Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
959/10.0TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
ERRO JUDICIÁRIO
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 1, ALÍNEA H), DO ETAF; 13º, Nº 1, DA LEI Nº 67/2007, DE 31 DE DEZEMBRO.
Sumário: I – Uma acção visando a apreciação da responsabilidade civil extracontratual de um juiz decorrente do proferimento por este, no acto de inquirição de uma testemunha, durante o julgamento de uma acção cível, de uma expressão apresentada como desprimorosa para essa testemunha (aqui demandante), refere-se à apreciação da responsabilidade civil extracontratual de um titular de um órgão do Estado (órgão de soberania tribunais).

II – A competência material para o julgamento dessa acção corresponde à jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4º, nº 1, alínea h), do ETAF.

II – Não funciona, relativamente a uma tal acção, o elemento descaracterizador da competência da jurisdição administrativa (relativamente a incidências de processos julgados na jurisdição comum), previsto na alínea a) do nº 3 do artigo 4º do ETAF, traduzido em estar em causa um “erro judiciário”.

IV – Este (o “erro judiciário”) pressupõe que o facto gerador da responsabilidade se expresse numa “decisão”, não numa afirmação lateral e desgarrada de qualquer suporte decisório.

V – A definição de erro judiciário decorre do artigo 13º, nº 1, da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro: “decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 10 de Julho de 2010[1], A… (A. e Apelante neste recurso) demandou, na jurisdição comum (correspondente ao Tribunal Judicial da Guarda), o Juiz de Direito, L… (R. e aqui Apelado), pedindo a condenação deste a satisfazer-lhe a indemnização de um cêntimo (€0,01) e a cumulativa declaração, pelo Tribunal, “da ilegalidade da conduta do R.” consubstanciada na seguinte afirmação por este proferida, dirigindo-se à A., no decurso da inquirição desta como testemunha no âmbito de uma providência cautelar julgada pelo R. no 3º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, no dia 12/03/2008: “se a minha mãe soubesse que tinha uma colega que não sabia calcular o volume da água, ia ficar muito triste”[2].

            Funda a A. este pedido numa imputação delitual ao R. [artigo 483º do Código Civil (CC)], reportada esta a danos não patrimoniais[3], atribuindo à acção o valor de €5.000,01.

            1.1. Contestou o R. invocando – e cingimos o presente relato ao que na contestação apresenta interesse face ao tema deste recurso – a incompetência material dos tribunais comuns[4].

            1.2. No articulado de réplica (fls. 46/55) – e continuamos relatar, tão-só, o que apresenta relevância para este recurso – solicitou a A. que fossem mandados “riscar” na contestação do R. “[…] os pontos 25., 26., 27., 28. (no que diz respeito à referência ao mandatário dos requerentes da providência cautelar), 47., 48., 49., 52., 53., 54., 55. e 56 […], por referirem factos que nada têm a ver com a A., apenas testemunha nomeada e ouvida pelo tribunal, e por serem também ofensivos, no seu intrínseco desinteresse absoluto quanto à discussão da causa, para com o mandatário que aqui constituiu” (transcrição de fls. 54/55).

            1.3. Finda a fase dos articulados, apreciou o Tribunal, através da Sentença de fls. 57/62 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso –, a questão da competência material suscitada pelo R., proferindo a tal respeito a seguinte decisão:
“[…]
Em face de todo o exposto e ainda ao abrigo dos artigos 102º/1 e 105º/1, ambos do CPC, julgo o presente Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer o presente litígio, sendo competentes os Tribunais Administrativos, absolvendo-se o réu da instância.
[…]”
            [transcrição de fls. 61]

            Paralelamente, nessa mesma Sentença, apreciando desta feita a questão do valor da acção, inclui-se o seguinte trecho argumentativo e decisório:
“[…]
Pelas razões acima exaradas, o pedido de declaração da ilegalidade do acto imputado ao réu não assume autonomia processual, pelo que o valor da acção deve ser fixado em função da quantia em dinheiro concretamente peticionada pela autora, em conformidade com o disposto no art. 306º/1, do CPC, ou seja, um cêntimo.
Em face do exposto e em obediência ao estatuído no art. 315º/1 e 2, do CPC, atribuo à presente acção o valor de um cêntimo (€0,01).
[…]”
            [transcrição de fls. 61]

