Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
63/15.4GBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: UTILIZAÇÃO ABUSIVA DO PROCESSO
SANÇÃO PROCESSUAL
EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 03/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 118.º, 123.º E 277.º, N.º 5, DO CPP
Sumário: I - A sanção prevista neste n.º 5 do art. 277.º do CPP não tem natureza penal.

II - Trata-se, antes, de uma sanção processual, devida pela utilização abusiva do processo, de natureza idêntica, além de outras, à que, em sede de recurso, prevê o n.º 3 do art. 420.º do CPP.

III - Como sanção processual que é, a decisão sobre a sua aplicação, mediante promoção do Ministério Público pressupõe, naturalmente, o cumprimento do contraditório.

IV - Ao não ter sido concedida à recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre a pretensão do Ministério Público, antes de proferido o despacho recorrido, e porque a lei não comina a omissão com nulidade, foi cometida uma irregularidade (art. 118.º, n.º 1 do CPP, sujeita ao regime de arguição previsto no art. 123.º, n.º 1, do CPP.

V - Mas, o conhecimento oficioso da irregularidade verificada determina a invalidade do processado imediatamente após a remessa dos autos à Mma. Juíza de instrução, para apreciação da promoção do Ministério Público e dos temos subsequentes, incluindo o despacho recorrido.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

No inquérito nº 63/15.4GBFND, que corre termos na Comarca de Castelo Branco – Ministério Público – Fundão – Procuradoria da Instância Local – Secção de Inquéritos, por despacho de 13 de Maio de 2015, o Digno Magistrado do Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito e ordenou que, oportunamente, os autos fossem remetidos à Mma. Juíza de instrução para os efeitos do disposto no art. 277º, nº 5 do C. Processo Penal pois «sobressai de forma inequívoca dos autos que o queixoso/ofendido B... fez uso abusivo do processo penal. Com efeito, o mesmo bem sabia que a planta da urbanização tinha sido alterada, pois que participou em reuniões que determinaram essa alteração, conhecia perfeitamente as confrontações do actual lote 169, sabendo, desse modo, que o aterro se situava apenas no actual lote 168, mesmo assim, apresentou queixa criminal e em sede de inquirição manteve o teor da queixa apesar de saber que as suas declarações não correspondiam à verdade.».  

Depois de requerida pela queixosa e ora recorrente a intervenção do superior hierárquico do Digno Magistrado do Ministério Público para que fossem prosseguidas as investigações, pretensão que, por despacho de 6 de Julho de 2015 do Exmo. Procurador Coordenar da Comarca de Castelo Branco, não mereceu deferimento, foram os autos conclusos à Mma. Juíza de instrução.


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            Em 14 de Julho de 2015 a Mma. Juíza de instrução proferiu o seguinte despacho:

            Considerando que se verificou, por parte de quem denunciou, uma utilização abusiva do processo, ao abrigo do disposto no art. 277, n. 5 do C.P. Penal, condena-se o queixoso B... no pagamento da quantia de 7 UCS.

                Notifique.


*

            Inconformada com a decisão, recorreu a A..., SA. – notando, no requerimento de interposição, que o fazia no pressuposto de que, muito embora não seja quem, no despacho recorrido, foi condenado, se trata de lapso na identificação de quem é o queixoso no processo –, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            A. A decisão proferida a fls. dos autos (com a referência processual n.º 26319786), nos termos da qual o Tribunal a quo decide que «Considerando que se verificou, por parte de quem denunciou, uma utilização abusiva do processo, ao abrigo do disposto no art. 277, n. 5, do C. P. Penal, condena-se o queixoso B... no pagamento da quantia de 7 UCS.», deve ser revogada.

B. Ao proferir a decisão subiudice, o Tribunal a quo violou as seguintes normas: o artigo 277.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, o artigo 32.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.

C. O Tribunal a quo concluiu, genericamente, «que se verificou (…) uma utilização abusiva do processo», socorrendo-se daquele conceito técnico-jurídico e invocando o artigo 277.º, n.º 5 do CPP, para, sem mais, sequer sem audição da denunciante, condenar quem, nos autos, não denunciou nem exerceu qualquer direito de queixa, no montante em que condenou: 7 UCS.

D. Na decisão proferida, o Tribunal a quo condena por utilização abusiva do processo, B..., o qual não é, nos autos, e ao contrário do que o n.º 5, do artigo 277.º do CPP impõe, o sujeito processual que recorre ao processo, o denunciante ou o queixoso.

E. O sujeito da condenação da decisão em crise não está contemplado no âmbito subjectivo da condenação prevista no artigo 277.º, n.º 5 do CPP.

F. A condenação prevista no artigo 277.º, n.º 5 do CPP não é automática.

G. Antes de decidir condenar por uma utilização abusiva do processo, o Tribunal a quo devia ter ordenado a notificação da denunciante para o exercício do contraditório, o que não fez, violando o artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do CPP.

