Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/09.0TBPPS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: PAMPILHOSA DA SERRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 325.º, N.ºS 1 E 3, 329.º E 330.º, N.º 1, DO CPC
Sumário: Numa acção de dívida contra os antigos sócios liquidatários de sociedade comercial extinta, por alegado não cumprimento de um contrato de empreitada por falta de pagamento do preço, o alegado incumprimento de um contrato de prestação de serviços na vertente de cumprimento defeituoso da obrigação de prestação de serviços de contabilidade pelo técnico oficial de contas, que fez constar da contabilidade da empresa a inexistência de passivo, não constitui relação jurídica material conexa com a da causa principal, o que inviabiliza o deferimento do chamamento à causa principal desse técnico, seja no âmbito da intervenção principal provocada passiva, seja no âmbito da intervenção acessória provocada (art.ºs 325.º, n.ºs 1 e 3, 329.º e 330.º, n.º 1, do CPC).
Decisão Texto Integral: Decide-se singularmente no Tribunal da Relação de Coimbra (art.ºs 700.º, n.º 1, alín. c) e 705.º, do CPC:

I. Relatório

A... propos no Tribunal Judicial da comarca de Pampilhosa da Serra acção com forma de processo sumário contra B... e mulher C... , enquanto ex-sócios gerentes da sociedade comercial já dissolvida “D...,Lda.”, pedindo a condenação de ambos no pagamento da importância de € 41.497,97 correspondente à dívida de capital de € 30.257,21 e o demais aos juros vencidos até 4.2.05, a que acrescerão os vincendos desde essa data, à taxa anual de 12% até integral pagamento.

Alegou para tanto, em suma, que no exercício da sua actividade de construtor civil efectuou para aquela sociedade, agora extinta, obras de construção civil no âmbito de um contrato verbal de empreitada que importaram em € 30.257,21 e tendo-lhe enviado a respectiva factura em 31.12.01 não obteve pagamento, o qual é devido, em último caso com recurso às regras do enriquecimento sem causa.

Os RR. contestaram, fundamentalmente impugnando a dívida, alegando que nunca o TOC E..., que elaborava a contabilidade daquela sociedade, lhe comunicou a existência daquela factura e nos balanços e relatórios contabilísticos e outros documentos da contabilidade sempre o mesmo consignou não existir qualquer passivo, razão por que, na escritura de dissolução da sociedade, declararam que esta não tinha dívidas.

Terminaram o articulado de contestação com requerimento de intervenção principal provocada desse TOC, remetendo para o disposto nos art.ºs 325.º e 326.º do CPC, com fundamento em que era ele quem tinha a obrigação de chamar a atenção dos RR. para a existência da alegada factura não liquidada quando tratou de toda a documentação para a dissolução da sociedade, pelo que deve ser responsabilizado por todas as consequências que possam vir a resultar para os RR.

No despacho saneador, a Ex.ma Juíza, quase tabelarmente, não admitiu a intervenção, por a mesma se lhe afigurar legalmente inadmissível e por o chamado não dispor de qualquer interesse directo na causa.

Inconformados, recorreram os RR., apresentando alegações com as seguintes úteis conclusões:

a) – Toda a documentação contabilística da ex-firma dos recorrentes era realizada pelo TOC E....;

b) – Ao pretender-se dissolver e liquidar a sociedade era da inteira responsabilidade do TOC a elaboração dos documentos em como na data da dissolução não apresentava qualquer passivo e activo;

c) – Quando se colocam em causa as declarações efectuadas pelos recorrentes aquando da dissolução e liquidação da sua ex-firma e se pretende ver anulada a respectiva escritura, a responsabilidade também deverá ser exigida ao contabilista;

d) – A ser proferida decisão favorável ao A., os RR. não serão os únicos responsáveis, sendo co-responsável, também, o TOC que do ponto de vista deontológico e profissional deveria prestar informações contabilísticas correctas.

e) – Admitindo a existência de dúvidas sobre a aplicabilidade do art.º 325.º seria de ponderar, pelo menos, a existência de direito de regresso dos RR. sobre o chamado TOC pela eventual procedência da acção, nos termos do art.º 330.º do CPC, como o tribunal a quo poderia ter considerado oficiosamente.

