Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1497/13.4TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
AVAL
OBRIGAÇÃO CAUSAL
MODIFICAÇÃO
PLANO DE INSOLVÊNCIA
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA,4º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 217º Nº4 DO CIRE
Sumário: I. O aval surge como garantia do cumprimento pontual do direito de crédito cambiário e o carácter autónomo da nova obrigação cartular nascida do aval confere-lhe imunidade em relação às incidências da relação subjacente.

II. Em linha com tal princípio, eventuais modificações da obrigação causal decorrentes da aprovação do plano no âmbito do processo de insolvência em que é visado o avalizado não se repercutem na obrigação cambiária do avalista (n.º 4 do art.º 217.º do CIRE).

III. À luz do citado preceito, e no que respeita aos direitos dos credores contra condevedores e garantes, são irrelevantes as modificações introduzidas pelo plano nos créditos sobre a insolvência, quer respeitem à sua existência e montante, quer ainda aos termos e prazos de pagamento, por ser a interpretação mais consentânea com as finalidades que presidiram à consagração da solução legal.

Decisão Texto Integral: I – Relatório
No Tribunal Judicial de Leiria,4º J CÍVEL

por apenso aos autos de acção executiva comum que o Banco A..., SA, com sede na Rua ..., no Porto, instaurou contra B... e C... , residentes em ..., do concelho de Leiria, para cobrança da quantia de € 202 895,18 (duzentos e dois mil, oitocentos e noventa e cinco euros e dezoito cêntimos), dando à execução três livranças subscritas pela sociedade D..., Lda. e avalizadas pelos executados, vieram estes deduzir oposição à execução, o que fizeram com os seguintes fundamentos:

- as livranças exequendas foram entregues em branco ao banco exequente, com excepção das assinaturas da subscritora e dos avalistas;

- a subscritora apresentou-se à insolvência em Abril de 2012, tendo corrido seus termos pelo Tribunal Judicial de Leiria o processo n.º 1913/12.2TBLRA, no âmbito do qual foi aprovado pelos credores, aqui se incluindo o voto favorável da ora exequente, o plano de insolvência apresentado, o qual contemplava o pagamento dos créditos de capital reconhecidos, com redução dos juros vencidos, fixação em 12 anos do prazo de liquidação, com um período de 2 anos e a aplicação de uma taxa de juro progressiva e postecipada, nos termos ali consignados;

- ocorreu deste modo alteração das condições contratuais acordadas entre o banco exequente e a sociedade subscritora, inexistindo incumprimento que legitimasse o preenchimento dos títulos agora dados à execução, que é assim abusivo;

- pelo princípio da acessoriedade, a obrigação dos oponentes, atenta a sua qualidade de avalistas, sofreu modificação quanto ao prazo de vencimento e taxa de juro convencionados, não podendo por isso ser-lhes exigido o pagamento das quantias inscritas nos títulos ora dados à execução.

Com tais fundamentos concluíram pela procedência da oposição deduzida e consequente declaração de extinção da execução.

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Notificada a exequente/oponida, contestou nos termos da peça constante de fls. 15 a 20, na qual alegou que a declaração de insolvência da subscritora determinou o imediato vencimento de todas as obrigações por si assumidas, nos termos do art.º 91.º, n.º 1 do CIRE, legitimando o preenchimento das livranças à luz do pacto de preenchimento celebrado, cujos termos foram pela exequente rigorosamente observados.

A aprovação do plano de insolvência, com concessão à insolvente de moratória, não é invocável pelos avalistas, conforme resulta do disposto nos artigos 32.º da LULL e 217.º, n.º 4 do CIRE. Nestes termos, conservando a contestante, na qualidade de portadora dos títulos, o seu direito de acção contra os avalistas e tendo em conta a autonomia da obrigação por estes assumida, nada obstava à propositura da acção executiva, assim concluindo pela improcedência da oposição deduzida.

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Tendo consignado que os autos forneciam todos os elementos de molde a permitir a prolação de decisão de mérito, foi proferido douto saneador sentença que julgou improcedente a oposição deduzida, determinando o prosseguimento da execução.

