Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
361/12.9TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO PERMANENTE
RESÍDUOS
VEÍCULOS EM FIM DE VIDA (VFV)
Data do Acordão: 10/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º, 5º Nº 3 DO DL N.º 196/2003, DE 23 DE AGOSTO
Sumário: 1.- Um veículo em fim de vida (VFV) é um resíduo. É com a sua qualificação como veículo em fim de via que se inicia a responsabilidade do seu proprietário ou detentor para lhe dar encaminhamento para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento;
2.- A violação do dever jurídico de encaminhar o VFV para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento inicia-se com a omissão dessa ação e mantém-se enquanto persistir a antijuridicidade, que depende da vontade da arguida, independentemente da data em que passou a ser considerado resíduo ou lhe foi cancelada a respetiva matrícula.
Decisão Texto Integral: Relatório

Por decisão do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território, Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, proferida em 10.1.2012, no processo de contra-ordenação n.º … , a arguida “WW... – ., Lda.”, foi condenada numa coima de € 15.000,00 (quinze mil euros), pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelo n.º 3 do artigo 5.°, e alínea a) do n.º 2 e 4 do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 196/2003, de 23 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 64/2008, de 8 de Abril, e nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 22.° da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, com a redacção introduzidas pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto,

A arguida “WW... – ., Lda”, apresentou recurso de impugnação judicial da decisão administrativa concluindo pela revogação dessa decisão.

Recebido o recurso e realizada a audiência de julgamento na Comarca da Lousã , o Tribunal, por sentença proferida a 12 -6- 2012, decidiu julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela arguida “WW... - ., Lda.” e, confirmando a decisão proferida, manteve a condenação na coima de € 15.000,00 acrescidos das custas processuais.

Inconformada com a douta sentença dela interpôs recurso a arguida “WW... - ., Lda.”, para o Tribunal da Relação, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1 - A douta sentença recorrida deu como provado que os veículos passaram a VFV, se não antes, nas seguintes datas:
… a 22/03/2002;
… a 27/02/2004;
… a 18 /05/2005 e
… a 27/04/2006.
2 - Ao não indicar qual a norma legal em que se estriba para considerar a contra-ordenação como reiterada e permanente - não a considerando, por conseguinte prescrita -, padece a douta sentença de um vício fundamentação que a torna nula nos termos dos artigos n.º 374.º e 379.º ,n.º1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.
3 - A qualificação da contra-ordenação como crime permanente feita pelo Tribunal “a quo” viola os artigos 3.º e 5.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) bem como os artigos 4.º e 6.º da Lei 50/2006
4 - São as datas de 22/04/2002; 27/03/2004; 18/06/2005 e 27/04/2006, - ou seja, trinta dias após passarem a serem VFV, considerando que o proprietário tinha 30 dias para os encaminhar para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento - que se têm de fixar como momento da prática do facto, quer nos termos do art. 5.º do RGCO quer nos termos do art. 6.º da Lei 50/2006 que mandam que a punição da contra-ordenação seja determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende, considerando-se o facto praticado no momento em que o agente actuou ou, em caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.
Não há qualquer razão para aplicar "in casu" subsidiariamente a alínea a) do n.º 2 do artigo 119.º do Código Penal (CP) e considerar como se pretende na douta sentença recorrida a contra-ordenação sub judice como permanente. Quanto muito estaríamos aqui perante um “crime de estado”, o que sempre implica que o prazo de prescrição comece a contar desde o dia em que o facto se tiver consumado.
5 - E o artigo 6.º da Leí 50/2006, lei específica das contra-ordenações ambientais, não deixa margem para dúvidas quanto ao momento da prática do facto reafirmando aqui, em sede de lei especial, o nosso entendimento.
6 - Ocorreu já Prescrição de procedimento nos termos do artigo 27.º do Regime Geral das Contra-Ordenações em especial a sua alínea b) in casu aplicável atendendo à moldura de coima prevista no art.24.º n.º 1 alínea a) do DL 196/2003, na sua redacção primitiva, aplicável aos factos subjudice, ou seja, de 500 € a 44.800 €, prescrição que se requer seja aqui reconhecida e que implica a extinção do procedimento contra a Arguida, e a sua consequente absolvição.