H. A decisão de condenação prevista no artigo 277.º n.º 5 do CPP constitui um acto decisório, pelo que não é discricionária, devendo ser, não o tendo sido no caso subiudice, fundamentada: artigo 97.º n.º 1, alínea b) e n.º 5 do CPP.

I. O montante da quantia fixada pelo Tribunal deve ser graduado em função da gravidade das imputações feitas, da intensidade e reiteração do dolo e das consequências para os demais sujeitos processuais visados, mas da decisão recorrida a especificação dos respectivos motivos de facto e de direito inexiste.

J. A decisão em crise não especifica quaisquer factos que, no entender do Tribunal a quo, conduziram a que o mesmo verificasse estar preenchido o conceito técnico jurídico de utilização abusiva do processo, nem da mesma constam, ainda que de forma concisa ou por remissão, os motivos de facto e de direito que a fundamentam.

Nestes termos, nos mais de Direito e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser julgada procedente o presente recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão de condenação, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.


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            Em 20 de Outubro de 2015 a Mma. Juíza de instrução proferiu o seguinte despacho:

            Compulsados os presentes autos, constata-se que o despacho de fls. 84 enferma de lapso de escrita ao referir B..., quando, efectivamente, se pretendia referir, A... SA.

Assim sendo, determina-se a rectificação no lugar próprio – cfr. art. 380, nºs 1, al. a) e 3 do CP Penal.

Notifique.


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A este despacho reagiu a recorrente, por requerimento de 6 de Novembro de 2015, onde veio dizer que o despacho recorrido não enfermava de lapso de escrita mas de erro manifesto na identificação de quem denunciou que, como tal, devia ser assumido e tratado e, cautelarmente, renovava, já sem a menção ao erro, atenta a sua rectificação, da identificação de denunciante, o recurso interposto.

Nesta decorrência, apresentou nova motivação de recurso, no termo da qual, formulou as seguintes conclusões:

 A. A decisão proferida a fls. 84 dos autos (com a referência processual n.º 26319786), rectificada por decisão proferida a fls. dos autos (com a referência processual n.º 26644586), nos termos das quais o Tribunal a quo decide «Considerando que se verificou, por parte de quem denunciou, uma utilização abusiva do processo, ao abrigo do disposto no art, 277, n. 5, do C. P. Penal, condena-se o queixoso A..., SA no pagamento da quantia de 7 UCS.», deve ser revogada.

B. Ao proferir a decisão subiudice, o Tribunal a quo violou as seguintes normas: o artigo 277.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, o artigo 32.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, o artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do CPP, e o artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, ex vi artigo 97.º, n.º 1, alínea b) do CPP.

C. O Tribunal a quo concluiu, genericamente, «que se verificou (…) uma utilização abusiva do processo», socorrendo-se daquele conceito técnico-jurídico e invocando o artigo 277,º, n.º 5 do CPP, para, sem mais, sequer sem audição da denunciante, condenar no montante em que condenou: 7 UCS.

D. A condenação prevista no artigo 277.º, n.º 5 do CPP não é automática.

E. Antes de decidir condenar por uma utilização abusiva do processo, o Tribunal a quo devia ter ordenado a notificação da denunciante para o exercício do contraditório, o que não fez, violando o artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do CPP.

F. A decisão de condenação prevista no artigo 277.º, n.º 5 do (PP constitui um acto decisório, pelo que não é discricionária, devendo ser fundamentada, não o tendo sido no caso subiudice – cfr. artigo 97.º n,º 1, alínea b) e n.º 5 do CPP.

G. O montante da quantia fixada pelo Tribunal deve ser graduado em função da gravidade das imputações feitas, da intensidade e reiteração do dolo e das consequências para os demais sujeitos processuais visados, mas da decisão recorrida a especificação dos respectivos motivos de facto e de direito inexiste.

H. A decisão em crise não especifica quaisquer factos que, no entender do Tribunal a quo, conduziram a que o mesmo verificasse estar preenchido o conceito técnico jurídico de utilização abusiva do processo, nem da mesma constam, ainda que de forma concisa ou por remissão, os motivos de facto e de direito que a fundamentam.

I. O Tribunal a quo não aprecia os factos que valoriza para aferir da medida da culpa de quem condena por utilização abusiva do processo.

J. O que a denunciante bem sabe é que o denunciado aterro foi realizado efectivamente no lote de terreno correspondente ao lote 169, propriedade da denunciante e cuja titularidade não mereceu qualquer dúvida ao Ministério Público.

