Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
282/12.5TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: DOAÇÃO
CASAMENTO
FORMA
CADUCIDADE
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - GUARDA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL E CRIMINAL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1756, 1760, 1791 CC, 607, 662 CPC
Sumário: 1.- A efectiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 662° do NCPC), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo tribunal recorrido. É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento, fixado no art. 607°, nº 5 do NCPC.

2.- A prova de um facto assenta, em processo civil, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundamentalmente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.

3.- As doações entre esposados são as doações feitas por um esposado a favor do outro e em vista do futuro casamento entre eles, sendo doações condicionais, cuja eficácia fica dependente da verificação da condição legal (suspensiva) da futura celebração do casamento.

4.- O art. 1756 do CC ao estatuir que as doações para casamento só podem ser feitas na convenção antenupcial, deve ser interpretado no sentido de admitir a possibilidade de qualquer escritura feita pelos nubentes em vista do casamento, quer escolham um regime de bens quer não.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

1. A (…), divorciada, contribuinte n.º (...) , residente (…), Mangualde, veio intentar acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra J (…), divorciado, contribuinte n.º (...) , residente (…) Mangualde, pedindo que este seja condenado a ver declarada a perda da doação feita ao Réu, do prédio inicialmente descrito sob o n.º527 e inscrito sob o n.º47º, rústico, da freguesia de (...) , desanexando-se o prédio adquirido por compra registado pela apresentação sob o n.º2083 de 30/01/2009, identificado no art.º 5º da petição; a reconhecer a perda desta liberalidade referida, revertendo tal prédio para a A. e a efectuar os pagamentos necessários à desoneração da propriedade revertendo a favor da A., livre de qualquer ónus e encargos, tal prédio.

Alegou para tanto, e em síntese, que tendo vivido como marido e mulher desde 2005, contraiu casamento com o Réu, sem convenção antenupcial, em 25.08.2007, o mesmo veio a ser dissolvido por divórcio, em 28.03.2012, sendo que, dois dias antes do casamento, procedeu à doação de um prédio ao Réu, a qual perdeu justificação com o divórcio ora decretado, pois que não o teria doado se soubesse que se iria divorciar.

Acrescentou que tal prédio lhe havia sido doado pelos seus pais, 9 meses antes, quando já vivia maritalmente com o Réu, com o propósito do extinto casal construir uma moradia para onde os pais da A. pudessem ir residir com eles.

Aduziu que a doação se deu a pedido do Réu, invocando este que se fosse necessário dinheiro para as obras o prédio já estaria na sua titularidade para tratar de empréstimos licenças e demais documentação, ao que aquela acedeu, confiante no projecto, sendo que gorado tal projecto pretende agora o Réu vender o prédio.

Conclui referindo que foi por causa do casamento que doou o prédio em questão, em espirito de liberdade e em consideração ao casamento, o que não teria feito se divorciada, pelo que deve o benefício da doação ser direccionado para os seus filhos e o Réu condenado à reversão da propriedade daquele prédio com os inerentes encargos, nos termos dos arts.º 1791º, n.º1 e 1760º, n.º1, al. b), ambos do Código Civil.

Juntou documentos, arrolou testemunhas e conclui pela procedência da acção.

2. Regularmente citado, o Réu contestou, defendendo-se por excepção e impugnação, alegando que se verifica uma falta de objecto na acção pois a mesma visa, segundo a Autora, declarar a perda da doação de um prédio rústico ao Réu, sendo que, como a própria Autora afirma, tal prédio, na configuração constante da doação, já não existe; acrescentou que tendo casa na freguesia da Freixiosa, onde a A. viveu com aquele e aí constituíram casa de morada de família, não fazia qualquer sentido que o então casal planeasse construir casa no terreno que a A. lhe doou livremente e sem condições, o mesmo tendo sucedido por parte de seus pais àquela (nomeadamente nunca aqueles tendo colocado com condição que tal prédio não pudesse sair da família); estando a A. e R. a viver e a trabalhar em Mangualde nunca iriam viver para Gouveia, tendo de percorrer mais de 20km por viagem para regressar a Mangualde, para trabalhar; ainda que, por hipótese, fosse verdade o propósito das partes construírem casa para depois aí passarem a viver e ainda com os pais da A., não seria sempre desejável que a A. guardasse para si o bem doado e fizesse ela as diligências e assinasse os documentos para a construção(?), não havendo qualquer necessidade de doar o prédio ao R. (até se os planos passavam pelo casamento entre os dois).

Acrescentou que o prédio doado não lhe trouxe um nível de vida a que não estava habituado, pois dele o mesmo não tirou rendimentos, nem sequer o vendeu ainda, antes pagando imposto pelo mesmo.

Explicou que o prédio doado já não existe na configuração constante da doação pois que o artigo doado estava descrito na Conservatória do Registo Predial de Gouveia sob o n.º 527.º e tinha a área de 25.918m2; após a doação, o Réu veio a adquirir uma parcela do prédio contíguo descrito na mesma Conservatória sob o n.º 544, no total de 3.372,10, sendo então que o primitivo prédio descrito sob o n.º 527 passou a ter a área total de 29 290,10m2, o que ainda hoje sucede; esse prédio está inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 47 da freguesia de Vale Cortês da Serra, concelho de Gouveia; assim, o primitivo prédio doado está descrito sob o n.º 527.º, a este o R. anexou parte do prédio descrito sob o n.º 544 e, o novo prédio, que já não o doado pela A., passou a estar descrito sob o n.º 546.º (provindo a actual descrição do prédio n.º 546 da anexação do prédio descrito sob o n.º 527 e parte do prédio descrito sob o n.º 544.º).

