Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/10.3TBALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: PRÉDIO MISTO
PRÉDIO URBANO
PRÉDIO RÚSTICO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 5º DO CÓDIGO DO IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE IMÓVEIS (IMI).
Sumário: I – A lei civil não conhece o conceito de prédio misto e este está definido para efeitos fiscais no art. 5º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis – aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003, alterado pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro.
II - A decisão sobre a natureza de um prédio, segundo um critério de afectação, quando nele existam duas utilizações diferentes (de natureza rústica e urbana) tem de ter sempre em consideração se essa utilização se realiza num mesmo prédio ou se cada domínio territorial da utilização corresponde a prédios distintos e independentes.

III - São dois prédios distintos, ainda que antes tenham formado um só, aqueles que tendo pertencido ao mesmo dono tenham passado a ter, com a separação dominial, proprietários diferentes, tenham inscrição matricial e inscrição registal distintas e nos quais se exerçam utilizações diferentes e sem que qualquer delas esteja dependente da outra, ainda que os dois prédios voltem a ser reunidos na mão de um mesmo dono.

IV - Existindo uma servidão de passagem que onerava o prédio rústico quando ele era único, em caso de se vir a separar desse prédio um outro que vem a ganhar independência funcional e jurídica com um dono diverso, a circunstância de o novo prédio (urbano) vir a dispor de entradas de outros acessos anteriormente não existentes não implica a extinção da servidão de passagem existente (por desnecessidade) ficando apenas essa servidão a beneficiar o que restou do prédio rústico original.

Decisão Texto Integral: Relatório

      No Tribunal Judicial de Almeida, A… e mulher, M…, residentes em …, propuseram a presente acção declarativa, na forma sumária, contra a Ré I…, residente na …, pedindo que seja a ré condenada a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio rústico com o artigo matricial … da freguesia da Amoreira; a reconhecer a existência de uma servidão de passagem a favor do prédio dos Autores sobre o prédio da ré inscrito na matriz predial de Almeida sob o artigo … da freguesia da …, com a largura de 4 metros, e comprimento de 6 m, desde a E.M. para Poente e depois para Norte na extrema Nascente/Norte do prédio da ré; a retirar o portão colocado, para permitir a passagem aos Autores para o seu prédio rústico; a demolir o muro de pedra que mandaram colocar para fazer a continuação da parede de forma a que a entrada dos Autores no seu prédio rústico se possa voltar a efectuar a partir daquele lugar; a pagar custas processuais (taxa de justiça, encargos e custas de parte) e procuradoria condigna.

Alegaram os Autores que são donos e legítimos proprietários do prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial, no qual construíram um prédio urbano, totalmente independente do rústico; para acederem ao seu prédio rústico, os autores passavam através do prédio da ré, o que faziam há mais de 30/40 anos, à vista de toda a gente, todos os meses e anos, e sem oposição de ninguém, convictos que a passarem por aquele local exerciam um direito próprio.

A ré tapou a entrada por onde os Autores sempre passaram, construindo um muro nesse local e colocando um portão na entrada para o seu terreno, impedindo desta forma, que os autores entrem no prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial, por aquele local.

Na contestação a ré defendeu-se por excepção, já decidida, e por impugnação, onde alegou nunca ter existido qualquer passagem do seu prédio para o prédio dos Autores. E deduzindo pedido reconvencional peticiona a extinção de qualquer eventual servidão de passagem pelo seu não uso ou a extinção por aquisição por usucapião da liberdade do prédio serviente ou, a extinção por desnecessidade da mesma dizendo que a ter existido qualquer servidão de passagem, há cerca de 24 ou 25 anos que a mesma não é utilizada, por não existir, desde essa altura, qualquer abertura que permitisse o acesso ao prédio dos Autores, através do prédio da ré. Para além dos mais, os autores têm muitas outras entradas para o prédio descrito no artigo 1º da petição inicial, os quais lhes permitem o acesso, com toda a comodidade ao seu prédio, sendo que, nenhuma utilidade têm com a reivindicação de uma outra entrada, nem em termos económicos nem de comodidade.

Na réplica os autores mantêm o alegado na petição inicial e requereram a intervenção provocada do marido da ré, J… que foi admitida.

Por morte de A…, procedeu-se à habilitação dos seus herdeiros (por decisão de 20.08.2011) a mulher M…, e a sua filha, P...

