Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
155/13.4PBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
DEPOIMENTO INDIRECTO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 12/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 410.º, N.º 2, AL. A), E 129.º DO CPP; ART. 32.º DA CRP
Sumário: 1 - O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não deve ser confundido com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida. Com efeito, aqui, e num momento logicamente anterior, é a prova produzida que é insuficiente para suportar a decisão de facto, ali, no vício, é a decisão de facto que é insuficiente para suportar a decisão de direito.

2 - A valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer depende da observância de certos procedimentos que visam a assegurar o contraditório nos depoimentos das testemunhas.

3 - Ressalvadas as excepções previstas na parte final do nº 1 do art. 129, o depoimento indirecto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer.

4 - Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no art. 127º do C. Processo Penal, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum.

5 - Se a pessoa determinada de quem se ouviu dizer se recusou validamente a depor, não se mostra verificado o pressuposto de que depende a validade do depoimento indirecto da testemunha, o que significa que o mesmo não poderia ter fundamentado a convicção da Mma. Juíza a quo quanto ao facto provado em questão.

6 - A detecção da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, face aos termos da decisão isto é, deve resultar inequivocamente do texto da decisão que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

7 - A dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No 2º Juízo do [já extinto] Tribunal Judicial da comarca de Lamego, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática, em autoria material, de quatro crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e d), 2, 4 e 5 do C. Penal.  

Por sentença de 12 de Maio de 2014, foi o arguido condenado, pela prática de quatro crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e d) e 2 do C. Penal, na pena de 28 meses de prisão por cada um deles e, em cúmulo, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por idêntico período, com sujeição a regime de prova.

Mais foi o arguido condenado no pagamento de uma indemnização de € 500 a cada um dos quatro ofendidos.


*

            Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1ª) De toda a prova produzida, em momento algum os factos vertidos em 3, 4, 5 e 6 da matéria de facto dada como provada, ficaram clara e totalmente provados.

2ª) O Tribunal formulou a sua convicção apenas e só nas declarações da única testemunha C..., filha do arguido e, também ela, ofendida nos presentes autos.

3ª) Pelo que tal situação não pode ser desconsiderada na valoração da prova e, consequentemente, na decisão de facto.

4ª) O depoimento encontra-se registado, com início às 15h42m49s, do dia 28/04/2014 e com final às 16h00m56s, e o mesmo comprova o aqui alegado.

5ª) Ademais, o depoimento da testemunha mostra-se dúbio, confuso e orientado pelas questões que lhe iam sendo colocadas.

6ª) Os factos dados como provados no ponto 3, atendendo ao depoimento da ofendida, não é possível concluir que o arguido tenha dirigido, por diversas vezes, as seguintes expressões a B...: "puta", "estúpida", "és uma puta, vai para casa, já estás com os cornos a dormir, se andares com outro homem, eu mato-te.".

7ª) Pelo que tal facto não pode ser considerado como provado.

8ª) Também não poderia ter sido dado como provado que "estes factos ocorreram na presença dos seus filhos menores", um vez que em momento algum isso foi referido pela testemunha.

9ª) Segundo a douta sentença os factos ocorreram em data indeterminada, entre 1997 e 2013, o que só por si é demonstrativo da sua inconsistência, pois a testemunha que serve de base à prova nasceu apenas em 09/01/2001, o que vale por dizer que não se sabendo ao certo a data da ocorrência dos mesmos, não pode o depoimento ser atendido.

10ª) Porque, pelo menos os que poderiam ter ocorrido antes do seu nascimento, e até 2006, a testemunha não os poderia conhecer, não só porque ainda não tinha nascido, como também, devido à sua tenra idade não os conseguia, sequer perceber.

11ª) Com esta duvidosa fixação no tempo, é completamente impossível ao arguido defender-se das imputações que lhe são feitas, violando-se princípios fundamentais do direito processual penal e que são os princípios da contraditoriedade e da defesa.

12ª) Pelo que o resultado da sentença deveria ser o da absolvição, ao abrigo de um outro princípio, o do "in dubio pro reo".

13ª) Além do mais é importante a determinação, no tempo, da prática dos factos pois certamente alguns já teriam prescrito, nos termos do art. 118º, nº 1, al. b) do C.P..

14ª) Sendo a prescrição de conhecimento oficioso, esta deveria ser tida em conta pela Mma. Juiz "a quo" na decisão, aproveitando ao arguido.

15ª) Os factos dados como provados nos pontos 5 da douta sentença, atendendo a que a testemunha no seu depoimento, vagamente, refere algumas tentativas de agressões, não poderiam ter sido valorados.

16ª) No que concerne ao ponto 6 da douta sentença é claro do depoimento que a testemunha nada viu, apenas sabe o que lhe contaram, pelo que, nos termos do disposto no art. 129º do C.P.P., tal facto não pode ser dado como provado.

17ª) Tendo em conta o que aqui foi dito e o único depoimento não ter tido uma consistência clara, sendo que muitas vezes se mostra parcial em relação ao arguido, nunca este podia ser condenado da forma como foi) nem no número de crimes nem nas penas elevadas em que foi por cada um.

18ª) A condenação fixou cada crime em 28 meses, o que parece exagerado, atendendo ao facto de o arguido ser primário, respeitado e respeitador, como consta da douta sentença.

19ª) Ademais, considera o dolo direto, situação com a qual discordamos pois do depoimento da testemunha resulta claro que o arguido só agia da maneira de que vinha acusado quando "bebia", não ficando provado que ele se colocava nessa situação para praticar os "supostos" crimes.

20ª) Não teve pois, a Mma. Juiz na sua decisão, em consideração todos os elementos constantes do art. 71º do CP.

21ª) Portanto, a punição é exagerada, para os factos que foram dados como provados, mas que na verdade é que não o podiam ser.

22ª) Quanto à fixação da indemnização, também ela se mostra claramente exagerada, uma vez que o arguido não dispõe de quaisquer rendimentos que lhe permitam proceder ao pagamento dos valores fixados, basta ver o deferimento do apoio judiciário, junto aos autos, para se verificar isso mesmo.

23ª) Além disso, os ofendidos, também eles conhecedores da situação económica do arguido não fizeram qualquer pedido de indemnização.

Nestes termos e melhores de direito que Vossas Excelências muito doutamente suprirão, proferindo uma decisão que revogue a sentença ora recorrida e substituindo-o por outra que absolva o arguido farão a tão costumada JUSTIÇA.


*

            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando que a sentença recorrida se mostra devidamente fundamentada e que a prova produzida foi nela valorada de acordo com o princípio da livre apreciação, que não pode proceder o argumento da prescrição dos factos imputados mais antigos por se tratar de crime de execução continuada, que a medida das penas parcelares e a medida da pena única respeitam os pressupostos do art. 71º do C. Penal, e que as indemnizações fixadas são impostas por lei e o seu valor é adequado à gravidade dos factos, e concluiu pelo não provimento do recurso.