No mais, impugnou a matéria alegada e deduziu reconvenção, peticionando que a A. seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 50000,00, a título de benfeitorias que aquele realizou no novo prédio.

Alegou, para tanto, que limpou o mato; colocou novos esteios e cordões para a vinha; plantou videiras e diversas árvores de fruto, passando o mesmo a ter capacidade construtiva; para proceder a legalização dessa anexação, pagou a um topógrafo que se deslocou ao local por duas vezes; suportou ainda as despesas com os registos e a referida escritura pública, sendo que com tais benfeitorias, aquisição de cerca de 3372 metros quadrados e despesas, despendeu não menos de €50.000,00 que fazem hoje parte integrante do prédio que surgiu com a anexação e dele não podem ser retiradas sem que o prédio perca valor, sendo que, a ser dada razão à A., sempre esta teria de proceder por forma a que a aquisição de 3372m2 feita pelo R. ficasse sua única e exclusiva propriedade, desanexando-se do actual prédio e a pagar ao R. o referido valor de benfeitorias.

Conclui pela improcedência da acção.

3. De fls. 76 a 78 foi apresentada réplica pela Autora, onde esta aproveitou para corrigir o pedido inicialmente formulado (nos moldes a que acima já demos conta e que foi admitido por despacho de fls. 172 e 173) e respondeu à reconvenção, defendendo-se por impugnação (a que respondeu o Réu a fls. 81).

Oportunamente, foi proferida decisão, onde se consagrou que:

«Pelo exposto e nos termos referidos supra, decide-se julgar a presente acção improcedente e, em consequência, absolve-se o Réu (…)do peticionado pela Autora (…).

Em face do exposto fica prejudicada a demanda reconvencional».

*

A (…), A. nestes autos, não se conformando com a, proferida nos autos, veio dela interpor Recurso de Apelação, alegando e concluindo que:

(…)

J (…), Réu, notificado das alegações da recorrente, veio apresentar as suas contra-alegações, que pugnaram pela improcedência do recurso interposto, por sua vez concluindo que:

(…)

*

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

Matéria de facto assente, na 1ª Instância, e que consta da sentença recorrida:

II.1 Nos termos do art.º 607º, n.º4 do C.P.C., considerando os factos admitidos por acordo, confessados e provados por documentos, realizada a audiência de julgamento, por reporte aos temas da prova, dela resultaram provados os seguintes factos:

1. A Autora e Réu contraíram casamento, sem convenção antenupcial, em 25/08/2007. (artigo 1º da petição inicial)

2. Do referido casamento não nasceram filhos. (artigo 2º da petição inicial)

3. O casamento da Autora e Réu foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença de 28/02/2012, e transitado em julgado em 28/03/2012, proferida no âmbito do processo n.º569/11.4TBMGL-A. (artigo 3º da petição inicial)

4. A Autora conheceu o Réu algum tempo antes do casamento, com quem passou a viver “maritalmente” desde início de 2005 a 25/08/2007. (artigo 4º da petição inicial)

5. A Autora em 23/08/2007 (dois dias antes do casamento), realizou a doação ao Réu de um prédio rústico, sito à “ (...) , inscrito na matriz rústica 47º da freguesia de (...) , registado sob o n.º527, composto por terreno de oliveiras, batata, pinhal, árvores de fruto e pastagem e vinha, com 26.665m2 e casa térrea para guarda de Alfaias e produtos agrícolas com 65m2, tendo o Réu anexado, a este prédio, um outro confinante, descrito sob o n.º545, de onde resulta a descrição n.º546. (artigo 5º da petição inicial)

6. A doação referida em 5. teve lugar por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Mangualde junta de fls. 15 a 18, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (artigo 5º da petição inicial)

7. A Autora se soubesse que se iria divorciar do Réu, não teria feito a sobredita doação. (artigo 7º da petição inicial)

8. A Autora recebeu, por doação celebrada em 30/11/2006, dos seus pais, (…), o dito prédio, atribuindo-lhe o valor de 536.42€, nos termos da escritura pública junta de fls. 18 a 21, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (artigos 8º e 9º da petição inicial)

9. Já vivendo em termos análogos aos cônjuges com o Réu. (artigo 10º da petição inicial)

10. Em 30.11.2006, embora os pais da Autora tivessem outro filho, este encontra-se nos EUA e era com a Autora, com quem mais conviviam, devido ao afastamento daquele, durante cerca de 30 anos. (artigo 12º da petição inicial)

11. O prédio doado tinha à data da doação referida em 5. O valor patrimonial de 536,42€. (artigo 17º da petição inicial)

12. O Réu, não obstante se ter malogrado tal projecto e depois de divorciado, pretende agora vender tal prédio. (artigo 19º da petição inicial)

13. Colocando no mesmo, placas, nesse sentido da venda. (artigo 20º da petição inicial)

14. Esta atribuição patrimonial foi em espírito de liberalidade e a Autora não teria intenção de a fazer se já divorciada do Réu. (artigo 23º e 24º da petição inicial)

15. A Autora e o Réu já têm filhos de relações anteriores à que ocorreu entre as partes. (art.º 8º da contestação)

16. O réu tem casa na freguesia da Freixiosa, onde a Autora viveu com aquele e aí constituíram casa de morada de família (artigo 11º da contestação).

