Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
565/10.9TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO
TRESPASSE
COMUNICAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
CASAMENTO
PROVA
ALTERAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - VARA COMP. MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS - VARA COMPETÊNCIA MISTA-1ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.264, 334, 369, 372, 1038, 1093, 1094, 1118 CC, 211, 278 CRC
Sumário: I - O regime supletivo de bens do casamento não é facto sujeito a registo, pelo que, constando em instrumento notarial lavrado em 1975, com base no conhecimento pessoal do Sr. Notário, que o regime de bens de casamento celebrado antes de 1967 era o da comunhão geral, tal satisfaz as exigências formais do instrumento, o qual, assim, e como documento autêntico, faz prova quanto a tal regime.

II - A alteração da selecção da matéria de facto em sede recursiva apenas pode ser efectivada, a pedido das partes, ao menos por via de regra, se elas tiverem oportunamente reclamado da decisão que fixou tal matéria nos termos do artº 511º do CPC, e nos limites de tal reclamação.

III - A ineficácia do trespasse que implica a transmissão da posição do arrendatário – artº 1118º do CC na redacção dada pelo DL nº 67/75 de 19.02 - por não prova da comunicação do mesmo ao locador – artº 1038 al. g) – é atributiva do direito à resolução do contrato – artº 1093º nº1 al. f) – mas queda prejudicada/sanada com o reconhecimento pelo locador do beneficiário da cedência, e/ou se o locador não instaura a acção de despejo com tal fundamento no prazo de um ano – artº 1094.

IV - Considerando que o abuso de direito apenas emerge quando este é exercido de uma forma profundamente injusta e iníqua, com manifesto desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade e afectante do sentimento de justiça imanente à ordem jurídica, não alicerça tal abuso a simples dúvida ou incerteza quanto à coerência da actuação da parte.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.
MA (…) e MH (…),  instauraram contra E (…), LDA ação declarativa, de condenação, na forma  sumária, entretanto transmutada em ordinária.

Pediram:
a) seja a ré condenada  a entregar de imediato às às autoras, livres e devolutos de pessoas e bens, as frações autónomas identificadas nos artºs 2º e 3º da petição;
b) seja a ré condenada a pagar às autoras uma indemnização em quantia a arbitrar, em valor nunca inferior a € 2.000,00 (dois mil euros) por cada mês de atraso na entrega dos locados, a calcular desde a data em que a ré estava adstrita à devolução dos locados até à entrega efetiva dos mesmos.
Para tanto alegaram:
- Em 1976 adquiriram a nua propriedade de quatro frações autónomas, que identificam, das quais os seus pais ficaram usufrutuários até à sua morte.
- Por sentença datada de 20 de Maio de 1987 foi a ora ré reconhecida como arrendatária dos então usufrutuários, a partir de Dezembro de 1978.
- Em 25.04.2009 faleceu o último usufrutuário pelo que caducou o contrato de arrendamento comercial estabelecido com a ora ré, atento o disposto na alínea c) do artigo 1051.º do Código Civil;
- Por carta datada de 12 de Junho de 2009, as autoras comunicaram à ora ré a caducidade do contrato de arrendamento, mais solicitando a restituição das mesmas, livre de pessoas e bens, decorridos seis meses a contar da data do óbito
- Esta, por carta datada de 13 de Outubro desse mesmo ano, veio invocar, certamente por lapso (atenta a postura adotada há cerca de 30 anos em que invocou, com o fito de obstar à execução do despejo que, em Dezembro 1978 havia celebrado um contrato de arrendamento com os falecidos usufrutuários) que o contrato de arrendamento é anterior ao usufruto e, consequentemente não caducou, concluindo pela não existência do dever de restituir as frações autónomas às suas legítimas proprietárias.
- a ré tem-se furtado à entrega dos imóveis, porquanto a renda que vinha sendo paga até Outubro passado, é escandalosamente baixa, atento os valores de mercado praticados para situações semelhantes, pretendendo locupletar-se à custa das aqui autoras, impedidas de usar, fruir e dispor do seu património, designadamente de o dar de locação a terceiros, por valores atualmente praticados no mercado para imóveis com idênticas características;
- considerando as áreas cobertas das frações em apreço, o atual estado das fracções, e o valor de mercado aplicável ao arrendamento habitacional, na zona geográfica em que as mesmas se inserem, o prejuízo global das autoras, ascende presentemente a € 2.000,00 (dois mil euros) mensais.

Contestou a ré.
Alegou que o arrendamento dos bens locados não caducou com a morte dos usufrutuários, pois o arrendamento da ré não foi celebrado pelos usufrutuários mas pelos proprietários plenos das frações antes da constituição do usufruto e impugnou a generalidade do alegado, no respeitante à caducidade do arrendamento e danos invocados.

Respondem as autoras, reiterando o dito em na petição inicial e pedindo condenação como litigante de má fé, em multa e indemnização a fixar.

2.
Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu:

Julgar a ação improcedente, por não provada,  e  absolver a ré do pedido.
Julgar improcedente a requerida condenação da ré como litigante de má fé.