Inconformados, os oponentes interpuseram o presente recurso e, tendo apresentado as suas alegações, remataram-nas com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª A douta sentença de que se recorre não teve em conta o teor da primeira parte do Art.º 32 da LULL, ao não ter em conta que tal preceito diz expressamente que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

2.ª No caso dos autos, os avalistas opoentes não estão a ser responsáveis da mesma maneira, mas sim de uma maneira muito mais gravosa.

3.ª Na realidade, o Banco exequente não pode accionar a empresa insolvente porque ela tem um plano de insolvência aprovado nos termos e com efeito do Art.º 217.º n.º 1 do CIRE.

4.ª Todavia, veio executar os avalistas apesar de a empresa estar a cumprir integralmente o plano.

5.ª De qualquer forma, o Banco exequente está actuar com manifesto Abuso de Direito da forma que o mesmo vem contemplado no Art.º 334.º do Código Civil”.

Com tais fundamentos pretende a revogação da decisão apelada e sua substituição por outra que, na procedência do recurso, decrete a extinção da execução.

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Delimitação do objecto do recurso

Constitui entendimento uniforme o de que no âmbito dos recursos ordinários a tarefa cometida ao Tribunal Superior é a reapreciação da decisão recorrida, não lhe competindo examinar questões novas, não submetidas à apreciação do Tribunal “a quo”. Sendo esta a função por lei atribuída aos recursos, está vedado ao recorrente suscitar nesta sede questões novas -deduzir novos pedidos ou invocar novos meios de defesa-, a não ser que a lei permita ou imponha o seu conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, aplicável aos acórdãos proferidos em sede de recurso por força do artigo 663.º, n.º 2, ambos os preceitos do CPC). Deste modo, sendo a excepção do abuso de direito previsto no art.º 334.º do Código Civil de conhecimento oficioso, apesar de os recorrentes (apenas) agora a terem invocado, cumprido que se mostra o contraditório, dela se conhecerá.

Inversamente, tendo alegado em sede da oposição deduzida a excepção do preenchimento abusivo, julgada improcedente na decisão apelada, verifica-se não ter sido tal questão abordada nas alegações apresentadas nem, consequentemente, nas conclusões a final formuladas, termos em que, quanto a este fundamento, não haverá que emitir pronúncia, tendo o decidido transitado em julgado.

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Sabido que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso (cf. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 2 do CPC), são questões a decidir:

i. da violação, por errada interpretação, do art.º 32.º, § 1.º da LULL;

ii. do abuso de direito.

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II. Fundamentação

De facto

Não tendo sido impugnada a factualidade dada como assente e não sendo caso de proceder à sua modificação oficiosa, são os seguintes os factos a considerar, tal como nos chegam da 1.ª instância:

1. O Banco A..., SA instaurou a execução, de que os presente autos são apenso, contra B... e C..., para pagamento da quantia de €202.895,18, dando à execução três livranças subscritas pela sociedade D..., Lda., e avalizadas pelos executados:

a. Uma no montante de € 101.95,25, datada de 13/11/2000 e com vencimento em 24/04/2012.

b. a segunda no montante de € 90.337,47, datada de 7/10/2009 e com vencimento em 24/04/12;

c. uma terceira no montante € 4.000,66, datada de 14/04/09 e com vencimento em 24/04/12.,

2. A sociedade D..., Lda. enviou ao banco exequente uma carta com o seguinte conteúdo:

Assunto: Livrança em caução

 “Em garantia do cumprimento das obrigações por mim/nós emergentes de conta corrente caucionada no montante em capital de 20.000.000$00, correspondentes a juros e encargos, junto envio(amos) uma livrança caução por mim subscrita e avalizada por B... e C... com o montante e data de vencimento em branco, ficando esse Banco autorizado a acabar de a preencher, fixando-lhe o vencimento e indicando, como montante, tudo quanto constitua crédito do banco, logo que eu (nós) deixe(mos) de cumprir alguma obrigação caucionada”.