7 - Mesmo que se considerasse aplicável in casu a Lei 50/2006, o que só por dever de patrocínio e sem prescindir se concebe, de acordo com o seu art. 40.º também a prescrição de procedimento já ocorreu, prescrição que corre desde o momento em que o agente actuou ou em caso de omissão deveria ter actuado (como acontece in casu), de acordo com o art.6.º da Lei 50/2006.
8 - A douta Sentença recorrida afirma erradamente que o “regime aplicável será sempre o existente à data da consumação do ilícito, isto é até à limpeza do terreno e retirada das viaturas daquele terreno e resíduos nelas depositados”.
E em consonância julgou improcedente o recurso administrativo apresentado pela Arguida, dando como legal a sua condenação no pagamento da coima de 15.000 € pela prática de uma contra-ordenação grave p. e p. pelo n.º 3 do artigo 5.º e alínea a) do n.º 2 e 4 do artigo 24.º do DL n.º 196/2003 com as alterações introduzidas pelo DL n.º 64/2008, (...) nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 22.º da Lei 50/2006, com a redacção introduzida pela Lei 89 /2009.
Contudo, salvo melhor opinião, esta aplicação da lei está errada por dois motivos:
- Um já supra referido e que tem a ver com os momentos da prática dos factos que se têm de considerar a 22/03/2002; 27/02/2004; 18/05/2005 e 27/04/2006 - ou melhor, 30 dias após - nos termos do art. 6.º da Lei 50/2006 e artigos 3.º e 5.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO);
- Outro que se prende com aquele e de que agora nos ocupamos que é a aplicação da lei concretamente mais favorável à Arguida e que a douta sentença, salvo melhor opinião, viola ao aplicar, erradamente, o DL 64/2008 e a Lei 50/2006, na redacção e com as alterações constantes da Lei 89/2009, como se os factos (só) tivessem ocorrido nas suas respectivas vigências e (também, eventualmente) não antes.
9 - O princípio da aplicação da lei concretamente mais favorável ao Arguido é um princípio consagrado não só nos n.º 2 do artigo 4.º da Lei 50/2006, plasmado igualmente no n.º 2 do art. 3.º ambos do RGCO mas também no n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal e que a douta Sentença, no nosso entender, viola.
10 - As disposições supra citadas conjugadas com o art. 14.º do DL 796/2003 e ainda com o art. 119.º do Código da Estrada, resultam que a Lei a aplicar, em concreto, por ser a “Lei” em vigor na altura do momento da prática do facto e pela qual a Arguida deverá ser eventualmente punida por ser aquela que lhe é em concreto mais favorável (e isto sem prescindir) é o art. 24.º n.º 1 alínea a) do DL 196/2003, na sua redacção primitiva (alterado posteriormente pela Lei 64/2008'), aplicável aos factos sub judice.
Na qual a moldura punitiva vai de 500 € a 44.800 €.
11 - A ser aplicada qualquer sanção, (e sem prescindir) sempre a Arguida teria de ser punida pelo mínimo previsto no art.24.º n.º l alínea a) do DL 196/2003, na sua redacção primitiva, aplicável aos factos sub judice, ou seja, 500€ e não no valor que o foi de 15.000 €.
12 - Não existindo qualquer razão para que a alegada infracção seja valorada negativamente, face à impossibilidade de nos primeiros anos de vigência da
13 - Não tendo ficado provado que a Arguida tenha retirado qualquer benefício económico ou outro da pretensa infracção;
14 - Antes existindo uma quase impossibilidade de cumprir a “lei” porquanto o DL n.º 196/2003 que tinha (tem) uma forte componente pedagógica e de instalação não foi acompanhado da existência de uma rede de centros de recepção e de operadores de tratamento licenciados, existindo uma quase completa ausência de informação e de condições para cumprir a Lei.
