Seriam eles teriam que se “afogar” em montanhas de documentos, em horas de gravações para descobrirem, se o conseguissem e se elas existissem, as concretas passagens dos documentos e das declarações em que o recorrente presumivelmente se teria baseado para impugnar um determinado facto, sendo que tais passagens poderiam resumir-se a duas ou três palavras de um depoimento. Isto equivaleria a transferir, de modo abusivo e injustificado, o ónus de fundamentar devidamente o recurso [1]. Para além disso, e como facilmente se percebe, o recorrente sempre poderia transferir para o juiz a responsabilidade pelo insucesso do recurso, quando a procura pela localização dos tais excertos relevantes fosse infrutífera.

Depois, a incumbência de ser o tribunal a encontrar e seleccionar as provas importantes aos interesses do recorrente violaria, igualmente, o dever de independência e equidistância do juiz porquanto este, no caso, ficaria vinculado aos interesses do recorrente no desenvolvimento do seu trabalho.

            Dito isto resulta que o arguido não cumpriu a lei no que à especificação da prova documental respeita.

            Nas conclusões XVII a XVIII o arguido limita-se a apontar dados, nomes, montantes, sem se preocupar em identificar os referidos elementos nem demonstrar aquilo que tem por demonstrado.

            Do mesmo modo, nas conclusões XIX e segs. alega haver montantes considerados nos autos que, no entanto, foram pagos através de execuções fiscais que correram contra a arguida, sem demonstrar que os documentos juntos a fls. 1254 a 1256 respeitam às quantias consideradas no processo.

            Não curou de demonstrar que dívidas foram executadas nos referidos processos mas o que é seguro é que, por exemplo, o processo 1384200701013408 respeita a dívidas de IVA de 2004 e 2005 e, como sabemos, este processo reporta-se aos meses de Janeiro, Março, Agosto, Setembro e Dezembro de 2006 e Fevereiro, Março e Maio de 2007.

            Pelo exposto analisaremos, apenas, a prova testemunhal invocada no processo, por só quanto a ela ter sido a lei cumprida.


*

                        Nos termos da lei tributária o sujeito passivo de imposto tem uma série de deveres perante o Estado, sendo um deles o de pagar impostos. Cabe-lhe, por exemplo, declarar aos serviços fiscais os rendimentos que aufere, assim como lhe cabe informar os mesmos serviços das operações que pratica e sobre as quais também tem que pagar o imposto que compete.

            E mesmo quando estamos no âmbito de uma acção inspectiva é ao sujeito passivo que compete organizar/entregar toda a documentação sobre a qual o trabalho de inspecção vai incidir.

            Isto resulta claro do art. 29º do CIVA.

            Portanto, quando os serviços da inspecção tributária se deslocaram às instalações da arguida para proceder a acções de inspecção era ao arguido que cabia entregar a documentação pretendida pelos serviços.

            Não o tendo feito, como resulta, não tinham os serviços que se substituir ao arguido fazendo aquilo que lhe competia fazer e que não fez, nem no momento próprio nem depois, quando solicitado pelos serviços de inspecção. Falamos na contabilidade da empresa arguida, pois parece que os serviços, previamente à inspecção, deveriam organizar a contabilidade.

            Aliás, a situação que  se verificava na empresa a este nível ficou patente com o depoimento de H..., técnica de contas da arguida até início de 2006, que declarou ter renunciado por não ter condições para continuar, porque não lhe eram dadas informações para desempenhar as funções que lhe competiam.

            E não tendo a arguida a contabilidade organizada, conforme era seu dever, a inspecção não a podia considerar, como é evidente, mas também não tinha que a organizar, como parece entender o arguido.

            Por isso a inspecção socorreu-se dos elementos recolhidos, validamente, durante o período em que inspeccionou a arguida.

            Declarou a testemunha E..., jurista no núcleo de inquéritos da Direcção de Finanças de Leiria, instrutora do processo, que acompanhou a recolha da prova documental e testemunhal e que de alguns meses dos exercícios de 2006 e 2007 a empresa não entregou ao Estado IVA que «efectivamente» recebeu de clientes.