17. O terreno em causa foi doado pela Autora ao Réu sem qualquer condição ou limites. (artigo 12º da contestação)

18. Fê-lo de livre e espontânea vontade, bem sabendo que após tal doação o terreno passaria a ser única e exclusivamente propriedade do Réu. (artigo 13º da contestação)

19. Bem como os pais da Autora não colocaram qualquer condição na doação que fizeram à mesma. (artigo 15º da contestação)

20. O Réu não tirou rendimentos do prédio doado, nem sequer o vendeu ainda, antes pagando imposto por tal prédio. (artigos 21º e 22º da contestação)

21. A Autora mandou colocar anúncios de imobiliárias para tentar vender o prédio em 2009 e 2010. (artigo 25º da contestação)

22. O artigo doado pela Autora ao Réu estava descrito na Conservatória do Registo Predial de Gouveia sob o n.º 527.º e tinha a área de 25.918m2. (artigo 32º da contestação)

23. Após a doação feita pela Autora ao Réu, este veio a adquirir uma parcela do prédio contíguo descrito na mesma Conservatória sob o n.º 544, no total de 3.372,10, sendo que o primitivo prédio descrito sob o n.º 527 passou a ter a área total de 29 290,10m2, o que ainda hoje sucede. (artigos 33º e 34º da contestação)

24. Esse prédio está inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 47 da freguesia de Vale Cortês da Serra, concelho de Gouveia. (artigo 35º da contestação)

25. O Réu anexou o prédio referido em 23. ao prédio doado pela Autora. (artigo 41º da contestação)

26. Prédio esse que adquiriu pelo valor de mil euros, nos termos da escritura pública junta de fls.95 a 99 (e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) e que passou a fazer parte integralmente do prédio que surge com a nova descrição 546º. (artigo 42º da contestação)

27. O Réu suportou as despesas com os registos e a referida escritura pública. (artigo 45º da contestação)

II.2 Não se provou que:

a) A liberalidade referida em 5. foi exclusivamente justificada pelo facto da Autora ir casar com o Réu (artigo 5º da petição inicial);

b) A liberalidade em causa permitiu ao Réu usufruir de um nível de vida que os seus patrimónios e os seus rendimentos não permitiam (artigo 6º da petição inicial);

c) A doação referida em 8. visava a construção de uma pequena moradia, no dito prédio, pelo A. e R. para que os pais da A., já idosos, passassem a residir com a sua filha, ora Autora e futuro genro, ora Réu (artigo 11º da petição inicial);

d) A doação de tal prédio ao Réu foi a pedido deste, com o propósito de nele construírem tal moradia, onde os pais da Autora, pudessem passar o resto da vida no convívio com estes (artigo 13º da petição inicial);

e) Tal doação justificou-se já que o Réu referiu à Autora, que se necessitassem de dinheiro para as obras, o prédio já estaria na sua titularidade para obter um empréstimo bancário, e tratar de todas as licenças, sem a intervenção da Autora (artigo 14º da petição inicial);

f) Ao que a Autora acedeu, confiante no dito projecto, depois de casados (artigos 15º da petição inicial);

g) Foi para viabilizar este sonho familiar que a Autora doou ao Réu o prédio supra identificado (artigo 16º da petição inicial);

h) O prédio possui o valor comercial, agora, de 75.000,00€ (artigo 18º da petição inicial);

i) O preço referido em 12. fosse pelo valor de 75.000,00€ (artigo 19º da petição inicial);

j) A liberalidade “visou” o casamento da A. e R. com vista a proporcionar a estabilidade de agregado familiar constituída pela A. e R. e pais daquela (artigo 26º da petição inicial);

l) O prédio foi doado à Autora para preservar na família o dito prédio (artigo 28º da petição inicial);

m) O Réu prometeu ou deu a entender, de qualquer forma, que pretendia casar com a Autora para ter mais filhos e que os mesmos tivessem como mãe a Autora (art.º 9º da contestação);

n) Bem sabe a Autora que mentiu nos presentes autos (art.º 17º da contestação);

o) O Réu anexou o prédio doado pela Autora a um outro que o mesmo adquiriu (art.º 41º da contestação);

p) No novo prédio o Réu limpou o mato, colocou novos esteios e cordões para a vinha, plantou videiras e diversas árvores de fruto, passando o mesmo a ter capacidade construtiva (art.º 42º da contestação);

q) Para proceder à legalização dessa anexação o Réu pagou a um topógrafo que se deslocou ao local por duas vezes (art.º 44º da contestação);

r) Com tais trabalhos e alterações, aquisição de cerca de 3372 metros quadrados e despesas, o Réu despendeu não menos de €50 mil euros (art.º 46º da contestação);

s) Que fazem hoje parte integrante do prédio novo que surgiu com a já identificada anexação e dele não podem ser retirados sem que o prédio perca valor (art.º 47º da contestação).

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Quanto ao demais alegado não foi possível tecer qualquer juízo probatório uma vez que o mesmo ou é manifestamente despiciendo para a decisão, ou encerra juízos conclusivos ou de direito (ou ainda meras repetições) que, sendo pertinentes naquelas peças, são insusceptíveis de juízo probatório de facto.

Neste âmbito compreendem-se, entre outros, os pontos 6º (primeira parte); 7º (primeiro segmento); 21º e 22º; 23º (segunda parte); 25º; 27º e 29º a 36º da petição inicial e 1º a 7º; 10º; 11º (segunda parte); 14º e 16º (por repetitivos); 18º a 21º (este último quanto ao primeiro segmento); 23º; 24º e 25º (primeira parte); 26º a 31º; 36º; 38º a 40º e 48º a 51º da contestação/reconvenção.

Com efeito, e em particular as alusões a “tendo em vista o casamento” ou “em consideração ao casamento”, por se tratarem expressões legais e conceitos jurídicos, não podem merecer qualquer consideração probatória.

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Nos termos do art. 635º do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608°, do mesmo Código.

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Das conclusões, ressaltam as seguintes questões elencadas, na sua formulação originária, de parte, a considerar na sua própria matriz:

I.

1 – A A. pretende provar que em relação à doação aludida na PI, se encontram verificados os pressupostos do art. 1791º do CC.