15 - A Arguida ainda mais se convenceu da sua não ilicitude de actuação com a publicação do DL 78/2008 no qual o Estado instituiu um regime transitório para o cancelamento de matrículas de veículos que não dispusessem de certificado de destruição ou de desmantelamento qualificado (art. 1.º do DL 78/2008).
Com efeito, em 2008 o próprio Estado tomava consciência legislativa da necessidade de cancelamento de matrículas de veículos VFV que não dispunham de certificado de destruição que a grande maioria não dispunham de certificado de destruição ou desmantelamento sabendo que a grande maioria não o detinha.
16 - E que tal como as suas congéneres, a Arguida se dedica à actividade de obras públicas e construção civil, manifestamente em crise, facto público e notório que não carece de prova.

O Ministério Público na Comarca da Comarca da Lousã respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela manutenção integral da sentença recorrida.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhido os vistos cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto dada como provada e respectiva convicção constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
• No dia 8 de Fevereiro de 2010, pelas 12 horas e 00 minutos, os elementos da … , no seguimento de uma denúncia acerca de armazenamento de veículos em fim de vida, num terreno da empresa WW..., sitos junto à … que liga … à … , verificaram a existência de cinco viaturas em fim de vida;
• No local supra identificado foi contactado o encarregado da obra, Senhor A..., tendo o mesmo declarado que as viaturas pertenciam à firma "WW...- .;
• Os elementos da … contactaram, telefonicamente, o Senhor WW..., no sentido de saber se este possuía licença para armazenar veículos em fim de vida, tendo o mesmo referido que não possuía nenhum tipo de licença;
• Que a arguida obteve, relativamente ao exercício do ano de 2009, um lucro tributável de € 64.061,09;
• A arguida era proprietária dos veículos supra referidos;
• A arguida não encaminhou os VFV's para um centro de recepção ou para um
operador de desmantelamento autorizado;
• A arguida, através do seu representante legal, ao não encaminhar, sendo proprietária dos referidos veículos em fim de vida, para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento, não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz;
• A arguida, através do seu representante legal, não agiu com a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações legais, não se descortinando quaisquer factos que retirem a censurabilidade às infracções por si praticadas.
• Os veículos passaram a VFV se não antes, nas seguintes datas:
_ ... a 22/03/2002;
_ ... a 27/02/2004;
_ ... a 18/05/2005 e
_ ... a 27/04/2006.
• A arguida pediu em 16.5.2008 junto do IMTT o cancelamento da matrícula ....
• Em 15.7.2002 a arguida solicitou a baixa da viatura ....
Convicção:
O tribunal deu como provados os factos constantes dos autos e não contestados pela arguida. Com efeito, a arguida contesta apenas que não tinha consciência da ilicitude da sua conduta. Todavia, a testemunha por si arrolada, sócia da arguida e cônjuge do gerente da arguida, referiu peremptoriamente que a arguida teve conhecimento em 2008 da legislação aplicável aos veículos em fim de vida mas que até à data da inspecção não conseguiu remover as viaturas por entidade certificada.
Estas declarações afastam desde logo o alegado desconhecimento da lei, a que acresce não ser plausível que uma empresa que também gere resíduos ferrosos (como admitido pela testemunha) e que por isso faz também algum reencaminhamento de resíduos não conseguisse durante cerca de 2 anos encontrar uma empresa certificada para reencaminhar os resíduos e o conseguisse fazer no curto espaço de tempo dado pela GNR após a inspecção.
Como foi referido pela testemunha a mesma julgava que não obstante saber que a lei obrigava a reencaminhar tais viaturas, as mesmas naquele local não incomodavam, mantendo os mesmos naquele local. E recorde-se que as mesmas viaturas já se encontravam naquele local desde pelo menos o início do século.
