Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3435/16.3T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Data do Acordão: 12/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 577º, Nº 1, AL. I), 576º, NºS 1 E 2, 578º, 580º, 581º E 619º, Nº 1, TODOS DO NCPC.
Sumário: I- A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.

II- O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda de manifesta-se através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.

III- Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua atuação.

IV- Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

V- Para que haja identidade de sujeitos as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que elas assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa ação e réus na outra.

VI- A identidade de pedidos pressupõe que em ambas as ações se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjetivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.

VII- Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações.

VIII- No nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só pode ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga.

IX- A autoridade de caso julgado de uma sentença só existe na exata correspondência com o seu conteúdo e daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu.

Decisão Texto Integral:







Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I-Relatório

1. A correr termos no atual Juízo (antes Secção) Local Cível de Viseu do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, sob o nº. 3435/16.3T8VIS, pelos autores, M... e F... foi instaurada (em 28/06/2016) contra os réus S... e L... a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, na qual os primeiros (AA.) pedem que os segundos (RR.) sejam condenados a:

a) Permitir o escoamento natural das águas provenientes do seu (dos AA.) prédio identificado com o artigo ... recebendo-as nos seus (dos RR.) prédios identificados nos artigos ... e, em consequência, sejam condenados a abster-se de praticar qualquer acto ou realizar qualquer obra que dificulte o natural escoamento das águas;

b) Pagar aos autores a quantia de €370,00 relativos aos prejuízos causados pelo excesso de água existente no terreno;

c) Reparar o muro sua propriedade que delimita os terrenos inscritos na matriz predial com o artigo ... e com o artigo ...;

d) Proceder ao alinhamento da rede de acordo com os marcos delimitadores existentes no terreno, nos termos do ponto 3.1 e 3.2 da transacção.”

Depois de começarem por fazer um intróito para enquadramento da ação, passaram (sob o ponto II epigrafado “Do Escoamento Das Águas Acordado Na Transacção) para o efeito (e tendo em conta aquilo que mais de relevante haverá que considerar para a apreciação do recurso e que incidirá sobre aquele primeiro pedido) a alegar, em síntese, o seguinte:

Serem os AA. proprietários do prédio rústico identificado no artigo 6º da petição inicial, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., enquanto os RR. o são no que concerne aos prédios rústicos que identificam no artigo 5º do mesmo articulado, inscritos na respetiva matriz sob os artigos ...

Na sequência da transação que foi lavrada na ação declarativa condenatória nº. ... que correu termos naquele mesmo tribunal (instaurada pelos aqui RR. contra os aqui AA.), e homologada por sentença devidamente transitada, os aqui autores obrigaram-se ali, além do mais, a retirar as caneletas que se encontram colocadas nos seus prédios, nomeadamente numa distância de 30 metros a contar da parte que confrontam com os prédios dos Autores.

Esse ponto da transação ficou acordado com o intuito de permitir que as águas existentes nos terrenos de ambas as partes seguissem o seu curso natural, sem a condução por via de meios humanos, através de regos seculares ali existentes.

Aliás, já no dia da inspeção judicial feita ao local no dia da audiência de julgamento em que foi lavrada a referida transação, ficou acordado que seria retirado o tubo que havia sido colocado anteriormente e que fazia a passagem da água que vinha daquele prédio dos AA. (então ali RR.) para aquele prédio dos RR. (então ali AA.) inscrito na matriz sob o artigo ...

Obrigação essa que os aqui AA. cumpriram, tendo procedido à retirada das referidas caneleiras e também do dito tubo.

Acontece, porém, que, dias mais tarde, os aqui RR. taparam em toda a sua extensão o rego onde se encontravam anteriormente o referido tubo, bem como taparam a passagem existente no muro que delimita as propriedades e que permite o escoamento natural das águas.

Atuação essa dos RR. que é claramente abusiva, uma vez que a água, durante todo o inverno, não pode escorrer naturalmente, acabando por se acumular, na sua totalidade, no prédio do AA., alagando e abrindo buracos de grandes dimensões no terreno, provocando-lhes diversos danos, nomeadamente na plantas que ali têm, dos pretendem ser indemnizados.