3.
Inconformadas recorreram as autoras.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. Foi dado como assente nos autos que:  “Por escritura pública de “constituição de sociedade”, de 04 de Abril de 1975, outorgada no Primeiro Cartório de Coimbra, M (…) casada com V (…), segundo o regime de comunhão geral, e M (…) filha de V (…), declararam constituir entre si a sociedade denominada de “Estabelecimento de Ensino (…), Limitada”, apelada na presente acção.
II. Tal ponto da matéria de facto, do modo como se encontra redigido, é susceptível de ser interpretado no sentido de dar como provado a existência e regime de bens dum determinado casamento.
III. Todavia, tal facto prova-se, única e exclusivamente, mediante exibição da competente certidão – artigo 364, n.º 1, do Código Civil e artigos 1.º, alíneas d) e e), e 211.º, n.º 1, do Código do Registo Civil – que não se vislumbra nos autos e, por isso, tem que ser expurgado da matéria de facto que serviu de base à sentença recorrida.
IV. Assim, deverá o ponto T) da factualidade ser substituído por outro com a seguinte formulação: “Por escritura pública de “constituição de sociedade”, de 04 de Abril de 1975, outorgada no Primeiro Cartório de Coimbra, M (…) declarou ser casada com V (…) segundo o regime de comunhão geral e mais declarou, juntamente com M (…), que declarou outrossim ser filha de V (…)constituir entre si a sociedade denominada “Estabelecimento de Ensino (…), Limitada”.
V. No artigo 21.º da resposta à contestação que apresentaram, as Apelantes alegaram que, em resposta às diversas interpelações que M (…) remeteu a V (…), a ora Apelada remeteu o documento que então se juntou como n.º 5 da dita resposta, está a fls. 160 dos autos e não foi impugnado.
VI. Assim, porquanto releva para a boa decisão da causa, deve ser aditado à matéria de facto um ponto com o seguinte teor: “Em resposta à interpelação de M (…) a Apelada remeteu às apelantes o escrito a fls. 160, no qual escreveu: “… queríamos lembrar-lhe que após a sentença que homologou o termo de transacção da acção de despejo, o inquilino se alterou, pois, a renda passou a ser paga em nome do Estabelecimento de Ensino (…), Ldª, e o senhorio emitiu recibos em nome desta sociedade”.
VII. Mais alegaram as Apelantes nos artigos 23.º e 24.º da dita resposta que: “foi a própria a Ré que, em 23 de Maio de 1986, no âmbito da execução do mandado para despejo, veio requerer a confirmação da suspensão do despejo, tendo alegado, nesse mesmo requerimento, que desde Dezembro de 1978 que o “Estabelecimento de Ensino (…), Lda.” acordou com o usufrutuário (…) o arrendamento das fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “D”, bem como os arrumos e Águas furtadas”.
VIII. Para prova de tanto, juntaram o documento que então numeraram como 6, junto a folhas 131 dos autos que também não foi impugnado e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
IX. Deve, por isso, e na medida em que releva para a boa decisão da causa, ser aditado à base instrutória um novo ponto cujo teor reproduza o texto em itálico da conclusão VII.
X. Alegaram ainda as Apelantes, no artigo 26.º da resposta à contestação que: no âmbito dessa mesma acção conseguiu a Ré convencer o Tribunal da veracidade dos seus argumentos e alegações, tendo sido proferida decisão judicial que decidiu que o “Estabelecimento de Ensino (…), Lda.” acordou com o usufrutuário A (…) um novo arrendamento, em vigor desde Dezembro de 1978.
XI. Para prova do alegado juntaram com a petição inicial a sentença proferida nos já referidos autos de execução de despejo - processo que correu termos pela 2.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Coimbra sob o n.º 2027-A/77, apensado aos presentes autos - (fls. 52 dos presentes autos), bem como o Acórdão da Relação de Coimbra prolatado no âmbito desses mesmos autos (fls. 56 dos presentes autos), documentos juntos por certidão, não impugnados, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
XII. Deve, por isso, e na medida em que releva para a boa decisão da causa, ser aditado à base instrutória um novo ponto cujo teor reproduza o texto em itálico da conclusão X.
XIII. Expurgado que seja dos fundamentos de facto da presente acção o ponto que permitiu a leitura feita na decisão a quo de que estava provada a existência e regime de bens de casamento celebrado entre V (…) e M (…), afastada fica a comunicabilidade do arrendamento celebrado pelo dito Virgílio à sua – processualmente putativa – mulher.
XIV. Afastada a comunicabilidade, impossibilitada fica a transmissão de tal direito de uso e gozo da esfera jurídica da dita M (…) para a Apelada no âmbito do alegado trespasse, caindo o fundamento, de facto e de direito, da decisão recorrida.
XV. Acresce que qualquer eventual trespasse sempre seria ineficaz face aos então senhorios e, consequentemente, também, face às Apelantes.
XVI. Com efeito, estabelecia, em 04/04/1975, a alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, que o locatário era obrigado a comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos títulos referidos na sua alínea f).
XVII. Nem o primitivo locatário, V (…), nem ninguém em seu lugar comunicou, no prazo que a lei impunha, por qualquer forma, a cedência do locado por trespasse de estabelecimento comercial que nele funcionasse.
XVIII. A não comunicação do trespasse ao senhorio gera a ineficácia de tal negócio jurídico relativamente a este.
XIX. E nem o posterior conhecimento pelo senhorio da existência do trespasse sana a inoponibilidade do mesmo.
XX. O que sucede é que, conhecendo da cedência do gozo, ilícita por não comunicada no prazo legal, o senhorio tem prazo de um ano para intentar a acção de resolução do contrato de arrendamento.
XXI. Foi precisamente o que fez A (…), intentando a competente acção, que veio a findar por via do termo de transacção que consta do ponto X) da matéria de facto assente, mediante o qual V (…), que era o inquilino, posto que o alegado trespasse nem sequer havia sido legalmente comunicado, se obrigou a entregar os imóveis referidos nos pontos A) a D) da matéria de factos assente, até ao dia 01/09/1985.
XXII. V (…) incumpriu os termos de tal acordo.
XXIII. Em face da não entrega dos locados no prazo acordado, M (…) usufrutuária que sucedeu a A (…), requereu a emissão de mandado para a execução do despejo contra V (…).
XXIV. A Apelada interveio nesses autos de execução de mandado de despejo como terceira.
XXV. E, como terceira, conseguiu ver reconhecido o seu direito ao uso e gozo dos locados mediante novo arrendamento entretanto celebrado com A (…), o que fundamentou e logrou alcançar mediante a exibição de recibos de renda emitidos por este a partir de Julho 1981.
XXVI. Assim, com base na invocação de nova relação jurídica de arrendamento judicialmente reconhecida em que a contraparte é já A (…) – usufrutuário dos bens locados – a Apelada logrou manter-se até ao presente no uso e gozo dos locados.
XXVII. Agora, finados os usufrutuários e, com eles, a relação jurídica, posto que esta estava limitada, nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 1051.º do Código Civil, ao direito deles, a Apelada alega, em sua defesa, a posição inversa.
XXVIII. A decisão recorrida dá guarida a tal pretensão, reconhecendo à Apelada o direito de ocupar os imóveis descritos nos pontos A) a D) da matéria de facto, e fá-lo radicar nos dois contratos de arrendamento celebrados entre V (…) e J (…) e I (…) e F (…), respectivamente, em 25/06/1959 e 01/10/1969 – cfr. pontos K) e O), da matéria de facto.
XXIX. Tais acordos de vontade foram alvo da acção especial de despejo n.º 2027/77, cujos autos correram termos na 2.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal de Coimbra, tendo como autor A (…) e como réu V (…).
XXX. Tal acção veio a findar mediante sentença homologatória da transacção em 24/11/1978, constante de fls. 91 e 92, dos autos.
XXXI. Tal transacção, celebrada em 24/11/1978 entre A (…) e V (…), nas posições processuais de autor e réu, por via da qualidade de senhorio e arrendatário dos imóveis descritos nos pontos A) a D) que respectivamente detinham, estipulava, além do mais, que V (…) ficava obrigado a entregar a A (…)até 01/09/1985, os imóveis referidos nos pontos A) a D) da matéria de facto.
XXXII. Tal relação locatícia cessou, por isso, inexoravelmente, no dia 01/09/1985.
XXXIII. A decisão recorrida ofende o valor de caso julgado material da sentença que, em 24/11/1978, homologou a transacção que pôs fim a tal relação contratual.
XXXIV. A Apelada age em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium ao alegar que ocupa os locados com base naquela relação locatícia.
XXXV. A decisão recorrida mais não fez que dar guarida a uma pretensão injusta e abusiva.
XXXVI. Com efeito, tal decisão, partindo do pressuposto de que a Apelada não provou que quer os senhorios à data do alegado trespasse, quer as Apelantes, tenham tido conhecimento de qualquer trespasse, conclui, contraditoriamente, que ele existe e lhes é oponível.
XXXVII. Isto, não obstante o usufrutuário se ter oposto a tal transmissão de posição contratual e o primitivo arrendatário, no âmbito da acção de despejo interposta pelo usufrutuário A (…) com tal fundamento, se ter obrigado a entregar as fracções em causa, pondo, dessa forma, fim aos primitivos arrendamentos.
XXXVIII. Nenhum acto posteriormente praticado pelos usufrutuários poderá sustentar a oponibilidade de qualquer alegado trespasse às Apelantes, porquanto sempre estaria confinado aos limites dos poderes de administração que os usufrutuários detinham, e, assim, nunca vinculariam as Apelantes, já que a Apelada não desconhecia a qualidade em que A (…) e, posteriormente, Maria João dos Santos Pombo, actuavam.
XXXIX. Acham-se, assim, violados, directa e/ou indirectamente, os artigos 334.º, 364, n.º 1, 1038.º, alínea g), 1049.º e 1051.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil e os artigos 1.º, alínea d), e 211.º, n.º 1, do Código do Registo Civil.
Termos em que,
a) Deve a matéria de facto que fundamenta a decisão recorrida ser alterada nos termos constantes das conclusões IV, VI, IX e XII; e,
b) Deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, julgando extinta a relação locatícia, dê provimento ao presente recurso, condenando a Apelada nos termos inicialmente peticionados, tudo com o Douto suprimento de V. Exas., nos termos supra referidos, assim se repondo a já costumada JUSTIÇA.