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação da recorrente “WW... – ., Lda”, as questões a decidir são as seguintes:
- se a douta sentença padece de um vício de fundamentação, que a torna nula, nos termos dos artigos 374.º e 379.º, n.º1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal;
- se a qualificação da contra-ordenação como crime permanente feita pelo Tribunal “a quo” viola os artigos 3.º e 5.º do RGCO, bem como os artigos 4.º e 6.º da Lei 50/2006, pois que não existe razão para aplicar “in casu” subsidiariamente a alínea a), n.º 2, do art. 119.º do C.P.;
- se quer face ao disposto no art. 27.º do RGCO, em especial a sua alínea b), aplicável atendendo à moldura de coima prevista no art.24.º n.º 1 alínea a) do DL 196/2003, na sua redacção primitiva, quer ao disposto no art.40.º da Lei 50/2006, já prescreveu o procedimento contra-ordenacional;
- se em face do princípio da aplicação da lei concretamente mais favorável ao arguido, a ser aplicada qualquer sanção, teria de o ser pelo mínimo previsto no art.24.º, n.º l, alínea a) do DL 196/2003, na sua redacção primitiva, aplicável aos factos subjudice, ou seja, 500€ e não no valor que o foi de 15.000 €.
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Passemos ao conhecimento da primeira questão.
A introdução do Direito de Mera Ordenação Social no sistema jurídico português, através do DL n.º 239/79, de 24 de Julho - posteriormente substituído pelo DL n.º 433/82, de 27 de Setembro -, tem subjacentes preocupações de natureza politico-criminal que se centralizam na afirmação de que aquele novo ramo do sistema sancionatório público « estaria vocacionado para dar atenção a certas áreas de intervenção de que, nomeadamente pela sua componente social », o Estado « se não podia alhear, como a tutela do ambiente, aspectos diversos da economia nacional ou uma intervenção preventiva na área dos direitos dos consumidores.».
Tratar-se-iam de áreas « carentes de tutela jurídica de carácter sancionatório e finalidades preventivas nas quais, de acordo com as valorações então dominantes, não se justificava uma resposta penal, já então orientada para uma intervenção de ultima ratio, conforme apontava o disposto no artigo 18.º, n.º2, da Constituição de 1976.» – cfr. Dr. Costa Pinto, “ O Ilícito de Mera Ordenação Social e a Erosão do Princípio da Subsidariedade da Intervenção Penal”, Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, pág.19 e ss.
A autonomia do Direito de Mera Ordenação Social face ao Direito Penal vai-se materializar em soluções de natureza substantiva e processual diversas das vigentes para este direito. Contudo, o Direito de Mera Ordenação Social manteve desde sempre profundas ligações ao direito penal e ao direito processual penal, demonstradas em múltiplas soluções normativas comuns.
Pese embora o reforço de aproximação do Direito de Mera Ordenação Social ao Direito Penal e Direito Processual Penal que se faz sentir com as sucessivas alterações ao RGCOC aprovados pelo DL n.º 433/82, e a que não são alheias as elevadas coimas e sanções acessórias previstas no direito contra-ordenacional, as linhas de estrutura do processo de contra-ordenação subsistem.
Neste quadro, não admira que o direito penal seja definido no art.32.º do RGCOC como direito subsidiário e que o art.41.º, do mesmo regime, com a epígrafe “ Direito subsidiário” estabeleça que «Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.».
Do art.41.º do RGCOC resulta que a importação das soluções do processo criminal está dependente, num primeiro momento, do reconhecimento da necessidade de encontrar uma solução para o caso dentro do regime específico das contra-ordenações e da inexistência de solução própria neste quadro legal.
Feito este reconhecimento entra-se num segundo momento, de aplicação das normas do processo penal. Esta passará, sempre que necessário, por um processo de adaptação, tendo em conta as soluções do processo penal e as especificidades do processo de contra-ordenação, de forma a respeitar as linhas de estrutura deste processo.
No processo de contra-ordenação existe uma fase administrativa do processo que vai da notícia da infracção ao cumprimento do art.50.º do RGCOC, e uma fase do recurso de impugnação, que designa o conjunto dos actos processuais que vão da interposição de recurso à decisão do mesmo pelo tribunal ( art.62.º e seguintes).
O art.64.º, n.º 4 do RGCOC , estabelece que « Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.».