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que tendo sido determinante para a fixação dos pontos 3 a 7 dos factos provados o depoimento da ofendida C..., nascida em Janeiro de 2001, e tendo parte dos acontecimentos aí descritos ocorrido antes do seu nascimento e outros em data posterior, mas em que a depoente não teria idade para os percepcionar e recordar, a sentença recorrida padece do vício previsto no art. 410º, nº 2, a) do C. Processo Penal, por insuficiência de prova para a decisão, e ainda no sentido de que a total falta de fundamentação das condições económicas e sociais do arguido, justificadoras da sua condenação no pagamento das indemnizações, determina a nulidade da sentença, e concluiu pelo reenvio do processo para novo julgamento.

*

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

*

  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

*

*

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A prescrição parcial dos factos imputados;

- A incorrecta valoração de depoimento indirecto quanto ao ponto 6 dos factos provados;

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente aos pontos 3 a 6 dos factos provados e a violação do princípio in dubio pro reo;

- A excessiva medida da pena;

- O excessivo montante das indemnizações fixadas.

Haverá ainda que conhecer da nulidade da sentença e do vício da decisão, suscitados pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, sendo certo que se trata de questões de conhecimento oficioso.


*

            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. O arguido contraiu casamento civil, sem convenção antenupcial, com B..., em 5 de Novembro de 1997.

2. Deste casamento, nasceram D..., C... e E..., a 4/12/1999, 09/01/2001 e a 22/12/2004, respectivamente.

3. Durante a constância do casamento, em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre Novembro de 1997 e Maio de 2013, por diversas vezes, no interior da residência do casal, sita Rua (...), Lamego, o arguido, após ingerir bebidas alcoólicas em excesso, dirigiu as seguintes expressões a B...: “puta”, “vaca”, “estúpida”, “és uma puta, vai para casa, já estás com os cornos a dormir, se andares com outro homem, eu mato-te.”

4. Estes factos ocorreram na presença dos seus filhos menores.

5.Também em datas não concretamente apuradas, mas após o nascimento de cada um dos filhos e até à sua institucionalização, em Julho de 2013, o arguido desferiu nestes vários murros e bofetadas que os atingiram em diversas zonas do corpo, e com recurso a cabo de vassoura ou a cinto, de características e dimensões não concretamente determinadas, zurziu também pancadas nos seus filhos que os atingiram em diversas zonas do corpo, causando com estas condutas naqueles dores e hematomas.

6. Numa dessas ocasiões, apontou uma faca, de dimensões e características não apuradas, à sua filha menor D....

7. O arguido agiu, em todas as circunstâncias atrás descritas, com o propósito concretizado de humilhar, ofender a honra, o bom-nome e a sensibilidade da sua esposa B... e dos seus filhos e de lhes provocar sofrimento físico e psíquico, bem como receio, sendo que, praticou os factos na casa morada de família e quando era ofendida a sua esposa B... na presença dos seus filhos menores.

8. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei.

9. Do certificado do registo criminal junto aos autos resulta que o arguido não tem antecedentes criminais.

10. O arguido é tido como pessoa respeitada e respeitadora no meio em que vive e por quem o conhece.

11. A ofendida B... reside atualmente em Ferreiros e os menores encontram-se sujeitos à medida de promoção e proteção de acolhimento em instituição.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

            a) – Nessas mesmas ocasiões, de tempo e lugar, o arguido, desferiu na esposa B... diversos murros e bofetadas, que a atingiram em diversas zonas do corpo, causando-lhe dores e hematomas.

b) os factos referidos em 3, tenham ocorrido no dia 11 de Maio de 2013, pelas 1h30,

(…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127º, Código Processo Penal).

O Tribunal norteou a sua convicção, quer quanto à matéria de facto provada quer quanto à ausência de matéria de facto não provada, pelo princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço sério e empenhado para alcançar a verdade material, analisando sinteticamente os meios de prova que teve ao seu alcance e procurando harmonizá-los e confrontá-los criticamente entre si de acordo com os princípios da experiência comum, pois, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, inexistindo, portanto, quaisquer critérios pré-definidores do valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei dispuser diferentemente (juízos técnicos).

Na verdade, o princípio da livre convicção constitui regra de apreciação da prova em Direito Penal, e efetivamente, para conduzir à condenação, tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição, de harmonia com o Princípio da Inocência que enforma também o direito processual penal e tem consagração constitucional.

Note-se que, como é sabido, a verdade material absoluta é, em regra, inalcançável pela via judicial na sua tarefa de reconstrução dos factos da vida real, logrando-se apenas uma verdade processualmente válida, fundamentada e plausível, sendo que, por outro lado, o relato de um facto pelo ser humano é um processo que comporta diversas etapas, a saber: a perceção dos factos, a memorização – que, muitas vezes, é acompanhada de uma racionalização dos eventos percecionados conducente à sua distorção – e a sua reprodução, sem olvidar que o julgador não é um recetáculo acrítico dos relatos que são produzidos em audiência.

É que esta “verdade” é o resultado de um labor judicial que se baseia nas declarações de quem vivenciou os factos, mas não despreza outros contributos quiçá mais relevantes (documentos, exames periciais e a própria experiência do julgador).

A convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram, no que radica o princípio da imediação da prova.

Trata-se de um acervo de informação não-verbal e dificilmente documentável, e nem sequer traduzível por palavras, face aos meios disponíveis mas rica, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

O juiz não é uma mera caixa recetora de tudo o que a testemunha diz ou de tudo o que resulta de um documento e a sua apreciação funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos enformada por uma convicção pessoal.

Assim, a convicção do tribunal formou-se com base nas declarações da ofendida C..., filha do arguido, que apresentou em audiência de discussão uma versão dos acontecimentos que se coaduna com a narrativa da acusação.

Durante as suas declarações foi esclarecendo o Tribunal, quanto aos pontos constantes da acusação e que se deram como provados, tendo-os confirmado. É certo que algumas das datas não as soube precisar, o que atento, por um lado, o lapso temporal decorrido desde a sua ocorrência, e por outro lado, o grande número de situações ocorridas, e ainda a sua idade, é compreensível e até normal de acordo com as regras da experiência comum.

Esclareceu ainda como é que se sentiu com todos estes factos.