Contra-alegou a ré pugnando pela manutenção do decidido.


4.
Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª- Alteração da al. T) dos factos assentes e aditamentos à base instrutória.
2ª – Procedência da ação por: a) ineficácia do alegado trespasse; b) Atuação da ré em abuso de direito.

5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1.
Pretendem as recorrentes que se retire da alínea T o regime de bens do casamento celebrado entre M (…), e V (…) - o regime da comunhão geral – pois que tal facto prova-se, única e exclusivamente, mediante exibição da competente certidão – artigo 364, n.º 1, do Código Civil e artigos 1.º, alíneas d) e e), e 211.º, n.º 1, do Código do Registo Civil – que não se vislumbra nos autos.
Nos termos do artº 1º als. d) e e) do CRC  em vigor à data da prática do ato notarial, seja, em 1975,  aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47678 de 5 de Maio de 1967 estavam sujeitos a registo obrigatório os factos atinentes ao casamento e às convenções antenupciais e às alterações, na constância do casamento, ao regime de bens convencionado ou legalmente fixado.
E nos termos do  seu artº 278º a prova dos factos sujeitos a registo e o estado civil das pessoas provam-se, conforme os casos, por meio de certidão, boletim, cédula pessoal ou bilhete de identidade.
Tais preceitos correspondem no CRC atualmente vigente aprovado pelo DL n.º 131/95, de 06 de Junho ao artºs 1º als. d) e e)  o qual tem redação similar ao de antanho.
 E ao artº 211º o qual estatui algo diferentemente ex vi das novas tecnologias, a saber: «1 - Os factos sujeitos a registo e o estado civil das pessoas provam-se pelo acesso à base de dados do registo civil ou por meio de certidão. 2 - Faz igualmente prova para todos os efeitos legais e perante qualquer autoridade pública ou entidade privada a disponibilização da informação constante da certidão em sítio da Internet, em termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.»
Verifica-se, assim, que o CRC, em qualquer das suas redações,  não exige o registo do regime  supletivo de bens do casamento, mas apenas  exige o registo das convenções antenupciais destinadas a modificar tal regime ou das alterações que aquele regime ou a estas convenções venham a ser feitas.
Assim sendo e não estando tal facto sujeito a registo civil, a prova do mesmo não tem de ser, necessária e inelutavelmente e de um modo direto e imediato, efetivada através de prova taxada, rectius a atinente aos factos sujeitos a tal registo.
5.1.2.
Por outro lado importa ter presente que:
 Nos termos do artº 1º do Código do Notariado vigente à  data da prática do ato notarial em causa, aprovado pelo DL nº 47619 de 31.03.1967: A função notarial tem essencialmente por fim dar forma legal e conferir autenticidade aos actos jurídicos extrajudiciais.
Tal redação assemelha-se à da norma correspondente do Código vigente, aprovado pelo DL 207/95 de 14.08 com o seguinte teor: A função notarial destina-se a dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais.
Nos termos do Artigo 5.º daquele diploma: compete, em especial, ao notário:
a) Lavrar testamentos públicos, instrumentos de aprovação, depósito e abertura de testamentos cerrados;
b) Lavrar outros instrumentos públicos nos livros de notas e fora deles;
c) Exarar termos de autenticação em documentos particulares, ou de simples reconhecimento da autoria da letra com que esses documentos estão escritos ou das assinaturas neles apostas;
d) Passar certificados de vida e identidade, e bem assim do desempenho de cargos públicos, de gerência ou de administração de pessoas colectivas e de sociedades;
e) Passar certificados de outros factos que haja devidamente verificado;
f) Certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos escritos em língua estrangeira;
g) Passar certidões de instrumentos públicos e de outros documentos arquivados, ou passar públicas-formas de documentos que, para esse fim, lhe sejam presentes pelos interessados;
h) Expedir fotocópias de instrumentos e de outros documentos, ou conferir com os respectivos originais as fotocópias extraídas pelos interessados;
 i) Intervir nos actos jurídicos extajudiciais, a que os interessados pretendam dar garantias especiais de certeza ou de autenticidade.
A norma análoga do código vigente consta no artº 4º nº1  o qual estatui: Compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance.
Nos termos do Artigo 51.º: 1. Os documentos lavrados pelo notário, ou em que ele intervém, podem ser autênticos ou autenticados, ou ter apenas o reconhecimento notarial. 2. São autênticos os documentos exarados pelo notário nos respectivos livros, ou em instrumentos avulsos, e os certificados, certidões e outros documentos análogos por ele expedidos. 3. São autenticados os documentos particulares confirmados pelas partes perante notário. 4. Têm reconhecimento notarial os documentos particulares cuja letra e assinatura, ou cuja assinatura, se mostrem reconhecidas por notário. Preceito que tem correspondência no atual artº 35º.
Nos termos do artº 62º nº1 als. d) e e) o instrumento notarial deve conter, como formalidade comum, A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes e  A menção…de todos os documentos relativos ao instrumento, com indicação da data da sua expedição e das demais circunstâncias indispensáveis para os identificar; preceito a que corresponde o artº46º nº1 als. d) e e) do  atual código.
Nos termos do artº 63.º nº1 do diploma pretérito: O instrumento destinado a titular actos sujeitos a registo deve conter em especial: a) Se algum outorgante for casado, a menção do nome completo do outro cônjuge e do respectivo regime matrimonial de bens;
Nos termos do artigo 64.º nº1: A verificação da identidade dos outorgantes pode ser feita por alguma das seguintes formas: a) Pelo conhecimento pessoal do notário; b) Pela exibição do bilhete de identidade ou do documento equivalente…;  c) Pela declaração de dois abonadores que o notário considere dignos de crédito.
Daqui dimana que os instrumentos notariais,  porque lavrados  por entidade dotada de fé publica e sujeitos ou em respeito por requisitos legalmente  exigíveis, têm, seja qual for a sua natureza, um valor probatório acrescido  máxime os de cariz autêntico.