            Disse, também, que a empresa não só não entregou o IVA como não cumpria as obrigações declarativas consignadas na lei.

Também disse que durante a inspecção nunca apareceu ninguém que fosse contabilista na empresa.

Perguntada se, por esse motivo, trabalharam com base em métodos indirectos, a testemunha respondeu que não, que só trabalharam com métodos directos. Recolheram as facturas, recolheram todos os recibos e verificaram se os pagamentos tinham acontecido nos 90 dias.

Do confronto verificaram que houve valores que não foram recebidos e quanto a esses não foram considerados no relatório e, por isso, não estão no processo. Quanto às facturas que não tinham recibos também não foram consideradas neste processo.

Depois disto foi feito o apuramento e notificou os arguidos nos termos do art. 105º e como os valores não foram pagos o processo seguiu os trâmites normais.

Os arguidos foram notificados para apresentarem a contabilidade e não o fizeram. Por essa razão foi-lhes dado prazo para elaborarem a contabilidade, que eles também nunca elaboraram. A empresa nunca apresentou contabilidade e por isso a inspecção foi feita na base da análise dos documentos da empresa que recolheram.

Sobre o apuramento dos valores de IVA indicados disse que foi encontrado com base nas facturas que estavam na contabilidade e que o recebimento dos pagamentos foi comprovado através dos recibos que também estavam na contabilidade.

Perguntada se fizeram a reconciliação com extractos bancários, disse que não: o recibo é um documento de quitação e se a empresa os emite é porque recebeu o dinheiro.

Perguntada se algumas das facturas detectadas tinham sido pagas às finanças disse o valor do IVA em causa nos autos foi recebido e, depois, não foi pago, como era devido.

            Durante a inspecção disse que contactou com D..., relativamente ao qual até se suscitou a questão de ele poder ser, eventualmente, gerente de facto da empresa. Como não conseguiram apurar, com segurança, se o foi ou não, o processo não continuou contra ele.

Disse, ainda, que o referido D... se apresentava como empregado de escritório, mas que não estava na empresa.

Perguntada porque fizeram fé nos documentos da empresa, nomeadamente nos recibos de quitação, respondeu que os documentos da contabilidade nunca foram postos em causa por ninguém. Nomeadamente quanto aos recibos, os arguidos nunca os puseram em causa. Se, por acaso, andaram a emitir documentos falsos, que não correspondiam à verdade, então a situação ainda era mais grave.

D... apresentou-se como colaborador da empresa mas, conforme a certa altura ele próprio reconheceu, chegou a ser constituído arguido no processo, porque as finanças tiveram dúvidas a que título é que ele intervinha na empresa arguida.

Declarou que foi colaborador da arguida entre 2000 e 2008 e quando perguntado quem geria a empresa respondeu que trabalhou muitos anos gratuitamente. Depois esclareceu que o gerente era o arguido A...: o G... estava na parte das máquinas e o G... no betão armado.

Sobre a inspecção tributária disse que ela, na realidade, não existiu. Disse que a inspectora Goretti notificou a empresa de que ia ser inspeccionada e que ficou à espera que a empresa entregasse as declarações fiscais em falta para arrumar o processo depressa.

Perguntado porque é que a empresa não as entregou disse que estava a organizar-se.

Disse que o arguido A... lhe mostrou o relatório de inspecção e que este era resultado de um processo horrível e catastrófico, um erro grosseiro, que não correspondia à verdade. Disse que a inspectora não fiscalizou nada e que a empresa não mostrou as contas de 2006 para a frente. A fiscal limitou-se a ir ao programa da empresa, limitou-se a ver os mapas, pediu as facturas e recibos e foi embora.

Declarou que a empresa lançou as facturas com IVA a receber mas a fiscal nem olhou para elas e que lhes disse que tinham que pagar os duzentos e tal mil euros e que os cento e tal mil que tinham a receber não queria saber disso para nada.

Disse que mesmo não tendo entregue as declarações atempadamente a empresa tem o direito a receber as quantias que lhe couber.