As declarações da C... não se afiguraram destituídas nem de lógica, nem de verosimilhança, nem denotaram qualquer contradição insanável que permitisse a conclusão legítima, razoável e objetivável no espírito do julgador no sentido que os factos não podiam ter sucedido do modo como os narrou, na verdade, afigurou-se o seu relato sereno, detalhado e natural, logrando, por isso, convencer, firmemente, o Tribunal.

Conjugado com o depoimento da testemunha F..., pessoa que conhece o arguido, pelo que depôs acerca do comportamento deste.

O arguido, B..., e D..., declararam em sede de audiência que não pretendiam prestar declarações exercendo um direito que a lei lhe concede.

Ajudaram a formar a convicção do Tribunal os documentos aos autos.

Quanto aos antecedentes criminais atendeu-se ao certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.

Pese embora a C... tenha sido a única a confirmar os factos que se deram como provados, o certo é que não nos subsistiram dúvidas em relação à prática pelo arguido dos factos constantes da acusação dados como provados, após a ponderação e análise desse meio de prova.

Na verdade, resulta das regras da experiência comum e do princípio da normalidade que, no seio de ambientes familiares degradados, os contendores perdem claramente o discernimento e o bom senso, não se recordando, muitas vezes, com rigor, dos factos por si praticados, atuando de forma pouco sensata.

Na verdade, a C... a efetuou um discurso pormenorizado, relatando com minúcia as circunstâncias acima aludidas, bem como a dinâmica factual subjacente, referindo-a, sem hesitações e com segurança.

Os factos não provados não foram objeto de prova credível da sua verificação.

(…)”.

D) A seguinte fundamentação quanto à escolha e medida da pena: 

“ (…).

Feito pela forma supra descrito o enquadramento jurídico – penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar.

O crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de dois a cinco anos, nos casos do nº 2 do artigo 152º, do CP, o que é o caso nos presentes autos, atentos os factos dados como provados.

Dispõe o artigo 70º do código penal que, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência fundamentada à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.

Como estatui o artigo 71º do Código Penal, para a determinação da medida da pena ter-se-á em conta, dentro dos limites abstractos definidos na lei, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido. Fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a sua culpa, e o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral. A pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, deve ser feita de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham.

Nesta medida, pondera-se:

Em primeiro lugar, e como circunstâncias agravantes, o grau médio da ilicitude do facto, atento ao tempo pelo qual os mesmos se prolongaram.

O dolo direto.

Como atenuantes temos a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais.

Tendo em conta estes elementos, as necessidades de prevenção geral e especial, entendemos que a conduta do arguido deverá ser sancionada com a pena de 28 meses de prisão quanto a cada um dos crimes.


*

Do Cúmulo jurídico

Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena”.

Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente – artigo 77º, nº 1 do Código Penal.

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar os 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – nº 2, do referido artigo.

Assim, o limite mínimo é de 28 meses de prisão e o limite máximo de 112 meses de prisão (tendo-se porém em consideração que foi usado nos presentes autos o disposto no artigo 16º, nº 3, do CPP).

É de frisar que, na globalidade, a ilicitude é média, o dolo é direto e o arguido é primário.

Considerando todos estes elementos, o tribunal decide condenar o arguido na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.

O Ministério Público, no respectivo despacho de acusação, fez expressa alusão à aplicação das penas acessórias contidas nos citados n.ºs 4 e 5.

Como supra se referiu nos termos do nºs 4 e 5 do referido artigo 152º, do CP podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.”

“5 – A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. (…)”.

O impacto dos números deste tipo de criminalidade e a gravidade de certos actos facilitados pela proximidade do agressor em relação à vítima, justificam uma abordagem punitiva alargada [“um tratamento holístico – transversal e integrado” nas palavras da exposição de motivos do III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2009)] que procure garantir não só a segurança, a tranquilidade e o restabelecimento das vítimas mas, também, a recuperação física e psicológica do agressor, através de adequado tratamento e acompanhamento médicos.

Temos de ter em consideração ilicitude dos factos decorrente dos diversos tipos de bens jurídicos violados, a reiteração dos comportamentos, a falta de sentido crítico sobre a sua atuação, e as especiais exigências de prevenção expressas na necessidade de tutela dos concretos bens jurídicos violados indo ao encontro das expectativas da comunidade na manutenção (se não mesmo no reforço) da vigência de tais normas [artigo 71.º, n.º 1 e 2, do Código Penal].

Arguido e ofendida B... já estão divorciados e a viverem em casas separados, os menores encontram-se em Lares de acolhimento, não existindo noticia da ocorrência de quaisquer outras situações similares, pelo que, encontra-se diminuído o espectro da reiteração das ocorrências de violência e como tal em concreto entendemos ser suficiente a aplicação da pena principal, não se justificando a aplicação das penas acessórias previstas.


*

Teremos de considerar a possibilidade de aplicação, no caso “sub judice”, do instituto da suspensão da execução da pena prevista nos artºs 50º e seguintes do Código Penal.

Como escreve o Conselheiro Maia Gonçalves, “a suspensão da execução da pena de prisão, onde se inclui agora o regime de prova como uma modalidade, é uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico que deve ser decretada nos casos em que é aplicada pena de prisão não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o julgador concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, isto é, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, talqualmente vêm apontadas no artºs 40º, nº 1.

Trata-se de um poder-dever, ou seja, de um poder vinculativo do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente ara a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos” (In “Código Penal Português”, Anotado e Comentado, 10ª Ed., 1996, pág. 231.)

Na verdade, a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo sem que isso pressuponha, como se torna claro nos referidos preceitos, que não hajam casos em que só essa pena é a adequada a satisfazer todos os fins das penas.

Como escreve o Conselheiro Robalo Cordeiro “determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstrata ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas. Pelo que competirá em última instância aos tribunais a seleção rigorosa dos delinquentes que hão-de ser sujeitos a umas e outras” ( In Escolha e Medida da Pena, “Jornadas de Direito Criminal”, CEJ, p. 237 e segs).

Dispõe o artigo 50º n.º 1 do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Referindo-se no nº 2 que se “o tribunal o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.”

Como refere o Prof. Figueiredo Dias, a maior das vantagens da pena privativa da liberdade sobre a pena de multa é a desta não quebrar a ligação do condenado aos seus meios familiar e profissional, evitando, por esta forma, um dos efeitos criminógenos da pena privativa da liberdade e impedindo, até ao limite possível, a dessocialização e a estigmatização que daquela quebra resultam – Consequências Jurídicas do Crime, pág. 120/121.

Assim, atentos os elementos constantes dos autos temos de concluir que a simples censura dos factos e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo também as necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, pelo que, efetuando um juízo de prognose favorável o tribunal decide suspender a execução da pena por igual período (nº 5 do artigo 50º, do CP).