2 – A recorrente  considera que dando-se como provado os factos alegados em 7º e 14º, o Tribunal deveria ter dado como provado o referido na al. a) dos factos não provados, ou seja, que a doação foi exclusivamente justificada pelo facto da A. ir casar com o Réu.

3 - A este propósito releva-se o depoimento da testemunha (…), que aqui se reproduz.

4 – Ora, com os factos provados em 7º e 14º, bem como, o alegado pela filha da A., seria bastante para que o Tribunal decidisse de forma diferente ao ter dado como não provado que a doação melhor identificada foi justificada pelo casamento da A. com o Réu, já que ocorreu dois dias antes do referido casamento.

Apreciando, assinale-se, desde logo, que se perfilha, o entendimento de que quando há impugnação da matéria de facto e ao tribunal de recurso é impetrada uma decisão à luz do disposto no art. 662º do NCPC, a "Fundamentação"/"Motivação" do tribunal a quo vai ser o objecto precípuo da atenção do tribunal de recurso, pois que o labor deste se orienta para a detecção de qualquer "erro de julgamento" naquela decisão da matéria de facto, em termos da apreciação e valoração da prova produzida (não podendo obviamente limitar-se à análise da coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto operada pelo tribunal a quo).

Sendo certo que, "não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento" (cf. Ac. do T.R de Coimbra de 17-04-2012, proc. n" 1483/09.9TBTMR.Cl, acessível em www.dgsLpt/jtrc, que embora tendo sido prolatado na vigência do CPC, perfilha um entendimento perfeitamente transponível para o actual NCPC; no mesmo sentido, veja-se A. ABRANTES GERALDES in "Julgar", nº 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, páginas 74 a 76 e o Ac. do S.T.J. de 15-09-2010, proferido no proc. n" 24 1/05.4TTSNT.L1.S1 , acessível em www.dgsi.pt/jstj. relativamente ao qual também se invoca a actualidade do entendimento nele perfilhado).

E assim o é em atenção ao entendimento de que a efectiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 662° do NCPC), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo  tribunal recorrido.

É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento, fixado no art. 607°, nº 5 do NCPC.

(…)

Assim, pois, nesta insistência de observação, par fazer ressumar que o ónus de prova - sempre na referência do art. 342º, nº1, Código Civil - consiste na necessidade de observância de determinado comportamento, não para satisfação do interesse de outrem, mas como pressuposto da obtenção de uma vantagem para o próprio, a qual pode, inclusivamente, cifrar-se em evitar a perda de um benefício antes adquirido (Antunes Varela, Obrigações, 35); traduz-se, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os Autos não contiverem prova bastante desse facto (trazida ou não pela mesma parte) (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1956, p.184).

Traduzindo-se, pois, para a parte a quem compete, no dever de fornecer a prova do facto visado, sob pena de sofrer as desvantajosas consequências da sua falta. Assim, exactamente, pois que todos os elementos considerados deficitários, neste horizonte problemático, alegadamente inconsiderados, pela recorrente, foram levados em conta, na decisão proferida.

O que, como se fez notar, decorreu, por inevitabilidade processual, de o ónus de alegação da prova, como elemento pressuponente principiológico actuante e vinculador, consistir em cada uma das partes, que quer ver vingar as suas pretensões, ter de cuidar de que os factos, de que resulta a exactidão das suas afirmações jurídicas segundo as disposições do direito material, sejam levadas ao tribunal mediante as afirmações correspondentes (A. Anselmo de Castro, Dir. Processual Civil Declaratório, cd., 1981, 1.°-70). Deste modo, se a parte a quem incumbe o “onus probandi” fizer prova por si suficiente, o adversário terá, por seu lado, de fazer prova que invalide aquela; que a naturalize, criando no espírito do juiz um estado de dúvida ou incerteza; não carece de persuadir o juiz de que o facto em causa não é verdadeiro (M. Andrade, Noções Elementares Proc. Civil, 2.ª ed., 193; ed. 1979, 207). Em todo o caso, tal (M. Andrade, Noc. Elementares Proc. Civil, 1979, 196).

Tal, pois que não tem apenas a faculdade de fornecer a prova; ele deve provar, se quiser fazer reconhecer o seu direito. Não é obrigado a fornecer a prova; mas do não exercício do ónus depende a renúncia ao reconhecimento do direito que carece de prova. São perfeitos ou imperfeitos, consoante o resultado que asseguram depende somente da prestação que forma o conteúdo do ónus, ou essa prestação é, por si só, insuficiente. São ainda formais e materiais. O primeiro consiste no dever para as partes de produzir a prova; o segundo consiste na sujeição às consequências desfavoráveis resultantes da falta de prova (Cavaleiro de Ferreira, Curso, 1956, 11-304).

O que, em si, inviabiliza a (plena) conversão da retórica argumentativa das partes - perfeitamente compreensível, volte a dizer-se, da defesa de individualizado “interesse” (justamente o que inter est as pessoas e os bens), de consequência específica determinada -, em elemento de objectivação que só pode ter correspondência, como se equacionou, na verdade “real” consubstanciada naquilo que a revelação processual possibilitou. E que, pelas razões indicadas, não pode ir além do que se consagrou em decisório.