5.1.3.
No caso vertente, e  ex vi do referido artº 63º e uma vez que o instrumento notarial se reportou a escritura de constituição da sociedade facto que está sujeito a registo por força das normas do registo comercial, era exigível a menção do nome do cônjuge da M (…) e do respetivo regime matrimonial de bens. E tal menção ficou a constar.
Resta saber se ela foi aposta no instrumento em causa, com respeito dos aludidos requisitos legais.
E a resposta é afirmativa.
Na verdade não sendo o regime supletivo de bens, como se viu, um facto sujeito a registo, a menção ao mesmo não exige uma prova especial taxada ou documental, antes se basta com a verificação da identidade das partes.
Tal identificação foi efetivada, in casu, por conhecimento pessoal do notário, o que clama a conclusão que tendo este atestado ser o regime de bens do casamento o da comunhão geral, era porque estava cônscio e ciente que tal regime, efetiva e realmente, vigorava.
O que, aliás, dimana dos elementos constantes dos autos, pois que, indiciando-se suficientemente que o casamento foi celebrado antes de 1967, sendo o regime supletivo de bens do casamento, no âmbito do CC de Seabra, o regime  da comunhão geral, e não tendo o Sr. Notário, em função do conhecimento pessoal dos intervenientes que disse possuir, conhecimento de convenção derrogatória de tal regime supletivo, naturalmente que era este o que subsistia.
5.1.4.
Concluindo-se pela validade formal do instrumento notarial, urge atentar que o mesmo se consubstancia, na vertente notarial, como de jaez autêntico, pois que foi exarado pelo notário nos respectivos livros – artº 51º nº2.
E, na vertente puramente civilista, outrossim assume tal natureza, pois que foi exarado por autoridade ou oficial público competente – artº 369º nº1 do CC.
Consequentemente a sua força probatória  atém-se à prova plena dos factos em causa pois que ele foi atestado com base nas perceções da entidade documentadora – artº 371º do CC.
Ora não tendo tal instrumento/documento sido posto sub sursis, o que apenas poderia acontecer com a arguição da sua falsidade – artº 372º do CC -  ele faz prova quanto ao facto em apreciação.
5.1.5.
Pretendem ainda as recorrentes que seja levado à BI a sua alegação constante nos artºs 21, 23, 24º e 26º da resposta à contestação.
Tal alegação reporta-se à tese de que a recorrida celebrou com o usufrutuário A (…) um novo contrato de arrendamento, em Dezembro de 1978.
Ora esta pretensão não pode proceder.
Certo é que a seleção da matéria de facto não constitui, tout court, uma decisão que faça caso julgado, mas antes  se apresentando como um modo de organização, um instrumento de trabalho para a boa disciplina das fases posteriores.
Esta tese ganhou força com o assento nº4/94 de 04.10 no qual se estabeleceu que «a especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio».
E saiu ainda mais reforçada pela reforma de 1995 na qual se acentuou o cariz instrumental do processo cujo iter se deve adaptar e moldar à consecução do seu fito último, qual seja o da realização da justiça material – cfr. A. Geraldes, Temas, 2º, 4ª ed. p.152 e Lebre de Freita, CPC, 2º, 2ª ed. p.413.
Mas tal abertura e plasticidade reporta-se, apenas ou essencialmente, à atuação do juiz que não à das partes.
Na verdade, para o julgador há normas que acolhem tal possibilidade de alteração ou adequação factual – cfr. vg. artº 650º al.f) e 659º nº3 do CPC.
Já no atinente às partes a lei é mais exigente, impondo-lhes o ónus de atuação em determinada fase ou tempo processuais, sob pena de preclusão da pratica do ato.
Tudo em abono da defesa e perspetivação dos princípios do dispositivo, da autorresponsabilidade, da economia e da celeridade processual.
Assim e no que tange à seleção da matéria de facto, as partes, após notificadas da respetiva decisão, podem/devem reclamar desta, com fundamento em deficiência, excesso ou obscuridade de tal decisão.
Sendo que o despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final – artº 511º nºs 2 e 3 do CPC.
Verifica-se assim, tal como defendido pela recorrida, que a reclamação atempada da decisão que fixou e selecionou os factos se apresenta, pelo menos por via de regra, como conditio sine qua non para posterior insurgimento contra tal decisão.
Ora  no caso vertente as recorrentes reclamaram contra a decisão,  mas apenas, com invocação dos documentos referidos nos aludidos artigos da réplica, para que o facto quesitado no artº 1º da BI, ou seja, se a recorrida, em Dezembro de 1978, celebrou com o usufrutuário A (…) um diverso, ie novo, contrato de arrendamento relativamente aos de 1959 e 1969, fosse dado como assente.
Tal pretensão foi indeferida com o fundamento de que tal matéria estava controvertida e os documentos juntos não são suficientemente esclarecedores desse mesmo facto.
E bem assim se decidiu, em face das posições das partes nos autos verificada e dos documentos  neles juntos.
Acresce que tais artigos da réplica, mais do que reportados a factos, se consubstanciam como alegações invocatórias de documentos os quais se reportam a um único e essencial quid factual e supra aludido.
Ora urge ter presente que o que devem ser quesitados são apenas factos e não documentos, os quais, mesmo que atinentes ou reportados a acervo factual, não valem por si, antes e apenas se destinando a provar o factualismo neles ínsito.
Assim sendo, e porque o facto nuclear aludido a que as alegações ditas e os documentos nelas visados se reportam foi levado à BI logo no seu artº 1º, meridianamente se alcança a clara impossibilidade legal e/ou desnecessidade para a boa decisão da causa da consideração de tais alegações replicantes.
E consubstanciando, inclusive, a presente pretensão uma atuação em contradição com a plasmada na dita reclamação, pois que enquanto nesta pretendia ver logo provado o facto ínsito no artº 1º da BI, no presente recurso visa que ele seja levado à BI para sobre ele incidir produção de prova.
5.1.6.
Nesta conformidade os factos a atender são os fixados na 1ª instância, a saber:

