Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
243/12.4GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONVERSÃO DA PENA DE MULTA EM PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 49.º DO CP; ARTS. 488.º E 497.º DO CPP; ARTS. 27.º E 32 DA CRP
Sumário: I - O despacho recorrido, ao decretar a conversão da pena de multa em prisão subsidiária nos termos do art.49.º, n.º1, do Código Penal, sem previamente ter ouvido o arguido, violou o princípio do contraditório.

II - A preterição do direito do arguido a ser ouvido previamente à tomada da decisão e conversão da multa em prisão subsidiária, integra a nulidade prevista no art.120.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CPP, por omissão de diligência que se reputa essencial para a finalidade que se teve em vista.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em Conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

      Relatório

Por despacho de 14 de Outubro de 2015, a Exma. Juíza da Comarca de Leiria – Instância Local de Leiria, Secção Criminal, J2 – procedeu à conversão da pena de 160 dias multa, em que o arguido A... havia sido condenado por sentença proferida nestes autos, por prisão subsidiária, e determinou o cumprimento de 106 (cento e seis) dias de prisão subsidiária.

          Inconformado com o despacho de14 de Outubro de 2015, dele interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. Não decidiu bem o Tribunal a quo ao ordenar o cumprimento da pena de prisão subsidiária, sem que fosse dada a oportunidade ao arguido de se pronunciar sobre a conversão da pena de multa em pena de prisão, violando-se assim o Princípio do Contraditório ínsito no art. 61.º n.º 1 al a) do C.P.P.,

2. Dispõe o n° 3 do art° 49° do C.P. que “ Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. (...)”;

3. Do preceito supra mencionado podemos concluir que a falta de pagamento da multa não conduz imediata e irremediavelmente à aplicação da prisão subsidiária, porquanto o condenado pode provar que o pagamento não lhe é imputável;

4. E mesmo havendo lugar à aplicação da prisão subsidiária, esta pode ser suspensa, sendo necessário dar ao condenado a oportunidade de se pronunciar, provando eventualmente que o não pagamento lhe não é imputável e/ou requerendo a suspensão da pena de prisão;

5. Há que saber qual a razão da falta de pagamento da multa a que foi condenado para só depois se decidir da aplicação ou não da prisão subsidiária;

6. No caso em apreço não foi averiguado, e devia ter sido, o motivo pelo qual o arguido não pagou a multa, dando-se-lhe a oportunidade de se pronunciar, antes de proferido o despacho recorrido;

7. Neste sentido também os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.02.2010, Processo n° 373/00.5PAMGR.C1 e de 27.11.2013, Processo n° 325/10.7TATNV-B.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.

8. Neste último pode ler-se ainda “ que embora relativamente ao caso em apreço não exista previsão expressa no sentido de audição do arguido, tal resulta do disposto no art.°61°, n° 1, al. b) do C.P.P., que determina que o arguido deve ser ouvido pelo Tribunal ou pelo Juiz sempre que deva ser tomada alguma decisão que pessoalmente o afecte.

9. É evidente que a decisão sob recurso afecta e muito o condenado, uma vez que contende com a sua liberdade.

10. Por outro lado, e sem conceder, constitui nulidade insanável, nos termos do disposto na al. c) do art°119° do CP.P, a ausência do arguido nos casos em que a lei exigir a sua comparência, no sentido atribuído há muito a esta norma, de que a mesma se refere não só “ à ausência física do arguido nos actos em que seja obrigatória a sua presença”, mas também à “ sua ausência processual nos casos em que lhe deve ser feito convite para se pronunciar”.

11. Não tendo o arguido sido notificado para se pronunciar sobre o incumprimento da pena de multa, quando tal se impunha e devia ter sido feito, foi não só violado o princípio do contraditório, mas também cometida a nulidade supra referida, o que implica a invalidade do despacho sob recurso e consequentemente a realização da notificação preterida e das diligencias que venham a ser requeridas ou oficiosamente determinadas caso assim o Tribunal o entenda, antes de proferida nova decisão.