Noutra formulação, a decisão colhe a sua justeza na conformidade integral como sistema jurídico que a propicia. A complexidade dos elementos que, nela depondo, a informam, torna-a possível, apenas, através do funcionamento da Ciência Jurídica que, assim se afirma como prudencial. E à Ciência do Direito compete ainda assegurar o controlo das decisões, numa operação fundamental para alargar o consenso e, daí, a sua eficácia. Nenhuma norma jurídica resolve, por si, problemas concretos ainda quando, no caso considerado, ela possa surgir como o argumento decisivo no modelo de decisão. A lei não se confunde com o Direito. Uma dogmática jurídica, radicada na cultura que a suporte e na segurança das convicções científicas dos juristas que a sirvam, coloca, entre a fonte e a solução do caso concreto, um percurso que nenhuma lei pode dispensar e que o legislador não pode corromper. Reside aqui, o harmonizar das soluções desavindas ou disfuncionais dentro do espaço jurídico, complementando as mensagens apenas esboçadas pelo legislador e limando, no concreto, as saídas injustas, inconvenientes ou paradoxais existentes numa individualizada praxis judicial, que haverá de atender à singularidade de qualquer caso (Cf. Menezes Cordeiro, Estudos de Direito Civil, 1, 1987, págs. 236 e s.).

Assim se fixando a questão, nos termos preditos, no referencial condicionador de específico ónus de prova como obrigação que recai sobre uma pessoa de provar algum facto ou alguma circunstância com interesse para um determinado fim. Exactamente porque, em direito processual, sendo a prova o acto ou série de actos processuais através dos quais há que convencer o juiz da existência ou inexistência dos dados lógicos que tem que se ter em conta na causa, o ónus da prova é a obrigação que recai sobre os sujeitos processuais da realidade de tais actos. A traduzir-se - haverá de dizer-se, agora e sempre -, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova (Anselmo de Castro, Proc. Civil, 1966, 3.°-259).

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O que revela - haverá de insistir-se - compatibilidade da motivação/fundamentação expressa, na confluência/articulação do travejamento documental e depoimentos de parte e testemunhas, no referencial convocado; igualmente com expressão nas próprias transcrições de depoimentos, nos termos aludidos, constantes dos Autos, assim dando sustentação ao convencimento decisório emergente, tal como consagrado.

Tanto mais que, do mesmo modo, se não pode perder de vista a consideração de que “a prova de um facto assenta, em processo civil, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundamentalmente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido, como no caso vertente se evidencia (neste sentido, Ac. RC, de 06.03.2012, disponível em www.dgsi.pt; também Ac. RC. 25.02.2014 (Relatora Maria José Guerra), no Processo com o Nº 1712.12.1YIPRT.C1).

Consequentemente, alinhados e aferidos os elementos de prova com interesse para o esclarecimento do caso -, na relação intra-diegética dos Autos e no binómio verdade material/verdade real intra-processual, impõe-se, a tal pretexto, validar a decisão relativamente às respostas consubstanciadas nos pontos em causa que vêm questionados.

Verificando-se, assim, que o tribunal apreciou livremente as provas e respondeu segundo a convicção que formou acerca de cada facto, tudo em harmonia com o disposto no art. 655° do Cód. Proc. Civil (607º NCPC). Isto porque o regime de prova é dominado pelo princípio da prova livre - o tribunal aferir livremente as provas; em qualquer circunstância, analisando-as criticamente e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador. Deste modo, pois que o julgador não é arbitrário na apreciação das provas pericial e testemunhal, mas é, legalmente até, livre, na apreciação desses meios probatórios.

Deste modo e com tal sustentação a reconduzirem-se à circunstância de, não obstante se conceber a existência de «múltiplos motivos que podem motivar uma doação (desde fiscais ou patrimoniais), certo é que no caso vertente nenhum foi consagrado por escrito, no próprio instrumento da doação ou outro, nem sobre o mesmo se ouviu testemunha com razão de ciência», capaz, em absoluto de o estribar.  

A decisão mostra-se, do mesmo modo, conforme ao dictat do que se consigna no art. 659°, do CPC, maxime, no seu n°3 (607º NCPC), pois na fundamentação da sentença, imperativamente, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer. O que, igualmente, considerações feitas, se mostra observado.

O que  leva a atribuir resposta negativa às questões em I.

II.

5 – Entende a recorrente, que as doações para casamento – ou seja, as doações feitas a um dos esposados ou a ambos, em vista do seu casamento – caducam se ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (independentemente da culpa do donatário).

6 – A perda dos benefícios a que alude o n.º 1 do art. 1791º, verifica-se por força da lei, isto é, opera-se ipso jure, sem necessidade de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade, e os bens doados ao cônjuge culpado revertem automaticamente ao património do doador.

7 – Ora, entende a recorrente que a doação para ser anulada ou caducada por força do divórcio, que veio a ser decretado, não tem que ser necessariamente uma prenda de casamento.

8 – A caducidade ocorre automaticamente pela dissolução do casamento.

9 – Aliás, é o próprio Tribunal recorrido que considera que se provou que a A. não faria a doação se ocorresse o divórcio, porque no seu espirito, a intenção de fazer a doação foi precisamente o casamento.

10 – E este facto deve ser intendido como condição da doação.

Neste segmento, refira-se que as doações entre esposados são as doações feitas por um esposado a favor do outro e em vista do futuro casamento entre eles.

As doações entre esposados são doações condicionais, cuja eficácia fica dependente da verificação da condição legal (suspensiva) da futura celebração do casamento. São, pois, contratos subordinados a uma conditio iuris: a condição si nuptiae sequantur. A celebração do casamento é um facto incerto e do qual depende, por lei, a eficácia da doação; mas só a eficácia, na verdade, pois a doação já está concluída antes da celebração do casamento, a doação já existe e é válida, apenas não tem efeitos. Cremos, pois, ser aqui inteiramente aplicável o conceito, muito amplo, de condição legal ou conditio iuris.