Citadas as habilitadas, estas não juntaram procuração, nem deduziram contestação.

Foi proferido despacho saneador, elaborada a selecção da matéria de facto considerada assente e controvertida, a qual não foi objecto de reclamação e procedeu-se a realização de julgamento tendo sido proferida sentença na qual se decidiu “ julgar a acção e o pedido reconvencional deduzido apenas parcialmente procedentes e, em consequência:

a) Declarar que o Autor A… é proprietário do prédio identificado no ponto 48. dos factos provados.

b) Condenar a ré M… e o chamado J…, este substituído por M… e sua filha P…, ambas declaradas habilitadas para prosseguir a demanda, a reconhecerem aquele direito de propriedade do autor, referido na alínea anterior.

c) Declarar que o prédio descrito no ponto 1. dos factos provados se encontra onerado com uma servidão de passagem, em benefício do prédio descrito em 48. dos factos provados, a qual se inicia na Estrada Municipal, passando por um ribeiro e, entrando, de seguida, no prédio descrito em 1. dos factos provados, na sua extrema Nascente/norte, até que se alcança o prédio descrito em 48. dos factos provados, percurso que tem cerca de 5/6metros, com uma largura de 4 metros.

d) Condenar a ré M… e o chamado J…, este substituído por M… e sua filha P…, ambas declaradas habilitadas para prosseguir a demanda, a reconhecerem aquela servidão de passagem, constituída por usucapião, referida na alínea anterior.

e) Absolver a ré M… e o chamado J…, este substituído por M… e sua filha P…, ambas declaradas habilitadas para prosseguir a demanda, do restante pedido formulado pelos Autores.

f) Declarar extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem aludida na anterior alínea c).

g) Julgar totalmente improcedente o pedido de litigância de má fé deduzido pela ré, e consequentemente, absolver os autores A… e M… de tal pedido.

h) Condenar os autores e a ré no pagamento das custas processuais, na proporção de 80% para os autores, e de 20% para a ré.”.

Inconformados com esta decisão dela interpuseram recurso os autores concluindo que:

Nas contra alegações a ré conclui que:

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O Tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso nem criar decisões sobre matéria nova, a apelação impugna a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido (as respostas aos números 9 e 10 da base instrutória) e sustenta que a decisão de direito deve ser a da procedência da acção, com a improcedência do pedido reconvencional, negando-se o pedido de extinção da servidão por desnecessidade.

Quanto à impugnação da matéria de facto

… …

Da decisão de direito.

Em primeiro lugar, e abordando a questão suscitada pelos requerentes no sentido de defenderem que deveriam ter sido absolvidos da instância do pedido reconvencional e não deveria sequer o tribunal ter apreciado tal pedido, diremos desde já que carece de total fundamento legal essa conclusão.

Os autores propuseram apenas contra a ré M… a presente acção, mas quando confrontados com a contestação desta e com a alegação de que ela era casada e que, como tal, o seu marido deveria ter sido demandado, os autores vieram então, desculpando-se de terem omitido a intervenção (o nome) do réu marido com a existência de um lapso o qual se traduzia em terem entregue em juízo a primeira versão e não a final da p.i., requerer a intervenção principal provocada daquele réu marido nos termos do art. 325 do CPC.

Acontece que esta intervenção foi deferida mas, por este ter falecido, foram habilitadas para prosseguirem na acção, não só a ré mulher mas também os filhos, tendo sido então dado prosseguimento à acção.

É neste contexto que vêm agora os autores sustentar que, por os outros habilitados que não a ré não terem apresentado contestação/reconvenção existiria uma situação que implicaria a absolvição da instância.

Julgamos que basta a leitura dos preceitos aplicáveis para que se tenha de concluir pela falta de razão dos argumentos dos autores e isto porque o art. 320 a) do CPC prevê a possibilidade de intervenção de quem tenha um interesse semelhante ao do autor ou do réu de forma a garantir o litisconsórcio voluntário ou necessário, regulando o art. 321 e 322 nº2 que o interveniente aceita a causa no estado em que se encontrar apresentando o seu próprio articulado ou aderindo aos apresentados pela parte com quem se associa.