12. O Douto despacho recorrido violou os artigos 49° n° 3 do C.P., 61° n° 1 al. a) e b) do C.P.P., 119° al c) do C.P.P e 27° e 32° n° 5 da Constituição da República Portuguesa.

Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada Justiça.

           O Ministério Público na Comarca de Leiria – Instância Local de Leira, respondeu ao recurso pugnando pela improcedência deste e manutenção integral da decisão recorrida.

           O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer no sentido de que deverá ser equacionada a hipótese da procedência do recurso, determinando-se que o Tribunal de 1.ª instância permita que o arguido se pronuncie nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 3 do art.49.º do Código Penal, realizando para o efeito as diligências necessárias.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não tendo o arguido respondido ao douto parecer do MP.

           Colhidos os vistos cumpre decidir.

      Fundamentação

 O despacho recorrido tem o seguinte teor:

« O arguido A..., foi, por sentença transitada em julgado, condenado numa pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 9 € (nove euros), o que perfaz o montante de 1.440 € (mil quatrocentos e quarenta euros) a que corresponderam, 106 (cento e seis) dias de prisão subsidiária (atento o desconto efectuado a fls. 18.

     O arguido não procedeu ao pagamento.

     Não lhe são conhecidos quaisquer rendimentos ou bens suscetíveis de penhora, pelo que a cobrança coerciva da pena de multa se mostra inviável.

     Vem o Ministério Público, a fls. 51, promover a conversão da multa em prisão subsidiária. Estabelece o n.º 1 do art. 49º do Código Penal, que se a multa não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida pena de prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.

      É o caso dos autos.

      Pelo exposto, decido ordenar o cumprimento da pena de prisão subsidiária de 106 (cento e seis) dias, conforme foi decidido na sentença que condenou o arguido.

      Notifique, sendo o arguido com expressa menção da faculdade que lhe assiste de obstar total ou parcialmente ao cumprimento da prisão pagando total ou parcialmente a multa, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 49.º do Código Penal.

      Transitada a presente decisão, passe e entregue os competentes mandados para cumprimento da pena.

     Os mandados devem ser acompanhados de ofício solicitando a imediata comunicação, pela via mais expedita, do seu cumprimento. Notifique.».

                                                                        *

            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cfr., entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1]e de 24-3-1999 [2]e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente A... aa questões a decidir são as seguintes:

- se o Tribunal a quo ao proferir o despacho de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, sem prévia notificação ao arguido, violou o princípio do contraditório e as disposições constantes dos artigos 49.º, n.º 3 do Código Penal, 61.º n.º 1 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal e 27.º e 32.º n.º 5, da Constituição da República Portuguesa; e

- se, em consequência, o despacho recorrido é nulo nos termos do art.119.º, al c), do Código de Processo Penal.


-

            Passemos a conhecer e decidir a 1.ª Questão

            O recorrente A... defende que o Tribunal a quo ao proferir o despacho de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, sem prévia notificação ao arguido, violou o princípio do contraditório e as disposições constantes dos artigos 49.º, n.º 3 do Código Penal, 61.º n.º 1 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal e 27.º e 32.º n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, invocando os seguintes argumentos:

- O arguido não pagou até à presente data a multa em que foi condenado e, por não ter sido possível obter o pagamento coercivo da multa, o Ministério Público promoveu a conversão da pena de multa em prisão subsidiária;

- Na sequência desta promoção a Exma. Juíza proferiu o despacho recorrido, convertendo a pena de multa em prisão subsidiária, sem que o arguido tenha sido notificado para se pronunciar sobre a aplicação desta pena de substituição;

- Ao não ter sido notificado o arguido, previamente à ordem de cumprimento da prisão subsidiária, foi violado o princípio do contraditório ínsito no art.61.º, n.º1, alínea a), do C.P.P. e, ainda, designadamente, nos artigos 27.º e 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa;