K. Somente a partir de 31 de Julho de 2015, ou seja, mais de dois meses depois de proferido, em 14 de Maio de 2015, o despacho de arquivamento que, inusitadamente, dá por assente ter sido realizado o denunciado aterro no lote de terreno 168, é que data a deliberação da Câmara Municipal do Fundão, de "aprovação da alteração da operação de loteamento" e é, em 19 de Agosto de 2015, emitido o alvará de "Operação Urbanística promovida peja Administração Pública - Aditamento li isenção de licença ou autorização n.º 1/06" – conforme Doc. n.º 1 e Doc. n.º 2 que se juntam e se têm aqui por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos –, pelos quais o lote de terreno 168 sofre a alteração de composição (nomeadamente ao nível da área) que faz com que o aterro que foi efectivamente, realizado no lote de terreno 169 passe, fruto daquela deliberação, a observar-se no lote de terreno 168.

L. Nem aquando da denúncia nem aquando do despacho de arquivamento foi praticado algum acto administrativo (válido ou inválido) que haja alterado a operação urbanística n.º 169, onde está integrado o lote urbano 169 de que a denunciante é proprietária.          

M. O Ministério Público não pode concluir como conclui em 14 de Maio de 2015, no despacho de arquivamento proferido, «(…) que o aterro se situava apenas no atual lote 168 (…)», nem o Tribunal a quo pode seguir, acriticamente, tal conclusão, quando, na realidade, dos documentos ora juntos e supervenientes àquela data, o actual lote 168 só o é, pelo menos, desde 31 de Julho de 2015, data da aprovação da alteração da operação de loteamento que a denunciante, também Requerente, entretanto, reclama ver suspensa – conforme Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4 que se juntam e se têm aqui por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.

Nestes termos, nos mais de Direito, deve ser julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão de condenação de fls. 84 dos autos, rectificada por decisão de fls. dos autos, assim se fazendo e firmando a costumada JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1. Não existe uma condenação em pessoa diferente da denunciada;

2. Foi cometida uma irregularidade dado que a Meritíssima Juíza não determinou a notificação da recorrente para se pronunciar sobre o requerido pelo Ministério Público, isto é, exercer o contraditório relativamente à aplicação do nº do artigo 277º do Código de Processo Penal, para assim poder exprimir a sua defesa;

3. Todavia, a recorrente não veio arguir aquela irregularidade em tempo útil, ou seja, no prazo de três dias a que alude o nº 1 do artigo 123º do Código de Processo Penal, apenas o fazendo em sede de recurso (em 06-11-2015), já muito para além daquele prazo.

4. Assim, mostra-se sanada aquela irregularidade.

Face ao exposto, negando-se provimento ao recurso, se fará JUSTIÇA.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de ter sido violado o princípio do contraditório e de a decisão recorrida carecer de falta de fundamentação, com a consequente revogação do despacho em crise.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que,a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

As vicissitudes ocorridas no presente recurso, supra descritas, impõe que, previamente, se deixem esclarecidos alguns pontos de sombra que nele, existem.

Não se suscitam dúvidas nos autos quanto a ter a qualidade de ofendida a sociedade A..., SA., quanto a ter a denúncia sido apresentada por C.... (cfr. fls. 2 e 3) e quanto a ter a pretensão do exercício do procedimento criminal sido declarada por B..., na qualidade de legal representante da ofendida (cfr. fls. 22 a 23).

No despacho recorrido, antes da rectificação operada, foi condenado o cidadão B... que, pelas razões expostas, se não confunde com a sociedade que representa. Por isso, a rectificação operada pelo despacho de 20 de Outubro de 2015, ainda que visasse a correcção de um erro – no caso, de um erro de direito – traduziu-se numa modificação essencial do decidido pois, onde antes se condenava um, passou a condenar-se outra.

Sucede que deste despacho não foi interposto recurso e por isso, o seu trânsito formou caso julgado, o que significa que a pessoa jurídica condenada no despacho recorrido passou a ser a recorrente [o que, por outro lado, veio assegurar a sua legitimidade para recorrer].

Deste modo, concluiu-se – sem necessidade de maiores considerações – que a ‘segunda motivação’ não pode ser atendida, por não ser processualmente admissível.

Assim, atentas as primitivas conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A violação do princípio do contraditório;

- A falta de fundamentação do despacho recorrido.


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            Da violação do princípio do contraditório

            1. Alega a recorrente – conclusões E e F – que a condenação prevista no nº 5 do art. 277º do C. Processo Penal não é automática, antes devendo ser previamente notificado o denunciante para o exercício do contraditório, sob pena de violação do art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

            O Digno Magistrado do Ministério Público concorda com a violação apontada, mas considera-a uma irregularidade que, contudo, não foi tempestivamente invocada.

            O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, afirmando também a inobservância do contraditório, considera nula a decisão.

            Vejamos.

            Dispõem os nºs 1 e 5 do art. 277º do C. Processo Penal:

            1 – O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento.

            (…).