De qualquer modo, mesmo que se declare/entenda que de acordo com os termos da referida transação os RR. não têm a obrigação de manter os referidos buracos abertos para permitir o escoamento das águas, sempre, todavia, essa obrigação decorre da lei e mais concretamente do disposto no artº. 1351º do CC.

Pelo que os RR. ao taparem a saída da água que provem do prédio dos AA. estão ilegitimamente a estorvar o escoamento  natural das águas.

2. Os réus contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação, deduzindo ainda pedido reconvencional.

No que concerne àquele primeiro tipo de defesa por invocaram, no que concerne aos pedidos formulados pelos AA. sob as alíneas a) e d) daquele seu petitório, a existência de exceção de caso julgado, com o fundamento de a causa quanto a tais pedidos já ter sido julgada na sobredita ação declarativa nº. ..., que correu termos naquele mesmo tribunal de comarca, através de sentença (que homologou a transação que as partes ali “lavraram”) devidamente transitado em julgado, verificando-se, no que concerne aos mesmos, identidade dos sujeitos, dos pedidos e das causas de pedir em ambas as ações.

3. No seu articulado de réplica os AA. defenderam a improcedência da aludida exceção dilatória invocada pelos RR..

4. No despacho saneador proferido em audiência prévia a sra. juíza a quo conhecendo da aludida exceção de caso julgado aduzida pelos réus, decidiu jugar procedente a mesma no que concerne aos pedidos que os AA. deduziram sob as alíneas a) e d), declarando, em consequência, a extinção parcial da instância relativamente a tais pedidos, absolvendo os RR. da instância quanto aos mesmos, e ordenando que os autos prosseguissem para a apreciação dos demais pedidos.

5. Inconformados com tal decisão, os autores dela apelaram, tendo concluído as respetivas alegações de recurso nos termos seguintes:

...

6. Nas suas contra-alegações, os RR. pugnaram pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.

7. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

A) De facto.

Para além dos factos descritos no Relatório que antecede (vg. sob o seu nº. 1), importa atender, para apreciação e melhor e compreensão do presente recurso, ainda aos seguintes factos (que resultam das peças processuais juntas aos autos):

1. Sob o nº. ... correu termos naquele mesmo tribunal de comarca ação declarativa, sob a forma de processo comum, instaurada pelos aqui RR. (ali AA.) contra os aqui AA. (ali RR.) pedindo (além de mais, e para aquilo aqui mais releva):

«(…)

D) Ser declarado que se encontra constituída uma servidão de água, nos termos descritos nos artigos 24 e 25 deste articulado, onerando os prédios dos RR. em favor dos prédios dos AA..

E) Ser declarado que se encontra constituída uma servidão de presa e aqueduto a onerar os prédios dos RR. id. em 15º em beneficio do prédio dos AA., para armazenamento e condução das águas nos termos referidos no artigo 26 deste articulado, bem como se encontra constituída a respectiva servidão de passagem, acessória à de aqueduto.

F) Serem os RR. condenados a reconhecer a existência das referidas servidões e a desobstruir todo o rego, aqueduto e minas que obstruíram e taparam, bem como a efectuar as obras necessárias à reposição de leito dos mesmos e do cano, de molde a permitir a condução e utilização da água em direcção aos prédios dos AA..

G) Serem os RR. condenados a abster-se de praticar qualquer acto que impeça ou diminua o exercício da servidão de águas, de presa e de aqueduto que onera os seus prédios em beneficio dos prédios dos AA, assim como a respectiva servidão de passagem, acessória à de aqueduto.

L) Serem os RR. condenados a retirar a condução das águas referidas em 36 deste articulado do prédio dos AA., assim como as obras identificadas em 36 e 37 deste articulado.