- Não foi averiguado pelo Tribunal a quo, antes de proferir o despacho recorrido, e devia ter sido, o motivo pelo qual o arguido não pagou a multa, pois nos termos do art.49.º, n.º 3 do Código Penal, mesmo havendo lugar à aplicação da prisão subsidiária esta pode ser suspensa se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável;    

- Ao omitir a notificação do arguido para se pronunciar sobre a conversão da pena de multa em prisão subsidiária o Tribunal a quo violou ainda o art.61.º n.º 1 alínea b) do C.P.P., uma vez que este preceito determina que o arguido deve ser ouvido pelo Juiz sempre que deva tomar alguma medida que pessoalmente o afete, e a decisão recorrida afeta o ora recorrente na sua liberdade.

Vejamos se assim é, partindo das normas invocadas pelo recorrente.

O art.27.º da Constituição da República Portuguesa tutela o direito à liberdade - liberdade física, de locomoção -, e à segurança, de modo que o individuo só poderá ver a sua liberdade e segurança limitada nos casos e com as garantias que a Constituição admite.

Depois de no seu n.º1 clarificar que o meio constitucionalmente adequado à privação da liberdade é a sentença judicial condenatória que aplica pena ou medida de segurança, o n.º 2 regulamenta os casos em que a privação da liberdade poderá ocorrer fora da situação prevista no n.º1.  

Deste art.27.º pode retirar-se, como princípio geral, que a privação da liberdade, total ou parcial, só pode ter lugar pelo tempo e nas condições que a lei determinar, isto é, respeitando as garantias processuais que rodeiam a sua aplicação.

Entre as garantias processuais que devem ser respeitadas nas decisões que determinem a privação da liberdade encontra-se, sem dúvidas o princípio do contraditório, que tem assento constitucional expresso no art.32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, ao estabelecer que a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar estão sujeitos ao princípio do contraditório.

O princípio do contraditório tem o conteúdo essencial de que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão, seja interlocutória ou posterior à sentença, deve ser  tomada pelo Juiz sem que, previamente, tenha sido dada ampla possibilidade ao sujeito processual contra a qual é dirigida de a discutir, de a contestar, de a valorar.

O contraditório é um elemento constitutivo do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art.6, § 1.º da CEDH.

Citando jurisprudência do TEDH, diz-nos Ireneu Cabral Barreto que « um processo equitativo exige, como elemento co-natural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses numa posição nunca inferior à da parte contrária; ou, de outro modo, a parte deve deter a garantia de apresentar o seu caso perante o tribunal em condições que a não coloquem em substancial desvantagem face a este oponente.». O princípio do contraditório, como elemento incindível de um processo equitativo e da igualdade de armas impõe que «…qualquer elemento oferecido por uma entidade independente e objectiva (por exemplo, pareceres do Ministério Público) deve ser comunicado às partes a quem deve ser concedida a oportunidade de sobre ele se pronunciar;…». [4]

O contraditório reveste-se de suma importância no processo penal, sendo um princípio central no amplo leque dos direitos do arguido congregados nos artigos 60.º a 63.º do Código de Processo Penal.

O Código de Processo Penal dispõe, no art.61.º, epigrafado « Direitos e deveres processuais», na parte que aqui interessa, o seguinte:

« 1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:

       a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito;

       b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte».

O direito do arguido a estar presente pessoalmente nos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito, enunciado na alínea a), n.º1 do art.61.º do C.P.P. e inserido no exercício do contraditório, em regra, é antecedido de prévia comunicação de comparência.

Entre outros, a comparência em audiência de julgamento e no debate instrutório, são atos típicos em que a presença do arguido constitui um seu direito, devendo para tal ser convocado.   

Na medida em que nestas intervém, pessoalmente, diversos sujeitos processuais, e em que por regra ocorre produção e/ou valoração de prova e se faz a subsunção dos factos ao direito, o direito à presença do arguido, como instrumental do exercício do contraditório e do direito de defesa do arguido, é fundamental.