A) Encontra-se registada a favor das autoras, pela Ap. 4 de 08 de Julho de 1976, a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma garagem do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na (...), em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...), da indicada freguesia de Santo António dos Olivais e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (...), da freguesia de Santo António dos Olivais.
B) Encontra-se registada a favor das autoras, pela Ap. 4 de 08 de Julho de 1976, a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao rés-do-chão com arrumo nas águas furtadas, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na (...), em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...), da indicada freguesia de Santo António dos Olivais e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (...), da freguesia de Santo António dos Olivais.
C) Encontra-se registada a favor das autoras, pela Ap. 3 de 08 de Julho de 1976, a fracção autónoma designada pela letra “A” correspondente a uma garagem do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na (...), em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...), da indicada freguesia de Santo António dos Olivais e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (...), da freguesia de Santo António dos Olivais.
D) Encontra-se registada a favor das autoras, pela Ap. 4 de 08 de Julho de 1976, a fracção autónoma designada pela letra “D” correspondente ao rés-do-chão com arrumo nas águas furtadas do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na (...), em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...), da indicada freguesia de Santo António dos Olivais e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (...), da freguesia de Santo António dos Olivais.
E) Encontram-se ainda registados a favor de A (…) e da sua mulher, M (…), pelas respectivamente, Ap. 4 e 3 de 08 de Julho de 1976 os usufrutos sobre as fracções referidas em A), B), C) e D).
F) Pela Ap. 3799 de 23 de Dezembro de 2009, foi averbado o cancelamento dos registos referidos em E).
G) Por Escritura Pública de “Compra e Venda”, lavrada no dia 28 de Maio de 1976, pelo Segundo Cartório da Secretaria Notarial de Coimbra, I (…) (viúva) e F (…) (casado com H (…), segundo o regime da separação de bens), representados neste acto por A (…), declararam vender a MH (…) casada segundo o regime da comunhão geral com A (…), e a MA (…) casada segundo o regime da separação de bens com J (…) (todas representadas no acto por A (…), seu pai, que interveio nesta parte na qualidade de gestor de negócios), que, por sua vez, aceitaram comprar a nua propriedade das fracções referidas em A), B), C) e D).
H) Nessa mesma escritura, I (…) (viúva) e F (…) (casado com H (…), segundo o regime da separação de bens), representados neste acto por A (…), declararam vender a A (…) e à sua mulher, M (…) (representada no acto por A (…), na qualidade de gestor de negócios), que, por sua vez, aceitaram comprar o usufruto até à morte do último das fracções mencionadas em A), B), C) e D).
I) No dia 9 de Outubro de 1982, faleceu A (…).
J) No dia 25 de Abril de 2009, faleceu M (…).
K) Por acordo datado de 25 de Junho de 1959, denominado de “arrendamento”, J (…)deu de arrendamento a V (…) o “rés do chão do prédio da (...)”, freguesia de Santo António dos Olivais, como resulta de fls. 111 e 112, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
L) A renda estipulada foi de 1050$00 mensais, a pagar adiantadamente em casa do senhorio ou de representante no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que a mesma disser respeito.
M) Nesse acordo consta ainda como cláusula 3.ª que “A casa arrendada é para Habitação exclusiva do inquilino, não podendo este dar-lhe outro uso, nem sublocá-la, no todo ou em parte, nem nela fazer leilões, sem autorização escrita do senhorio…”.
N) Desse acordo consta igualmente como cláusula 7.ª que “Em rectificação à condição 3.ª esclarecesse que a casa arrendada se destina ao “Externato Menino Jesus.”
O) Por acordo datado de 01 de Outubro de 1969, denominado de “arrendamento” I (…) e F (…) representados no acto por A (…), deram de arrendamento a V (…) o “rés do chão com garagem do prédio da (...)”, freguesia de Santo António dos Olivais, como resulta de fls. 113 e 114, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
P) A renda estipulada foi de 2000$00 mensais a pagar adiantadamente em casa do senhorio ou de representante no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que a mesma disser respeito.
Q) Nesse acordo consta ainda como cláusula 3.ª que “A casa arrendada é para Habitação exclusiva do inquilino, não podendo este dar-lhe outro uso, nem sublocá-la, no todo ou em parte, nem nela fazer leilões, sem autorização escrita do senhorio…”.
R) Nesse acordo, consta como cláusula 7.ª que “O inquilino fica autorizado a servir-se do rés-do-chão como estabelecimento de ensino primário.”
S) E como cláusula 8.º que “A garagem destina-se à recolha do automóvel particular do inquilino”.
T) Por escritura pública de “constituição de sociedade”, de 04 de Abril de 1975, outorgada no Primeiro Cartório de Coimbra, M (…), casada com V (…), segundo o regime de comunhão geral, e M (…) filha de V (…), declararam constituir entre si a sociedade denominada de “Estabelecimento de Ensino (…), Limitada”, ré na presente acção.
U) Consta dessa escritura, que a ré tem como objecto o ensino infantil, primário, artístico e línguas ou qualquer outro ramo de comércio ou industria que a sociedade resolva explorar e seja permitido por lei.
V) Consta ainda da escritura, como parágrafo primeiro, que a quota da sócia M (…) está realizada pela transferência para a sociedade do seu estabelecimento instalado nos rés-do-chão números três e cinco dos prédios sitos em Coimbra, na (...) e no rés-do-chão número 7, do prédio sito na Rua (...), em Coimbra.
X) Por sentença conclusa em 24 de Novembro de 1978, proferida no âmbito da acção especial de despejo n.º 2027/77, cujos autos correram termos na 2.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal de Coimbra, tendo como autor A (…) e como réu V (…), foi homologada a transacção de 24 de Novembro de 1978, constante de fls. 91 e 92, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
Y) Nos termos dessa transacção, V (…) ficou obrigado a entregar a A (…), livres e desocupadas, até ao dia um de Setembro de 1985, as fracções mencionadas em A), B), C) e D).
Z) Por carta datada de 12 de Julho de 2009 enviada pelas autoras à ré e por esta recebida, as autoras comunicaram a morte da mãe, M (…), informando que o contrato de arrendamento  relativos aos rés-do-chão dos nºs 3 e 5 da (...), em Coimbra tinha caducado “nos termos do disposto na alínea c) do artigo 1051.º do Código Civil…, devendo V. Exas. Desocupar as fracções autónomas em causa e proceder à sua restituição, livre de pessoas e bens, a nosso favor, após o decurso do prazo de seis meses a contar de “ 25 de Abril de 2009”.
AA) Em resposta, a ré comunicou às autoras em 13 de Outubro de 2009, que o contrato de arrendamento era anterior ao usufruto, não tendo caducado, concluindo pela não existência do dever de restituir as fracções autónomas.
BB) As autoras, em 20 de Outubro e 16 de Novembro de 2009, reiteraram junto da ré a posição referida em Z), mais concedendo à ré o prazo até 24 de Novembro de 2009 para a desocupação das fracções.
CC) Apesar das diversas interpelações efectuadas pelas autoras para o efeito, a ré não entregou as fracções, tal como pretendido pelas autoras.
Da base instrutória:
DD) Em Dezembro de 1978, na sequência da transacção celebrada entre o A (…) e o V (…) no dia 24 de Novembro de 1978, no âmbito da acção de despejo com o n.º 2.027/77, ficou acordado que o primeiro, não obstante o previsto no ponto 2.º da transacção [ ], iria passar os recibos da renda relativa às fracções em nome da aqui ré, que passava a reconhecer como inquilina, para que esta pudesse fazer as deduções fiscais ao tempo legalmente permitidas, e aquele, em conformidade com o previsto no ponto 3.º, iria requerer a avaliação fiscal dos imóveis para efeitos da actualização da renda.(facto 1º)
EE) A partir de 4 de Abril de 1975 até hoje, nas fracções identificadas referidas em A), B), C) e D), tem vindo a ser exercido em nome da ré a actividade de ensino até ao 4º ano de escolaridade. (facto 3º)
FF) Pagando a respectiva renda mensal desde 9 de Dezembro de 1976, mediante depósito, e desde 01 de Março de 1979 mediante pagamento aos senhorios. (facto 4º)
GG) Na sequência do acordo referido em DD) (1º dos facto controvertidos), pelo menos a partir de 01 de Março de 1979 o A (…) e, depois, a sua mulher M (…), aceitaram a renda paga em nome da ré. (facto 5º)
HH) Pelo menos desde 01 de Março de 1979 e até 1 de Julho de 1985, o A (…) e, depois da sua morte, a M (…), emitiram recibos de renda em nome da ré. (facto 6º)
II) Pelo menos desde 07 de Outubro de 1976, o A (…) teve conhecimento da transferência do estabelecimento para a ré nos termos constantes da certidão junta a fls. 7 dos autos de acção especial de despejo (doc. nº. 3 da pi). (facto 8º)
JJ) As AA. aceitaram o pagamento da renda mensal depois a morte da sua mãe, em 25 de Abril de 2009. ( facto 10º)
KK) Recusando-se as autoras a receber tais quantias apenas a partir de 24 de Novembro de 2009, sendo que isso sucedeu na sequência da correspondência dirigida à ré para que abandonasse as fracções, datadas de 12.06.2009 e 20.10.2009 (facto 11º)
LL) Os recibos das rendas passaram a ser emitidos em nome da ré, a pedido de V (…), apenas para a dedução do antigo imposto da contribuição industrial, que não podia ser deduzido em nome pessoal. . (artigo 13º)
MM) Tendo A (…) acedido a tal pedido somente na condição de que, no dia 1 de Setembro de 1985, as fracções lhe serem entregues, nas condições e termos previstos na transacção mencionada em X).(art. 14º)
NN) Após o óbito de A (…)- ocorrido a 9 de Outubro de 1982- a sua mulher, M (…) interpelou, mais que uma vez, V (…) para proceder à entrega das fracções, em cumprimento do termo de transacção referido em X).(art. 15º )