(…). »

Para tanto, e para aquilo que para aqui mais releva, alegaram, em síntese, o seguinte:

Serem os AA. (aqui RR.) donos e legítimos possuidores dos prédios rústicos que identificam no artigo 1º. da petição inicial inscritos na respetiva matriz sob os artigos ..., enquanto os RR. o são em relação ao prédio rústico que identificam no artigo 15º do mesmo articulado inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., sendo que os prédios dos AA. inscritos sob os ... e parte do artigo ... e o prédio do RR. são contíguos entre si.

No prédio dos RR. existem águas que são captadas em duas minas aí existentes e são aproveitadas para rega dos prédios quer dos RR. quer dos AA., nomeadamente para o prédio inscrito na matriz sob o artigo ... todas as terças feiras de cada mês, por 24 horas, durante o período de abril a setembro, inclusive de cada ano, e para os restantes prédios eram aproveitadas consoante as necessidades dos mesmos nesse mesmo período. Água essa que era conduzida, inicialmente por rego a céu aberto e, após obras executadas nas minas, por canalização, nomeadamente por tubo de 3/4 que se encontrava colocado à saída de um poço existente perto das minas para onde as águas eram conduzidas e que atravessava aquele prédio dos RR. numa extensão de cerca de 30 metros até à confrontação sul do prédio dos AA. inscrito na matriz sob o artigo ...

Há mais de 40 anos que os sucessivos donos dos identificados prédios dos AA. vêm utilizando a dita água captada na mina com o fim de irrigarem os identificados prédios no período de tempo acima referido, assim como a sua condução através de rego e posteriormente por tubo para os seus prédios, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de boa-fé, de forma ininterrupta, pacifica, na convicção de que exercem um direito próprio, pelo que se encontra constituída por usucapião, sobre a água captada nas minas sitas no prédio dos RR., uma servidão de água com as identificadas características e uma servidão de aqueduto em beneficio dos referidos prédios dos AA., que expressamente se invocam.

Sucede que, além do mais, os RR. arrancaram e destruíram o cano que transportava a água das minas para os prédios dos AA. supra identificados com o fim de impedirem estes de utilizarem a referida água, o que conseguiram, impedindo os AA. de irrigarem os seus prédios com as ditas águas e de as aproveitar para fins agrícolas, o que lhes têm causado muitos e diversos prejuízos.

Acontece ainda que RR. através da colocação de canaletas em toda a extensão nos limites dos seus prédios, na parte que confrontam com os prédios dos AA. inscritos na matriz com os artigos ..., canalizaram as águas pluviais e as águas em excesso que ficam retidas nos seus prédios e conduziram-nas para os prédios dos AA. inscritos na matriz com os artigos ..., o que faz com que, principalmente na época das chuvas, essas águas canalizadas e conduzidas por esse meio para os prédios dos AA. são de tal forma abundantes que os inundam, destruindo quer as plantações aí existentes quer toda a estrutura de suporte às mesmas, além de arrastarem areias e entulho que são depositados nos prédios dos AA. e de provocarem o desabamento de terras, obrigando a trabalhos de limpezas sucessivas e de substituições quer das plantas quer das estruturas de suporte ao seu cultivo.

2. Os aí RR. (aqui AA.) contestaram a referida ação, defendendo-se por impugnação, deduzindo ainda pedido reconvencional (sem repercussão na matéria factual que supra e  infra se deixam descritas).

No que concerne à defesa por impugnação, e sobre a referida matéria, negaram a existência da servidão de água e de aqueduto reivindicadas pelos AA., alegando ainda, em síntese, o seguinte:

No que respeita à colocação pelos RR. de canaletas para canalização das águas provenientes das chuvas também não assistir razão aos AA., pois que as mesmas foram colocadas nos precisos locais onde, anteriormente, se encontravam regos traçados pela força natural das águas que escorrem pelos prédios dos RR., não alterando a direção que as águas naturalmente tomam, não as conduzindo para qualquer local diferente daquele onde desembocariam sem as referidas canaletas, e se acabam por “desaguar” em algum dos prédios dos AA. isso sempre aconteceria, ainda que aquelas lá não tivessem sido colocadas, pelo que que sendo aquele o percurso natural de escoamento, estão os AA. enquanto proprietários dos prédios inferiores, sujeitos a receber as águas que decorre nos prédios superiores, de acordo com o estipulado no nº. 1 do artº. 1351º do C.C.