Entende-se no entanto que esta suspensão da execução da pena de prisão deve ser acompanhada de regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão da execução, dos serviços de reinserção social.

(…)”.

E) E a seguinte fundamentação quanto à fixação da indemnização: 

“ (…).

De acordo com o artigo 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro:

“2 – Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

Por sua vez, determina o referido artigo 82º-A do Código de Processo Penal:

“1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.

2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 – A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização”.

Ao determinar a aplicação deste regime em qualquer caso, apenas se ressalvando os casos de oposição expressa por parte da vítima, o legislador afastou o pressuposto previsto na parte final do nº 1 do artigo 82º-A do Código de Processo Penal quando esteja em causa uma vítima de violência doméstica.

Assim, o Tribunal, salvo oposição expressa da vítima, deverá sempre arbitrar uma quantia a título de reparação, ainda que não se verifiquem no caso particulares exigências de proteção.

Uma vez que a ofendida não deduziu pedido de indemnização civil e não se opôs à aplicação do regime previsto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, haverá que fixar a quantia indemnizatória.

Estão em causa prejuízos não patrimoniais, que – reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, não se repercutem no património do lesado e portanto não são susceptíveis de avaliação pecuniária, embora sejam compensáveis – correspondem àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por pretium doloris ou ressarcimento tendencial de angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquicoemocional.

Apenas são atendíveis os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (conforme o artigo 496º do Código Civil) e o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção a situação económica do agente e do lesado e demais circunstâncias do caso concreto (conforme o artigo 494º ex vi artigo 496º, nº 3, ambos do Código Civil).

No presente caso releva o período de tempo em que a conduta reiterada do arguido foi mantida sobre a vítima; as consequências das condutas do arguido; as condições económicas do arguido e da vítima.

A fixação da indemnização neste caso foge aos parâmetros normais, uma vez que nos encontrámos perante uma reiteração de eventos danosos, enquanto na generalidade dos casos temos um evento danoso, ainda que com consequências que se prolongam no tempo.

Perante estes elementos, num juízo equitativo, o Tribunal julga ajustada a quantia de € 500,00 a cada um dos ofendidos, sendo certo que se justificaria montante superior caso a situação económica do arguido fosse mais favorável.

(…)”.


*

*


Da nulidade da sentença

            1. Entende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que a sentença é nula por ter omitido totalmente a fundamentação quanto às condições económicas e sociais do arguido, justificadoras da sua condenação no pagamento das indemnizações fixadas.

Vejamos.

O dever de fundamentação das decisões judiciais tem assento no art. 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Um dos seus reflexos, ao nível da lei ordinária e no que ao processo penal respeita, encontra-se no art. 374º, nº 2 do C. Processo Penal que impõe que da fundamentação da sentença penal conste a enumeração dos factos provados e não provados e uma exposição completa mas concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que formaram a convicção do tribunal.

A enumeração dos factos consiste na narração metódica dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, tendo por base os que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda os que, com relevo para a decisão, resultaram da discussão da causa.

A exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão deve conter, de modo completo e conciso, a enunciação das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal, e a análise crítica de tais provas, entendendo-se por esta, a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação dos motivos e critérios lógicos e racionais que conduziram à credibilização de certos meios de prova e à desconsideração de outros.

A exposição dos motivos de direito mais não é do que a determinação do direito aplicável aos factos e sua aplicação ao caso concreto.

Por sua vez, dispõe o art. 379º, nº 1, a) do C. Processo Penal que a sentença é nula quando não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º do mesmo código.

Posto isto.

A sentença recorrida contém todos os elementos supra enunciados, que dão corpo à sua fundamentação.

Concretamente, e no que à reparação dos prejuízos sofridos pelos ofendidos respeita, mesmo não tendo sido formulado o respectivo pedido, os pressupostos a observar continuam a ser os da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (arts. 129º do C, Penal e 483º e ss. do C. Civil) e todos eles – o facto, a ilicitude, a culpa, os danos e o nexo de causalidade entre eles e o facto – encontram tradução nos factos provados.

In casu, o que sucede, como aponta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, é que destes não consta qualquer menção às condições económicas e sociais do arguido, que considera relevantes para a quantificação da indemnização.

Admitindo, por hipótese de raciocínio, tal relevância, a patologia que então afectaria a sentença seria outra – um dos vícios da decisão – que não a sua nulidade por falta de fundamentação.

Em conclusão, a sentença recorrida não padece da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, a) do C. Processo Penal.


*

Dos vícios da decisão

2. Entende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que tendo decisão da matéria de facto, quanto aos pontos 3 a 7 dos factos provados, sido fundada no depoimento da ofendida C..., tendo esta nascido em Janeiro de 2001 e tendo parte dos acontecimentos ali descritos ocorrido, uns, antes do seu nascimento e outros, em data posterior mas em idade que não permitiria a sua percepção e/ou recordação, a sentença recorrida padece do vício previsto no art. 410º, nº 2, a) do C. Processo Penal, por insuficiência de prova para a decisão.

Por outro lado, no número que antecede, afirmámos que a patologia correspondente à ‘nulidade’ da sentença apontada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto seria enquadrável nos vícios da decisão, previstos no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal e, dando-lhe agora o nome, na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Vejamos então, se a sentença padece dos mencionados vícios.

Os vícios previstos no nº 2, do art. 410º do C. Processo Penal – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação do prova – respeitam à estrutura interna da decisão e por isso a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Aqui, na designada revista alargada, o tribunal ad quem não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova, nos termos regulados no art. 412º do C. Processo Penal – mas apenas detecta os vícios que a sentença, por si só e nos seus termos, evidencia e, não podendo saná-los, reenvia o processo para novo julgamento. 

            Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dizendo de outra forma, ocorre o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, pág. 69).

            Todavia, o vício não deve ser confundido com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida. Com efeito, aqui, e num momento logicamente anterior, é a prova produzida que é insuficiente para suportar a decisão de facto, ali, no vício, é a decisão de facto que é insuficiente para suportar a decisão de direito. 

            Do que fica dito podemos concluir que, e ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária, não será pela circunstância de a convicção da Mma. Juíza a quo quanto a determinados factos que considerou provados se ter fundado no depoimento de uma testemunha que sobre eles, objectivamente, não poderia ter conhecimento, pelo menos, directo, que a sentença proferida padece do vício em análise. Poderá existir insuficiência da prova para considerar tais factos como provados – a analisar, eventualmente, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto – mas não, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

No que respeita à segunda possibilidade de verificação do vício, sendo exacto, como vimos, que o arguido foi condenado na sentença ao pagamento de uma indemnização de € 500 ao ofendido e a cada uma das três ofendidas, e que dos factos provados da sentença não consta qualquer menção às condições económicas e sociais daquele, podemos desde logo dizer que as referidas condições sociais são irrelevantes para o fim em vista.