Concluíram pela revogação do despacho recorrido e pela admissibilidade do incidente de intervenção principal provocada do lado passivo.

O A. contra-alegou, no sentido da manutenção do decidido.

Cumpre apreciar em decisão sumária, face à simplicidade da questão e ao abrigo do disposto nos art.ºs 700.º, n.º 1, alín. c) e 705.º do CPC.


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            II. Fundamentos

            1. De facto

            A factualidade relevante é a que se resumiu no antecedente relatório, para onde se remete por razões de economia.


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2. De direito

A questão suscitada consiste em decidir se, face ao pedido e à causa de pedir da acção do A., bem como da contestação, se verificam os pressupostos do incidente de intervenção principal provocada requerido ou, suprindo eventual deficiência dos RR., os pressupostos da intervenção acessória, do TOC E.....

Considerando que, de acordo com o requerido, interessa apenas considerar a intervenção do lado passivo, dispõe o art.º 325.º, n.º 1 do CPC, que “qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária” e o n.º 3 que “ o autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar”, o art.º 329.º, n.º 1, que “o chamamento de condevedores ou do principal devedor, suscitado pelo réu que nisso mostre interesse atendível, é deduzido obrigatoriamente na contestação ou, não pretendendo o réu contestar, no prazo em que esta deveria ser apresentada” e, finalmente, o n.º 2 que “tratando-se de obrigação solidária e sendo a prestação exigida na totalidade a um dos condevedores, pode o chamamento ter ainda como fim a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir”.

Como salienta Salvador da Costa[1], a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial (necessário ou voluntário) no âmbito da relação controvertida e cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do accionamento operado elo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio.

Nos termos do Relatório do DL n.º 329-A/98 de 12.12, que além do mais eliminou o anterior chamamento à demanda, trata-se de um incidente em que a obrigação comporta pluralidade de devedores ou existam garantes da obrigação a que a acção respeite, advindo para o réu interesse em propiciar defesa conjunta ou exercitar o direito de regresso.

O chamado réu assume-se como parte principal na causa, como litisconsorte, titular ou contitular da relação material controvertida, exercitando um direito próprio, como tal aí podendo vir a ser condenado.

De acordo com a petição inicial, a relação material controvertida desenha-se a partir da causa de pedir, assente no incumprimento de um contrato verbal de empreitada, quanto ao preço (art.ºs 1207.º e 1211.º, n.º 2, do CC), cujo pagamento o A., na qualidade de empreiteiro, reclama dos RR., enquanto ex-sócios liquidatários da sociedade comercial extinta, dona da obra.

Ora, o chamado, prestador dos serviços de contabilidade da empresa, não é, claramente, titular ou contitular dessa relação, não sendo condevedor, muito menos devedor principal, nem obrigado solidário com os RR., a cujas obrigações é, aliás, alheio.

Daí o acerto da decisão que não admitiu a intervenção principal requerida.

Sustenta, contudo, o recorrente, nas alegações de recurso, que o tribunal poderia ter procedido à correcção oficiosa do incidente requerido para o de intervenção acessória provocada, regulado pelo art.º 330.º do CPC.

Poder, podia, nesse sentido se acompanhando a inúmera jurisprudência que assim tem considerado.[2]

Mister era que concorressem os pressupostos da forma incidental devida e, no caso concreto, não ocorriam.

No incidente de intervenção acessória o chamado não tem que ser, como além, sujeito da relação jurídica controvertida, não sendo contra ele, mas contra o réu que o pedido da acção é formulado, antes é sujeito de relação conexa com ela (art.º 331.º, n.º 2, do CPC).