            5 – Nos casos previstos no n.º 1, sempre que se verificar que existiu por parte de quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa, uma utilização abusiva do processo, o tribunal condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC, sem prejuízo do apuramento de responsabilidade penal.

            A sanção prevista neste nº 5 não tem natureza penal, como claramente resulta da letra do preceito ao ressalvar, na parte final, o apuramento de eventual responsabilidade penal. Trata-se, antes de uma sanção processual, devida pela utilização abusiva do processo, de natureza idêntica, além de outras, à que, em sede de recurso, prevê o nº 3 do art. 420º do C. Processo Penal.

            Como sanção processual que é, a decisão sobre a sua aplicação, mediante promoção do Ministério Público pressupõe, naturalmente, o cumprimento do contraditório. Explicando.

           

O art. 32º da Constituição da República Portuguesa [doravante, CRP] dispõe no seu nº 5 que, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. No que respeita aos destinatários, o princípio do contraditório aqui contemplado significa, além do mais, o direito de audiência dos sujeitos processuais que possam ser afectados pela decisão, assim lhes sendo assegurado o direito de influência no desenvolvimento do processo (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 522 e ss.).

Como ensina Figueiredo Dias, o que verdadeiramente está em causa no princípio do contraditório e que o torna indispensável para o pleno e eficaz direito de defesa, é a relação entre a Pessoa e o Direito, mais particularmente, a relação entre a pessoa e o «seu» direito. O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão da justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado-de-direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do Processo como «com-participação» de todos os interessados na criação da decisão. O princípio do contraditório e/ou da audiência traduz, portanto, a existência de uma norma objectiva de condução do processo que deve que deve assegurar ao titular do direito a possibilidade de alegar as suas razões e desse influir no ‘dizer’ do direito (Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, pág, 157 e ss.).

Pois bem.

Sendo a queixosa e ora recorrente o interveniente processual, única e exclusivamente, afectado pela decisão da Mma. Juíza de instrução de a condenar no pagamento da fixada sanção processual, é evidente que o pleno exercício do seu direito de defesa implica que tivesse sido cumprido o contraditório, a fim de a mesma poder contrariar a argumentação e pretensão do Ministério Público.

Não tendo sido ouvida para tal efeito, não foi observado o princípio do contraditório. E por esta via foi a recorrente colocada numa situação de desigualdade, relativamente à decisão que veio a ser tomada e que a afectou directamente.

Por tal razão, entende-se que ao não ter sido concedida à recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre a pretensão do Ministério Público, antes de proferido o despacho recorrido, e porque a lei não comina a omissão com nulidade, foi cometida uma irregularidade (art. 118º, nº 1 do C. Processo Penal), sujeita ao regime de arguição previsto no art. 123º, nº 1 do C. Processo Penal, que a recorrente não observou.

Porém, o nº 3 do citado art. 123º permite que se ordene oficiosamente a reparação da irregularidade quando ela possa afectar o valor do cato praticado, o que é o caso.

Assim, o conhecimento oficioso da irregularidade verificada determina a invalidade do processado imediatamente após a remessa dos autos à Mma. Juíza de instrução, para apreciação da promoção do Ministério Público e dos temos subsequentes, incluindo o despacho recorrido.


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            Da falta de fundamentação do despacho recorrido

            2. Alega a recorrente – conclusões C e H – que o despacho recorrido, não sendo discricionário, deveria ter sido fundamentado, não bastando, para tanto, a conclusão genérica dele constante de que se verificou uma utilização abusiva do processo.

Tem razão a recorrente, pois que, havendo, in casu, que decidir se a sua conduta processual preenchia o conceito de utilização abusiva do processo, impunha-se que no despacho recorrido, sujeito que está ao dever de fundamentação previsto no art. 205º, nº 1 da CRP e no art. 24º, nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto) e ao princípio geral estabelecido no art. 97º, nº 5 do C. Processo Penal, tivesse sido feita a identificação da conduta tida por reprovável, ainda que por remissão para a promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, seguida da exposição, breve que fosse, do raciocínio seguido para operar a subsunção à norma do nº 5 do art. 277º do C. Processo Penal ou seja, à demonstração da conduta como processualmente abusiva.

Assim não tendo sucedido, carece o despacho de fundamentação. Sucede que, face à nulidade supra identificada e suas consequências, fica prejudicado o conhecimento desta omissão.


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II. DECISÃO.

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento. Consequentemente, decidem:

A) Reconhecer a irregularidade praticada, declarando a invalidade dos termos subsequentes à omissão verificada, incluindo, o despacho recorrido.

B) Determinar que a 1ª instância assegure o exercício do preterido direito ao contraditório, seguindo-se depois os demais termos. 


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Recurso sem tributação, atenta a sua procedência.

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Coimbra, 16 de Março de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)