            1.4. Inconformada, interpôs a A. o presente recurso, adequadamente recebido a fls. 82[5], motivando-o a fls. 64/75, formulando em tal peça as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]
 


II – Fundamentação

            2. Relatado que está, sucintamente, o iter processual que conduziu a esta instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da presente apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante, a cuja transcrição se procedeu no item anterior, operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            Os “factos” a considerar aqui correspondem às diversas incidências processuais acima referidas, sendo que todas elas se mostram documentadas nos autos.

            Trata-se, assim, de controlar – e este constitui o primeiro fundamento do recurso (a)a competência material da jurisdição comum, no confronto com a jurisdição administrativa, face a uma acção com a configuração (pedido e causa de pedir) apresentada por esta, designadamente quanto à asserção, presente na decisão apelada, de estar em causa a situação prevista na alínea h) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.

            Subsequentemente – e trata-se do segundo fundamento do recurso (b) –, haverá que apreciar a pretensão da Apelante de serem mandados riscar (no sentido de suprimidos do processo) amplos trechos do articulado de defesa do R. Enquanto fundamento do presente recurso, esta questão é configurada pela Apelante como nulidade da sentença por omissão de pronúncia (artigo 668º, nº 1, alínea d) do CPC); esta questão foi suscitada – e correctamente suscitada, quanto ao tempo e à forma – na motivação do recurso (artigo 668º, nº 4 do CPC) e foi apreciada pelo Tribunal a quo – e bem – no despacho de admissão deste mesmo recurso (artigo 670º, nº 5 do CPC).

            Finalmente – e constituirá este o terceiro e derradeiro fundamento do recurso (c) –, haverá que controlar o valor fixado à acção (€0,01) na instância precedente.

            2.1. (a) Começando pela questão da competência material da jurisdição comum – a decisão apelada julgou verificada a excepção de incompetência material (absoluta) desta jurisdição no confronto com a jurisdição correspondente aos Tribunais administrativos, absolvendo o R. da instância –, começando, dizíamos, pela questão da competência material equacionada, anotaremos, preambularmente, que a competência de um tribunal (a parcela ou medida de jurisdição que cabe a cada tribunal, face aos diversos elementos definidores desta), “[…] não depende […] da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão[6].

            Ora, tendo isto presente, constatamos estar em causa nesta acção, o desencadear de uma situação de imputação delitual ao R., reportada a danos não patrimoniais (artigo 496º do CC), sustentando-se tal imputação, enquanto violação ilícita de um direito da A. (artigo 483º, nº 1 do CC), em factos – para sermos precisos, num determinado facto – praticados(o) pelo R., enquanto magistrado judicial, no decurso de uma diligência judicial por ele presidida, quando decorria o depoimento da aqui A., aí prestado na qualidade de testemunha[7]. O facto ilícito traduziu-se, portanto – pressupondo a alegação da A. –, numa frase, alegadamente dirigida pelo R. (enquanto juiz) à A. (enquanto testemunha), frase que a A. qualifica de desprimorosa e ofensiva da sua personalidade moral (artigo 70º, nº 1 do CC).

            2.1.1. (a) Aprofundando – no quadro argumentativo referido à caracterização da competência material – a compreensão do pedido e da causa de pedir formulados pela A., diremos, tendo presente a pretendida dicotomia, introduzida pela A. no pedido, entre a fixação de uma indemnização por danos não patrimoniais e a (expressa e autónoma) declaração de ilegalidade do comportamento do R., que nos situamos, quanto a esta segunda consequência visada pela A., no quadro geral dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, aqui atribuída ao R. Trata-se com efeito, através da autonomização desse pedido, de destacar ou realçar o pressuposto da imputação delitual correspondente à ilicitude[8], traduzindo-se esta, aqui definida pela positiva, numa violação de direitos subjectivos e de normas de protecção referida (a violação) a alguém que não o agente[9].