Por outro lado, estando em causa a reparação pelos prejuízos sofridos pelos ofendidos, sem que qualquer deles tenha efectuado o respectivo pedido de indemnização, e sendo os danos verificados apenas de natureza não patrimonial, para além da sua evidente gravidade (art. 496º, nº 1 do C. Civil), há que considerar que o único critério legal para a sua fixação é a equidade e que, tendo sido causados por conduta dolosa do arguido, o seu grau de culpabilidade torna irrelevante a sua condição económica (cfr. arts. 494º e 496º, nº 3 do C. Civil).

Assim, também aqui não se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


*

            Da incorrecta valoração de depoimento indirecto

            3. Alega o recorrente – conclusão 16ª – ser claro, pelo depoimento da testemunha, nada ter a mesma visto, apenas sabendo o que lhe foi contado, no que respeita à matéria do ponto 6 dos factos provados, com a consequente violação do art. 129º do C. Processo Penal.

A solução para a questão proposta passa, naturalmente, pela audição integral do registo gravado do depoimento da ofendida e testemunha por parte do tribunal da Relação. Pois bem.

Ouvido este registo dele resulta ter a testemunha C... dito, a instâncias da Mma. Juíza presidente, que houve uma vez em que o pai apontou facas à D..., para mais adiante, a instâncias da Digna Procuradora Adjunta ter dito [circa 00:10:11 do depoimento] não ter visto o episódio da faca apontada à irmã, tendo-lhe o mesmo sido contado pela mãe.

É assim inquestionável que o depoimento da testemunha, quanto a este concreto aspecto de facto, é um depoimento indirecto.

O C. Processo Penal não afasta em absoluto a possibilidade de valoração do depoimento indirecto, regulando no seu art. 129º as formas admissíveis de hearsay evidence. Assim, dispõe este artigo, no seu nº 1:

Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

Como se vê, a valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer depende da observância de certos procedimentos que visam a assegurar o contraditório nos depoimentos das testemunhas. O depoimento indirecto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer. Apenas assim não será quando não for possível proceder à confirmação, seja por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada da pessoa a quem a testemunha ouviu dizer

Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no art. 127º do C. Processo Penal, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum.

Por outro lado, quando o depoimento indirecto não tenha obedecido aos pressupostos enunciados, o art. 129º, nº 2 do C. Processo Penal interdita a sua utilização como meio de prova, estabelecendo portanto, uma proibição de prova

4. Revertendo para o caso concreto, verificamos que a testemunha C..., no que concerne à matéria de facto levada ao ponto 6 dos factos provados, é testemunha de ouvir dizer. Com efeito, o que relatou na audiência de julgamento, segundo o seu depoimento, foi-lhe transmitido pela mãe, a ofendida B....

Esta, como resulta da acta da audiência de julgamento de 28 de Abril de 2014 (fls. 181 a 185), recusou-se validamente a depor. Deste modo, não se mostra verificado o pressuposto de que depende a validade do depoimento indirecto da testemunha C..., o que significa que o mesmo não poderia ter fundamentado a convicção da Mma. Juíza a quo quanto ao facto provado em questão.

Aqui chegados, resultando da motivação de facto da sentença, sem margem para qualquer dúvida, que a convicção do Mma. Juíza, quanto ao ponto 6 dos factos provados, como, aliás, quanto a todos os demais factos provados preenchedores do tipo dos crimes pelos quais foi o arguido condenado, se fundou, exclusivamente, no depoimento da testemunha C... [como ali, na motivação de facto, se pode ler, a testemunha F... depôs acerca do comportamento do arguido], não podendo este, face à proibição de prova, ser valorado quanto ao especificado facto provado, e não existindo outros meios de prova que possam ainda suportar aquela convicção, torna-se desnecessário, por traduzir um acto inútil, anular a sentença recorrida e determinar a elaboração de nova sentença que não considerasse agora a prova proibida.

Assim, com o reconhecimento da existência de prova proibida tendo por objecto o único meio de prova de que se serviu a 1ª instância para suportar a decisão de facto relativamente ao ponto 6 dos factos provados, deve este facto ser excluído da matéria de facto provada e passar a constar da matéria de facto não provada.   


*

Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente aos pontos 3 a 6 dos factos provados e a violação do princípio in dubio pro reo

5. Alega o recorrente – conclusões 1ª a 12ª – que o tribunal formou a sua convicção, quanto à prova dos pontos 3 a 6 dos factos provados, apenas nas declarações da testemunha C... [a menção a C... na conclusão 2ª deve-se a manifesto lapso de escrita] também ofendida que prestou um depoimento confuso, dúbio e orientado pelas questões que lhe foram colocadas, que tendo nascido a 9 de Janeiro de 2001, não poderia ter conhecimento dos factos anteriores ao seu nascimento e dos posteriores, ocorridos nos primeiros anos da sua vida, que a testemunha não disse ter ouvido chamar a mãe, a ofendida B..., de puta e estúpida, e ser-lhe dirigida a expressão, «És uma puta, vai para casa, já estás com os cornos a dormir, se andares com outro homem, mato-te!», nem disse que os factos ocorreram na presença dos filhos menores, pelo que os pontos 2 e 4 não poderiam ter sido considerados provados, e que a duvidosa fixação dos factos no tempo violaram os princípios do contraditório e in dubio pro reo.

Começamos por dizer que neste momento não se coloca já a questão de conhecer da impugnação do ponto 6 dos factos provados, atento o que quanto a ele foi determinado no ponto que antecede.

Depois, e agora no que especificamente respeita ao recurso da matéria de facto portanto, à impugnação ampla da matéria de facto, nada obsta ao seu conhecimento, com o objecto e limites que lhe foram fixados pelo recorrente, na medida em que se mostra cumprido o ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal. Com efeito, na parte em que a motivação excede apreciação das características da depoente C... e da sua repercussão na valoração das declarações prestadas, constam especificados os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, constam especificadas as concretas provas que imporiam decisão diversa, e consta ainda, na medida do que seria razoavelmente exigível – dado que a argumentação do recorrente é que a testemunha não disse o que na motivação de facto é pressuposto – a indicação das concretas passagens em que funda a impugnação.

Posto isto.

6. Registe-se, antes de mais, que a verdade material, cuja descoberta é o fim de todo e qualquer processo penal, não é uma verdade absoluta, mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, processualmente válida (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, pág. 194), estando o tribunal sujeito, na sua busca, ao princípio da livre apreciação da prova, assim formulado no art. 127º, do C. Processo Penal: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.».