3. Ação essa que veio a terminar na sequência de transação ali “lavrada” pelas partes em 30/09/2015, homologada por sentença judicial ali proferida - nessa mesma data e devidamente transitada em julgado - que condenou as partes a cumprirem, nos seus precisos termos, o ali acordado.

Nessa transação (e naquilo que para aqui importa) os aí AA. desistiram dos pedidos formulados sob as alíneas D), E), F) e G), acima transcritas, relativamente às servidões de água, presa e aqueduto (cfr. ponto 4 da cláusula 5ª.), tendo-se os aí RR. obrigado “a retirar as caneletas que se encontram colocadas nos seus prédios, nomeadamente a uma distância de 30 metros a contar da parte que confrontam com os prédios dos Autores”. (ponto 4 da cláusula 3ª.)

B) De direito
1. Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2 – fine -, do CPC).

1.1 Ora, calcorreando as conclusões das alegações do presente recurso interposto pelos AA. - tal como, aliás, deflui do que supra se deixou exarado - verifica-se que a única questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se, no que concerne à alínea a) do pedido formulado pelos autores nesta ação, estamos ou não perante uma situação de (exceção) caso julgado.

2.1 Por ter interesse para o caso em apreço, começaremos, antes de mais, por fazer uma abordagem teórica dessa controversa figura processual, caracterizando-a (refira-se que muita da jurisprudência e a doutrina que abaixo iremos citar embora proferidas à luz do CPC anterior mantêm-se plenamente válidas dado que, como é sabido, essa figura manteve-se inalterável à luz do atual CPC).

A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.

Figura essa que, como se sabe, constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. artºs. 577º, nº. 1 al. i), 576º, nºs. 1 e 2, e 578º do CPC, diploma o qual nos referiremos sempre que doravante mencionemos somente o normativo sem a indicação da sua fonte).

Exceção essa que pressupõe, nos termos do artº. 580º, nºs. 1 e 2, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Isso mesmo acentua o prof. Anselmo de Castro, (in “Processo Civil Declaratório, Vol. II, pág. 242”), ao escrever “tal impedimento, destina-se a duplicações inúteis da actividade jurisdicional e eventuais decisões contraditórias.

O caso julgado, como refere o prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., p. 307”), consiste, assim, na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário, ou então, como ensina o prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil, 1993, págs. 305 e 306”), o caso julgado consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social.

O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal (vide, por todos, o prof. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado, vol. III, pág. 93”, Ac, STJ de 16/09/2015, proc. 1918/11, in “Sumários, 2015, pag. 485”, e Ac. da RP de 24/11/2015, proc. 346/14.0T8PVZ.PT, disponível em www.dgsi.pt).

Compreende-se, desse modo, a razão de tal autoridade do caso julgado pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.

Tanto mais que a decisão transitada pode até ter apreciado mal os factos e interpretado e aplicado erradamente a lei, mas no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça (cfr., a propósito, o prof. Alberto dos Reis, in “Ob. cit., pág. 94”).

Perante tais efeitos do caso julgado torna-se imperioso estabelecer, com nitidez, o conceito de repetição de uma causa.

Tal resposta é-nos dada pelo artº. 581º, nº. 1, ao estatuir que a causa se repete “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

Por seu lado, os nºs. 2, 3 e 4 desse mesmo preceito, concretizando melhor, dispõem que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”. Acrescentando-se, no último normativo, e para o caso que aqui nos importa, que “nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real”.

Num esforço de ainda maior concretização daquele tríade de conceitos (e sem a existência cumulativa dos quais não se pode falar de exceção de caso julgado) podemos dizer, tal como se escreveu, entre outros, nos Acordãos do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal da Relação de Coimbra, respectivamente, de 6/1/94 e 9/12/81, (in, respetivamente, “CJ, ano IX, T1 - 198 e CJ, ano X, T5 - 79”), que as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as partes assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa ação e réus na outra (cfr., por todos, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 319”).