Diferente é, quanto a nós, o direito a « ser ouvido »pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete, enunciado na alínea a), n.º1 do art.61.º do C.P.P., embora se insira no exercício do direito ao contraditório.

Como bem esclarece o Cons. Henriques Gaspar, « O direito do arguido a ser ouvido significa direito a pronunciar-se antes de ser tomada uma decisão que directa e pessoalmente o afecte; não tem que consistir sempre numa audição ou audiência pessoal e oral; a possibilidade de se pronunciar por escrito através de intervenção processual do defensor satisfaz, por regra, o direito a ser ouvido para exercer o contraditório.».[5]

Por fim, importa considerar para a presente questão, o art.49.º do Código Penal, que sob a epigrafe « Conversão da multa não paga em prisão subsidiária », estatui, designadamente, o seguinte:

« 1. Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços (…);

      (…)

3. Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.»

Este preceito deve ser conjugado com o regime de execução da pena de multa, descrito nos artigos 497.º e 488.º do Código de Processo Penal.

Da sua conjugação resulta, em termos sintéticos, que a primeira notificação que o arguido recebe, após o trânsito em julgado da sentença, é para pagamento voluntário da multa, no prazo de 15 dias.

Nesse prazo, se não proceder ao pagamento integral da multa, poderá requerer a prestação de trabalho ou o pagamento dela em prestações.

Se no prazo processual de 15 dias concedido ao condenado em pena de multa, não requerer a substituição desta por dias de trabalho, ou se posteriormente vier a faltar ao pagamento de alguma prestação e não vier a pagar integralmente a multa, a pena em que o arguido foi condenado mantém a sua natureza de pena alternativa à pena de prisão.

Querendo o legislador que o condenado cumpra a pena, impõe-se passar à execução da multa para pagamento coercivo.

Se o pagamento coercivo não for possível, procede-se à conversão da multa em prisão subsidiária.

A prisão subsidiária poderá ainda não ser cumprida, sendo-lhe suspensa, se o arguido provar que a razão do não pagamento não lhe é imputável. A suspensão é por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

Visando a conversão da multa em prisão subsidiária determinar o arguido, que o possa fazer, a cumprir a pena de multa em que foi condenado, ou seja, sendo aquela uma pena de constrangimento[6], o n.º2 do art.49.º do Código Penal, permite-lhe o seu pagamento a todo o tempo, como forma de obstar ao cumprimento da prisão subsidiária.

Posto isto, e retomando ao caso concreto, verificamos que resulta dos autos, com interesse para a decisão a tomar a seguinte factualidade:

a) o arguido A..., foi condenado, por sentença transitada em julgado em 30 de Abril de 2012, numa pena de 160 dias de multa, à razão diária de € 9,00, ou seja, na multa de € 1.440,00, a que correspondem 106 dias de prisão subsidiária ( atento o desconto efetuado a fls. 18);

b) Em 12 de Setembro de 2012 o arguido requereu o pagamento da multa em prestações;

c) Este pedido foi-lhe indeferido por intempestivo;

d) Em 13 de Setembro de 2012 foi instaurada execução para cobrança coerciva da pena de multa, a qual foi arquivada por inexistência de bens;

e) O Ministério Público promoveu a conversão a conversão da pena de multa em prisão subsidiária, nos termos do art.49.º, n.º1, do Código Penal; e

f) Logo de seguida à prolação da douta promoção, foi proferido o despacho recorrido. 

O recorrente A... invoca a violação, pela decisão recorrida, quer da alínea a), quer da alínea b), n.º1 do art.61.º do Código de Processo Penal,

Porém, o recorrente A... não refere em lado algum que a Exma. Juíza o deveria ter convocado para comparecer perante ela antes de se pronunciar sobre a conversão da multa em prisão subsidiária e que, consequentemente, a ausência a essa diligência, a impossibilitou de exercer o contraditório.

Não é o direito a estar presente a um ato processual que diretamente lhe diz respeito que efetivamente terá sido violado, mas sim o direito a ser ouvido, na sequência da promoção do Ministério Público, e previamente à decisão judicial.