Nessa forma de intervenção confrontam-se duas relações jurídicas materiais distintas: a que o autor e o réu discutem e a que fundamenta a acção de regresso ou indemnização do réu contra o terceiro, tendente à indemnização pelo prejuízo decorrente da eventual perda da demanda.

O conceito de acção de regresso do incidente não é coincidente com o do direito de regresso dos art.ºs 497.º, n.º 2, 521.º, n.º 1 e 524.º, do CC e o prejuízo do réu da acção de regresso é o derivado da perda da demanda, ou seja, da condenação da causa principal.

Como mais uma vez salienta Salvador da Costa[3], a acção de regresso envolve o direito de restituição ou de indemnização do réu contra o terceiro chamado pelo montante em que venha a ser condenado a pagar ao autor, na eventual procedência da acção, bastando à conexão a dependência resultante do facto de a pretensão de regresso do réu contra o chamado se apoiar no prejuízo decorrente da perda da demanda.

A própria existência do direito de regresso ou de indemnização – diz o Ilustre Conselheiro – deverá ser susceptível de afectação pela discussão da causa, sendo a própria responsabilidade do réu para com o autor elemento essencial da responsabilidade do chamado perante o réu, ou seja, a conexão do direito de regresso ou de indemnização há-se surgir da própria existência e concreta configuração jurídica da relação controvertida.

Ora, vertendo ao caso dos autos, não há conexão entre a acção de regresso e a causa principal.

Esta, tanto quanto se enxerga da petição inicial, é uma simples acção de dívida, com a causa de pedir assente, como vimos, no incumprimento de um contrato de empreitada, embora reportado a sociedade comercial entretanto dissolvida e, por isso, com responsabilidade imputada aos ex-sócios, versando o pedido sobre indemnização do pagamento do preço em falta.

Simplificando, o que está em causa nessa acção é se os RR. enquanto sócios e liquidatários da sociedade dissolvida à luz, v. g., dos art.ºs 158.º, n.º 1 e/ou 163.º, n.º 1, do CSC devem ou não devem, se a empresa pagou ou não pagou a dívida reclamada.

No incidente e relativamente ao terceiro, responsável, conforme alegações do recorrente, do ponto de vista deontológico e profissional pela documentação contabilística, a causa de pedir será o incumprimento de um contrato de prestação de serviços, na modalidade de cumprimento defeituoso (art.ºs 1154.º e 1156.º, do CC), em que a resposta a dar será se o técnico cumpriu ou não cumpriu devidamente a sua obrigação de prestação de serviços, sendo que, na negativa, o pedido indemnizatório nada tem que ver com aqueloutro do preço por pagar, a que se reporta a causa principal em que os RR. recorridos possam ser condenados.

São coisas diversas, o mesmo é dizer, não há conexão entre ambas.

E, não havendo conexão, excluída está a possibilidade da intervenção acessória do chamado na causa principal.


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            III. Resumindo e concluindo

            - Numa acção de dívida contra os antigos sócios liquidatários de sociedade comercial extinta, por alegado não cumprimento de um contrato de empreitada por falta de pagamento do preço, o alegado incumprimento de um contrato de prestação de serviços na vertente de cumprimento defeituoso da obrigação de prestação de serviços de contabilidade pelo técnico oficial de contas, que fez constar da contabilidade da empresa a inexistência de passivo, não constitui relação jurídica material conexa com a da causa principal, o que inviabiliza o deferimento do chamamento à causa principal desse técnico, seja no âmbito da intervenção principal provocada passiva, seja no âmbito da intervenção acessória provocada (art.ºs 325.º, n.ºs 1 e 3, 329.º e 330.º, n.º 1, do CPC).


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IV. Decisão

            Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.


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Francisco M. Caetano (Relator)


[1] “Os Incidentes da Instância”, 3.ª ed., pág. 108.
[2] V., por todos, Ac. RL de 19.10.06, Proc. 7423/2006-6, in www.dgsi.pt.
[3] Ob. cit., pág. 130 e ss.