(…)

Por sua vez, o art. 1756.°, dizendo que as doações para casamento só podem ser feitas na convenção antenupcial, parece ser muito limitativo e considerar nulas as doações que constem de uma qualquer escritura pública. Mas não parece que esta seja a melhor interpretação da lei. Na verdade, "convenção antenupcial" é qualquer escritura feita pelos nubentes em vista do casamento, quer escolham um regime de bens quer não. Se os nubentes aceitarem o regime supletivo e fizerem uma (ou mais) escritura de doação, deixando claro que se trata de um negócio prénupcial e por causa do casamento, estaremos perante uma convenção antenupcial e a doação será formalmente válida; e o mesmo se passará se os nubentes fizerem uma escritura para escolher o regime de bens e, em separado, fizerem outra escritura, para formalizarem a doação (Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 3ª Edição, 2003,pp. 513/514).

Em todo o caso, não pode deixar de vincular a especificidade da circunstância assinalada e comprovada de

 

«a intenção de promoção da celebração de casamento, numa ideia de favor matrimonii, está ausente da matéria de facto apurada nos autos, sendo particularmente relevante atentar no teor da escritura da doação em causa, nos termos provados em 5.; 6.; 17. e 18. dos factos provados. A saber:

5. A Autora em 23/08/2007 (dois dias antes do casamento), realizou a doação ao Réu de um prédio rústico, sito à “ (...) , inscrito na matriz rústica 47º da freguesia de (...) , registado sob o n.º527, composto por terreno de oliveiras, batata, pinhal, árvores de fruto e pastagem e vinha, com 26.665m2 e casa térrea para guarda de Alfaias e produtos agrícolas com 65m2, tendo o Réu anexado, a este prédio, um outro confinante, descrito sob o n.º545, de onde resulta a descrição n.º546. (artigo 5º da petição inicial)

6. A doação referida em 5. teve lugar por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Mangualde junta de fls. 15 a 18, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (artigo 5º da petição inicial)

-

17. O terreno em causa foi doado pela Autora ao Réu sem qualquer condição ou limites. (artigo 12º da contestação)

18. Fê-lo de livre e espontânea vontade, bem sabendo que após tal doação o terreno passaria a ser única e exclusivamente propriedade do Réu. (artigo 13º da contestação).

O que confere adequação, perante a especificidade do caso concreto, à conclusão decisória segundo a qual

«estando a doação em causa afastada, pelos motivos sobreditos, do regime especialmente previsto para as doações para casamento, está obviamente vedado à Autora lançar mão quer do disposto no art.º 1791º (benefícios que os cônjuges tenham recebido ou hajam de receber), quer do disposto no art.º 1760º (regime específico exclusivo daquelas doações – caducidade)».

E sem que se possa postergar, perante tal universo probatório e de vinculação legal, que, como destacado

« (…) resultando do n.º1 do artigo 1755º do C.C. que as doações entre vivos produzem os seus efeitos a partir da celebração do casamento, salvo estipulação em contrário, é manifesto que a doação em causa nos autos escapa, claramente, a tal condição (que não prevê), sendo objectivamente alheia a qualquer casamento ou outra circunstância.

Não pode, pois, sob pretexto algum, ser esta doação concebida e tratada como uma doação para casamento.

Note-se, desde já, que o facto de se ter provado que a Autora se soubesse que se iria divorciar do Réu, não teria feito a sobredita doação e que esta atribuição patrimonial foi em espírito de liberalidade e a A. não teria intenção de a fazer se já divorciada do Réu (cfr. factos 7. e 14.), em nada contende com a conclusão acima enunciada.

Com efeito, a factualidade acima referida, sendo facilmente compreensível em face do falhanço do projecto conjugal, não torna o acto em si (doação) dependente da celebração ou manutenção do casamento».

Tanto assim - o que faz toda a diferença - que, na escritura em que corporizam a doação não foi levado em consideração, nem resulta explícito que haja sido deixado claro que se trata(va) de “um negócio prénupcial e por causa do casamento”.  De onde deriva consubstanciar impossível categórico de circunstância colher perfil de convenção antenupcial e doação formalmente válidas, por emergência da factualidade em questão.

Daí ser também negativa a resposta às questões em II.

III.

12 – Entende a recorrente que independentemente das obras ou construções que viessem a ser realizadas no referido imóvel, o facto determinante para ser declarada a caducidade da referida doação será automaticamente com dissolução do referido casamento, o que, lamentavelmente não foi o entendimento da sentença recorrida.

O entendimento” expresso na formulação da “questão” é perfeitamente legítimo. Nenhuma decisão, de nenhum tribunal, pode, em qualquer circunstância, almejar ao convencimento de auditório universal.

Em todo o caso, a decisão colhe a sua justeza na conformidade integral com o sistema jurídico que a propicia. A complexidade dos elementos que, nela depondo, a informam, torna-a possível, apenas, através do funcionamento da Ciência Jurídica que, assim, se afirma como prudencial. E à Ciência do Direito compete ainda assegurar o controlo das decisões, numa operação fundamental para alargar o consenso e, daí, a sua eficácia.

Nenhuma norma jurídica resolve, por si, problemas concretos ainda quando, no caso considerado, ela possa surgir como o argumento decisivo no modelo de decisão. Apenas a Ciência do Direito, na consideração da ordem global, pode fazê-lo. Este factor é decisivo na evolução das disciplinas jurídicas. Mas vai mais longe; permite atingir um dos níveis mais nobres e delicados da cultura jurídica: o da correcção de leis injustas ou inconvenientes.

O controlo, com referência a critérios superiores, das normas legisladas, imperfeitas porque humanas, é tão velho como o Direito.

A instrumentação disponível para esse efeito, por natureza ou por conjuntura, tem limitações conhecidas. Como bastião seguro acaba, assim, por se impor, para esse efeito, o próprio Direito e a sua Ciência. A lei não se confunde com o Direito. Uma dogmática jurídica, radicada na cultura que a suporte e na segurança das convicções científicas dos juristas que a sirvam, coloca, entre a fonte e a solução do caso concreto, um percurso que nenhuma lei pode dispensar e que o legislador não pode corromper.