O princípio não atribui ao julgador o poder de valorar a prova determinado por um convencimento exclusivamente subjectivo. A ‘livre convicção’ não significa arbítrio ou decisão irracional. Pelo contrário, a valoração da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção da personalidade dos declarantes e depoentes, tendo como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo, devendo da conjugação de todos estes elementos resultar uma convicção objectivável e motivável, únicas características que permitem que a decisão se imponha, dentro e fora do processo. Não obstante, esta convicção é também uma convicção pessoal, na medida em que nela têm papel de relevo, para além da actividade meramente cognitiva, elementos não racionalmente explicáveis, como a própria intuição, e mesmo elementos exclusivamente emocionais (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 205 e Lições de Direito Processual Penal, pág. 135 e ss).

A convicção do tribunal resulta assim da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência dos declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, a coerência ou falta dela, do seu raciocínio. E esta conjugação só é possível de alcançar, no grau desejável, pela imediação e oralidade pois só o contacto directo do julgador com a prova, o ‘frente a frente’ entre o juiz e a testemunha, o coloca em perfeitas condições de proceder, primeiro, à avaliação individual, e depois, à avaliação global da prova.

O princípio da livre apreciação da prova vigora em todas as instâncias que conhecem de facto, mas deve reconhecer-se a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada na 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal de recurso, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, eventualmente consideradas relevantes. Nesta medida, o tribunal de recurso é incapaz de apreender, em grande parte, os elementos atrás enunciados, por impossibilidade do seu registo audio, elementos que, porém, foram apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou ou seja, pelo juiz do julgamento.

Esta a razão pela qual, quando a 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deva censurar se for feita a demonstração de que a opção carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. Por isso, o art. 412º, nº 3, b) do C. Processo Penal exige a indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, não se bastando com provas que permitam uma decisão diversa da recorrida. 

6.1. Já dissemos que o recorrente qualifica o depoimento da testemunha C..., sua filha, ofendida e menor, de confuso, dúbio e orientado pelas questões que lhe foram sendo colocadas ao longo da inquirição.

Por seu turno, a Mma. Juíza a quo considerou o mesmo depoimento como sereno, detalhado e natural, não destituído de lógica e nem de verosimilhança, e como não apresentando qualquer contradição, e por isso lhe conferiu credibilidade.  

Vejamos.

A testemunha C... é efectivamente uma das ofendidas dos autos, é filha do arguido e nasceu a 9 de Janeiro de 2001 [como consta do ponto 2 dos factos provados], tendo na data da audiência de julgamento13 anos de idade. 

Apesar da qualidade de ofendida, e de ter deposto com afastamento do arguido da sala de audiências [como consta da acta de fls. 181 a 185], a verdade é que a testemunha, tanto quanto a audição da gravação da prova permite a sua imediação, depôs de forma objectiva e isenta, como bem demonstram, que a circunstância de, instada pela Mma. Juíza presidente sobre se tinha alguma vez visto o recorrente agredir a ofendida B..., respondeu negativamente e ainda afirmou que a mãe lhe disse que o pai nunca lhe batera, quer a circunstância de, instada pela Mma. Juíza presidente e pela Digna Procuradora Adjunta sobre que outros nomes ouvira o recorrente chamar à ofendida B..., para além do que enunciara [vaca], sempre ter dito que, tendo sido proferidos outros nomes, deles não se lembrava.

Não merece pois censura a apreciação e valoração probatória que do depoimento foi feito pela Mma. Juíza.

6.2. Passando agora à análise do suporte probatório conferido pelo depoimento da testemunha C... à decisão de facto proferida, há que reconhecer que assiste parcial razão ao recorrente. Explicando.

i) No que respeita ao ponto 3 dos factos provados dele consta, além do mais, que o arguido dirigiu as seguintes expressões a B...: “puta”, “vaca”, “estúpida”, “és uma puta, vai para casa, já estás com os cornos a dormir, se andares com outro homem, eu mato-te.”.

A testemunha, como já dissemos, afirmou que o recorrente chamava a mãe – B... – de “vaca” e de outros nomes que não recordava, e que, sendo ciumento, lhe dizia que andava com outros gajos, nunca tendo conseguido especificar que outros nomes eram os chamados à sua mãe. Por isso, o depoimento em questão apenas permite considerar provado o nome “vaca” e que o recorrente diz que a ofendida B... andava com outro homem.

Por outro lado, tendo a testemunha C... nascido a 9 de Janeiro de 2001, é evidente que não poderia ter conhecimento directo dos factos ocorridos em datas anteriores à do seu nascimento, como não poderia ter memória dos factos ocorridos nos primeiros anos da sua vida. Aliás, instada pela Digna Procuradora Adjunta, a testemunha afirmou que os factos que relatara ao tribunal que imputara ao recorrente, eram os factos de que se lembrava que ele sempre fazia.

Deste modo, tendo-se como razoável fixar as primeiras recordações da testemunha em data posterior ao do seu sétimo aniversário, o período de tempo mencionado no ponto 3 dos factos provados como sendo o da prática dos factos pelo arguido, terá que balizar-se entre Janeiro de 2008 e Maio de 2013.

Assim, o ponto 3 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

- Durante a constância do casamento, em datas não concretamente apuradas, situadas entre Janeiro de 2008 e Maio de 2013, por diversas vezes, no interior da residência do casal, sita Rua (...), Lamego, o arguido, após ingerir bebidas alcoólicas em excesso, dirigiu a B... a palavra “vaca” e disse-lhe que andava com outro homem.

E deve ser aditado aos factos não provados o seguinte facto:

- Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas no ponto 3 dos factos provados, o arguido dirigiu as seguintes expressões a B...: “puta”, “estúpida”, “és uma puta, vai para casa, já estás com os cornos a dormir, eu mato-te.”

ii) No que respeita ao ponto 4 dos factos provados, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, a testemunha C..., a instâncias da Digna Procuradora Adjunta, afirmou [circa 00:11:25 do depoimento] que o recorrente chamava a mãe – B... – de “vaca” e outros nomes, várias vezes e à frente de todos os irmãos que se encontravam presentes.

O facto mostra-se pois, perfeitamente suportado pela prova produzida e considerada, pelo que, se mantém nos precisos termos em que foi fixado pela 1ª instância.

iii) No que respeita ao ponto 5 dos factos provados, valem as razões expostas em i) quanto ao balizamento temporal das condutas, e o que se deixou dito em 6.1., quanto à valoração probatória do depoimento da testemunha, para onde se remete.