Por sua vez, e tal como se escreveu também no 1º. daqueles arestos, haverá identidade de pedidos “se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a acção, se pretende obter” e que a identidade da causa de pedir “pressupõe que o acto ou o facto jurídico de onde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico”.

Há identidade de pedidos quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico, ou seja, terá de ser o mesmo direito subjetivo cujo reconhecimento se pretende, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, o que significa não ser exigível uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.

Como escreve Mariana Gouveia (in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, págs. 493 e 509”), a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, mas segundo o critério misto não pode deixar de prescindir de uma perspetiva material dos limites das normas e dos seus nexos, por referência ao direito substantivo, nem dos limites dos factos, tal como são apresentados na sentença, sendo este critério o que melhor responde aos problemas de concurso aparente de normas.

A identidade da causa de pedir há, assim, que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações (cfr., por todos, Ac. do STJ de 26/10/89, in “BMJ nº 390 - 379”).

Assim, em resumo e noutra linguagem, podemos dizer que a causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito (facto jurídico de que procede a pretensão deduzida) - em consonância, assim, com o principio da substanciação consagrado pelo nosso ordenamento jurídico -, enquanto que o pedido se reconduz ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da ação interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao tribunal - trata-se de um elemento fundamental, considerando as imposições do princípio do dispositivo: são os interessados que acionam os mecanismos jurisdicionais como ainda quem realiza a escolha das providências que os direitos subjetivos invocados garantem -, e, por fim, que o conceito de sujeito a atender para o efeito coincide com a noção (adjetiva) de parte.

A exceção de caso julgado consiste, assim, e para concluir, na constatação de que a mesma questão já foi deduzida num outro processo e nele apreciada e julgada por decisão que não admite reclamação ou recurso ordinário (cfr. artº. 628º).

Porém, e tal como já resulta do que supra deixámos expresso, importa dizer que a exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado. Ambos são efeitos diversos da mesma realidade jurídica, havendo mesmo quem, a esse propósito, defenda (naquilo que hoje começa a constituir-se em entendimento dominante) que para que autoridade do caso julgado atue não se exige sequer a coexistência das três identidades referidas no artº. 581º (cfr., quanto a este último entendimento, Ac. da RP de 24/11/2015, proc. 346/14.0T8PVZ.PT, disponível em www.dgsi.pt., Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24” e sentença da 1ª instância publicada in “CJ, Ano IV, pág. 1654”). No desenvolvimento daquela afirmação, escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 325”), que “pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão” (...). “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

No mesmo sentido vai o prof. Miguel Teixeira de Sousa (in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, págs. 49 e ss.”) quando escreve: “a excepção de caso julgado visa evitar que o orgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente”. (Vidé ainda, a propósito, Ac. do STJ de 26/1/1994, in “BMJ 433 – 515” e “Ac. da RC de 21/1/1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24”).

E tal questão (da autoridade do caso julgado) conduz-nos à polémica e muito discutida questão da extensão ou alcance do caso julgado.

Nos termos do disposto no artº. 619º, nº. 1, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581º. …” (sublinhado nosso).

Por sua vez, sobre a epígrafe de “alcance do caso julgado” preceitua o artº. 621º que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga...”.

Resulta do exposto, que os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objeto e a fonte ou título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender-se aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - valendo como lei – para qualquer processo futuro, mas só em exata correspondência com o seu conteúdo. Daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu (cfr., a propósito, e para maior desenvolvimento, os profs. Manuel de Andrade, in “Ob. cit., pág. 285”; Castro Mendes, in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo em Processo Civil, 1968” e Miguel Teixeira de Sousa, in “Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIV, 1997, págs. 309  a 316”).

