Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
500/12.0TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
ACÇÃO EXECUTIVA
PRESSUPOSTOS
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 06/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 281º Nº 5 DO CPC
Sumário: I – Ainda que, no domínio do processo executivo, a deserção da instância opere automaticamente – independentemente, portanto, de qualquer decisão judicial que a declare – ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; para que tal deserção se tenha por verificada, será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes, sendo irrelevante, para esse efeito, a falta de impulso processual que apenas é imputável ao agente de execução.

II – Estando o processo a aguardar, há mais de seis meses, a realização de diligências que são da competência do agente de execução, não poderá concluir-se, sem mais, que a falta de movimento processual é imputável a negligência do exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para este o ónus de reagir e tomar posição sobre a inércia e o incumprimento do agente de execução.

III – Assim, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal significativo que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os deveres inerentes ao cargo, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir desse momento se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

O A..., S.A. instaurou – em 05/12/2012 – processo de execução contra B... , Ldª, C... e D... , melhor identificados nos autos, pedindo o pagamento da quantia de 60.120,88€ e indicando para penhora os bens móveis que constituem o recheio das instalações da sociedade executada e da residência dos demais Executados.

O Agente de Execução efectuou diligências no sentido de obter informações com vista à localização de bens penhoráveis, tentou proceder à citação dos Executados e, não o tendo conseguido, veio requerer a sua citação edital que foi ordenada por despacho em 07/10/2013.

Em Julho de 2015, o Agente de Execução fez consulta à Segurança Social e, em 18/01/2016, foi notificado pelo Tribunal para informar o estado das diligências.

O Sr. Agente de Execução nada disse na sequência dessa notificação e em 24/03/2016 o oficial de justiça elaborou cota com o seguinte teor:

Em 24-03-2016, constata-se que os autos se encontram a aguardar impulso processual há mais de seis meses. assim nos termos do artº 277º, al. c) e artº 281º, nº 5 ambos do C.P.C., extingue-se a instância executiva.

Tendo sido paga e arrecadada pelo I.G.F. a taxa de justiça devida nos autos, e não havendo lugar ao pagamento de encargos nos termos do artº 29º, nº 1, al. c) da Lei nº 7/2012 de 13 de Fevereiro, não há lugar à elaboração da conta”.

Notificado dessa cota, o Exequente veio reclamar, dizendo que continuava a aguardar que o Solicitador de Execução o notificasse do resultado da penhora que havia requerido no requerimento executivo e, dizendo que o Solicitador de Execução nem sequer havia cumprido o disposto no artigo 754º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, requereu que - ouvido, se assim se considerasse necessário, o Solicitador de Execução designado – fosse ordenado o normal e regular prosseguimento da presente execução e a notificação do Solicitador de Execução para dar cumprimento aos preceitos que a lei lhe impõe e determina, designadamente a notificação ao Exequente das diligências que tem levado a efeito, ou que não realizou, para a implementação da penhora que requerida foi e/ou de outras que se justifique.

Na sequência desse facto, foi proferido despacho com o seguinte teor:

Reclamação da deserção da instância: Veio o exequente reclamar da deserção da instância, verificada por cota datada de 24.3.2016, alegando, para o efeito e síntese, que se encontra a aguardar que o sr. AE localize bens penhoráveis, nomeadamente os que indicou no requerimento executivo) e que não foi cumprido o disposto no art. 754º, n.º 1, al. a).

Os presentes autos executivos foram instaurados em 5.12.2012. A última comunicação efectuada pelo AE data de 8.7.2015, dando conta de “consulta à Segurança Social”. E já desde 13.6.2014 que os únicos actos praticados pelo sr. AE eram de pesquisa de bens penhoráveis.

Desde então e até à notificação da cota supra referida que o exequente nada requereu (nomeadamente quanto ao comportamento do AE).

Ora, verificando que os autos estiverem sem qualquer movimentação durante bem mais de seis meses, não pode concluir-se de outra forma que não seja pela negligência do exequente (em última linha, dado que que lhe cabe reagir contra eventuais paragens nas diligências executivas não podendo ficar a aguardar, indefinidamente, por comunicações do AE, sendo-lhe exigível uma atitude activa na condução e acompanhamento do processo, desde logo pelo cumprimento deste no que às comunicações aos autos respeita). Além do mais, já há muito decorreu o prazo de 3 meses previsto no art. 750º (extinção por insuficiência de bens) sem que nada tenha sido requerido para obstar a tal, pelo que confirmo o acto da secretaria e julgo deserta a presente instância – art. 281º, n.º 1 e 5, do nCPC.