Emergindo o dever de fundamentação directamente do art.205.º da CRP, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático, o direito a conhecer as razões do sancionamento é comum quer ao processo criminal quer ao processo de contra-ordenação.
Nada obsta assim que, se for necessário recorrer ao processo criminal para resolução do caso, se tenha em consideração o art.374.º, n.º 2 do C.P.P., quando estatui que a fundamentação da sentença “ consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal .».
A decisão judicial deverá sempre deixar patente ao arguido as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência de interposição de recurso para o Tribunal da Relação e, simultaneamente, e já em sede de 2.ª instância permitir ao tribunal de recurso conhecer o processo lógico de formação da decisão recorrida.
Nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º1, alínea a) e 2 do C.P.P., aplicável por força do art.41.º, n.º1 do RGCOC, a falta de fundamentação constitui nulidade de sentença.
A arguida “WW... - ., Lda.” sustenta que a douta sentença padece de um vício de fundamentação, que a torna nula, nos termos dos artigos 374.º e 379.º, n.º1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, alegando para o efeito que arguiu a excepção da prescrição da contra-ordenação e o Tribunal a quo declarou improcedente a excepção sem indicar a norma legal em que se estriba para considerar a contra-ordenação como reiterada e permanente.
Vejamos.
Resulta da sentença recorrida que a arguida/recorrente considera que são as datas de 22/03/2002, 27/02/2004, 18/05/2005 e 27/04/2006 que fixam o momento da prática do facto, quer nos termos do art.5.º do RGCOC, quer nos termos do art.6.º da Lei 50/2006, pelo que estaria prescrita a contra-ordenação.
Apreciando a excepção, menciona a douta sentença, no essencial o seguinte: “ No que diz respeito à alegada prescrição, é de referir que estaremos perante uma violação continuada e permanente dos refeitos preceitos incriminadores. Com efeito, a recorrente ao manter as referidas viaturas naquele terreno nos termos em que o fez e ao não fazer a gestão dos resíduos, não cumpriu reiteradamente o dever, que o preceito impõe ao agente, de fazer cessar o estado antijurídico causado, donde resulta, ou a que corresponde, o protrair-se da consumação do delito. Conforme refere o Acórdão da Relação do porto de 4.12.1996, « (...) II - No ilícito de mera ordenação qualificável como infracção permanente ou como infracção continuada, (…) III - Decorrendo da decisão da autoridade administrativa que a situação alvo de censura contra-ordenacional " permanece por legalizar " (…)), o ilícito em questão reveste natureza permanente, pelo que o evento se terá prolongado ao menos até à prolação daquela decisão» (in www.dgsi.pt).
Assim sendo, não só tais factos não estão prescritos como o regime aplicável será sempre o existente à data da consumação do ilícito, isto é até à limpeza do terreno e retirada das viaturas daquele terreno e resíduos nelas depositados.
Nestes termos improcede a alegada excepção de prescrição invocada.”.
Da decisão recorrida não se mostra efectivamente indicada a norma legal em que o Tribunal a quo se estriba para considerar a contra-ordenação como continuada e permanente; mas a verdade é que não existe uma norma a definir uma “contra-ordenação continuada e permanente”, nem a recorrente a indica quando impugna essa qualificação para sustentar a verificação da prescrição do procedimento contra-ordenacional.
Embora em termos sucintos, e remetendo para jurisprudência, a decisão recorrida indicou minimamente o que entende por uma contra-ordenação continuada e permanente, e porque não serão aplicáveis ao caso os artigos 5.º do RGCOC e 6.º da Lei 50/2006.
A recorrente entendeu também perfeitamente a razão pela qual foi julgada improcedente a excepção da prescrição, pelo Tribunal a quo, uma vez que escreve na motivação do recurso o seguinte: « Não há qualquer razão para aplicar “ in casu” subsidiariamente a alínea a) do n.º2 do artigo 119.º do Código Penal (CP) e considerar como se pretende na douta sentença recorrida a contra-ordenação sub Júdice como permanente.».