Reside aqui, o «Direito Natural» dos finais do nosso século: suprindo a inactividade legislativa, harmonizando as soluções desavindas ou disfuncionais dentro do espaço jurídico, complementando as mensagens apenas esboçadas pelo legislador e limando, no concreto, as saídas injustas, inconvenientes ou paradoxais, a Ciência do Direito afirma na generalidade das disciplinas jurídicas, o motor fundamental de qualquer evolução jurídica» (Menezes Cordeiro, Estudos de Direito Civil, I, 1987, págs. 236 e s.) e das decorrentes soluções.

A questão sequente que, face às anteriores e às respostas adrede formuladas, se consubstancia como recorrente, foi objecto - depois de tudo visto e considerado -, de tratamento sistemático, no esquisso dos Autos, de forma congruente e, do mesmo modo, adequada. Exactamente porque, no condicionalismo já referido, não deixou de fazer ressumar, na sua essencialidade, que:

 

«Relativamente à caducidade invocada, em linha com o disposto no artigo 1791º, n.º1 do C.C., resulta da al. b) do n.º1 do art.º 1760º do mesmo diploma a imposição da caducidade da doação para casamento se ocorrer divórcio ou separação de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado.

Antes da Lei n.º 61/2008, impunha o n.º 1 do art.º 1791.º do C.C. que o c n uge declarado único ou principal culpado perdesse todos os benefícios recebidos ou que houvesse de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação fosse anterior, quer posterior à celebração do casamento.

Sucede que a declaração do cônjuge culpado foi, com a referida alteração legislativa, apagada do conteúdo da decisão judicial do divórcio, por revogação e pressa daquele art.º 1787º do C.C., retirando-se do plano dos efeitos patrimoniais do divórcio o cunho sancionatório alicerçado na culpa, que impunha a perda dos benefícios recebidos ou a receber em vista do casamento ou em consideração do estado do casado, em face da conduta e da culpabilidade exclusiva ou principal do beneficiado.

Agora, o que no art.º 1791º, n.º1 do C.C. se estipula são os mesmos efeitos antes previstos, ou seja, a perda ipso iure dos benefícios concedidos em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, mas já independentemente da culpa ou do grau de culpabilidade do beneficiado e, portanto, se a qual for a modalidade do divórcio (como se esclarece na e posição de motivos - Projecto de lei n.º 509/X/3.a), disponível em .parlamento.pt,DAR n.º 81, de 14 de abril de 2008 “em caso de divórcio, qualquer dos cônjuges perde os benefícios que recebeu ou havia de receber em consideração do estado de casado, apenas porque a razão dos benefícios era a constância do casamento. Também aqui se afasta a intenção de castigar um culpado e beneficiar um inocente”).

Segundo Rita Lobo Xavier (in “Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais”, Almedina, Coimbra, 2010, p. 36), só por lapso não foi alterada a redação da parte final dos arts. 1760º, n.º1, al. b) e 1766º, nº1, al.c) do CC atinente à declaração de culpa do cônjuge no divórcio ou na separação de pessoas e bens, pelo que deve considerar-se revogada esta parte, passando o divórcio ou a separação de pessoas e bens a constituir a causa extintiva da doação para casamento ou da doação entre cônjuges, uma vez que tais liberalidades ocorreram por ocasião e por causa da existência da comunhão de vida conjugal que deixa de existir.

Como cabalmente sublinha João Duarte Pinheiro (in op. cit., pag. 525 - Direito da Família Contemporânea, 2ª Ed., AAFDL, 2009) “...há uma incompatibilidade entre o que consta no art. 1760º, nº1, al. b), e nº2, na versão de 1997, com o que se estatui no art. 1791º, alterado em 2008, o que implica a revogação tácita dos dois primeiros preceitos pelo último. Ou seja, agora, com o divórcio, caducam sempre as doações para casamento, sem prejuízo de o bem doado puder reverter para os filhos do casamento».

O que, confluentemente, traveja, em termos de adequação, a decisão proferida. Exactamente porque a doação em causa se não integra naquelas doações para casamento, inexistindo fundamento para a considerar caduca com o divórcio subsequente (sendo que esta conclusão não é, de forma alguma, infirmada pelo provado em 7. e 14.).

Assim, pois que o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei; interpretar em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, de entre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (M. Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 21 e 26).

Isto porque, interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 e 26).

Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (P. de Lima e A. Varela, Noções Fundamentais, II,5.ª ed., pág.130).

Resumindo, Pires de Lima e Antunes Varela dizem que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei (Cód. Civ. Anot., 1,4.ª ed., págs. 58 e s.).

A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei (Introdução ao Direito, 1987, págs. 187 e ss.).

Ou, como diz Oliveira Ascensão, «a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação.

Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito» (O Direito - Introdução e Teoria Geral, 1978, pág. 350).

Como escreveu Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 3.ª ed., 1978, págs. 127 e ss. e 138 e ss., para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios: Em primeiro lugar busca reconstituir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo. Tal como, na circunstância, empreendido.

Deste modo, verificando-se - aqui também - que na sentença recorrida constam os factos e as razões de direito em que o tribunal alicerçou a sua decisão e esta é consequência lógica daquela fundamentação, é evidente que aquela peça processual não está inquinada de qualquer nulidade (art. 668.°, n.° 1, alíneas b), c) e e) do Cód. Proc. Civil - 615º NCPC).

Por esta forma a responder negativamente à questão em III.

*

Podendo, por emergência, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº7, NCPC), que:

1.

A efectiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 662° do NCPC), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo  tribunal recorrido. É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento, fixado no art. 607°, nº 5 do NCPC.