Notifique”.

Discordando dessa decisão, o Exequente veio interpor o presente recurso, concluindo nos seguintes termos:

Em conclusão, portanto, por violação do disposto no artigo 2º, nº 1, do disposto no artigo 754º nº 1, alínea a), e igualmente por violação do disposto nos nºs 1 e 5 do artigo 281º todos do Código de Processo Civil, deve, atento o que dos autos consta, o presente recurso ser julgado procedente e provado e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido substituindo-se o mesmo por Acórdão que, aliás deferindo o referido a fls.-, aos 24/03/2016 pelo ora recorrido ordene o normal e regular prosseguimento da execução, nos termos que requeridos foram, desta forma se fazendo correcta e exacta interpretação e aplicação da lei.

 

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a decisão recorrida violou o disposto no art. 281º do CPC, o que se reconduz a saber se estão ou não verificados os pressupostos exigidos na aludida norma para que se considere verificada a deserção da instância.


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III.

Analisemos, então, a questão suscitada.

Dispõe o art. 281º, nº 5, do actual CPC, que “No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.

É indiscutível que, à data em que foi declarada a deserção pelo oficial de justiça, o processo evidenciava a inexistência de qualquer movimento processual há mais de seis meses.

Isso não basta, porém, para que a instância se considere deserta.

Com efeito e como decorre da disposição legal supra citada, ainda que, no domínio do processo executivo, a deserção da instância opere automaticamente – independentemente, portanto, de qualquer decisão judicial que a declare – ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; para que tal deserção se tenha por verificada, será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes.

E tão pouco bastará, para esse efeito, que o processo esteja parado por culpa do agente de execução em promover os seus termos.

Com efeito, e como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 01/12/2015[1], “…o agente de execução, sendo embora escolhido pelo exequente (e exercendo as funções em regime de profissão liberal), não tem com ele um contrato de prestação de serviços, não está no processo “como mandatário do exequente, ainda que sem representação, mas como auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente”…E, sendo esta a veste do agente de execução, a sua actuação omissiva, consistente em não andar com o processo, não se “repercute” automática e irreversivelmente sobre o exequente – sem que este seja notificado para se pronunciar sobre a paralisação processual decorrente de tal actuação omissiva – e não pode valer e ser iuris et de iure considerada como inobservância, por negligência, do ónus de impulso processual por parte do exequente”.

A inexistência de movimento processual durante um prazo igual ou superior a seis meses pode ser imputável ao próprio tribunal (porque os ulteriores termos do processo dependem de um despacho judicial que ainda não foi proferido), pode ser imputável ao agente de execução (porque o processo aguarda a prática de actos que são da sua competência) ou pode ser imputável à parte (porque é esta que tem o ónus de praticar um determinado acto sem o qual o processo não pode prosseguir). E só no último caso se pode afirmar que o processo se encontra há mais de seis meses a aguardar impulso processual por negligência da parte em promover os seus termos e que, como tal, operou, de forma automática (ao fim dos seis meses), a deserção da instância.

A inércia do agente de execução poderá determinar a sua destituição por incumprimento dos deveres inerentes às funções de que foi encarregado, mas, ainda que perdure por mais de seis meses, não será suficiente para fazer operar a deserção da instância, já que, como se referiu, essa inércia não se repercute, de forma automática e imediata, sobre o exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para a parte o ónus de reagir contra essa inércia, requerendo, designadamente, a destituição do agente de execução.    

Vejamos o que acontece no caso sub judice.

O processo aguardava a realização e concretização das diligências de penhora (penhora que o Exequente havia requerido logo no requerimento inicial) e, não havendo notícia de que o Exequente tivesse sido notificado para praticar qualquer acto do qual dependesse a realização dessa penhora, era o Agente de Execução – e não o Exequente – quem tinha o dever de impulsionar o processo e, portanto, a eventual “paragem” do processo não seria imputável ao Exequente mas sim ao Agente de Execução. Nessas circunstâncias – em que o processo apenas aguardava a realização de actos que eram da competência do Agente de Execução – o máximo que o Exequente poderia fazer, perante a falta desses actos, era acusar o incumprimento dos deveres do Agente de Execução, requerendo as providências adequadas a este propósito e, eventualmente, a sua destituição. Mas também não nos parece que deva ser imposto ao Exequente o ónus de reagir imediatamente – e independentemente de qualquer notificação que lhe tivesse sido efectuada com essa finalidade – contra qualquer paralisação do processo decorrente do incumprimento dos deveres do agente de execução em termos de concluir que, não o tendo feito e estando o processo sem qualquer movimento há mais de seis meses, se deva ter por verificada a deserção da instância por falta de impulso processual que lhe seja imputável.