É assim por de mais evidente que o interveniente não tem de apresentar articulado e que, quando o não apresente, beneficia do que já tensa sido apresentado por aquele a quem se associa. E se assim é, por extensão lógica, o mesmo se aplica aos habilitados do interveniente por falecimento deste uma vez que estes (os habilitados) nos termos do art. 371 apenas o são para prosseguirem os termos da demanda não lhes sendo exigido que ratifiquem qualquer processado ou que apresentem qualquer articulado.

Assim, sem necessidade de mais considerações improcede essa conclusão de recurso dos autores.

Quanto à decisão de mérito

Não faz parte do objecto deste recurso a existência da servidão protestada pelos autores sobre o prédio dos réus, pedido esse que juntamente com o da condenação dos réus a reconhecerem a existência de tal servidão foram julgados procedentes.

Em causa está apenas saber se essa servidão, como o decidiu o tribunal recorrido, deve ser julgada extinta por desnecessidade ou se, como defendem os autores, deve ser mantida, improcedendo neste caso o pedido reconvencional.

O argumento que a sentença toma por decisivo para ter decidido como decidiu é o de que a independência do prédio urbano quanto ao rústico: “Trata-se de matéria excepcional, que os autores deveriam ter alegado e provado, o que não lograram, tal como decorre da resposta negativa que obteve o artigo 10) da base instrutória.

Encontrando-nos perante um único prédio, agora de natureza mista, não há que fazer distinções entre as suas diversas entradas, até porque não foi alegado nem provado que não houvesse comunicação entre a parte urbana e rústica dos prédios dos Autores.”

Por sua vez, os autores protestam que os prédios, rústico e urbano, são totalmente independentes e que deve manter-se a servidão que serve o rústico e que onera o prédio dos réus.

Como advertência prévia diremos que, mesmo sem alteração da resposta dada ao artigo 10º da BI, não cremos que se possa afirmar como a sentença o faz, que a resposta negativa dada a esse artigo fundamenta a conclusão de que os prédios não são independentes. Como se observou a propósito da impugnação da matéria de facto, ter-se perguntado se os prédios eram independentes constitui uma conclusão que não deveria ter sido levada à base instrutória razão pela qual a resposta negativa dada a essa parte do quesito é de todo irrelevante à conclusão, tanto mais que não pode tirar-se de uma resposta negativa a afirmação de estar provado o seu contrário. Ou seja, mesmo a relevar-se como útil o segmento da pergunta que indagava a independência dos prédios a resposta negativa não fazia concluir que eles eram dependentes (um único se preferirmos).

Iniciando então o percurso decisório sublinhando que nenhuma resposta da BI nos resolve a decisão de direito, lembramos que nos termos do nº2 do art. 204º do Código Civil: “Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.

O preceito refere, pois, na sua singeleza, realidades naturalísticas e não a identificações jurídicas tais como elas possam resultar da matriz ou das certidões de registo predial.

Em anotação ao citado normativo Pires de Lima e Antunes Varela[1], escrevem: “Em conformidade com o critério legal, não devem considerar-se prédios urbanos, mas partes componentes dos prédios rústicos, as construções que não tenham autonomia económica, tais como as adegas, os celeiros, as edificações destinadas às alfaias agrícolas, etc., assim como não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos, como os jardins, pátios ou quintais.

Ao logradouro deve ser atribuída a mesma natureza do edifício a que está ligado, designadamente para efeito determinação do seu valor, em caso de expropriação por utilidade pública […] para efeito de averiguar se, em caso de alienação, se verificam os pressupostos do exercício de algum dos direitos de preferência previstos na lei…”.

Desta primeira abordagem retiramos como conclusão pacífica que a lei civil não conhece o conceito de prédio misto[2] e que, ainda, o conceito de prédio misto está definido no art. 5º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis – aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003, alterado pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro que expressamente refere que “1- Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.

2 - Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto”.

Nesta definição parece claro que o conceito é construído a partir da predominância, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável o prédio é considerado misto.

No entanto tem-se presente que falamos sempre de um único prédio que contenha duas partes de diferente natureza (rústica e urbana) com diferentes utilizações) sendo a consideração do prédio como misto, como tertium genus, resultante da impossibilidade de considerar, de harmonia com a sua parte principal se ela é rústica ou urbana sendo que a priori, ela é sempre ou rústica ou urbana[3].