3. O documento referido em 2) encontra-se assinado pelos avalistas B... e C....

4. O exequente e a D..., Lda., na qualidade de mutuária, B... e C..., na qualidade de avalistas, subscreveram, em 7 de Outubro de2009, um contrato do qual constam, para além do mais, as seguintes cláusulas:

Primeira (Montante)

O Banco, pelo presente contrato, concede à Mutuária um empréstimo sob a forma de abertura de crédito, no montante de €250.000,00, obrigando-se esta a promover o respectivo reembolso nos termos estipulados no presente contrato.

(…)

Décima (Garantias)

1. Em garantia de parte do reembolso da presente utilização de crédito, a SGM emite, nesta data, uma garantia autónoma à primeira solicitação até ao montante de 50% de capital em dívida.

2. Também em garantia integral e tempestivo cumprimento das obrigações decorrentes para a mutuária do presente contrato, a mutuária entregou ao banco uma livrança, por si devidamente subscrita e avalizada pelos avalistas, com montante e data de vencimento em branco, ficando o Banco desde já irrevogavelmente autorizado a, também no seu interesse, efectuar o respectivo preenchimento integral e assim formar o correspondente título de crédito, se o contrato for rescindido ao abrigo da Clausula Décima Terceira infra.

(a) Fixando-lhe a data de emissão, correspondente à data em que o banco efectue o preenchimento, a data de vencimento, que ocorrerá 10 dias após a data de emissão, e o montante, correspondente a tudo quanto, naquela data de vencimento, constituir o crédito do Banco, incluindo os encargos referidos no ponto seguinte. O Banco poderá inserir a cláusula “sem protesto” e definir, livremente, o local de pagamento.

(b) Todos os razoáveis encargos inerentes à emissão da livrança, designadamente o correspondente imposto de selo, são da conta e responsabilidade da mutuária, ficando o banco desde já irrevogavelmente autorizado a, para efeito, e também no seu interesse, debitar a conta da mutuária, ou a incluir no montante de preenchimento da livrança, toda ou parte de tais encargos que não possa ser liquidada por tal conta não se achar provisionada ou se achar insuficientemente provisionada.

(…)

Décima quinta (Outras causas de vencimento antecipado)

1. Situações indiciadoras de impossibilidade de cumprir: Verificando-se qualquer situação indiciadora de que a Mutuária, ou qualquer pessoa que consigo se encontre em relação de domínio ou de grupo (…) se encontra, ou virá a encontrar-se, a curto prazo, na impossibilidade de cumprir pontualmente as suas obrigações, seja para com o Banco, seja para com qualquer um dos credores, incluindo perante a Gestora da Linha e a SGM, pode o banco, mediante simples declaração escrita dirigida à mutuária: (i) resolver o presente contrato, ou declarar o vencimento antecipado e imediato da obrigação de reembolso dos fundos mutuados e das demais obrigações emergentes do contrato e (ii) exigir, em qualquer dos casos, o pagamento imediato de todos os montantes que, consequentemente, sejam devidos, ficando a Mutuária obrigada a fazê-lo. Para este efeito, são tidas, entre outras, como situações indiciadoras da impossibilidade de cumprir:

(a) pendência de processo de insolvência ou de procedimentos da mesma natureza;

(…)

6. O exequente, D..., Lda., na qualidade de beneficiária, e B... e C..., na qualidade de avalistas, subscreveram, em 14 de Abril de 2009, um contrato, do qual constam nas condições gerais, para além do mais, que:

Primeira (Montante)

O Banco, pelo presente contrato, concede à beneficiária um empréstimo, sob a forma de abertura de crédito, no montante global previsto nas CPE, obrigando-se esta a promover o respectivo reembolso nos termos estipulados no presente contrato.