Assim, ainda que o processo estivesse sem qualquer movimento processual há mais de seis meses, não existiriam razões para julgar verificada a deserção da instância, porquanto nada resulta dos autos que permita afirmar que essa circunstância se tivesse ficado a dever ao incumprimento de qualquer ónus de impulso processual que recaísse sobre o Exequente.

Diz-se na decisão recorrida que, desde a notificação do último acto praticado (consulta à Segurança Social), o Exequente nada requereu (nomeadamente quanto ao comportamento do AE), concluindo-se pela sua negligência porque, em última linha, lhe cabia reagir contra eventuais paragens nas diligências executivas não podendo ficar a aguardar, indefinidamente, por comunicações do AE, sendo-lhe exigível uma atitude activa na condução e acompanhamento do processo, desde logo pelo cumprimento deste no que às comunicações aos autos respeita, tanto mais que já havia decorrido o prazo de 3 meses previsto no art. 750º (extinção por insuficiência de bens) sem que nada tenha sido requerido para obstar a tal.

Temos, no entanto, como discutível essa afirmação.

De facto, o Exequente – que é, naturalmente, o maior interessado no rápido desfecho do processo – tem o direito de reagir contra a inércia do agente de execução, requerendo, designadamente, a sua destituição por incumprimento dos deveres do cargo em que foi investido (e essa é, na realidade, a única possibilidade colocada ao dispor do exequente, na medida em que não pode substituir-se ao agente de execução na prática dos actos que são da competência deste). Mas, tendo o direito de requerer essa destituição, dever-se-á considerar que tem também esse dever, em termos de se considerar que, não o fazendo, a falta de movimento do processo lhe é imputável a título de negligência? Parece-nos que não, até porque, a ser desse modo, seríamos confrontados com uma nova questão que se reconduziria ao facto de saber ao fim de quanto tempo o exequente ficaria obrigado a requerer aquela destituição. Deveria requerê-la ao fim de dois ou três meses? Ao fim de um ano?

Pensamos, na realidade, que o exequente apenas terá o ónus de reagir contra a inércia do agente de exequente – em termos de se concluir que, não o fazendo, a falta de movimento processual lhe é imputável – se for notificado para esse efeito.

Ou seja, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal significativo que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os deveres inerentes ao cargo, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir desse momento se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.

Não foi isso que aconteceu no caso sub judice, porquanto o Tribunal limitou-se a constatar a falta de movimento processual (depois de notificar o agente de execução para informar as diligências efectuadas) e, ao fim de seis meses, declarou deserta a instância sem que tivesse notificado o Exequente para tomar posição sobre o comportamento do agente de execução e, portanto, sem que tenha transferido para este o ónus de impulsionar o processo que, até aí, estava a cargo do Agente de execução.

E isso, a nosso ver, é insuficiente para concluir que o processo aguardava qualquer impulso processual por parte do Exequente e que, por essa razão, a falta de movimento processual era imputável a negligência da sua parte.

 

Procede, portanto, o recurso e revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da execução.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Ainda que, no domínio do processo executivo, a deserção da instância opere automaticamente – independentemente, portanto, de qualquer decisão judicial que a declare – ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; para que tal deserção se tenha por verificada, será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes, sendo irrelevante, para esse efeito, a falta de impulso processual que apenas é imputável ao agente de execução.

II – Estando o processo a aguardar, há mais de seis meses, a realização de diligências que são da competência do agente de execução, não poderá concluir-se, sem mais, que a falta de movimento processual é imputável a negligência do exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para este o ónus de reagir e tomar posição sobre a inércia e o incumprimento do agente de execução.

III – Assim, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal significativo que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os deveres inerentes ao cargo, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir desse momento se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes.


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IV.

Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento da execução.

Custas a cargo da parte vencida a final.

Notifique.

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Nunes Ribeiro

                            Helder Almeida

                    


[1] Proc. nº 2061/10.5TBCTB-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.