Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5515/11.2TBLRA-B.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: CASO JULGADO
CONTRATO DE VENDA A CONSIGNAÇÃO
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 581, 619 CPC, 405, 1305, 1161 CC
Sumário: 1. A excepção do caso julgado pressupõe a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

2.A determinação dos limites do caso julgado e da sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença e, concretamente, dos fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

3. A venda à consignação é um contrato atípico, no qual uma das partes (consignador) remete à outra (consignatário) certa mercadoria, para que esta a venda, com o direito a uma participação no lucro e a obrigação de restituir a coisa não vendida.

4. Este contrato é regulado pelas estipulações acordadas e, na sua falta, pelas regras do mandato sem representação e da compra e venda, devidamente ajustadas ao pretendido pelas partes.

5. Na falta de estipulação nesse sentido, a transferência da propriedade da coisa do consignador para o consignatário não ocorre. Uma tal vontade de transmissão exigirá das partes uma manifestação clara.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I (…) Lda., instaurou embargos de terceiro contra MT (…), A (…), Lda. e MA (…), pedindo o reconhecimento da sua propriedade sobre os dois quadros que identifica, com o consequente levantamento do arresto quanto aos mesmos e restituição da sua posse à embargante.

Para tanto, alegou, em síntese:

Os referidos quadros advieram à titularidade da embargante por compra, conforme as declarações de venda que junta.

A embargante consignou para exposição e venda as mencionadas pinturas à MA (…).

Esta não as vendeu, ficando de as devolver à embargante.

Contestou MT (…), em síntese:

Na altura do arresto, a proprietária dos bens era MA (…).

Com o fim do prazo da consignação, a posse e a propriedade dos quadros transferiram-se para a MA (…), quem acordou entregá-los a si, para pagamento.

A identificada embargada requereu a condenação da embargante como litigante de má-fé.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar procedentes os embargos e a declarar o direito de propriedade da embargante I (…), Lda. sobre os quadros referidos, e a ordenar o levantamento do arresto e a restituição desses objetos àquela. A embargante foi absolvida do pedido de condenação como litigante de má-fé.


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Inconformada, a Embargada MT (…) recorreu e apresentou as seguintes conclusões:

1. Em 27 de Maio de 2013, nos autos principais do processo, foi celebrada uma transação entre a Autora MT (…) e as Rés MA (…) e A (…), Lda.

2. Nesta transação, as Rés dão à Autora, como meio de pagamento, determinados bens, entre eles os quadros em apreço nos autos.

3. A transação foi homologada pelo Exmo. Sr. Juiz de Direito.

4. A sentença homologatória transitou em julgado.

5. Em 23 de Outubro de 2015, foi proferida sentença do apenso relativo aos Embargos de Terceiro, declarando o direito de propriedade da Embargante sobre os quadros.

6. Sucede que, na data supra mencionada, o tribunal a quo tinha conhecimento da sentença proferida nos autos principais.

7. Pelo que, deveria ter dado como provado os seguintes factos:

i. Que as Rés da ação principal se arrogaram legítimas proprietárias dos quadros,

ii. Que deram os quadros à Autora, ora Recorrente, como meio de pagamento,

iii. E, consequentemente, que a Autora, ora Recorrente, adquiriu a propriedade dos bens de forma legítima.

8. O direito de propriedade é um direito real previsto nos termos dos artigos 1302º e seguintes do Código Civil.

9. A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada, dá-se, em regra, por mero efeito do contrato – artigo 408º/1 do Código Civil.

10. A transação judicial é um negócio jurídico bilateral.

11. Nestes termos, no dia 27 de Maio de 2013, aquando da celebração da transação judicial operou-se a transmissão da propriedade dos bens das Rés para a Autora, ora Recorrente.

12. A Recorrente formou a convicção de ser a legítima proprietária dos bens.

13. Convicção essa fundada num título judicial – sentença homologatória.

14. A referida sentença transitou em julgado.

15. Motivo pelo qual tem força obrigatória dentro do processo e fora dele nos termos do artigo 619º do Código de Processo Civil.

16. O caso julgado material impede que o mesmo tribunal, outro tribunal ou outra autoridade possa definir em termos diferentes o direito aplicável à relação material objeto do litígio.