Tendo a recorrente percebido a razão pela qual não foi julgada improcedente a excepção da prescrição do procedimento e podendo o Tribunal da Relação conhecer o processo lógico de formação dessa temos de concluir que a sentença não padece nesta parte – como na restante – de falta de fundamentação e, consequentemente, não se reconhece a nulidade da sentença recorrida.
Segunda questão.
A recorrente “WW..., Lda” defende que a qualificação da contra-ordenação como crime permanente feita pelo Tribunal “a quo” viola os artigos 3.º e 5.º do RGCO, bem como os artigos 4.º e 6.º da Lei 50/2006, pois que não existe razão para aplicar “in casu” subsidiariamente a alínea a), n.º 2, do art. 119.º do C.P..
Alega para este efeito e em síntese, que na doutrina o Cons. Maia Gonçalves, em anotação ao art.119.º do “Código Penal Português”, distingue crimes permanentes e crimes de estado e que o prazo de prescrição destes últimos se conta nos termos do n.º1 do art.119.º do C.P.P..
No caso , in limine, poderíamos estar perante um crime de estado, o que implica que o prazo se começa a contar desde o dia em que o facto foi praticado.
O art.6.º da Lei 50/2006, das contra-ordenações ambientais, não deixa margem para dúvidas quanto ao momento da prática do facto
Vejamos.
O DL n.º 196/2003, de 23 de Agosto, estabelece o regime jurídico a que fica sujeita a gestão de veículos e de veículos em fim de vida (VFV).
O mesmo estabelece no seu art. 5.º, n.º3, que « Os proprietários e ou detentores de VFV são responsáveis pelo seu encaminhamento para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento.».
O art.24.º, n.º1, al. a), deste diploma, estabelecia na sua redacção original, que constituía contra-ordenação, punível com coima de € 500 a € 44.800, no caso de pessoas colectivas, a violação do disposto no n.º3 do art.5.º.
O DL n.º 196/2003, de 23 de Agosto, foi entretanto objecto de alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 64/2008, de 8 de Abril, tendo em vista, designadamente, a adaptação ao regime das contra-ordenações ambientais Lei 50/2006, de 29/08.
Mantendo a redacção do art. 5.º, n.º3, o Decreto-Lei n.º 64/2008, de 8 de Abril, alterou o regime de punição resultante da violação daquele preceito, estabelecendo no art.24.º, n.º 2 , alínea a), que constitui contra-ordenação ambiental grave, nos termos da Lei 50/2006, a violação do disposto naquele preceito.
O processamento das contra-ordenações ambientais rege-se pela Lei Quadro das Contra-ordenações Ambientais, aprovada pela Lei 50/2006, de 29/08 , entretanto alterada pela Lei 89/2009, de 31/08, e objecto de Declaração de Rectificação n.º 70/2009, de 1 de Outubro de 2009.
A Lei 50/2006, na primitiva redacção e na actual, estabelece no seu art.6.º que « O facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.».
Mais estabelece o art.º 2º, n.º 1, desta lei quadro que as contra-ordenações ambientais são reguladas por essa lei e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra-ordenações, ou seja, pelo RCGOC, aprovado pelo DL 433/82, de 27/10, entretanto sujeito a várias alterações.
O art.5.º do RGCOC, tem um redacção igual à do art.6.º da Lei 50/2006, quanto ao momento da prática do facto.
O art.3.º do RCGOC, invocado pela recorrente também nesta questão, já incide sobre a aplicação no tempo da lei de punição da contra-ordenação, e não propriamente sobre o momento da prática do crime e respectivo prazo a partir do qual corre a prescrição do procedimento contra-ordenacional.
O art.32.º do RCGOC, estatui que «Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal».