5.2.
Segunda questão.
5.2.1.
O argumento fulcral/essencial/nuclear, a pedra de toque, da pretensão das recorrentes, consubstancia-se no facto de a recorrida ter celebrado com os seus pais, usufrutuários das frações em causa, e nessa qualidade, um novo contrato de arrendamento, o qual, finados os usufrutuários, cessaria por caducidade, nos termos legais.
Como supra se mencionou tal facto foi levado à BI no seu artº 1º com o seguinte teor: Em dezembro de 1978, A (…) celebrou com a ré um acordo de “arrendamento”, diverso dos referidos em K) e O), sobre as frações mencionadas em A), B), C), e D)?
Tal artigo mereceu a resposta com o teor supra mencionado.
As recorrentes não impugnam tal resposta pelo modo e em cumprimento dos legais requisitos – artº 685º-B do CPC - a qual, assim, tem de ser aceite.
Mostram-se, assim despiciendas as suas conclusões recursivas no que concerne à existência de um novo arrendamento celebrado em 1978, designadamente a alegação de que  o Acordão deste tribunal da RC de 16.10.1990 deliberou que entre a ré e o A. Pombo foi celebrado um novo arrendamento, em vigor desde dezembro de 1978.
Aliás nem tal acórdão faz prova plena de tal novo arrendamento, nem no mesmo aresto se decidiu que tal novo arrendamento existiu.
O que nele se menciona é que a ré acordou com o A. (…), em dezembro de 1978, o arrendamento da fração…reconhecendo-a aquele como sua arrendatária.
Mas nele não se define se a posição de arrendatária da ré advém de um novo arrendamento celebrado com o A. (…), ou se resulta da transmissão para a ré  pelo  V (…) da sua posição de inquilino dos arrendamentos precedentes.
Ademais e perante os elementos constantes nos autos, tal dúvida, a ter de ser desfeita, deveria sê-lo neste último sentido, pois que a ré então invocou que o acordo foi celebrado em dezembro de 1978, o que se coaduna com a posição do A. (…) quando, em Janeiro de 1979, dirigiu requerimento às finanças para atualização da renda, no qual expressamente afirma que «o requerente veio posteriormente à sua constituição (da ré) a reconhecer o estabelecimento de ensino (…), Lda, como seu arrendatário, havendo este sucedido no direito ao arrendamento que pertencia ao V (…), assim se tendo transferido para o referido estabelecimento…o contrato que o suporta e titula, celebrado em 1 de out 68…»
Ora da resposta dada ao artº 1º não pode concluir-se que tal novo ou diverso contrato tenha sido celebrado.
Antes pelo contrário sendo lícito concluir que de tal resposta resulta que a ré continuou a explorar o locado por força dos arrendamentos pretéritos, pois que apenas se provou que o A (…) se limitou, em 1978, sem mais, a reconhecer a ré como inquilina.
E  considerando o supra aludido e,  também, que se provou a ré já vinha explorando os locados desde 1975 – EE -  e que  o A (…) teve conhecimento,  pelo menos desde 07 de Outubro de 1976, da transferência do estabelecimento para a ré –II – o que, naturalmente, apenas poderia acontecer ao abrigo dos contratos em vigor, tem de concluir-se que se as partes quisessem celebrar novo contrato, agora com o A. (…), tê-lo-íam feito por escrito, manifestando tal vontade adrede e inequivocamente.
Aliás, sendo ao tempo exigível, como formalidade ad substantiam do  arrendamento, a escritura pública e sendo a nulidade do contrato apenas invocável pelo locatário – al. b) do nº 1  e nº3 do art. 1029º do CC, na redação dada pelo DL nº 67/75 de 19.02 – mal se compreenderia que o A (…)  não avançasse para a outorga de  um novo contrato celebrado por escritura pública ou, até, apenas por escrito, pois que no mesmo poderia desde logo acordar as clausulas – máxime a renda - com a ré e não estaria à mercê desta quanto à sua vigência e validade pois que o contrato novo, a existir, sendo meramente verbal, era nulo, vício este que, como se viu, apenas pela ré poderia ser invocado.
A questão tem, pois, de ser apreciada em função da invocada ineficácia do trespasse e ou do abuso de direito.
5.2.2.
Assim e no que tange à ineficácia do trespasse e sua ineficácia quanto às recorrentes e respetivas consequências.
Numa das definições possíveis: Trespasse é o contrato pelo qual se transmite definitivamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado. Ou a transmissão definitiva, por acto entre vivos, a título oneroso ou gratuito, da titularidade do estabelecimento comercial - Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª ed., 674; Antunes Varela, RLJ 115, 253, nota 1, ali transcrita.
A transmissão da posição do arrendatário através do trespasse era, como é, legalmente válida e não dependia de autorização do senhorio – artº 1118º do CC.
Tinha, porém, de lhe ser comunicada, nos quinze dias seguintes à cedência do gozo da coisa, sob pena de ser ineficaz perante ele, ie. não lhe ser oponível e, assim, constituir fundamento da concessão do direito à resolução do contrato – artºs 1038º al.g) e 1093º nº1 al. f) do CC e  Ac. do STJ de 24.01.2012, p. 466/06.5TBCBT.G1.S1 in dgsi.pt.
É que «A comunicação tem por finalidade dar conhecimento do facto ao senhorio para que este possa ajuizar da legalidade do negócio jurídico e extrair as necessárias consequências.
O prazo de 15 dias, que é de direito substantivo, conta-se a partir da celebração por escrito do trespasse e não a partir da data da posse material do estabelecimento, pouco importando que o senhorio venha a tomar conhecimento da comunicação para além do prazo, não estando sujeita a qualquer requisito especial de forma» -
Aragão Seia, ob. cit., 679, apud Ac. do STJ de 26.06.2007, p. 07A1274.
Levantada a questão da não comunicação do trespasse pelo senhorio, e porque se trata de apreciação de questão atinente a facto negativo, compete ao réu,  aqui ao inquilino, a prova de ter efetivado a comunicação – cfr.  mutatis mutandis, Artº343ºnº1 do CC e Ac. do STJ de S. 10.09.2006, p. 06A2463 in dgsi.pt.
Porém, o direito à resolução cessaria se o locador tivesse reconhecido o beneficiário da cedência como tal ou se a comunicação tivesse sido feita por este – artº 1049º do CC.
 Note-se, contudo, que: «No caso de trespasse, quem deve notificar ao senhorio…a cedência do gozo da coisa locada é o arrendatário cedente. O beneficiário da cedência pode fazer tal comunicação, como resulta do art. 1049 do C.C., mas não está obrigado a isso» - Ac. do STJ de 25.11.2008, p. 08A3399.
Sendo ainda de reter que o reconhecimento fica satisfeito com o simples conhecimento do facto, que pode não provir do trespassante –  A. Varela, CJ, 1983, 4º, 16.