Julgamos importante sublinhar esta ideia de que a discussão sobre a natureza do prédio em face de uma dúplice utilização, de distinta natureza, tem sempre como pressuposto a inexistência de uma autonomia/independência do domínio em que se experimenta cada uma dessas utilizações de tal modo que não se possa afirmar estar-se perante dois prédios distintos e autónomos. Ou seja, assentando a distinção numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou de afectação económica, imposto é que essa afectação diga respeito ao mesmo prédio.

Quando nos debruçamos sobre a questão de saber qual a natureza de um prédio que contenha construções, as quatro teorias que a doutrina portuguesa aponta[4] têm sempre como ponto de partida, a prévia decisão de não estarmos a falar de dois prédios distintos, um rústico e um urbano, mas antes de um prédio tido por rústico ou urbano, em que existem construções ou em que a construção esteja provida de um terreno adjacente, sendo essa a indicação do C. Civil quando dispõe que o prédio rústico é o terreno ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e o urbano um edifício com logradouro.

Retomando os dados fornecidos pela prova para a decisão do recurso, não esquecemos que um tempo existiu em que havia apenas um prédio rústico com 1.400 m2 pertence ao pai do autor, com uma única utilização e sem que nele houvesse qualquer construção. Acontece, porém, que observando o histórico da questão verificamos que não só nesse prédio rústico foi construída uma casa por outrem que não o seu proprietário como também, que afecta a essa casa ficou uma parcela de terreno, distinta de uma outra parte sobrante, com 730,20m2, e que continuou a ser amanhada por aquele que fora até aí dono de todo o rústico. E, acompanhando esta progressão no tempo, verificamos que não só essas duas realidades (a rústica e a urbana) tinham utilização diversa por distinto titulares como também vieram a dar origem a dois prédios juridicamente independentes, documentalmente identificados e diferentes, reunidos no entanto, agora, na mão do mesmo proprietário.

Pode causar alguma estranheza ao que se entenda por sentido de justiça que perante o descritivo dos factos enunciados, dispondo o prédio urbano de uma ou mais entradas directas da estrada sem onerar o prédio de ninguém, se pretenda manter a servidão sobre o prédio dos réus, fazendo inscrever tudo o que da prova se obteve numa ideia geral de que o prédio rústico e urbano tendo sido apenas um, deveriam manter essa unidade e ser considerados prédio misto para efeito de não se poder reclamar a autonomia do rústico e, assim, evitar que este seja servido por essa servidão que a sentença julga extinta por desnecessidade com o argumento de que esse único prédio tem um ou mais acessos pela “parte” urbana.

Essa mesma ideia de justiça estaria associada à definição das servidões prediais como encargos impostos num prédio em proveito de outro e à minimização dos sacrifícios para o prédio serviente, na afirmação do brocardo rural de que “cada um deve pisar naquilo que é seu”, porém tal não pode sugerir que ao sentido de rigor programático da lei se oponha, com predomínio, o sentido pragmático da justiça, sem que a interpretação das normas o admita, fazendo configurar como um único prédio aquilo que resulta da prova como sendo dois ainda que nas mãos do mesmo dono.

A desnecessidade da servidão decidida na sentença, reconhecendo-se embora existência de dois prédios distintos, um urbano e outro rústico, mas unificados numa natureza mista por força de terem pertencido a um único prédio, e pertencerem agora a um único dono, importaria então como consequência, em nosso modesto entender, que a possibilidade de venda de cada um deles em separado importaria, então, a potencial e eventual criação de uma nova servidão a favor do rústico e sobre o urbano. Ou seja, a entender-se que ao prédio rústico se pode e deve aceder pelo prédio urbano, em caso de esses dois imóveis deixarem de estar na mão do mesmo dono (v.g. por venda) tal importaria necessariamente que se criasse uma servidão de passagem a favor do rústico sobre o urbano por não haver para este outra entrada, maxime, para carro e tractor, por outro lugar, em virtude da declaração de extinção da que existia, por desnecessidade.

Em verdade, a existência de dois distintos prédios permite obviamente a possibilidade do exercício dos direitos inerentes à propriedade respectiva sobre cada um deles e nessa possibilidade está incluída não só a de vender (cada um deles obviamente) mas a de murar os imóveis (art. 1304 e 1356 do C. Civil) desde que com tal não se obstruam direitos de outrem como o de passagem em caso de servidão. E tendo por demonstrada a autonomia dos prédios de que os autores são agora proprietários julgamos que essa autonomia constitui o argumento decisivo para que se deva manter a servidão sobre o prédio dos réus a favor do prédio dos autores, com a consequência lógica de essa servidão dizer respeito exclusivamente aquilo que agora é o prédio rústico 1534 e já não ao urbano com a impossibilidade, obviamente, de os autores poderem transitar por essa passagem para acederem aquilo que é o prédio urbano 394.