(…)

Décima (Garantias)

3. Livrança Caução ou livrança avalizada: também em garantia do integral e tempestivo cumprimento das obrigações decorrentes para a Beneficiária do presente contrato, esta entregou ao banco uma livrança por si devidamente subscrita – e avalizada pelos Avalistas, caso as CPE prevejam a existência de tal aval - com montante e data de vencimento em branco, ficando o Banco desde já irrevogavelmente autorizado a, também, no seu interesse, efectuar o respectivo preenchimento integral e assim formar o correspondente título de crédito, se o presente contrato for rescindido, fixando-lhe a data de emissão, correspondente à data em que o banco efectue o preenchimento, a data de vencimento, que ocorrerá 10 dias após à data da emissão, e o montante, correspondente a tudo quanto, naquela data de vencimento, constituir o crédito do Banco, incluindo os encargos referidos no ponto seguinte. O banco poderá inserir a cláusula “sem protesto” e definir, livremente, o local de pagamento. Todos os razoáveis encargos inerentes à emissão da livrança, designadamente o imposto do selo, são da conta e responsabilidade da Beneficiária, ficando o Banco irrevogavelmente autorizado a, para o efeito, e também no seu interesse, debitar a conta da beneficiária, ou a incluir no montante de preenchimento da livrança, toda ou parte de tais encargos que não possa ser liquidada por tal conta não se achar provisionada ou se achar insuficientemente provisionada, respectivamente.

7. A subscritora da livrança foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 1913/12.2TBLRA, que correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria.

8. No referido processo de insolvência foi aprovado o plano de insolvência.

9. O Banco exequente reclamou o seu crédito no processo identificado em 7., tendo estado presente na Assembleia de Credores que aí se realizou, e exerceu o seu direito de voto.

10. De acordo com o plano de recuperação da empresa aí aprovado, o acordo de pagamento foi celebrado nos seguintes moldes:

d. Valor a liquidar: 100% do capital reconhecido;

e. Redução dos juros reclamados a 10%, que serão liquidados até ao final de 2012;

f. Prazo de liquidação: 12 anos (incluindo o período de carência) através de 40 prestações trimestrais a iniciarem-se em Dezembro de 2014;

g. Período de carência: 2 anos

h. A taxa de juro a aplicar sobre o capital em dívida será progressiva e postecipada, sendo nos três primeiros anos de 2,5%, em 2015 e 2016 passará para os 3,0% e nos anos seguintes para 3,5%;

i. Constituição de hipoteca voluntária para todas as instituições, de acordo com a regra da proporcionalidade e com base na dívida reconhecida de um bem imóvel.

11. Em 22 de Fevereiro de 2013 foi homologado o plano de insolvência.

12. Por sentença datada de 09 de Abril de 2013, foi declarado encerrado o processo de insolvência da SOMEIL.

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De Direito

i. da violação, por errada interpretação, do art.º 32.º, § 1.º da LULL

Emerge da factualidade enunciada que os ora apelantes prestaram o seu aval a três livranças em branco, subscritas por sociedade por quotas de que o oponente marido era sócio gerente, e para garantia de empréstimos bancários concedidos à sua representada.

Sucede, porém, que a subscritora foi declarada insolvente no âmbito de processo que correu seus termos pelo 1.º juízo do Tribunal judicial de Leiria, ali tendo sido aprovado o plano de insolvência do qual consta, para além do mais que para aqui não releva, que as dívidas às instituições bancárias, nas quais se inclui a apelada, serão pagas no prazo de 12 anos, em 40 prestações trimestrais com início em Dezembro de 2014, após o decurso de um período de carência de dois anos.

Pretendem os apelantes que a modificação operada na obrigação avalizada lhes aproveita, atenta a acessoriedade que é característica da obrigação decorrente do aval prestado, como consagrado no §1.º do art.º 32.º da LULL, daqui decorrendo -parece ser este o sentido útil da alegação- a inexigibilidade do crédito exequendo.

Conforme se ponderou na decisão apelada e não suscita dúvida, a livrança consiste num título de crédito que contém uma promessa de pagamento. O emitente, subscritor do título, declara-se ele próprio obrigado a pagar ao tomador ou à sua ordem a quantia mencionada no mesmo. A livrança é, pois, um título à ordem, transmissível por endosso, e rigorosamente formal, como resulta do artigo 75.º da LULL. A omissão dos requisitos previstos neste preceito, consoante dispõe o art.º 76.º, com ressalva das excepções ali consignadas, obsta a que o escrito produza efeitos como livrança, sendo pois condição da sua existência e validade enquanto tal.