Na referida vexata quaestio vem hoje ganhando predominância a corrente que perfilha o entendimento mitigado no sentido de que muito embora a autoridade ou eficácia do caso julgado não devendo, como princípio ou regra, abranger ou cobrir os motivos ou fundamentos da sentença, cingindo-se, apenas, à decisão na sua parte final, ou seja, à sua conclusão ou parte dispositiva final, mas sendo, todavia, já de estender-se também às questões preliminares que constituírem um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão daquela parte dispositiva do julgado (cfr., entre muitos, e para maior desenvolvimento, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – págs. 55 e 56”, e a abundante doutrina aí citada; Ac. do STJ de 28/5/ 2002, in “Agravo nº 1043/02, 6ª sec., Sumários, 5/2002”; Ac. do STJ de 26/9002, in “Agravo nº 213/02, 2ª sec., Sumários 9/2002” e Ac. da RC de 18/10/94, in “BMJ 440 – 545”).

Daí que, e como se escreveu no Ac. do STJ de 3/4/1991 (in “AJ, 18º - 9”), no nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só possa ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga, tal como estipula o citado artº. 673º (atual artº. 621º do CPC).

Porém, muitas vezes, e como escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Ob. cit., pág. 683”), “a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº. 621º. Relevando, nomeadamente, para o efeito “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir”.

Daí que igualmente vem sendo defendido que não seja de excluir recorrer à parte motivatória da sentença (ou seja, aos seus fundamentos) sempre que tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exato conteúdo da sentença em causa (vidé, a propósito, Ac. do STJ de 9/5/1996, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T2 – 55”; Ac. da RP de 28/1/82, in “CJ, Ano VII, T1 – 266” e os profs. Manuel de Andrade e A. Varela, in “Ob. cits., respectivamente, págs. 318 e 696/697”).

2.2 Postas tais considerações de caráter mais geral sobre tão controversa figura processual (e que por isso, como logo no início expressámos, se nos afiguram úteis para melhor compreensão e delimitação da problemática que nos foi colocada em “mãos” com o presente recurso), reportemo-nos agora ao caso em apreço.

Enfatizando, o que está aqui somente em causa é saber se em relação ao relação ao pedido que os AA. formularam, contra os RR., sob a al. a) do seu petitório final desta ação ocorre exceção de caso julgado face ao que, a tal propósito, foi decidido/julgado na sobredita ação nº. ... que correu termos no mesmo tribunal de comarca (e que doravante identificaremos/designaremos também como 1ª. ação, quando a ela nos referiremos).

No fundo, tratar-se de saber se a presente ação (que doravante identificaremos/designaremos também como 2ª. ação, quando a ela nos referiremos), no que diz respeito ao referido pedido (que acima deixámos transcrito), configura/consubstancia uma repetição da causa que foi decidida/julgada naquela 1ª. ação. O tribunal a quo (no que é secundado pelo RR./recorridos) entendeu que sim (considerando haver identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir em ambas as ações), enquanto os AA./recorrentes entendem que não (defendendo apenas haver identidade quanto aos sujeitos).

Tendo por referência aquela tríade de identidade dos sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cujos conceitos já atrás deixámos enunciados), vejamos então se estamos ou não perante uma repetição de causas.

Naquela 1ª. ação (e para aquilo que para aqui somente importa, tendo sempre presente o aludido pedido formulado nessa ação  pelos AA. e do qual os RR. foram absolvidos da instância com o fundamenta na existência de caso julgado), e tal como ressalta daquilo que supra deixamos exarados, os aí AA. (aqui RR.) visaram essencialmente com ela, além do mais, obter a declaração de que a favor/em benefício daqueles seus prédios aí identificados, e a onerar o prédio dos aí RR. (aqui AA.) se encontravam constituídas, por usucapião, uma servidão de águas e uma servidão de presa e aqueduto, com a condenação do RR. a tal reconhecerem e bem assim a desobstruírem todo o rego, aqueduto e minas que alegadamente obstruíram e taparam, e a efetuarem as obras necessárias à reposição de leito dos mesmos e do cano que transportava essa água para o seus prédios, de molde a permitir a condução e a utilização da água em direção aos prédios dos AA., ou seja, de molde a que aos AA. continuassem a usufruir, em beneficio dos prédios, na sua plenitude do exercício das suas servidões, impedindo os RR. no futuro da prática de qualquer ato que a tal impeça (cfr. als. D), E,) F) e G) do seu pedido final).