            Também disse que a inspectora desconsiderou as facturas que não tinham recibo.

Relativamente às facturas com recibos disse que nem todas os recibos corresponderam a recebimento, havendo dois casos em que isso não sucedeu.

E contou que no princípio de 2006 foi um senhor da Imopombal à empresa falar com o arguido A..., e disse que não tinha dinheiro para pagar, que a esposa lhe tinha posto um processo e que ia embora, mas disponibilizou-se a pagar com um terreno que tinha em Pombal. Disse que as “ B...” tinha uma empresa irmã que fazia imediação imobiliária, passava o terreno para esta e quando os bancos financiassem a operação a dívida ficaria quitada. Só que os bancos não libertaram dinheiro e tudo morreu. Portanto, disse, este recibo de cento e tal mil euros não corresponde a dinheiro recebido.

Disse que o recibo de uma factura de 450 mil euros mais IVA também não corresponde a dinheiro recebido. Foi feito o recibo porque a B... II assumiu dívidas da B... I.

Depois disse que também houve facturas que constavam do relatório e que as finanças receberam esse IVA.

            Reconheceu que assinou documentação da empresa, apesar de nada ter a ver com ela.

            A pergunta que urge fazer é se a prova indicada impõe, então, a alteração da decisão tomada pelo tribunal a quo.

Nos termos do art. 127º do C.P.P. «… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente», excepto quando a lei disser o contrário.

            Ou seja, na actividade de apreciação da prova o juiz está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

A verdade que se busca no processo, mesmo no processo penal, não é a verdade ontológica, absoluta, pois que a reconstrução exacta dos factos ocorridos é impossível, precisamente porque a decisão assenta sempre na prova disponível.

Mas o processo também não se basta com a verdade formal, apesar de a nossa lei de processo conter espartilhos que, por vezes, a impõem.

O que se busca no processo, verdadeiramente, é a verdade material acessível ao nosso conhecimento: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela; verdade material porque verdade judicial, prática, obtida não a todo o preço mas de forma processualmente válida [2].

Daí que a prova, para alguns, mais não seja do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação da prova, apreciação esta que é livre.

No caso está em causa, apenas, a prova por declarações.

            A valoração da prova por declarações depende, para além do conteúdo das concretas declarações prestadas, do modo como as mesmas são assumidas pelo declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que relevam para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova. A credibilidade dos depoimentos há-de ser averiguada - afirmada ou negada - no confronto do conteúdo concreto da sua descrição dos factos, num quadro de averiguação cuidadosa, da motivação e do interesse de cada um nesses factos, por forma a afastar a credibilidade dos depoimentos se se ficar com a percepção que os mesmos estavam concertados, no sentido de alteração da verdade ou de criação de uma realidade virtual.

Como se sabe, a convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o número de afirmações feitas para cada lado, não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios, não exige coincidência absoluta entre todos os depoimentos relevados.

Para que um qualquer facto se tenha por provado não basta que as testemunhas se pronunciem num determinado sentido, tendo o juiz que aceitar, necessariamente, esse sentido ou versão, assim como a concordância dos depoimentos não é prova da sua veracidade.

No entanto, a liberdade de apreciação não é arbitrariedade. O juiz terá sempre uma margem de liberdade mas dentro dos limites fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo [3].

Trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que mais não é do que a opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme sabemos, na esmagadora maioria dos casos defrontam-se, pelo menos, duas versões do julgamento da causa. Não sendo opção do julgador não decidir, terá ele que fazer a sua opção, de acordo com as regras enunciadas.

Produzidas as provas cabe, portanto, ao juiz apreciá-las, apreciação esta subordinada à lógica, à psicologia, às máximas da experiência, e tirar, a final, as conclusões, ou seja, formar a tal convicção de que fala a lei. 

Descendo ao caso a sentença recorrida deu valor ao depoimento de E... porque a testemunha revelou segurança, isenção e conhecimento dos factos. O depoimento, com as características apontadas, conjugado com os documentos juntos no processo, mereceram a credibilidade do tribunal e determinaram a decisão.