A propósito da consumação das contra-ordenações e do prazo de prescrição, escrevem os hoje Conselheiros, António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, que « Conquanto a lei refira que o prazo de prescrição se conta a partir da prática da contra-ordenação, a verdade é que, em regra, a contagem do prazo de prescrição não deve nem pode ser feita a partir do momento da prática da contra-ordenação, tal como vem definido no artigo 5.º deste Regime Geral, mas antes a partir do momento ( dia) em que o facto se tiver consumado ou terminado ( concluído), de acordo com o disposto no artigo 119.º, números 1 e 4, do Código Penal (…). Por outro lado, certo é que relativamente às contra-ordenações não consumadas ou tentadas, bem como às contra-ordenações permanentes e continuadas, há que ter em atenção, também, as regras de contagem estabelecidas no número 2, do artigo 119.º do Código Penal, aqui aplicáveis subsidiariamente ( art.32.º).». Para este efeito, os mesmos autores entendem que « contra-ordenação permanente é aquela em que o momento de consumação perdura por um tempo mais ou menos longo e, enquanto dura essa permanência, o agente encontra-se a cometer a contra-ordenação. Assim, tempo da comissão da contra-ordenação permanente é todo o espaço que vai até à terminação do facto ( consumação material).». Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2.ª edição , pág.s 78 e 79.
A nível do direito penal, observa a este respeito o Prof. Figueiredo Dias, que “O crime não será instantâneo, mas antes duradouro (também chamado, embora com menor correcção, permanente) quando a consumação se prolongue no tempo, por vontade do autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de por termo a esse estado de coisas, o crime será duradouro. Nestes crimes, a consumação, anote-se, ocorre logo que se cria o estado anti-jurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado. O sequestro (art. 158º) e a violação de domicílio (art. 190º-1) são exemplos desta espécie de crimes” . “Direito Penal”, Parte Geral, tomo I, pág. 314.

Também o saudoso Cons. Maia Gonçalves escreveu no Código Penal Português, em anotação ao art.119.º, que “ Nos crimes permanentes a execução persiste no tempo, porque há uma voluntária manutenção da situação anti-jurídica, até que esta cesse; por isso o início do prazo de prescrição do procedimento criminal só se verifica quando cessa a execução (…). Nos crimes de estado o agente cria uma situação, um estado anti-jurídico, do qual seguidamente se desprende, sem que esteja permanentemente e a todo o tempo a persistir na sua resolução ( como sucede nos casos de crime permanente). Por isso, nos crimes de estado funciona a regra geral, do n.º1.”
Retornando ao caso concreto, começamos por realçar que nem a Lei 50/2006, no art.6.º, nem o RGCOC, no art.5.º, prevêem quando se deve considerar praticada a contra-ordenação em caso dela ter um carácter permanente ou duradouro, designadamente para efeitos de contagem do prazo de prescrição do respectivo procedimento.
Tendo as contra-ordenações esse carácter não basta atender ao art.5.º do RGCOC; há que ter em atenção, também, as regras de contagem estabelecidas na al. a), n.º 2, do artigo 119.º do Código Penal, para os crimes permanentes, aqui aplicáveis subsidiariamente (art.32.º do RGCOC).
Posto isto, diremos que um VFV é um resíduo, na acepção definida no art.2.º do DL n.º 196/2003. É com a sua qualificação como veículo em fim de via que se inicia a responsabilidade do seu proprietário ou detentor para lhe dar encaminhamento para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento.
Enquanto no crime de estado, como a bigamia, realizado o casamento os efeitos perduram sem que exista um dever jurídico de remoção dessas consequências duradouras - daí resultando que a prescrição do crime se inicia com a celebração do casamento -, na contra-ordenação prevista no art. 5.º, n.º3, do DL n.º 196/2003 , a violação do dever jurídico de encaminhar o VFV para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento inicia-se com a omissão dessa acção e mantém-se enquanto persistir a antijuridicidade, que depende da vontade da arguida.
Recaindo sobre a arguida “WW..., Lda” o dever de remover o efeito antijurídico, o que só depende da sua vontade, concluímos que a consumação da contra-ordenação ambiental se prolonga no tempo e se mantém até que ela o faça cessar através do encaminhamento dos cinco VFV, independentemente da data em que cada um deles passou a ser considerado resíduo ou lhe foi cancelada a respectiva matrícula.