            O destaque que a A. pretendeu – pretende – conferir a este elemento foi desconsiderado pela decisão apelada, precisamente com base no argumento de estar em causa um simples pressuposto da pretendida responsabilização civil, que sempre estaria envolvido na afirmação desta, enquanto pretensão fulcral correspondente ao pedido da A.

            Sendo descritivamente exacta esta caracterização feita pela decisão recorrida, não deixamos de ver no pedido configurado pela A., nessa pretensão de destacar, no pronunciamento do Tribunal, o juízo de ilicitude, uma emanação da “tutela geral da personalidade”, conferida pelo nº 2 do artigo 70º do CC. Com efeito, estabelecendo este segmento da norma que, “[i]ndependentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”, quer-nos parecer que o elemento adicional de plasticidade referido à violação concreta aqui introduzido, poderá obter satisfação – dentro da lógica argumentativa da A. – através do destacar, expresso numa solene afirmação judicial, de um pressuposto da responsabilidade civil com as características do juízo de ilicitude.

            É neste sentido que compreendemos e aceitamos, numa mera análise de adequação jurídica abstracta deste elemento da pretensão da A. (sem que isto implique aqui, minimamente, qualquer valoração da situação como preenchendo esse juízo de ilicitude), o destacar, em termos de pronunciamento judicial visado pelo hipotético triunfo da acção, do (alegado) elemento de ilicitude do comportamento do R.

            Trata-se, pois, de uma pretensão cujo destaque no pronunciamento judicial visado pela A. tem sentido, pressupondo, como ponto de partida, a argumentação introduzida por quem demanda, como deve ocorrer na aferição dos pressupostos processuais.

            Vale esta caracterização do pedido (dos pedidos) da A. para aceitar, como ponto de partida, a dicotomia expressa na petição inicial: indemnização por danos não patrimoniais, associada ao destacar do juízo de ilicitude referido ao “facto” apresentado como desencadeador do dano[10].

            2.1.2. (a) Assente qual a estrutura do pedido, importará aferir, em função dessa estrutura – rectius, pressupondo-a –, a qual das jurisdições aqui consideradas (a comum ou a administrativa) cabe o tratamento de um pedido com estas características, por referência aos critérios materiais – sejam eles positivos ou residuais – de atribuição desse tipo de competência.

            Está aqui em causa, como antes se referiu, independentemente da questão do destaque do juízo de ilicitude também visado pelo pedido, uma acção referida ao desencadear de uma imputação delitual (responsabilidade civil extracontratual) ao R., sendo relevante a consideração da circunstância, desde logo afirmada pela A., de a actuação (do R.) que é apresentada como constitutiva de um facto ilícito ter ocorrido quando este se encontrava investido na função de julgar no quadro da actuação do órgão do Estado (“órgão de soberania”) correspondente àquele concreto Tribunal[11].

            Ora, tendo presente este aspecto, sendo evidente estar em causa uma questão atinente ao desencadear de responsabilidade civil extracontratual (invocação de danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela A. como causa de um comportamento ilícito de outrem), esta pretendida imputação decorre – nos termos em que a A. enuncia o facto gerador dessa responsabilidade – do exercício da função jurisdicional subjectivamente protagonizada, naquelas concretas circunstâncias de tempo e lugar, pelo R. enquanto titular do órgão do Estado (“órgão de soberania”) respectivo: o magistrado judicial que, como tal (como titular desse órgão), actuava naquelas circunstâncias.

E isto – a relevância desta caracterização funcional do agente da responsabilidade civil enquanto factor determinante da competência material – não deixa de valer nas situações em que, como aqui pretende a A., esse exercício funcional é apresentado como tributário de um uso desviado ou impróprio da função que define a actuação do agente (aqui a função de julgar[12]).

Caracterizada a actuação do R. nestes termos, interessam-nos (directa e indirectamente), quanto à definição positiva da competência dos tribunais administrativos face a essa actuação, os seguintes segmentos da norma do ETAF que define o âmbito dessa jurisdição:

Artigo 4º
(Âmbito da jurisdição)
1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa […] a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
---------------------------------------------------------------------------------------
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
---------------------------------------------------------------------------------------
3 – Ficam […] excluídas do âmbito da jurisdição administrativa […]:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
--------------------------------------------------------------------------------------.