17. Ora, ao declarar a existência e a titularidade do direito de propriedade da Embargante, o douto tribunal a quo, está a contrariar os termos da sentença homologatória, e, como tal, a violar o valor do caso julgado.

18. Acresce que, também o princípio da confiança ou segurança jurídica, imanente do princípio do Estado de Direito Democrático, previsto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, foi violado.

19. A Recorrente, por possuir um título judicial, criou legítimas expetativas de ser titular dos quadros em apreço.

20. Sucede que, volvidos mais de dois anos, depara-se com uma sentença judicial que contraria uma decisão anterior transitada em julgado.

21. Ao abrigo do artigo 347º do Código de Processo Civil, deveria ter sido determinada a suspensão do processo principal.

22. Não tendo sido cumprida esta disposição legal bem se denota que existiu um erro judiciário.

23. Ora, o tribunal a quo, ao proferir a sentença em apreço, deveria ter tomado em consideração a sentença homologatória dos autos principais.

24. O tribunal a quo deveria ter declarado, oficiosamente, a titularidade do direito de propriedade da Recorrente.

25. E dirimido o litígio entre a Embargante e as Rés da ação principal através de outros institutos jurídicos.

26. A Recorrente adquiriu a posse e a propriedade dos bens.

27. A Recorrente tinha total liberdade para dispor dos mesmos – artigo 1305º do Código Civil.

28. O que fez.

29. Pelo que, neste momento, é objetivamente impossível restituir os bens em causa nos presentes autos.

30. Extinguindo-se esta obrigação nos termos do artigo 790º do Código Civil.


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            A embargante contra-alegou, defendendo a correção da decisão recorrida.

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            Questões a decidir:

            Valor e eficácia da transação de 27.05.2013. Caso julgado. Confiança e segurança jurídicas.

            A aquisição da propriedade sobre os quadros.

            A alegada disposição dos mesmos pela Recorrente.


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Consideraram-se provados os seguintes factos (não impugnados):

1.- Nos autos de arresto apensos aos autos principais, foram arrestados, em 23 de

setembro de 2011, numa exposição que decorria no Hotel Roma, em Lisboa, entre outros, os seguintes quadros:

a)- da autoria de Manuel Cargaleiro, guache sobre papel, assinado e datado de 1995, com a dimensão de 41x24cm;

b)- um quadro da autoria de Armanda Passos, óleo sobre tela, Mulher de Vermelho, com a dimensão de 123x73cm.

2.- O quadro referido em 1. a) foi entregue à embargante, em 3/05/2011, por (…), mediante uma contrapartida monetária no valor de € 5.000,00.

3.- O quadro referido em 1. b) foi entregue à embargante, em 23/06/2011, por (…), mediante uma contrapartida monetária no valor de € 5.500,00.

4.- A embargante entregou, em 10 de setembro de 2011, à embargada MA (…) o quadro referido em 1. a) para exposição e venda pelo valor de € 6.000,00 e por um período de 10 dias.

5.- A embargante entregou, em 10 de setembro de 2011, à embargada MA (…), o quadro referido em 1. b) para exposição e venda pelo valor de € 7.000,00 e por um período de 10 dias.

6.- Em 23 de setembro de 2011, a embargante prorrogou até ao dia 28 de setembro o período de exposição e venda dos quadros referidos em 1).


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            Valor e eficácia da transação de 27.05.2013. Caso julgado. Confiança e segurança jurídicas.

            Conforme acórdão desta Relação, nos autos, de 25.02.2014 (fls.129), a transação judicialmente homologada, invocada pela Recorrente, é ineficaz em relação à embargante, pessoa não interveniente no acordo, quanto aos dois quadros.

Nestes embargos, de acordo com o disposto no art.349º do Código de Processo Civil (anterior art.358º), estando todas as pessoas envolvidas na questão, a decisão de mérito faz caso julgado material.

Vejamos.

Nos termos do n.º 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”.

O caso julgado material forma-se mediante uma sentença de mérito que conheça da relação jurídica substancial e que declara os direitos e obrigações respectivos.