Por outro lado, alegando os AA. ainda ali que os RR. através da colocação de canaletas em toda a extensão nos limites dos seus prédios na parte que confrontam com os prédios dos AA. inscritos na matriz com os artigos ..., canalizaram as águas pluviais e as águas em excesso que ficam retidas nos seus (dos RR) prédios e conduziram-nas para os prédios dos AA. inscritos na matriz com os artigos ..., fazendo com que, principalmente na época das chuvas, essas águas canalizadas e conduzidas por esse meio para os prédios dos AA. são de tal forma abundantes que os inundam, destruindo quer as plantações aí existentes quer toda a estrutura de suporte às mesmas, além de arrastarem areias e entulho que são depositados nos prédios dos AA. e de provocarem o desabamento de terras, obrigando a trabalhos de limpezas sucessivas e de substituições quer das plantas quer das estruturas de suporte ao seu cultivo, pelo que pediram também a condenação dos RR. a retirarem tal modo de condução das águas, e consequentemente das obras/caneleiras que realizaram/colocaram para esse efeito (cfr. al. L) do seu pedido final).

Ação essa que, tal como consta da matéria factual acima descrita, veio a terminar (em 30/09/2016) por transação das partes, homologada por sentença judicial transitada em julgado, e que condenou as mesmas a cumprirem-na nos seus precisos termos.

Dos termos dessa transação consta (e naquilo que para aqui interessa) ressalta que os aí AA. desistiram dos pedidos formulados sob as alíneas D), E), F) e G), acima transcritas, relativamente às servidões de água, presa e aqueduto (cfr. ponto 4 da cláusula 5ª.), tendo-se os aí RR. obrigado “a retirar as caneletas que se encontram colocadas nos seus prédios, nomeadamente a uma distância de 30 metros a contar da parte que confrontam com os prédios dos Autores” (o que está correlacionado com pedido formulado pelos AA. sob a al. L)).

Por sua vez, nesta 2ª. ação (nº. ) os AA. (RR. naquele 1ª. ação) vêm ( além do mais, e naquilo que para aqui releva) pedir que os RR. sejam condenados a: “a) Permitir o escoamento natural das águas provenientes do seu (dos AA.) prédio identificado com o artigo ... recebendo-as nos seus (dos RR.) prédios identificados nos artigos ... e, em consequência, a abster-se de praticar qualquer acto ou realizar qualquer obra que dificulte o natural escoamento das águas.” (sublinhado nosso)

Para tanto, e a suportar tal pedido (e já agora, diga-se, também o segundo pedido que formulam sob a al. b) no sentido de os RR. serem também condenados a pagarem-lhes a quantia de €370,00 relativos ao prejuízos que lhes causaram pelo excesso de água existente no seu prédio), alegam, em síntese, que, já depois da referida transação (que dizem ter cumprido naquilo que nela se obrigaram, nomeadamente tendo retirado as sobreditas caneleiras que haviam colocado no seu prédio para conduzirem, para o prédio daqueles, as águas nos moldes supra referidos) os ora RR. taparam em toda a sua extensão o rego onde se encontravam anteriormente o tubo (que fazia a passagem da água que vinha daquele seu prédio para aqueles prédios dos últimos), bem como a passagem existente no muro que delimita as propriedades de ambos, e que permite o escoamento natural das águas do seu prédio para aqueles prédios dos RR., impedindo, assim, e em violação da obrigação que lhes é imposta pelo artigo 1351ºdo CC, que as referidas águas escorram naturalmente do seu prédio para os aludidos prédios dos RR., provocando estes com tal conduta que a água, sobretudo durante o inverno, acabe por se acumular, na sua totalidade, no prédio do AA., alagando e abrindo buracos de grandes dimensões no seu terreno, provocando-lhes diversos danos, nomeadamente na plantas que ali têm, pelos quais pretendem ser indemnizados.