            A articulação destes elementos referentes à determinação positiva da competência material da jurisdição administrativa é caracterizada por Mário Aroso de Almeida nos seguintes termos:
“[…]
[O] artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF estende expressamente a competência dos tribunais administrativos à apreciação das questões de responsabilidade emergentes do exercício da função política e legislativa, fazendo ainda referência à responsabilidade resultante do funcionamento da administração da justiça – com exclusão, neste último caso, acrescenta o artigo 4º, nº 3, alínea a), das questões de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das acções de regresso contra magistrados que daí decorram.
[…]
Embora com a já referida ressalva introduzida pelo artigo 4º, nº 3, alínea a), os tribunais administrativos também julgam, segundo o disposto no artigo 4º, nº 1, alínea h), as acções de responsabilidade movidas contra «titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos», o que compreende as acções de regresso que contra eles sejam intentadas pelas pessoas colectivas de direito público ao serviço das quais desenvolvam a sua actividade.  
[…]”[13]
            [sublinhado acrescentado]

            Esta mesma questão de índole processual é caracterizada por José Manuel M. Cardoso da Costa, nos seguintes termos:
“[…]
Cumpre acrescentar uma nota […] sobre o modo como o novo [ETAF] veio entretanto distribuir a jurisdição para o conhecimento e efectivação da responsabilidade em causa (excepto, claro, porque dessa não tinha de ocupar-se, da responsabilidade civil conexa com a criminal). Os termos em que o fez são os seguintes: enquanto o apuramento da responsabilidade pelos danos causados, em geral, pela administração da justiça ficou deferido, qualquer que seja a ordem jurisdicional implicada, aos tribunais administrativos, já a apreciação de acções de responsabilidade por erro judiciário, bem como das correspondentes acções de regresso contra os magistrados, foi cometida, e ficou confinada, à respectiva ordem de jurisdição (artigo 4º, nº 1, alínea g), e nº 3, alínea a) do ETAF).
[…]”[14]

            E, enfim, seguindo aqui a caracterização da mesma questão de competência feita por Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, diremos que:
“[…]
A competência da jurisdição administrativa compreende todas as acções de responsabilidade por actos e omissões da função jurisdicional que se fundem na (má) administração, no seu deficiente funcionamento, «designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável», seja qual for a jurisdição a que pertença o tribunal em causa.
Trata-se, em suma, dos danos derivados das insuficiências ou deficiências logísticas dos tribunais, dos denominados «erros de actividade», por infracção das regras processuais por que se pauta o exercício da função jurisdicional […].
[…]”[15]

            Retendo aqui o elemento de deslocalização (se quisermos, o elemento negativo) da efectivação da responsabilidade civil através da jurisdição administrativa, traduzido em estar em causa um “erro judiciário”, praticado no âmbito da função jurisdicional pelo titular desse órgão, quando esteja em causa, como aqui sucede, um tribunal pertencente a uma ordem de jurisdição diversa da administrativa (estamos, portanto, a interpretar a alínea a) do nº 3 do artigo 4º do ETAF, referida quer à alínea g) quer à alínea h) do seu nº 1), importará determinar os contornos desse elemento deslocalizador da competência dos tribunais administrativos: o “erro judiciário”.

            Ora, o “erro judiciário” corresponde, na definição constante do artigo 13º, nº 1 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, às “[…] decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”, sendo que – decorre do nº 2 da mesma norma – se exige, como pressuposto de admissibilidade do pedido indemnizatório referido ao “erro judiciário”, que a decisão respectiva haja sido revogada pelo tribunal competente[16].

            Visto isto, estando em causa um acto alegadamente praticado por um juiz no decurso de uma diligência judicial e no contexto causal induzido pelo desenvolvimento dessa diligência, sendo certo não expressar esse acto qualquer elemento decisório (não se tratou, parece-nos óbvio, de uma decisão jurisdicional apta a produzir caso julgado[17]) que pudéssemos caracterizar como “erro judiciário”, vale tudo isto, dizíamos, para alicerçar a asserção de estar em causa, na hipótese vertente, uma atribuição de responsabilidade aquiliana dirigida à actuação do titular do órgão jurisdicional, que teve expressão no quadro de funcionamento desse órgão. Estamos, pois – e é o que aqui importa fixar –, no quadro da competência material da jurisdição administrativa, nos termos em que esta decorre da alínea h) do nº 1 do artigo 4º do ETAF.