É a esta sentença que pretende garantir-se estabilidade e segurança jurídicas, o que se faz por via da força e autoridade do caso julgado, isto é, pela afirmação de que a sentença não poderá ser mais alterada nem desrespeitada.

O caso julgado constitui uma excepção dilatória que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior (artigo 580º, nº 2, da mesma lei).

O seu artigo 581º prevê os requisitos do caso julgado:

“Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”.

“Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

“Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.”

Mas o alcance e autoridade do caso julgado não se limitará aos contornos definidos nestes artigos 580.º e 581.º para a exceção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que, apesar da aparente ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela autoridade está notoriamente presente.

Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e da sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença e, concretamente, dos fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado. (ver acórdão do STJ, de 20.6.2012, no processo 241/07.0TTLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.)

Em face deste enquadramento, podemos constatar o seguinte:

No outro processo, homologando a transação, o tribunal não julgou factos, concretamente os relativos à aquisição da propriedade sobre os quadros; homologando declarações, o tribunal não se pronunciou sobre a verdade das mesmas.

Como vimos supra, não há identidade de sujeitos nos dois processos. É só neste nosso processo que estão todas as pessoas envolvidas.

E não há autoridade do caso julgado porque o tribunal que homologou a transação não conheceu da posição da embargante, pessoa que invocava já o direito de propriedade sobre os dois quadros. (Ver acórdão do STJ, de 19.01.2016, proc.126/12, no sítio digital referido.)

Assim, a transação impõe-se apenas nos seus limites declarativos, primeiro, os relativos às partes outorgantes, segundo, sem apurar de saber se estas estão a transmitir (declarar transmitir) o que não é seu.

A transferência do direito de propriedade para a Recorrente só pode ocorrer se as transmitentes forem titulares do mesmo direito transmitido. Importa então apurar se estas eram titulares do direito, o que faremos infra.

Ainda relativamente à confiança e segurança jurídicas invocadas:

Quando a Recorrente outorgou a transação, ela sabia já que a embargante se arrogava proprietária dos quadros. Assim, enquanto esta propriedade não fosse decidida, aquela não podia sedimentar qualquer expetativa judicial válida.

A sua convição fundada na transação é limitada e é logo abalada pela decisão desta Relação, já referida, daí que não ocorra com a decisão destes embargos qualquer violação da sua confiança ou da segurança jurídica.

Se não foram suspensos os termos daquele processo, em que se inserem estes embargos (art.347º do Código de Processo Civil), esta alegada falha não invalida as considerações anteriores. O que importa para estes embargos, apesar da sentença homologatória relativamente eficaz, é a necessidade de julgar o direito invocado pela embargante, o que não tinha sido ainda feito e se fez, em primeira instância, com a decisão recorrida.


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A aquisição da propriedade dos quadros.

            A embargante invoca a sua propriedade sobre os quadros, por os ter comprado.

Diz que os entregou a MA (…), à consignação, para exposição e venda.

A embargada MT (…) alega que a consignação caducou em 20.09.2011, pelo que, continuando a MA (…) com os quadros a partir dessa data, passou a ter uma posse formal e causal dos mesmos, transferindo-se para si a propriedade.

Os factos provados revelam que a embargante comprou os quadros em maio e junho de 2011; após essa aquisição, aquela entregou os quadros, em 10 de setembro de 2011, a MA (…), à consignação, para exposição e venda, o primeiro pelo preço de € 6.000,00 e o segundo pelo preço de € 7.000,00, concedendo-lhe um prazo de 10 dias, depois prorrogado até 28 de setembro de 2011; na detenção da MA (…), no referido âmbito, os quadros foram arrestados.

A venda à consignação é um contrato atípico, no qual “ uma das partes remete à outra tantas unidades de certa mercadoria, para que esta as venda, com o direito a uma participação nos lucros e a obrigação de restituir as unidades não vendidas”. (M. Pinto, Teoria Geral, 4ª edição, pág. 405.)