E que a ação de resolução deveria ter sido posta dentro de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade – artº 1094º.
5.2.3.
No caso vertente as partes parecem estar de acordo e pode aceitar-se, que a escritura de constituição da sociedade ré, outorgada em 4 de Abril de 1975, consubstancia o trespasse para esta das frações em causa, até porque nela ficou a constar que a ré  nelas fixaria a sua sede.
Ora a ré não provou, como lhe competia, que  o inquilino V (…) ou ela própria tenham efetivado a comunicação do mesmo aos locadores dos contratos de 1959 e 1969.
Emergiu, assim, a sua ineficácia  perante tais locadores e, consequentemente, o direito destes à resolução do contrato.
Não obstante, não resulta provado dos autos que os ditos senhorios tenham exercido o seu direito à resolução do contrato no prazo de um ano, contado após 04.04.1975, ou até à aquisição das frações pelo A. (…) e autoras, pois que aquando desta, em 28 de Maio de 1976, o contrato continuava em vigor; pelo que caducou tal direito, podendo até deduzir-se que reconheceram a ré como beneficiária da cedência.
 E nem se diga que os primitivos locadores, dada a não comunicação do trespasse, o desconheceram posteriormente. É que a ré foi constituída por escritura publica sujeita a registo e está provado que a partir de 4 de Abril de 1975 até hoje, nas fracções identificadas referidas em A), B), C) e D), tem vindo a ser exercido em nome da ré a actividade de ensino até ao 4º ano de escolaridade. (facto 3º
Nesta conformidade, quando em 28.05.1976 as autoras adquiriram a nua propriedade de quatro frações autónomas e os seus pais ficaram usufrutuários  das mesmas até à sua morte, a posição da ré, enquanto locatária das frações, estava já consolidada.
Pelo que quando as autoras e os seus pais adquiriram as frações, estas estavam limitadas e condicionadas, vg. no que concerne ao contrato de arrendamento que sobre elas incidia, pois que nemo plus juris ad alium transfere potest quam ipse habet.
E mais consolidada ficou quanto é certo que se provou que  pelo menos desde 07 de Outubro de 1976, o A (…) teve conhecimento da transferência do estabelecimento para a ré.
Na verdade, independentemente da consolidação, ou não, do direito da ré como arrendatária dos anteriores locadores, se o A. (…)  se atribuísse qualquer direito perante o primitivo arrendatário V (…) que era quem constava nos contratos escritos, que não a ré, vg. o da resolução do contrato pela transferência ilícita das frações para a ré,  outrossim contra aquele deveria ter instaurado a respetiva ação no prazo de um ano a contar daquela data.
Ora a ação de despejo do A. (…) contra o V (…), apenas foi instaurada em 27.10.1977, ou seja, para além de um ano após o conhecimento da cedência, o que clama a conclusão de que o seu direito, com base neste fundamento, estava já extinto por caducidade.
Em resumo: o trespasse era ineficaz porque não provada a sua comunicação aos locadores, mas tendo estes, tanto os primitivos como o próprio A. (…) reconhecido e aceite a transferência da posição/qualidade de locatário do V (…) para a ré, e/ou tendo deixado expirar o prazo de interposição da ação de resolução com fundamento em tal cedência, e não se tendo apurado a celebração de um novo contrato com o (…), assente no seu direito de usufrutuário, a ação, ex vi da estrita aplicação das normas legais pertinentes, tinha de improceder, como improcedeu.
5.2.4.
Resta-nos o abuso de direito.
Nos termos do artigo 334º do Código Civil:
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A conceção adotada neste conceito é a objetiva, não sendo, assim, necessária a consciência de que com a sua atuação se estão a exceder os apontados limites.
Importa é que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça atentas as conceções ou o sentimento ético-jurídico dominante na coletividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei- cfr.”- Vaz serra “in” Abuso de Direito no BMJ 85º/253 e Pires de Lima e Antunes Varela “in” CC Anotado, anotação ao referido artigo 334º
O abuso de direito é um limite normativo ou interno dos direitos subjetivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo – jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados – cfr. Castanheira Neves in Questão de facto e Questão de Direito, 526 e nota 46.
Em suma, o direito não pode ser exercido arbitrária e exacerbada ou desmesuradamente, mas antes exercício de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.
Pelo que há abuso de direito quando este, atento o circunstancialismo do caso concreto, é exercido de uma forma profundamente injusta e iníqua, com manifesto excesso ou desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade, de tal modo que o sentimento de justiça imanente à ordem jurídica, impõe a retirada do mesmo ou a responsabilização do titular.
O abuso de direito na modalidade de  venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esta contradição afere-se pelas regras da boa fé.
Parte-se de uma anterior conduta de um sujeito que, objectivamente considerada, é de molde a criar noutrém uma situação objetiva de confiança, ou seja, a convicção de que aquele sujeito jurídico se comportará, no futuro coerentemente com aquela conduta.
In casu.
As recorrentes assacam à recorrida uma atuação com abuso de direito porque, dizem, como terceira, conseguiu ver reconhecido o seu direito ao uso e gozo dos locados mediante novo arrendamento entretanto celebrado com A (…), usufrutuário dos bens locados e que agora, finados os usufrutuários e, com eles, a relação jurídica, posto que esta estava limitada, nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 1051.º do Código Civil, ao direito deles, a apelada alega, em sua defesa, a posição inversa.
Mas, salvo o devido respeito, os autos não demonstram tal versão.
Como já se viu, não dimana do processo que a invocação pela ré da sua qualidade de arrendatária para obstar ao despejo, em 1987, se fundou em contrato celebrado com o A. (:..)
Antes  pelo contrário parecendo fundar-se no reconhecimento e aceitação deste da transmissão do direito ao arrendamento do V (…) para a ré na sequencia da transação judicial de 1978 e na subsequente assunção de tal reconhecimento pelo usufrutuário, designadamente perante o fisco.
Esta conclusão sai reforçada pela consequência da alegação da ré na presente ação e na qual outrossim funda a sua defesa na sua qualidade de arrendatária perante os contratos de 1959 e 1968.
Por conseguinte inexiste - ou, e é o quanto basta, não ressumbra dos autos -, qualquer atuação da ré, intrinsecamente contraditória e que, de per se e objetivamente considerada, seja de molde a concluir-se que resultou frustada/violada, de forma iníqua e intolerável, uma situação ou expectativa de confiança anuída ou concedida às autoras.