            2.1.2.1. (a) Resolvida a questão da competência material – atribui-se esta aos tribunais administrativos, confirmando nesse elemento a decisão apelada –, apenas se sublinhará, tendo em vista o suposto argumento de inconstitucionalidade (dos artigos 7º e 12º da Lei nº 67/2007) pretendido introduzir pela A. a propósito da questão da competência, nos artigos 23º e 24º do respectivo articulado inicial (fls. 7), não estar aqui em causa, no quadro da determinação do tribunal competente, qualquer aplicação desses artigos 7º e 12º (que nada de relevante aportam à questão da competência material de uma ou outra das jurisdições convocadas), sendo que a garantia constitucional de acesso à tutela jurisdicional efectiva, plasmada no nº 1 do artigo 20º da Constituição, não deixa de estar presente e de funcionar – funciona, aliás, efectivamente – tanto através da actividade dos tribunais administrativos, para a qual a Apelante é aqui encaminhada, como funciona através da actividade dos tribunais comuns.

            2.1.3. (a) Improcede, pois, o primeiro fundamento do recurso referido à questão da competência material da jurisdição administrativa, sendo que esta Relação confirmará adiante, o entendimento, correcto e particularmente bem fundamentado, da primeira instância a este respeito.

            2.2. (b) E o mesmo sucederá quanto à inaceitável pretensão da Apelante de que sejam mandados riscar determinados trechos do articulado de contestação do R., referindo-se todos esses trechos – daí a sua total pertinência e relevância para o objecto do presente litígio –, ao relato pelo R., assente na sua perspectiva, dos factos antecedentes, concomitantes e posteriores ao facto directamente convocado pela A., no quadro argumentativo de defesa do R., através do fornecimento de contexto – na perspectiva do R., o verdadeiro contexto – à situação relatada pela A.

            Aliás, porque o aqui Mandatário da A. (irmão desta) teve intervenção na anterior acção, na qual teria ocorrido o episódio aqui invocado por ela (teve intervenção aí como Mandatário dos seus pais, enquanto Requerentes do procedimento cautelar), prendem-se todas as referências ao aqui Mandatário da A. com a exposição, na perspectiva do R., do particular contexto situacional convocado pela presente acção.

            Expressam, pois, todos os trechos visados pela pretensão supressora da Apelante, o exercício do direito de defesa pelo R. demandado, sendo que este direito de se defender – designadamente sem sujeição a qualquer espécie de “censura prévia” ou a posteriori pelo tribunal – não deixa de se referir à necessária garantia constitucional de um processo equitativo (artigo 20º, nº 4 da Constituição).

            Seja como for, tendo presente o contexto decisório de actuação da decisão recorrida (que se esgota na afirmação da incompetência material da jurisdição comum), compreende-se, e nessa medida não deixa aqui de se confirmar, o que foi indicado pela Exma. Juíza a quo na primeira parte do despacho de admissão do recurso a fls. 80 (referência no sistema Citius 2189465), quanto à inexistência de qualquer omissão de pronúncia.

            Improcede, pois, o recurso nesta particular dimensão.

            2.3. (c) E resta-nos apreciar o terceiro fundamento do recurso acima enunciado, referido à fixação do valor da acção.

            Interessa aqui, como antes se adiantou, a aceitação do destaque decisório pretendido conferir ao juízo de ilicitude referido ao comportamento do R. (item 2.1.1. (a), supra). Esta circunstância conduz à insuficiência da aferição do valor da acção pela contabilização em exclusivo da quantia simbólica correspondente ao pedido indemnizatório, havendo que fazer repercutir nesse valor o destaque (a cumulação) de um elemento de difícil quantificação como seja o juízo de ilicitude reportado ao acto apresentado como gerador da imputação delitual.