Sendo um facto processualmente assente que o Ministério Público promoveu a conversão da pena de multa em prisão subsidiária nos termos do art.49.º, n.º1, do Código Penal, por a multa não ter sido paga voluntária ou coercivamente, entendemos que o princípio do contraditório exigia, nos termos dos artigos 27.º e 32.º, n.ºs 1 e 5 da C.R.P. , 61.º, n.º 1, alínea b) do C.P.P. e 49.º, n.º 3 do C.P., que Tribunal a quo notifica-se o arguido/condenado  A... para se pronunciar sobre a douta promoção.

Resultando do art.49.º, n.º 3 do Código Penal que a prisão subsidiária poderá ser suspensa, se o arguido provar que a razão do não pagamento não lhe é imputável, a Exma. ao converter a multa em prisão subsidiária, sem antes comunicar ao arguido a promoção do Ministério Público, tomou uma decisão que o afetou pessoalmente, pois impediu o exercício do contraditório, designadamente na vertente de lhe permitir provar que a razão do não pagamento não lhe é imputável.

Ora, conforme já se consignou se o arguido provar que o não pagamento da multa, fixada em € 1.440,00, não lhe é imputável, a prisão subsidiária ficará suspensa, por um período de um a três anos, subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

Em face do exposto, dúvidas não existem que o despacho recorrido ao decretar a conversão da pena de multa em prisão subsidiária nos termos do art.49.º, n.º1, do Código Penal, sem previamente ter ouvido o arguido, violou o princípio do contraditório.

Impõe-se agora determinar as consequências da violação dessa garantia processual.

            2.ª Questão

             No entender do ora recorrente, a não notificação para se pronunciar sobre a conversão da pena de multa em prisão subsidiária constitui nulidade insanável, nos termos do disposto na al. c) do art.119.° do C.P.P., o que implica a invalidade do despacho sob recurso e, consequentemente, a realização da notificação preterida e das diligências que venham a ser requeridas ou oficiosamente determinadas caso assim o Tribunal o entenda, antes de proferida nova decisão.

Alega, para o efeito, que a ausência do arguido nos casos em que a lei exigir a sua comparência, como causa de nulidade enunciada na al. c) do art°119° do CP.P, refere-se não só “ à ausência física do arguido nos atos sem que seja obrigatória a sua presença”, mas também à “ sua ausência processual nos casos em que lhe deve ser feito convite para se pronunciar”. Não tendo o arguido sido notificado para se pronunciar sobre o incumprimento da pena de multa, foi cometida a nulidade insanável supra referida.

Vejamos.

O art.118.ºdo Código de Processo Penal estabelece que « A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei» ( n.º1); quando assim não suceder, o ato ilegal é irregular ( n.º2).

A norma enuncia o princípio da tipicidade ou da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respetivo ato, sendo razões de economia processual as que baseiam tal diferenciação.

O Código de Processo Penal distingue as nulidades insanáveis, a que se refere o art.119.º, das nulidades dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se referem os artigos 120.º e 121.º.

As nulidades insanáveis são as que constam do art.119.º do C.P.P. e ainda as que forem, como tal, identificadas noutras disposições do Código.

Entre as nulidades insanáveis enunciadas no art.119.º do C.P.P., que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, está a seguinte:

« c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência; ».

No entender do ora recorrente, a não notificação para se pronunciar sobre a conversão da pena de multa em prisão subsidiária constitui nulidade insanável, nos termos do disposto na al. c) do art.119.° do C.P.P., interpretando a « ausência do arguido » (…) nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência», como integrando não só a ausência física do arguido, como a  “ ausência processual nos casos em que lhe deve ser feito convite para se pronunciar”.