Improcede o recurso.

6.
Sumariando:
I - O regime supletivo de bens do casamento não é facto sujeito a registo, pelo que, constando em instrumento notarial lavrado em 1975, com base no conhecimento pessoal do Sr. Notário, que o regime de bens de casamento celebrado antes de 1967 era o da comunhão geral, tal satisfaz as exigências formais do instrumento, o qual, assim, e como documento autentico, faz prova quanto a tal regime.
II - A alteração da seleção da matéria de facto em sede recursiva  apenas pode ser efetivada, a pedido das partes, ao menos por via de regra, se elas tiverem oportunamente reclamado da decisão que fixou tal matéria nos termos do artº 511º do CPC, e nos limites de tal reclamação.
III - A ineficácia do trespasse que implica a transmissão da posição do arrendatário – artº 1118º do CC na redação dada pelo DL nº 67/75 de 19.02  - por não prova da comunicação do mesmo ao locador – artº 1038 al. g) – é  atributiva do direito à resolução do contrato – artº 1093º nº1 al. f) – mas queda prejudicada/sanada com o reconhecimento pelo locador do beneficiário da cedência, e/ou se o locador não instaura a ação de despejo com tal fundamento no prazo de um ano – artº 1094.
IV - Considerando que o abuso de direito apenas emerge  quando este é exercido de uma forma profundamente injusta e iníqua, com manifesto desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade e afetante do sentimento de justiça imanente à ordem jurídica, não alicerça tal abuso a simples dúvida ou incerteza quanto à coerência da atuação da parte.

7.
Deliberação.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelas recorrentes.

Coimbra, 2013.12.03

Carlos Moreira ( Relator )
Anabela Luna de Carvalho
Moreira do Carmo