Citando o acórdão do Supremo Tribunal de 27.05.2010 (proc. 876/06, em www.dgsi.pt), com outras referências doutrinárias, destacamos:

A doutrina evidencia, neste contrato, ou o factor venda como preponderante, ou o elemento mandato;

Este contrato situa-se a meia distância entre o mandato sem representação e a compra para revenda;

“Para o retalhista, a obrigação alternativa de pagar o preço ou de restituir a coisa, dispensa-o de imobilizar importantes capitais na constituição de stocks de mercadorias, de colocação por vezes difícil. A venda a crédito não lhe proporciona vantagem semelhante, uma vez que o pagamento é simplesmente diferido. Para o fornecedor, a falência do retalhista não o sujeita à perda da mercadoria, de que ele conserva ainda a propriedade, porque não a vendeu.”

(Cfr. ainda o acórdão do STJ, de 05.05.2011, proc. 4382/06, no sítio digital referido, com interesse para a distinção de figuras contratuais próximas.)

No nosso caso, com poucos dados disponíveis (os provados), as partes (embargante e embargada MA (…)) nada estipularam quanto à devolução dos quadros, qual o prazo para essa entrega ou o que sucederia caso não ocorresse a sua venda no prazo fixado para a consignação.

De qualquer maneira, na motivação dos factos, pelo julgador em 1ª instância, ficou exarado que a embargada MA (…)  esclareceu, em depoimento de parte prestado, que se não vendesse os quadros teria de os devolver, nada tendo sido acordado se os vinham buscar ou se ela os levava.

Ao contrário do defendido pela embargada MT (…), não decorre do contrato de venda à consignação, de forma automática, com a não devolução dos bens, no prazo concedido para a sua venda, a transferência da propriedade para a consignatária.

Mais de acordo com a sua natureza, aquela transferência não será desejada.

Assim, uma tal vontade das partes exigirá uma sua manifestação clara.

No caso, tal cláusula de transmissão não foi acordada formal e expressamente e também não resulta dos dados obtidos.

            A demonstrada prorrogação do prazo inicial do acordo, depois de terminado o mesmo, revela que o domínio, para as partes, se manteve na consignadora.

Os factos revelam que o fim do acordo era que a consignatária, organizadora da exposição, procedesse, em nome da consignadora, à venda dos quadros. Não conseguida a venda, a identificada MA (…) não tinha a opção (e não fez tal declaração) de ficar com eles, pagando o seu preço, estando antes obrigada à sua restituição. (cfr. art.1161º do Código Civil.)

Não foi sequer alegado pelas partes que a consignatária tivesse a faculdade de escolha no final do prazo.

Sendo assim, os quadros continuaram propriedade da consignadora embargante.


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A alegada disposição dos mesmos pela Recorrente.

Alega a Recorrente que tinha total liberdade para dispor dos quadros - artigo 1305º do Código Civil - o que fez, pelo que, neste momento, é objetivamente impossível restituir os bens em causa nos presentes autos, extinguindo-se esta obrigação nos termos do artigo 790º do Código Civil.

Em primeiro lugar, já vimos que a consignatária não adquiriu os bens, não os podendo, na qualidade de proprietária, transmitir à arrestante, para pagamento de uma dívida sua a esta, como foi declarado na transação homologada.

Em segundo lugar, a alegação de que dispôs dos quadros é relativa a um facto e a uma questão que são novos.

Ora, “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e o processo contenha os elementos imprescindíveis.” (A. Geraldes, Recursos, 3ª edição, 2010, Almedina, página 104.)

            Quando as questões novas respeitem a matéria de facto, mais se impõe o respeito desta regra, por estar em causa uma realidade que não foi sequer julgada.

            Este entendimento resulta do princípio da preclusão, garante de que os actos processuais sejam praticados nos momentos próprios. Ainda da consideração de que um tribunal de recurso reaprecia questões já apreciadas e decisões proferidas num certo quadro factual e jurídico. Por fim, não fosse assim e suprimir-se-ia um órgão de jurisdição.

Devemos considerar ainda a regra da concentração da defesa na contestação (cfr. artigos 573º e 731º do Código de Processo Civil).

Ora, se for como alega a Recorrente, na impossibilidade de se executar o decidido, ou seja, de proceder à entrega dos quadros à embargante, a solução passará por se executar a alternativa do seu correspondente valor.

Pelo exposto, a decisão recorrida não merece censura.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2016-03-16


 (Fernando de Jesus Fonseca Monteiro( Relator )

 (António Carvalho Martins)

 (Carlos Moreira)