Quando a D... o tribunal apenas mencionou que ele pôs em causa a inspecção realizada e que referiu que a empresa tem um crédito de vários milhões de euros.

Isto significa, em suma, que o depoimento não mereceu credibilidade.

E entendemos que a decisão foi acertada, porque o depoimento não foi credível.

Durante a inspecção surgiram dúvidas sobre a sua relação com a empresa e a verdade é que ouvido o seu depoimento percebemos a existência dessas dúvidas que se sentiram durante a investigação.

 A testemunha foi generosa em explicações não solicitadas, generosa na desculpabilização dos arguidos, generosa na adjectivação dos serviços desenvolvidos pela entidade fiscalizadora e parca nas respostas às perguntas feitas. E parca, mesmo, em conhecimento técnicos.

Por exemplo, referiu que a empresa foi notificada para entregar as declarações fiscais e também declarou que elas não foram entregues. Reconheceu que a empresa não mostrou as contas de 2006 para a frente. No entanto, criticou os serviços de inspecção por terem feito o seu trabalho na base do programa da empresa, dos mapas, das facturas e dos recibos.

Reconheceu que assinou documentos da empresa, porém mostrou-se indignado por os serviços terem suspeitado que ele seria gerente de facto.

            As declarações da testemunha D... não convenceram o tribunal recorrido mas também não convenceram este tribunal. Para além de não ter revelado conhecimentos do caso ao nível da testemunha E..., do que disse resulta que tudo o que os arguidos fizeram estava bem e que tudo o que os serviços de inspecção fizeram estava mal: foi demasiado parcial e envolvido para ser considerado.

            A postura que assumiu não foi a de uma testemunha indignada com a iniquidade, não, antes de alguém empenhado em alterar factos, alijar responsabilidades e atribuir culpas a terceiros.

            Sobre os termos em que a decisão de facto foi explicada, aceitamos que a explicação, podendo apelidar-se de sucinta, foi suficiente. Indicou todas as provas em que se baseou e indicou os motivos da relevância, conforme, aliás, já referimos.

            Uma última referência ao facto de se argumentar que a empresa tinha IVA a receber e de a inspectora não o ter considerado no processo, devendo tê-lo feito.

            Sobre a situação declarou E... que aquele recebimento seria um direito da empresa mas que esta, ao não ter a contabilidade elaborada, perdeu o direito a recebê-lo. Ela teria que fazer as declarações e o respectivo reporte, pois o recebimento dependia deles.

            Contrariamente, da tese de D... resulta que os serviços teriam de considerar eles próprios essa realidade e actuar em conformidade.

            Nos termos do nº 1 do art. 22º do CIVA o direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7º e 8º, efectuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração, do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período.

            Resulta da norma, de forma imediata, que a dedução do imposto que o sujeito passivo tem a haver do Estado está dependente de ele cumprir a sua obrigação declaratória.

            E isto fica, ainda, mais claro se se atentar no diploma que regulamenta o pedido de reembolso.

            Nos termos do art. 3º do Despacho Normativo 18-A/2010, de 1/7, «a concessão de qualquer reembolso depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) Inexistência de divergências entre o valor dos campos da declaração periódica e o correspondente ao somatório das respectivas parcelas dos outros elementos referidos no n.º 1 do artigo 2.º do presente despacho normativo;

b) Não se encontrar o sujeito passivo em situação de incumprimento declarativo relativo ao IVA, ao imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas ou ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, consoante o caso, com referência a períodos de imposto anteriores;

c) Existência de conta bancária de que o sujeito passivo seja titular, confirmada pela respectiva instituição de crédito estabelecida na União Europeia;

d) Não constarem das relações de clientes, fornecedores e regularizações, a que se refere o n.º 1 do artigo 2.º, sujeitos passivos com número de identificação fiscal inexistente ou que tenham a actividade cessada no período a que respeita o imposto».

            Portanto, e como foi referido, o reembolso do IVA depende, além do mais, do cumprimento das obrigações declarativas e da realização do respectivo pedido.

Não tem qualquer sentido, portanto, a alegação do arguido.