Em abono do que se disse cremos que se pode fazer presente que o que o art. 1546 do C.Civil dispõe a propósito da divisão do prédio dominante, caso em que cada consorte (v.g. cada dono) tem o direito de usar da servidão sem alteração nem mudança vendo nós neste preceito uma manifestação de que a pluralidade de várias parcelas dentro imóvel com proprietários diferentes não exime de ser prestada a servidão nos mesmos moldes. Mas se assim é, também cremos que em caso da compactação do imóvel, não por força da sua divisão mas sim por outra causa de redução de área, também essa redução deixa intacto esse exercício do direito de passagem enquanto ela continuar a servir o mesmo imóvel (ainda que reduzido) e enquanto continuar a existir o prédio dominante e o dominado com proprietários diferentes.

Por último, poder-se-ia ainda questionar se, embora com descrições matriciais diferentes e sendo por isso dois prédios distintos, não se poderia argumentar que o histórico desses prédios e a circunstância de pertencerem ao mesmo dono não importaria, mesmo assim, uma ideia de unidade que permitiria considerar desnecessária a servidão como o entende a sentença recorrida.

A este propósito lembramos que no ac. desta Relação de 15-3-2011, já anteriormente citado, e numa questão que envolvia o exercício do direito de preferência, se entendeu que a integração do conceito funcional de “quinta” quando este faz prevalecer ou elemento urbano (habitacional), ou conquanto esse elemento sociológico de integração se refira à ruralidade predial, faz à partida a ideia do prédio misto ter sentido, pois tanto pode fazer prevalecer, no tratamento ou classificação da realidade predial correspondente, o elemento rústico (referir-se-á neste caso a um prédio rústico) ou o elemento urbano (referir-se-á, então, a um prédio urbano). E tal entendimento era retirado de uma realidade em que existia nesse domínio territorial apodado de “quinta” um espaço único integrado na matriz por um prédio urbano e por um prédio rústico, que circundava aquele, ambos distintos juridicamente em termos documentários.

Como nesse acórdão se afirmou, sempre a respeito da exegese do sentido funcional do conceito de quinta, “A desambiguação do conceito de quinta num caso concreto, rectius a determinação da essência (urbana ou rústica) que prevalecerá e determinará (…), ocorre através do aprofundamento da funcionalidade conferida a essa realidade, determinando-se se a unidade lógica entre uma casa e um terreno circundante desta (a unidade que fornece individualidade como “quinta” àquele espaço), destaca a ideia de habitar naquela casa e prolongar essa funcionalidade com o desfrute do terreno ou, pelo contrário, o que visa é a exploração agrícola desse mesmo terreno, com uma utilização subsidiária da casa ou que se assuma como tributária da exploração agrícola do terreno circundante.”

Na conjugação de todos esses elementos expostos julgamos que não se pode aplicar à questão em estudo a ideia funcional de os prédios do autor formarem uma “quinta”, desde logo[5] porque não foi alegada, nem por isso mesmo podia ficar demonstrada, a existência de uma relação de funcionalidade unitária quer entre o rústico e o urbano quer entre o urbano e o rústico, ou dito de outro modo nem o prédio urbano serve de qualquer forma o prédio rústico nem este último serve de qualquer modo o urbano numa relação que, não obstante as matrizes diferentes se pudesse afirmar existir uma interdependência de ambos ainda que com predominância da parte rústica ou urbana.

O que sabemos é que os prédios rústico e urbano pertencentes agora aos autores começaram por ser apenas um único prédio rústico, pertencente ao pai do autor, e que esse imóvel, com a construção da casa e terreno anexo convertido em quintal, se separou na sua funcionalidade e afectação tendo ficado a pertencer, até na sua utilização, a pessoas diferentes (ao pai e ao filho) quebrando-se dessa forma qualquer unidade de afectação que pudesse sugerir uma ideia de “quinta”, sendo que juridicamente ficou demonstrada a autonomia de ambos. A estas conclusões cremos que não obsta a circunstância de o prédio rústico e urbano terem vindo a ser reunidos na mesma propriedade pois que essa reunião não implicou (ou não foi alegada nem ficou provado que tenha implicado) uma relação de unidade funcional que admitisse a consideração de essa unidade poder impor o entendimento de que a/s entrada/s para o prédio urbano devesse/m servir o rústico e assim, excluir a necessidade da servidão sobre o prédio dos réus.