Não obstante, prevê a lei a possibilidade de circulação de livranças em branco -cf. art.º 10.º, aplicável ex vi do disposto no art.º 77.º, §2º- assim entendidas como as “voluntariamente emitidas em estado objectivamente incompleto”[1], podendo, no limite, conter apenas a assinatura de qualquer obrigado cambiário, desde que não se suscite dúvida quanto ao propósito de assumir uma obrigação cambiária. Todavia, neste caso, a simples entrega do título não é suficiente para contrair a obrigação, sendo necessária a autorização do subscritor para que o credor o venha a preencher: é o acordo ou pacto de preenchimento que, via de regra, acompanha o título aquando da sua entrega[2].

Retornando ao caso dos autos:

As livranças em causa, tendo sido emitidas e entregues à exequente em banco, foram-no acompanhadas do pacto de preenchimento, conforme decorre dos factos apurados. Deste modo, não sendo de apor nenhuma reserva ao modo como foi efectuado o preenchimento -questão que, como vimos, se encontra fora do âmbito deste recurso- estamos perante títulos cambiários válidos.

Os apelantes subscreveram as livranças em causa como avalistas e nessa precisa qualidade foram demandados.

O aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário de uma letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores (art.º 30.º da LULL), efectivando-se através da assinatura no verso do título (art.º 31º). É um acto estritamente formal, participando da característica de literalidade do título, e é um negócio jurídico abstracto, cuja validade não depende da validade da relação causal: através do aval o avalista assume uma obrigação cambiária de garantia, garantindo ao portador da livrança o pagamento da quantia nela inscrita por parte de um dos seus subscritores, o avalizado (cf. art.º 32.º, §1.º e 2.º, aplicável às livranças por força do disposto no art.º 77.º, ambos os preceitos da LULL).

O avalista vincula-se em termos de solidariedade perante o respectivo portador, passando a ser um devedor cambiário, sujeito de uma obrigação cambiária autónoma, embora dependente no plano formal da do avalizado (artigos 47.º, primeira parte, e 77.º, da LULL). A obrigação assim assumida é materialmente autónoma em relação à do avalizado, embora dela dependa no plano formal, aproveitando ao avalista, nessa medida, limitação da responsabilidade expressa no título que proceda em relação ao primeiro por vício de forma (aquele que diz respeito aos requisitos externos da obrigação cambiária avalizada – cf. artigos 32.º, segunda parte, e 77.º da LULL). Diversamente, a obrigação do avalista mantém-se mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer outra razão que não seja um vício formal.

Nos termos do § 1.º do art.º 32.º, disposição legal que os apelantes indicam como tendo sido violada por erro de interpretação, “O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.

A despeito do assim estipulado, e que consagraria a característica de acessoriedade[3] como própria do aval, a verdade é que este surge como garantia do cumprimento pontual do direito de crédito cambiário - “o avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito; não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo como obrigado cartular pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança”[4]. O carácter autónomo da nova obrigação cartular nascida do aval confere-lhe assim imunidade em relação às incidências da relação subjacente, “não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal”[5][6].

Isto dito, e entrando no âmago da primeira questão aqui suscitada, pretendem os recorrentes que, tendo a avalizada SOMEIL, Lda. sido declarada insolvente, beneficiando de novas condições para satisfazer o crédito do banco exequente, nomeadamente ao nível da taxa de juro e prazo de vencimento, gozando ainda de uma moratória nos termos do plano aprovados no âmbito do processo insolvencial, tais condições seriam extensivas aos avalistas, dada a acessoriedade da obrigação decorrente do aval em relação à obrigação dos avalizados.

Já se referiu que a obrigação do avalista é acessória no sentido em que se apoia, pelo menos formalmente, na obrigação cambiária do avalizado, não porque as vicissitudes desta se repercutam naquela. Por assim ser, como cremos que é, e conforme se intuía do que se deixou referido, eventuais modificações da obrigação causal decorrentes da aprovação do plano no âmbito do processo de insolvência em que é visado o avalizado não se repercutem na obrigação cambiária do avalista.