Neste sentido, pronunciou-se o recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17-2-2016 ( proc. n.º 155/06.0PBLMG.C1, in www.dgsi.pt), ao decidir que a falta de notificação pessoal do arguido para se pronunciar sobre a conversão da multa em prisão subsidiária antes de ser proferido o despacho que procedeu a essa conversão, configura a preterição de uma formalidade essencial prevista no art.61.º, n.º1, al. b) do C.P.P. , que gera a nulidade absoluta a que se reporta o art.119.º, al. c) do C.P.P..

E antes dele, entre outros, também o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25-6-2014 ( proc. n.º 414/99.7TBCVL-B.C1, in www.dgsi.pt), decidiu que a não notificação pessoal do arguido para se pronunciar sobre a possibilidade de conversão da multa em prisão subsidiária , antes de ser proferido despacho que a converta, configura uma formalidade essencial que gera a nulidade do art.119.º, al. c) do C.P.P., por violação do art.61.º, n.º1, al. b), do mesmo Código.

Esta posição não é uniforme na jurisprudência.

Efetivamente, é nosso entendimento que só se pode falar de “ausência do arguido” , no contexto referido na alínea c), do art.119.º do C.P.P, à não comparência do arguido a um ato processual para o qual deva ser convocado, ao qual deve obrigatoriamente comparecer como regra. A nulidade insanável gerada pela “ausência do arguido” resulta da violação do seu direito a estar presente, a que alude a alínea a), n.º1 do art.61.º do Código de Processo Penal.

Atos de presença obrigatória do arguido são o debate instrutório( art.300.º, n.º1 do C.P.P.), salvo renúncia a estar presente, e a audiência ( art.332.º do C.P.P.), embora com as exceções dos artigos 333.º, n.º 2 e 334.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P., cuja ausência geram a nulidade a que alude o art.119.º, al. c) do C.P.P..

Do exposto resulta que o despacho judicial a converter a multa em prisão subsidiária, sem que previamente tenha sido concedido ao arguido o exercício do contraditório, não integra a nulidade insanável da ausência do arguido a ato a que a lei exige a respetiva comparência, a que alude o art.119.º, al. c) do C.P.P..

Não existindo qualquer outra norma no Código de Processo Penal que comine com a nulidade insanável o não exercício do contraditório previamente à prolação do despacho judicial a converter a multa em prisão subsidiária, importa decidir se esta violação de lei integra uma nulidade sanável ou configura uma simples irregularidade.

No caso em apreciação, adiantando já a nossa posição, entendemos que a preterição do direito do arguido a ser ouvido previamente à tomada da decisão de conversão da multa em prisão subsidiária, integra a nulidade prevista no art.120.º, n.º1 e 2, al. d), do C.P.P., por omissão de diligência que se reputa essencial para a finalidade que se teve em vista.[7]

Anotamos a este propósito que o art.120.º do C.P.P. estabelece, designadamente e com interesse para a presente questão, o seguinte:

«  2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

       (…)

       d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:

    a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;

    b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;

    c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;

    d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.».

Quando o legislador se refere à « omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade» , como causa de nulidade sanável, quer abranger  as fases posteriores ao inquérito e à instrução. Isto é, a omissão das diligências que pudessem reputar-se essenciais para a finalidade da decisão pode ocorrer na fase de julgamento, de recurso ou até de execução da pena.

Como já atrás se consignou, o não pagamento voluntário ou coercivo da pena de multa fixada não conduz necessariamente à aplicação da prisão subsidiária.

Fazendo o legislador recair sobre o arguido/condenado a prova de que a razão de ser do não pagamento da multa lhe não é imputável - incumbência cuja conformidade à lei fundamental já foi reconhecida pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 491/2000, de 22.11.2000 -, o Tribunal deve conceder-lhe a oportunidade de se pronunciar e apresentar provas, se assim o entender, de que o pagamento não lhe é imputável e, assim, de poder beneficiar da suspensão da prisão subsidiária.

No caso em apreciação o Tribunal a quo não ouviu o arguido sobre a promoção do Ministério Público no sentido da conversão da multa em prisão subsidiária, nem o arguido apresentou qualquer prova sobre a razão do não pagamento da multa.