Consequentemente, impõe-se a alteração da redacção do ponto 5 dos factos provados, que passa a ser a seguinte:

- Também em datas não concretamente apuradas, compreendidas entre Janeiro de 2008 e Julho de 2013, o arguido desferiu nestes vários murros e bofetadas que os atingiram em diversas zonas do corpo, e com recurso a cabo de vassoura ou a cinto, de características e dimensões não concretamente determinadas, zurziu também pancadas nos seus filhos que os atingiram em diversas zonas do corpo, causando com estas condutas naqueles dores e hematomas.

7. No que à duvidosa fixação dos factos no tempo e à invocada violação do princípio do contraditório e do direito de defesa respeita, reconhecendo-se que existe uma relativa indeterminação temporal dos factos descritos na acusação e dos factos provados da sentença recorrida, indeterminação que se mantém, apesar da modificação da matéria de facto operada pela via do recurso, se bem que com menor intensidade, ela é inerente ao tipo objectivo do crime de violência doméstica. Com efeito, o tipo pressupõe, em regra, a reiteração da conduta, o que torna difícil, e não raras vezes, impossível, a localização exacta no tempo de cada conduta integradora daquela reiteração, bastando para este efeito que sejam fixadas balizas temporais que permitam o contraditório e um processo equitativo, o que sucedeu nos autos.

Por último, relativamente à aplicação do princípio in dubio pro reo cabe dizer que não assiste razão ao recorrente.

Vejamos.

O pro reo decorre do princípio da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa) e dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Quer isto dizer que, produzida a prova, se no espírito do juiz subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
Na fase do recurso, a detecção da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, face aos termos da decisão isto é, deve resultar inequivocamente do texto da decisão que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
A dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar.

Lida a sentença recorrida e, muito particularmente, a sua motivação de facto, dela não resulta que a Mma. Juíza a quo tenha permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos que considerou na sentença, sendo certo que dela, motivação de facto, resulta exposto com meridiana clareza todo o processo lógico que conduziu à certeza sobre os factos integradores do objecto do processo.

Em conclusão, não se mostra violado o in dubio pro reo nem, por via dele, violada a presunção de inocência constitucionalmente consagrada.

Considera-se assim definitivamente fixada a matéria de facto, nos termos em que o foi pela 1ª instância, com as modificações supra operadas pela Relação, por via do presente recurso.

*

Da prescrição parcial dos factos imputados

8. Alega o recorrente – conclusões 13ª e 14ª – ser importante a determinação no tempo dos factos imputados, pois que alguns já se encontrariam prescritos, nos termos do art. 118º, nº 1, b) do C. Penal, sendo a prescrição de conhecimento oficioso.

Vejamos.

Ao arguido foi imputada a prática de quatro crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e d), 2, 4 e 5 do C. Penal, vindo o mesmo a ser condenado por tal prática, mas nos termos das disposições do art. 152º, nºs 1, a) e d), 2 do C. Penal.

Nos termos da acusação, os factos relativos ao crime que tem por ofendida B..., cônjuge do arguido, ocorreram em datas não concretamente apuradas, situadas entre Novembro de 1997 e Maio de 2013, os factos relativos ao crime que tem por ofendida D... ocorreram em datas não concretamente apuradas, situadas entre Dezembro de 1999 e Julho de 2013, os factos relativos ao crime que tem por ofendida C... ocorreram em datas não concretamente apuradas, situadas entre Janeiro de 2001 e Julho de 2013, e os factos relativos ao crime que tem por ofendido A... ocorreram em datas não concretamente apuradas, situadas entre Dezembro de 2004 e Julho de 2013.

Estes factos integram foram os pontos de facto 2 e 3 da matéria de facto provada da sentença recorrida.

Como é sabido, o decurso do prazo de prescrição legalmente estabelecido para cada tipo de crime determina a extinção do respectivo procedimento criminal.

Sendo o crime de violência doméstica [por cuja prática plúrima foi o arguido condenado] punível com pena de prisão de limite máximo igual ou superior a cinco anos e inferior a dez anos [in casu, 5 anos de prisão], o seu prazo normal de prescrição é de dez anos (art. 118º, nº 1, b) do C. Penal).

Resulta de fls. 5 verso e 13 verso que a ofendida B... denunciou os factos objecto dos autos no dia 16 de Maio de 2013.

Assim, porque entre 16 de Maio de 2003 e 16 de Maio de 2013 não ocorreu qualquer circunstância interruptiva e/ou suspensiva do prazo de prescrição, os factos que tenham ocorrido entre Novembro de 1997 e o dia 16 de Maio de 2003, se preenchedores do tipo de ilícito em questão, teriam o seu conhecimento precludido, por efeito da prescrição.

Acontece que o preenchimento do tipo do crime de violência doméstica exige, em regra, uma reiteração de conduta por parte do agente que permita concluir pela existência de um estado de agressão permanente, estado este que não tem o significado de agressões constantes, mas apenas repetidas, com uma relativa proximidade temporal (cfr. Plácido Conde Fernandes, Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, nº 8 Especial, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Estudos, pág. 306 e ss.). Trata-se pois, de um crime cuja verificação exige uma prática reiterada da mesma acção, sendo por isso um crime habitual (cfr. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Volume II, Teoria Geral do Crime, PUC, 2004, pág. 98 e ss).

            Ora, nos crimes habituais o prazo de prescrição do procedimento criminal só corre desde o dia da prática do último acto (art. 119º, nº 2, b) do C. Penal).

            Acresce que, face à modificação da matéria de facto operada pela via do recurso, a apurada conduta do arguido ficou circunscrita ao período de mediou entre Janeiro de 2008 e Julho de 2013 (cfr. ponto 6.2., i) e iii), que antecede) portanto, bem antes do decurso do prazo normal de prescrição dos crimes praticados.

            Quanto basta para improceder a invocada prescrição parcial do procedimento criminal.

*
            Da excessiva medida da pena
            9. Alega o recorrente – conclusões 17ª a 21ª – que as penas que lhe foram fixadas são exageradas, uma vez que é primário, respeitador, respeitado e só agia quando bebia, não tendo sido considerados todos os elementos previstos no art. 71º do C. Penal.
            Como ponto prévio, diremos que a factualidade provada – com as modificações operadas – permite concluir que o arguido praticou quatro crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e d) e 2 do C. Penal.
            Posto isto.

9.1. Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena (art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal), reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.

A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

Frequentemente a determinação da pena, em sentido amplo, passa pela operação de escolha da pena, o que sucede, designadamente, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. Nestes casos, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.  

Escolhida a pena, há que proceder à determinação da sua medida concreta. Para tanto, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras, haverá que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

9.2. O crime de violência doméstica, na sua forma agravada (art. 152º, nºs 1 e 2 do C. Penal) é punível com pena de prisão de dois a cinco anos. Não há portanto, lugar à operação de escolha da pena.