Do confronto daquilo que se deixou exarado, e no que concerne às duas ações, não vislumbramos, salvo melhor opinião, onde é que existe repetição de causa. Daquele tríade de conceitos, é apenas patente que existe identidade de sujeitos em ambas as ações, embora nelas ocupando posições jurídicas antagónicas, pois que numa ação as partes têm a qualidade/posição jurídica de autores e na outra têm a qualidade/posição jurídica de RR. Fora isso, e salvo o devido respeito outra opinião, é para nós claro que os pedidos de ambas as ações são diferentes e assentam em causas de pedir igualmente distintas. A questão fundamental levantada nas duas ações é diferente, como diferente é o efeito jurídico que em ambas as ações se pretende obter e tutelar e bem assim como o concreto facto jurídico em que assentam as pretensões para as quais se pede a tutela jurisdicional.

Não vislumbramos, salvo o devido respeito, onde é que a decisão a proferir nesta ação pode colidir com a decisão proferida naquela 1ª. ação (ou então que possa haver duplicação/repetição de decisões) se a questão que nela foi submetida a apreciação e decisão, no que concerne ao pedido aqui em causa, nunca foi objeto de pronunciamento (expresso ou mesmo implícito) na sentença proferida naquela 1ª. ação (mesmo considerando que as sentenças homologatórias de transações, embora não aplicando o direito objetivo aos factos provados na causa, constituem uma sentença de mérito, ou seja, pois muito embora não procedendo na realidade à apreciação do mérito da causa, tudo se passa ou equivale a como se o tivessem feito, e daí serem suscetíveis de produzir mesmo efeito de caso julgado material no concerne à relação material controvertida que dela foi objeto. Nesse sentido, vide prof. Lebre de Freitas inOb. cit., pág. 524”)

Nesta 2ª. ação o que os AA. pretendem é ver garantido o direito que alegam ter de ver feito o escoamento natural das águas do seu prédio para os aludido prédios dos RR., direito esse que estes vem impedindo com a sua conduta atrás descrita tomada depois da sentença (homologatória de transação ali lavrada pelas partes) proferida naquela 1ª. ação.

É patente, para nós, que essa questão nunca foi discutida na referida ação, e muito menos ali foi objeto de pronunciamento/decisão, e nem sequer confunde com aquela que ali foi discutida, e não obstante os AA. no enquadramento que fizerem da ação tenham (de forma infeliz, como agora reconhecem) integrado essa questão em título II que epigrafaram de “Do Escoamento Das Águas Acordado Na Transacção”.

Concluindo, não existe situação caso julgado (quer na sua função negativa de exceção, quer na sua função positiva de autoridade material do mesmo), no que concerne ao pedido que sob a al. a) os AA. formularam nesta ação.

E daí que se julgue improcedente a exceção (dilatória) de caso julgado que, relativamente ao mesmo, os RR. invocaram, e nessa medida se revoga a decisão recorrida proferida, a esse respeito, pelo tribunal a quo, julgando-se, assim, procedente o recurso, e ordenando que a instância da ação prossiga também os seus ulteriores trâmites legais quanto ao referido pedido.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se, na procedência do recurso, revogar a decisão recorrida proferida pela 1ª. instância, ordenando-se, em consequência, que a instância da ação prossiga também os seus ulteriores trâmites legais quanto ao pedido que os autores/apelantes formularam sob a al. a) do seu petitório final.

Custas do recurso pelos réus/apelados - que suscitaram a exceção que motivou a decisão recorrida e deduziram oposição ao recurso dela interposto, contra-alegando – (artº. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário:

I- A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.

II- O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda de manifesta-se através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.

III- Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua atuação.

IV- Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

V- Para que haja identidade de sujeitos as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que elas assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa ação e réus na outra.

VI- A identidade de pedidos pressupõe que em ambas as ações se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjetivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.

VII- Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações.

VIII- No nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só pode ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga.

IX- A autoridade de caso julgado de uma sentença só existe na exata correspondência com o seu conteúdo e daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu.

Coimbra, 2017/12/12


Isaías Pádua

Manuel Capelo

Falcão de Magalhães