Em linha com o entendimento expresso, estatui o n.º 4 do art.º 217.º do CIRE, que “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.

Resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 192.º, 196.º e 217.º que com a prolação da sentença homologatória do plano de insolvência produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência que lhe tiverem sido pelo plano introduzidas, modificação ipso jure que, no entanto, só atinge aqueles créditos. Na verdade, ao voltar o plano de insolvência, o credor tem em vista apenas e só a insolvente, atenta a particular situação em que se encontra, nada parecendo justificar que se considere abrangido o garante ou condevedor que se encontra em condições de honrar a garantia prestada pelo aval.

E um argumento mais intercede no sentido de ser a apontada a boa interpretação.

Conforme se assinalou na decisão apelada, no âmbito do art.º 63.º do cessante CPEREF encontrava-se igualmente expresso que as providências de recuperação não afectavam a existência ou o montante dos direitos dos credores contra os terceiros garantes da obrigação. Todavia, condição dessa imodificabilidade era a não-aceitação ou aprovação por banda desses credores das providências; caso contrário, a extinção ou modificação ocorreria na exacta medida da extinção ou modificação do crédito da empresa.

Face ao regime assim consagrado, afigura-se que a alteração introduzida não foi inocente, apontando para a irrelevância, no que respeita aos direitos dos credores contra condevedores e garantes, de todas as modificações introduzidas pelo plano nos créditos sobre a insolvência, quer respeitem à sua existência e montante, quer aos termos e prazos de pagamento[7]. Tal interpretação do preceituado no n.º 4 do art.º 217.º é a que melhor se adequa ao “espírito que lhe preside e fins que determinaram”[8] a solução aqui consagrada. Com efeito, não só não se descortinam razões determinantes para se concluir de modo diferente quando esteja em causa uma redução ou extinção parcial da dívida ou simplesmente o seu rescalonamento, como o entendimento diverso potenciaria resultados contrários ao interesse da generalidade dos credores e do próprio devedor, criando obstáculos indesejáveis à aprovação de planos de rescalonamento do pagamento dos débitos quando existam garantias pessoais[9].

O credor mantém assim, e em síntese, “incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário”[10]. Em reforço, e contrariamente ao que parece ser o sentir dos apelantes, diga-se ainda que o avalista não vê a sua situação piorada pois que, atento o disposto no art.º 47.º, é direito do portador o de accionar todos os obrigados cambiários, individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que eles se obrigaram.

Improcedem, pelo exposto, as conclusões 1.ª a 4.ª.

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ii. do abuso de direito 

Inovadoramente, invocaram os apelantes em sede de recurso ser abusivo o exercício do direito pelo portador das livranças.

Nos termos do art.º 334.º do Código Civil “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Em tese geral, como sabido, a doutrina do abuso do direito tem a função de “obstar a injustiças clamorosas a que poderia levar, na espécie, a aplicação de determinações abstractas da lei a um caso concreto”[11]. E uma das modalidades em que se concretiza a figura é a do “venire contra factum proprium”, por violação do princípio da confiança, e que se pode basicamente delinear como sendo o caso de o direito ser exercido contra alguém que, com base em convincente conduta, positiva ou negativa, de quem o podia exercer, confiou em que tal exercício não ocorresse e programou em conformidade a sua actividade. Dir-se-á, nessa hipótese, que o titular do direito opera o seu exercício no confronto de outrem depois de a este fazer crer, por palavras ou actos, que o não exerceria, ou seja, depois de gerar uma situação objectiva de confiança em que ele não seria exercido[12].

Face ao que vem de se expor, logo se intui que não basta a aprovação pela exequente de plano de insolvência que implique modificação do crédito que detém sobre a insolvente para que se tenha por abusivo o exercício do direito de crédito que, a própria lei o reconhece, mantém sobre os garantes na sua original fisionomia.