            Ora, tendo presentes estas condicionantes, entendemos que o valor proposto pela Apelante (€5.000,01, correspondentes à ultrapassagem em €0,01 da alçada da 1ª instância[18]) acaba por expressar uma adequada e proporcional repercussão no valor da entidade dos pedidos formulados, no quadro da procura de um equivalente pecuniário correspondente à utilidade global da causa.

            Haverá, pois, que fixar à acção esse valor.

            2.4. Aqui chegados, percorridos que estão os três fundamentos do recurso, resta-nos formular decisoriamente o resultado dessa apreciação, indicando antes, em sumário imposto pelo artigo 713º, nº 7 do CPC, os traços essenciais desse percurso:
I – Uma acção visando a apreciação da responsabilidade civil extracontratual de um juiz decorrente do proferimento por este, no acto de inquirição de uma testemunha, durante o julgamento de uma acção cível, de uma expressão apresentada como desprimorosa para essa testemunha (aqui demandante), refere-se à apreciação da responsabilidade civil extracontratual de um titular de um órgão do Estado (órgão de soberania tribunais);
II – A competência material para o julgamento dessa acção corresponde à jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4º, nº 1, alínea h) do ETAF;
III – Não funciona, relativamente a uma tal acção, o elemento descaracterizador da competência da jurisdição administrativa (relativamente a incidências de processos julgados na jurisdição comum), previsto na alínea a) do nº 3 do artigo 4º do ETAF, traduzido em estar em causa um “erro judiciário”;
IV – Este (o “erro judiciário”) pressupõe que o facto gerador da responsabilidade se expresse numa “decisão”, não numa afirmação lateral e desgarrada de qualquer suporte decisório;
V – A definição de erro judiciário decorre do artigo 13º, nº 1 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro: “decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.


III – Decisão

            3. Assim, repercutindo as antecedentes considerações na decisão do recurso, julga-se este improcedente, no que tange à questão da competência da jurisdição administrativa e ao constante do despacho de fls. 81 (inexistência da nulidade de omissão de pronúncia), confirmando-se essas decisões.

            Fixa-se à acção, todavia – e nesta parte o recurso procede –, o valor de €5.000,01.

            Custas em ambas as instâncias pela Apelante, reportadas apenas a 2/3 do que corresponde ao valor ora fixado à acção.

J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Data esta que aqui se indica por determinar a aplicação ao presente recurso do regime processual geral (reforma dos recursos) introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, sempre que seja necessário convocar na subsequente exposição alguma norma do Código de Processo Civil cujo texto tenha sido alterado pelo referido DL 303/2007, sê-lo-á na redacção introduzida por este último Diploma.
[2] Este episódio é contado pela A. da seguinte forma:
“[…]

1. No âmbito do processo n.º 2735/06.5TBGRD, do 3.º Juízo desse Tribunal (renumerado com o n.º 1279/08.5TBGRD-A), ocorreu a Audiência de Discussão e Julgamento, pertinente ao pedido cautelar apresentado pelos pais da A. e em que esta foi ouvida como testemunha da parte.

2. Durante a sessão do dia 12/03/2008, da parte da manhã, quando prestava depoimento, foi interrompida a A. pelo R.; e perguntou-lhe este se sabia calcular um volume de água, ao mesmo tempo que referia a respectiva fórmula e apresentou um resultado.

3. O R. sabia que a A. era professora e foi por isso mesmo que lhe perguntou logo a seguir – «é professora de quê?».

4. Perante a resposta, de a depoente ser professora do primeiro ciclo, disse o R., alto e de bom som, para que pudesse ser ouvido pelo público presente, e conseguindo-o, o seguinte:

- «Se a minha mãe soubesse que tinha uma colega que não sabia calcular o volume da água, ia ficar muito triste».

5. O R. quis desmerecer a A. na consideração devida por todos os outros, fazendo-a passar, primeiro, por ignorante; depois, por incompetente e exemplo negativo do professorado.