Em síntese, tendo sido reconhecida na sentença recorrida que o prédio dos réus “descrito no ponto 1. dos factos provados se encontra onerado com uma servidão de passagem, em benefício do prédio descrito em 48. dos factos provados, a qual se inicia na Estrada Municipal, passando por um ribeiro e, entrando, de seguida, no prédio descrito em 1. dos factos provados, na sua extrema Nascente/norte, até que se alcança o prédio descrito em 48. dos factos provados, percurso que tem cerca de 5/6metros, com uma largura de 4 metros” e  tendo também condenado “a ré M… e o chamado J…, este substituído por M… e sua filha P…, ambas declaradas habilitadas para prosseguir a demanda, a reconhecerem aquela servidão de passagem, constituída por usucapião, referida na alínea anterior”, em face do que deixamos exposto deve a apelação ser julgada procedente e revogada a decisão recorrida na parte em que declarou extinta, por desnecessidade, essa servidão de passagem que antes reconhecera.

… …

Sumariando o presente acórdão nos termos do disposto no art. 713 nº5 do CPC deixamos expresso que:

- A lei civil não conhece o conceito de prédio misto e este está definido para efeitos fiscais no art. 5º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis – aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003, alterado pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro.

- A decisão sobre a natureza de um prédio, segundo um critério de afectação, quando nele existam duas utilizações diferentes (de natureza rústica e urbana) tem de ter sempre em consideração se essa utilização se realiza num mesmo prédio ou se cada domínio territorial da utilização corresponde a prédios distintos e independentes.

- São dois prédios distintos, ainda que antes tenham formado um só, aqueles que tendo pertencido ao mesmo dono tenham passado a ter, com a separação dominial, proprietários diferentes, tenham inscrição matricial e inscrição registal distintas e nos quais se exerçam utilizações diferentes e sem que qualquer delas esteja dependente da outra, ainda que os dois prédios voltem a ser reunidos na mão de um mesmo dono.

- Existindo uma servidão de passagem que onerava o prédio rústico quando ele era único, em caso de se vir a separar desse prédio um outro que vem a ganhar independência funcional e jurídica com um dono diverso, a circunstância de o novo prédio (urbano) vir a dispor de entradas de outros acessos anteriormente não existentes não implica a extinção da servidão de passagem existente (por desnecessidade) ficando apenas essa servidão a beneficiar o que restou do prédio rústico original.

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, julgando o pedido reconvencional dos réus improcedente por não provado, revoga-se a decisão recorrida na parte em que declarou extinta por desnecessidade a servidão que antes declarou reconhecer na al. c) da parte decisória da sentença, mantendo-se em tudo o mais a sentença recorrida.

Custas pelos Apelados.

Manuel Capelo (Relator)

Jacinto Meca

Falcão de Magalhães


[1] in “Código Civil Anotado”, Volume I, pág. 196,
[2] Ver neste sentido o ac. STJ de 28-2-2008 no proc. 08A075, in dgsi.pt e ac. desta Relação de 15-3-2011 no proc. 22/08.3TBFND.C1 in dgsi.pt em que o ora relator foi adjunto.

[3] A problemática relativa aos prédios mistos tem sido essencialmente tratada em matéria de exercício de direito de preferência e no âmbito da interpretação do art. 1381 al.a) do C.Civil conforme se pode observar dos acórdãos citados na nota 2.
[4] As “Teoria do valor; teoria da afectação económica; teoria do fraccionamento e teoria da consideração social” conforme Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Parte Geral”-Tomo II – págs. 121 e segs.
[5] Mesmo sem questionar se a realidade que se refere com o conceito de quinta não constitui uma extensão de terreno maior sendo que no caso em que essa realidade era discutida não só essa extensão era incomparavelmente maior como também o artigo urbano ficava circundado do rústico o que torna significativamente diferente da situação dos autos.