Não se exclui, é certo, a possibilidade de o condevedor ou garante reagirem contra o credor caso a conduta deste se revele imprópria, estando em causa comportamentos por este eventualmente adoptados em favor do devedor, tendo em vista exclusiva ou predominantemente o prejuízo daqueles[13]. Admite-se ainda não ser de descartar a hipótese de conferir a tutela do abuso de direito nos casos em que o credor fez crer ao garante, mediante a adopção de comportamentos nesse sentido concludentes, de que beneficiaria das condições constantes do plano. Todavia, nada disso se apurou -ou sequer foi alegado- ter ocorrido no caso concreto, tendo-se a exequente limitado a exercer o seu direito contra um obrigado cartular, accionando um título perfeito, sendo o crédito exigível, ou seja, em termos absolutamente regulares. E tal conclusão não é beliscada pela circunstância da devedora insolvente se encontrar a cumprir o plano aprovado, conforme os apelantes invocam. A verificar-se tal cumprimento, o mesmo dará lugar, apenas e tão só, à redução do crédito exequendo na medida em que o mesmo haja sido extinto pelo pagamento.

Improcede assim a derradeira conclusão e com ela o recurso interposto.

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III Decisão

Atento o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada.

Custas a cargo dos apelantes.

                                                    *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro
Helder Almeida

[1] Carolina Cunha, RLJ n.º 3982, pág. 71.

[2] No sentido da imprescindibilidade da autorização de preenchimento, Cassiano dos Santos, RLJ, ano 3980, págs. 333 a 342.

[3] O Prof. Oliveira Ascensão refuta esta característica, argumentando que “se a obrigação se mantém, mesmo que a obrigação garantida seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma (cf. art.º 32.º, § 2.º), isso significa que não é acessória. E não haverá contradição com o § 1.º do preceito, uma vez que aqui apenas nos é fornecida a medida objectiva da obrigação do avalista, mas que é independente da do avalizado (cf. Direito Comercial, Títulos de Crédito, vol. III AAFDL 1962, págs. 165 a 175, citado no AUJ de 11/12/2012, in DR 2.ª série de 21 de Janeiro de 2013).

[4] Do acórdão do STJ de 26/2/2013, processo n.º 597/11.0TBSSB-A.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt

[5] Idem.

[6] É ainda em face desta autonomia que vem sendo entendido que o avalista não pode defender-se perante o portador com as excepções do avalizado, salvo no que concerne à do pagamento, só assim não ocorrendo quando os títulos se mantenham em poder do credor originário e o avalista intervenha na autorização de preenchimento, caso em que lhe poderá opor a excepção do cumprimento abusivo a qual, como vimos, tendo sido arguida pelos apelantes, foi julgada improcedente, decisão com a qual se conformaram.

[7] Constitui entendimento jurisprudencial constante, tendo inclusivamente o Ex.mº Sr. Des. Relator do aresto dissidente -Acórdão da Relação de Guimarães de 24/4/2012, proferido no processo n.º 1248/10.5TBBCL-A.G2- revisto entretanto a sua posição (cf. declaração de voto aposta no acórdão da mesma Relação de Guimarães de 11/9/2012, processo n.º 1642/10.1 TBGMR-B.G1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt). V. ainda Ac.s Rel. Porto de 12/9/2013, processo n.º 20121/11.9 TBVCD.A.P1; Rel. Guimarães de 30/5/2013, processo n.º 3308/08.3 TBGMR-A.G1; 5/12/2013, processo n.º 2088/12.2 TEBRG.G1; 10/12/2013, processo 1083/13.9 TBBRG.G1, todos acessíveis no identificado sítio).

[8] Carvalho Fernandes/João Labareda, ob. cit. pág. 839.

[9] Assim precisamente Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. e loc. cit.

[10] Ibidem. b. cit., pág. 838.

[11] cfr. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral das Obrigações”, Coimbra, 1958, a págs. 63-64

[12] cfr. Ac. do S.T.J., de 20-0-06, proc. O6B2110, acessível no identificado sítio.

[13] Como admitem C. Fernandes/J. Labareda, ob. anotada, págs. 838/839, que aqui citamos.