[…]”

            [transcrição de fls. 3]
[3] Qualificando o comportamento que imputa ao R., tendo presente a qualidade funcional na qual terá actuado, acrescenta a A. no articulado inicial:
“[…]

13. […] como acto particular, não censurável do ponto de vista da responsabilidade do juiz, cai no domínio da responsabilização do R. enquanto particular, que o não deixa de ser, nunca, mesmo ao apresentar-se-nos também com as vestes judiciais.

14. Não estamos, pois, perante um acto da função (ou acto particular repercutível no exercício da magistratura), mas, sim, perante um facto por de fora (todavia coevo) do exercício profissional, estranho ao perfil dos actos (directos ou indirectos) dos magistrados judiciais.

[…]”

            [transcrição de fls. 5]
[4] Disse a tal respeito no respectivo articulado:
“[…]
3. O referido «comentário» foi proferido com a beca vestida e na cadeira do titular de órgão de soberania.
[…]
5. Logo, é manifesto que o ora R. não pode ser demandado directamente pela A. num tribunal judicial.
6. Acresce que, e em caso de se sentir lesada por um acto de um titular de órgão de soberania sempre que teria que deduzir tal pedido junto do tribunal administrativo territorialmente competente (cfr. artigo 4º, nº 1, alínea h) do ETAF).
7. Posto isto, tal situação determina a incompetência material dos tribunais judiciais (cfr. artigo 66º do CPC).
[…]”
                [transcrição de fls. 23]
[5] Tal adequação resulta, tendo presente o valor fixado à acção (v. o artigo 678º, nº 1 do Código de ProcessoCivil), do disposto nas alíneas a) e b) do nº 2 do mesmo artigo 678º.
[6] Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 91.
[7] A intervenção do R. nessa diligência processual, respeitante à recolha de prova, processava-se, pois, nos termos do artigo 638º do CPC, ex vi do disposto no artigo 463º, nº 1 do mesmo Código (julgava-se, então, um procedimento cautelar comum).
[8] Utilizamos aqui a orientação descritiva que concretiza esses pressupostos na existência de um “facto”, referindo-lhe um elemento de “ilicitude”, formulando sobre ele um juízo de “culpa”, determinando a existência de um “dano” e, enfim, ligando estes elementos por um “nexo de causalidade” (v. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Coimbra, 2010, pp. 435/550).
[9] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, cit., p. 444.
[10] A questão apreciada neste item apresentará relevância para a determinação do valor da acção.
[11] “A Constituição não define o que são tribunais (tal como não define Assembleia da República e Governo), cujo conceito tem, por isso, de procurar-se em conexão com o de «função jurisdicional» (nº 2 [do artigo 202º da Constituição]) e com o de «juiz» (artigo 216º [da Constituição]). São assim tribunais os órgãos do Estado («órgãos de soberania»), dotados de independência (artigo 203º), em que um ou mais juízes procedem à administração da justiça” (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4º ed., Coimbra, 2010, p. 506).
[12] É que esta – a função de julgar – expressa-se tanto no julgamento enquanto resultado, como no julgamento enquanto iter conducente a esse resultado e não é descaracterizada nesse conteúdo funcional pela existência de desvalores nesse iter.
[13] O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2003, pp. 85/86.
[14] “Sobre o novo regime da responsabilidade civil do Estado por actos da função judicial”, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138º (Janeiro-Fevereiro, 2009), nº 3954, pp. 159/160.
[15] Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, Coimbra, 2006, p. 60.
[16] Referem a este propósito Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira:
“[…]
Diversamente, quando a responsabilidade por acto da função jurisdicional se fundar em erro judiciário, em erro evidente na determinação, interpretação ou aplicação dos factos ou do direito – ou, numa outra fórmula, quando respeitar aos danos decorrentes de decisões jurisdicionais «manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto» –, a jurisdição administrativa só é competente se tal erro provier de um tribunal administrativo (alínea a) do artigo 4º, nº 3 do ETAF, a contrario).
[…]” (Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., p. 60).
[17] Trata-se de um comentário lateral, desgarrado de qualquer contexto decisório, sem qualquer relevância no andamento do processo aí em causa, embora o aparecimento desse comentário ocorra como incidência do andamento desse processo.
[18] Artigo 24º, nº 1 da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.