Mas mesmo que tivesse sido ouvido e o arguido nada dissesse, entendemos que ainda assim se impunha ao Tribunal a quo pronunciar-se sobre a possibilidade da suspensão da prisão subsidiária.

Como ensina a Prof. Maria João Antunes, «Depois das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48/95, quer a razão do não pagamento da pena de multa seja contemporânea da condenação quer seja superveniente, a solução é sempre a da suspensão da execução da prisão subsidiária, nos termos do n.º 3 do artigo 49.º do CP, quando tal razão não seja imputável ao condenado, em observância do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 2, da CRP)».[8]

Para aferir se a razão do não pagamento da pena de multa é imputável ou não ao condenado A... cremos que o Tribunal deve analisar qual era a situação económica e financeira do mesmo, contemporânea da condenação - que resulta da sentença - , com a que se verifica no momento da conversão da multa.

Resultando dos autos que logo em 12 de Setembro de 2012, mesmo que extemporaneamente, o arguido A... apresentou um requerimento para pagamento da multa em 18 de prestações, alegando não ter meios económicos para pagar de uma só vez, juntando duas declarações do IEFP, de onde resulta que ele e sua mulher estão inscritos no desemprego desde 6 de Setembro de 2012 e, referindo o  Ministério Público, na resposta ao recurso,  que o arguido, no apenso executivo, veio requerer em 7 de Fevereiro de 2014 novamente o pagamento em prestações, impunha-se ao Tribunal a quo proceder a diligências, nomeadamente através de notificação ao arguido, para se pronunciar sobre a sua atual situação económica e financeira e juntar prova ( por exemplo, declaração de rendimentos, recibo do subsídio de desemprego, atestado da junta de freguesia, certidão relativa registo de imóveis e de veículos), antes de proferir o despacho recorrido.

A nulidade que resulta da violação do disposto no art.61.º, n.º1, al. b) do C.P.P. e de omissão de outras diligências com vista a saber da razão do não pagamento da multa, só resultou conhecida do arguido A... com a notificação que lhe foi feita do despacho recorrido.

Nos termos do n.º3 do art.410.º do C.P.P., « O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.».

Em face desta norma, atualmente, não é necessária a arguição prévia da nulidade, antes da interposição de recurso, quando esta não deva considerar-se sanada. O que é aqui o caso.

Sobre os efeitos de declaração de nulidade, o art.122.º do C.P.P. estatui que “ As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aqueles puderem afetar ( n.º1), devendo a declaração de nulidade determinar quais os atos inválidos e ordenar, se necessário  e possível, a sua repetição ( n.º2), aproveitando todos os atos que puderem ser salvos ( n.º3). 

Assim, embora não exatamente com os fundamentos apresentados pelo recorrente, procede a sua pretensão de revogação do despacho recorrido, impondo-se a sua substituição por um outro despacho que, desde já, dê cumprimento ao disposto no art.61.º, n.º1, al. b), do Código de Processo Penal, antes de conhecer da douta promoção do Ministério Público.   

       Decisão

             Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e, revogando o despacho recorrido, determina-se que seja substituído por outro que, previamente à decisão de conversão da multa em prisão subsidiária, proceda á notificação da douta promoção do Ministério Público ao mesmo arguido, para se pronunciar, querendo.

            Sem tributação.

                                                                          *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 


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Coimbra, 16 de Março de 2016

(Orlando Gonçalves - relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1]Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4]A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada”, WoltersKluwer/Coimbra Editora, 4.ª edição, páginas 165 e 166.

[5] “Código de Processo Penal comentado”, Cons. António Henriques Gaspar e outros, Almedina, edição 2104, pág. 212.
[6] Cf. Prof. Figueiredo Dias , in “ Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, edição 1993, pág.147
[7]Esta parece ser também a posição seguida no acórdão do Tribunal da Relação, de 14-7-2010 ( proc. n.º 141/08.6GBTNV-B.C1, in www.dgsi.pt.

[8] Cf. “Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra, 2010-2011, pág. 69].