            Pelo exposto improcede, na totalidade, o ataque à decisão de facto, mantendo-se a mesma na íntegra.

            Consequentemente improcede a impugnação da decisão que fixou o valor da indemnização civil a pagar.


*

II – Impugnação da condição imposta à suspensão da execução da pena

            Finalmente o arguido impugna a condição a que a suspensão da execução da pena foi condicionada.

            O arguido insurge-se contra a condição imposta à suspensão da execução da pena pelas seguintes razões:

- a condição estabelecida é desnecessária, porque a simples suspensão da execução da pena é suficiente às necessidades da punição;

- dadas as suas condições de vida é inviável o estabelecimento de uma qualquer condição;

- a sentença recorrida, ao impor a condição da suspensão da execução da pena, não formulou o juízo de razoabilidade determinado pelo acórdão de fixação de jurisprudência 8/2012.

Recordando, o arguido A... foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 1 ano de prisão suspensa por 3 anos, sob a condição de, até ao termo do prazo de suspensão, pagar as quantias de IVA retidas, no valor de 227.371,12 €, e acréscimos legais, dinheiro que o arguido recebeu a título não translativo e que, depois, não entregou e fez seu.

            Portanto, o argumento do arguido, de que a condição estabelecida se destina a cobrar um crédito do Estado, não tem nenhuma razão de ser. O que está em causa são não dívidas civis, mas sim actos de apropriação que integram ilícito criminal.

            Sobre a desnecessidade/ilegalidade do estabelecimento de condição à suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do nº 1 do art. 14º do RGIT «a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa».

            Portanto, em obediência à lei não pode a pena de prisão fixada pela prática de crimes tributários ser suspensa sem que se estabeleça, como condição dessa suspensão, o pagamento das quantias de que o agente se apropriou.

            E não se diga que tal norma é inconstitucional, pois que o Tribunal Constitucional já afirmou a sua conformidade à Lei Fundamental. Efectivamente, conforme consta do acórdão nº 1005/08, de 27-10-2009, este tribunal decidiu «Não julgar inconstitucional a norma do artigo 14º do RGIT, em conjugação com os artigos 50º e 51º do Código Penal, na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, de prestação tributária e acréscimos legais».

            Entretanto o arguido também afirma que o tribunal recorrido não formulou o juízo de prognose sobre a satisfação da condição, conforme o decidido pelo S.T.J. no acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2012, incorrendo, por isso, em omissão de pronúncia.

            Efectivamente, neste acórdão o S.T.J. decidiu que na suspensão da execução da pena por crime de abuso de confiança fiscal o tribunal tem que fazer um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal imposta à suspensão por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, decidindo ainda que a falta desse juízo gera nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

            Recorde-se que a pena de prisão aplicada foi suspensa, nos termos da lei, com a condição de o arguido pagar as quantias com que se apropriou, que o arguido declara não poder cumprir.

            Uma vez que, aquando da escolha e fixação da pena, o tribunal recorrido não fez o tal juízo de prognose, nos termos decididos pelo S.T.J., incorreu em omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença, no segmento em causa referente à escolha e fixação da pena – art. 379º, nº 1, al. c), do C.P.P.

            Consequentemente, anula-se este segmento da sentença recorrida e determina-se a remessa do processo à 1ª instância, devendo o tribunal recorrido proferir nova sentença em que, se suspender a execução da pena, formule «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura».


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos:

I – Nega-se provimento ao recurso na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto;

II – Declara-se a nulidade da sentença recorrida no segmento relativo à decisão de suspender a execução da pena e submeter essa suspensão a condição, por não ter formulado o juízo de prognose da razoabilidade da condição legal imposta à suspensão.

Taxa de justiça mínima pelo arguido devida pela junção de documentos com o recurso.

Coimbra, 21 de Janeiro de 2015

            (Olga Maurício - relatora)

                (Luís Teixeira - adjunto)


[1] Vide o acórdão da Relação de Évora de 12-3-2008, processo 2965/07.
[2] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194.
[3] Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 1ª ed., pág.335.