Deste modo, não merece censura a qualificação daquela contra-ordenação, na decisão recorrida, como contra-ordenação permanente, nem a consequente aplicação, subsidiariamente, da alínea a), n.º 2, do art. 119.º do C.P., que estabelece que nos crimes permanentes o prazo da prescrição só corre desde o dia em que cessar a consumação.
Improcede assim, esta segunda questão.
A recorrente “WW..., Lda” sustenta, seguidamente, que quer face ao disposto no art. 27.º do RGCO, em especial a sua alínea b), aplicável atendendo à moldura de coima prevista no art.24.º n.º 1 alínea a) do DL 196/2003, na sua redacção primitiva, quer face ao disposto no art.40.º da Lei 50/2006, já prescreveu o procedimento contra-ordenacional.
A questão a conhecer agora encontra-se condicionada pela resposta anterior.
Uma vez em 8 de Fevereiro de 2010, a recorrente mantém cinco veículos em fim de vida num terreno lhe pertence, num estado de abandono e degradação ambiental visível nas fotos anexas para que se remete na sentença - alheando-se do direito que todos a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado ( art.66.º da C.R.P.) -, e que nessa data a mesma não havia ainda feito cessar o efeito antijurídico resultante do não encaminhamento dos VFV para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento, a contra-ordenação embora iniciada prolonga-se até à data.
Assim, e uma vez que nas contra-ordenações permanentes o prazo da prescrição só corre desde o dia em que cessar a consumação, por força do disposto no art.119.º, n.º 2, al. a), do C.P.P., não tendo cessado o estado duradouro integrante da contra-ordenação imputada à arguida “WW..., Lda”, não correu o prazo de prescrição do respectivo procedimento.
Consequentemente, nem face ao prazo do art.27.º, al. b) do RGCOC, nem ao prazo do art.40.º da Lei 50/2006, prescreveu o procedimento contra-ordenacional.
Por fim, defende a arguida “WW..., Lda” que em face do princípio da aplicação da lei concretamente mais favorável ao arguido, a ser-lhe aplicada qualquer sanção, teria de o ser pelo mínimo previsto no art.24.º, n.º l, alínea a) do DL 196/2003, na sua redacção primitiva, aplicável aos factos subjudice, ou seja, 500€ e não no valor que o foi de 15.000 €.
Mais uma vez não tem a recorrente razão.
Como bem ensinava o Cons. Maia Gonçalves, relativamente aos crimes permanentes “ Aplica-se sempre a lei nova, ainda que mais severa, desde que a execução ou o último acto tenham cessado no domínio da mesma lei. Não há, verdadeiramente, aqui qualquer problema, visto que no domínio da lei nova foram praticados actos integradores do crime.”. – Código Penal Português, 8.ª edição, pág. 183.

Efectivamente, perdurando a contra-ordenação em 8 de Fevereiro de 2010, data da fiscalização dos VFV pela Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, a lei aplicável à conduta da arguida é a que se encontra em vigor nessa data.
A coima aplicável à contra-ordenação ambiental não é assim aquela a que alude o art.24.º, n.º l, alínea a) do DL 196/2003, na primitiva redacção, mas sim a constante da alínea a), n.º 2 do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 196/2003, de 23 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 64/2008, de 8 de Abril, como consta da decisão recorrida.
A propósito da medida da sanção, menciona ainda a recorrente que mais se convenceu da sua não ilicitude de actuação com a publicação do DL 78/2008.
A este respeito diremos apenas que a 2.ª instância apenas conhece da matéria de direito, funcionando como tribunal de revista ( art.75.º do RGCOC), e não resulta minimamente da factualidade dada como provada a falta de consciência de ilicitude da arguida ao não dar encaminhamento aos VFV.
Tendo a coima aplicada á arguida “WW..., Lda” sido fixada pelo montante mínimo em caso de negligência, e não havendo sido indicada, nem existindo, qualquer circunstância de atenuação especial que determine a sua redução, mais não resta que julgar também improcedente esta questão.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida “WW... – ., Lda”, e manter a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,