Atentemos agora na medida concreta da pena, que foi fixada em 2 anos e 4 meses de prisão [28 meses de prisão, se lê na sentença recorrida], para cada um dos quatro crimes cometidos.

Não é de desprezar o grau de ilicitude do facto, mas dele não resultaram consequências graves.

O dolo foi intenso e persistente.

São elevadas as necessidades de prevenção geral dada a frequência com que este crime vem sendo praticado, e não raras vezes com trágicos desfechos.

Não se fazem sentir de forma particular as necessidades de prevenção especial, quer porque o arguido não tem antecedentes criminais, quer porque as vítimas já com ele não coabitam.

Já a invocada respeitabilidade social, invocada pelo arguido, não tem particular relevo, atenta a natureza dos crimes praticados e a circunstância de não ter revelado uma qualquer conduta reveladora da assunção da sua culpa.

Deste modo, as penas parcelares de 2 anos e 4 meses de prisão, situadas ainda abaixo do primeiro oitavo da moldura abstracta e portanto, perto do limite mínimo, porque plenamente suportadas pela culpa do arguido, não merecem censura.

9.3. Atentemos agora na pena única, que a 1ª instância fixou em 4 anos e 6 meses de prisão.

A punição do concurso de crimes é regulada pelo art. 77º do C. Penal, que dispõe:

1Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido. 

2A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. (…)”.

Começando pela determinação da moldura abstracta aplicável ao concurso, a moldura abstracta a considerar para a fixação da pena unitária é a de prisão de 2 anos e 4 meses a 9 anos e 4 meses de prisão.

Resulta do nº 1 supra transcrito que o elemento aglutinador dos vários crimes em concurso que vai determinar a pena única é a personalidade do agente. Impõe-se, por isso, a relacionação de todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de se determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, estamos apenas perante uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade do agente. E aqui, nota Figueiredo Dias, cuja lição vimos seguindo (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 291 e seguintes), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)

É uma evidência que os crimes em concurso comungam o contexto em que foram praticados isto é, o ambiente familiar de arguido e ofendidos.

Por outro lado, apesar da ausência de conduta reveladora da interiorização da culpa, a inexistência de antecedentes criminais e a cessação da convivência entre arguido e ofendidos permitem concluir que, não obstante a sua personalidade problemática, o arguido será ainda capaz de adequar o seu comportamento ao direito e à comunidade.

Cremos assim que o quadro geral desenhado não permite concluir pelo começo de uma verdadeira carreira criminosa, razão pela qual a acumulação de crimes não deve funcionar como elemento agravante da pena conjunta.

 

Dentro deste circunstancialismo, e tendo em conta a cessação da coabitação, entendemos que a pena única deve sofrer um abrandamento e ser situada próximo do primeiro quarto da moldura abstracta, considerando-se, em consequência, adequada e plenamente suportada pela culpa do arguido a pena única de 4 anos de prisão.

A alteração da pena única determina, face ao disposto no art. 50º, nº 5 do C. Penal, a alteração do período de suspensão da respectiva execução, que passa a ser o de 4 anos a contar do trânsito do presente acórdão.


*

            Do excessivo montante das indemnizações fixadas

            10. Por último, alega o recorrente – conclusão 22ª – que os montantes indemnizatórios fixados são claramente exagerados, uma vez que não dispõe de rendimentos que lhe permitam proceder ao respectivo pagamento.

            Sem razão, porém.

            Na sentença recorrida, dando cumprimento ao disposto art. 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, foi fixada a cada um dos quatro ofendidos uma indemnização de € 500, para reparação dos danos não patrimoniais sofridos.

            Estão em causa, quanto à ofendida B..., reiteradas violações do direito à integridade pessoal [integridade moral] e do direito ao bom nome e reputação, e quanto aos restantes ofendidos, reiteradas violações do direito à integridade pessoal [integridade física]. E se não foram apuradas efectivas lesões corporais ou danos na saúde de qualquer um dos ofendidos, certo é que a violação destes direitos ocorreu ao longo de vários anos, o que atesta a gravidade dos danos e o consequente merecimento de tutela do direito (art. 496º, nº 1 do C. Civil).

            Sendo a equidade o único critério legal para a fixação dos danos não patrimoniais (art. 496º, nº 3 do C. Civil) e porque estamos perante condutas dolosas, consideramos que a fixação da indemnização individual em € 500, só por defeito, deixaria de realizar a justiça do caso concreto.

            Questão completamente distinta, e irrelevante para aquela fixação, é a da actual e real capacidade económica e financeira de o arguido satisfazer o pagamento de tais indemnizações.

            Improcede, pois, a conclusão sob análise.


*

*

*

*


III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, decidem:

A) Modificar a decisão sobre a matéria de facto:

1. Excluindo dos factos provados da sentença recorrida o que aí figura como ponto 6, e incluindo-o, com a mesma redacção e como alínea c), nos factos não provados daquela sentença.

2. Alterando a redacção do ponto 3 dos factos provados da sentença recorrida, que passa a ser a seguinte:

- Durante a constância do casamento, em datas não concretamente apuradas, situadas entre Janeiro de 2008 e Maio de 2013, por diversas vezes, no interior da residência do casal, sita Rua (...), Lamego, o arguido, após ingerir bebidas alcoólicas em excesso, dirigiu a B... a palavra “vaca” e disse-lhe que andava com outro homem.

3. Aditando aos factos não provados da mesma sentença, a alínea d), com a seguinte redacção:

- Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas no ponto 3 dos factos provados, o arguido dirigiu as seguintes expressões a B...: “puta”, “estúpida”, “és uma puta, vai para casa, já estás com os cornos a dormir, eu mato-te.”

4. Alterando a redacção do ponto 5 dos factos provados da sentença recorrida, que passa a ser a seguinte:

- Também em datas não concretamente apuradas, compreendidas entre Janeiro de 2008 e Julho de 2013, o arguido desferiu nestes vários murros e bofetadas que os atingiram em diversas zonas do corpo, e com recurso a cabo de vassoura ou a cinto, de características e dimensões não concretamente determinadas, zurziu também pancadas nos seus filhos que os atingiram em diversas zonas do corpo, causando com estas condutas naqueles dores e hematomas.


*

            B) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido A..., em cúmulo, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

            C) Condenar o arguido A..., pela prática de quatro crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e d) e 2 do C. Penal, em cúmulo, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

            D) Alterar o período de suspensão da execução da pena única de prisão, que passa a ser o de quatro anos, a contar do trânsito do presente acórdão.


*

            E) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

*

*


Recurso sem tributação, atenta a sua parcial procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).

*

Coimbra, 10 de Dezembro de 2014


 (Heitor Vasques Osório - relator)


(Fernando Chaves - adjunto)