2.

O ónus da prova (art. 342º Código Civil) respeita aos factos da causa, distribuindo-se entre as partes segundo certos critérios. Traduz-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, como quer que seja, sofrer tais consequências, se os autos não contiverem prova bastante desse facto – trazida, ou não, pela mesma parte.

3.

Assim se fixando a questão, nos termos preditos, no referencial condicionador de específico ónus de prova como obrigação que recai sobre uma pessoa de provar algum facto ou alguma circunstância com interesse para um determinado fim. Exactamente porque, em direito processual, sendo a prova o acto ou série de actos processuais através dos quais há que convencer o juiz da existência ou inexistência dos dados lógicos que tem que se ter em conta na causa, o ónus da prova é a obrigação que recai sobre os sujeitos processuais da realidade de tais actos. A traduzir-se - haverá de dizer-se, agora e sempre -, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova.

4.

A prova de um facto assenta, em processo civil, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundamentalmente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido, como no caso vertente se evidencia. Consequentemente, alinhados e aferidos os elementos de prova com interesse para o esclarecimento do caso -, na relação intra-diegética dos Autos e no binómio verdade material/verdade real intra-processual, impõe-se, a tal pretexto, validar a decisão relativamente às respostas consubstanciadas nos pontos em causa que vêm questionados.

5.

Verificando-se, assim, que o tribunal apreciou livremente as provas e respondeu segundo a convicção que formou acerca de cada facto, tudo em harmonia com o disposto no art. 655° do Cód. Proc. Civil (607º NCPC). Isto porque o regime de prova é dominado pelo princípio da prova livre - o tribunal aferir livremente as provas; em qualquer circunstância, analisando-as criticamente e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador. Deste modo, pois que o julgador não é arbitrário na apreciação das provas pericial e testemunhal, mas é, legalmente até, livre, na apreciação desses meios probatórios.

6.

Deste modo e com tal sustentação a reconduzirem-se à circunstância de, não obstante se conceber a existência de «múltiplos motivos que podem motivar uma doação (desde fiscais ou patrimoniais), certo é que no caso vertente nenhum foi consagrado por escrito, no próprio instrumento da doação ou outro, nem sobre o mesmo se ouviu testemunha com razão de ciência», capaz, em absoluto de o estribar. 

7.

As doações entre esposados são as doações feitas por um esposado a favor do outro e em vista do futuro casamento entre eles. As doações entre esposados são doações condicionais, cuja eficácia fica dependente da verificação da condição legal (suspensiva) da futura celebração do casamento. São, pois, contratos subordinados a uma conditio iuris: a condição si nuptiae sequantur. A celebração do casamento é um facto incerto e do qual depende, por lei, a eficácia da doação; mas só a eficácia, na verdade, pois a doação já está concluída antes da celebração do casamento, a doação já existe e é válida, apenas não tem efeitos. Cremos, pois, ser aqui inteiramente aplicável o conceito, muito amplo, de condição legal ou conditio iuris.

8.

Por sua vez, o art. 1756.°, dizendo que as doações para casamento só podem ser feitas na convenção antenupcial, parece ser muito limitativo e considerar nulas as doações que constem de uma qualquer escritura pública. Mas não parece que esta seja a melhor interpretação da lei. Na verdade, "convenção antenupcial" é qualquer escritura feita pelos nubentes em vista do casamento, quer escolham um regime de bens quer não. Se os nubentes aceitarem o regime supletivo e fizerem uma (ou mais) escritura de doação, deixando claro que se trata de um negócio prénupcial e por causa do casamento, estaremos perante uma convenção antenupcial e a doação será formalmente válida; e o mesmo se passará se os nubentes fizerem uma escritura para escolher o regime de bens e, em separado, fizerem outra escritura, para formalizarem a doação.

9.

Em todo o caso, não pode deixar de vincular a especificidade da circunstância, assinalada e comprovada, de «a intenção de promoção da celebração de casamento, numa ideia de favor matrimonii, está ausente da matéria de facto apurada nos autos, sendo particularmente relevante atentar no teor da escritura da doação em causa, nos termos provados em 5.; 6.; 17. e 18. dos factos provados.

10.

Na escritura em que corporizam a doação não foi levado em consideração, nem resulta explícito que haja sido deixado claro que se trata(va) de “um negócio prénupcial e por causa do casamento”.  De onde deriva consubstanciar impossível categórico de circunstância colher perfil de convenção antenupcial e doação formalmente válidas, por emergência da factualidade em questão.

11.

A decisão colhe a sua justeza na conformidade integral com o sistema jurídico que a propicia. A complexidade dos elementos que, nela depondo, a informam, torna-a possível, apenas, através do funcionamento da Ciência Jurídica que, assim, se afirma como prudencial. E à Ciência do Direito compete ainda assegurar o controlo das decisões, numa operação fundamental para alargar o consenso e, daí, a sua eficácia.

12.

A doação em causa se não integra naquelas doações para casamento, inexistindo fundamento para a considerar caduca com o divórcio subsequente (sendo que esta conclusão não é, de forma alguma, infirmada pelo provado em 7. e 14.).

13

Assim, pois que o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei; interpretar em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, de entre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva.

14.

Deste modo, verificando-se - aqui também - que na sentença recorrida constam os factos e as razões de direito em que o tribunal alicerçou a sua decisão e esta é consequência lógica daquela fundamentação, é evidente que aquela peça processual não está inquinada de qualquer nulidade (art. 668.°, n.° 1, alíneas b), c) e e) do Cód. Proc. Civil - 615º NCPC).

*

III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*

António Carvalho Martins  -  Relator

Carlos Moreira  -  1º Adjunto

Anabela Luna de Carvalho - 2º  Adjunto