Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
21/09.8PAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS RAMOS
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
PEDIDO DE RENOVAÇÃO
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 29º DA LEI Nº25/2006 DE 23/02, REDACÇÃO DADA PELA LEI Nº17/2009 DE 06/05.
Sumário: 1. Não estando esgotado o prazo de renovação de licença de uso e porte de arma previsto no artigo 29º nº 1 da Lei nº 25/2006 de 23 de Fevereiro, aquando da entrada em vigor da Lei nº17/2009 de 05/06 que deu nova redacção ao mencionado artigo 29º, aquele prazo de renovação inicia-se com entrada em vigor deste último diploma.
Decisão Texto Integral: - 10 -

Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal condenar o arguido J. como autor material de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º n.º 1 alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 25,00 (vinte e cinco euros);
Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
CONCLUSÕES
1. Não existiu crime, uma vez que a licença em causa nos autos de que é titular o arguido ainda se encontra válida, pois o prazo deixou de ser de três anos, passando par o prazo actual de cinco anos de validade a teor n.º 3 do artigo 27.º da Lei 5 /2006 de 23 de Fevereiro conjugado com o art.297,º n.º 2 do CC.
2. O Tribunal a quo levou longe demais o principio da livre apreciação da prova, pois face à prova produzida em audiência impunha-se a absolvição.
3. Caso a licença estivesse caducada, o que não se concede, o arguido não podia, em prazo, renová-la por que se encontrava em missão no estrangeiro, atento que a sua renovação exige a sua presença física.
4. A douta sentença não classifica segundo o critérios da Lei das Armas, o tipo arma, o que em nosso modesto entender é pressuposto para aplicar o normativo incriminador.
5. Também a sentença omite motivação de direito nomeadamente o n.º 2 do art. 99-A da lei 5 /2006 que é requisito da fundamentação da decisão.
6. A sentença não teve em conta a situação concreta de o arguido ser membro das Forças de Segurança da ONU, estando por interpelação da lei, ou por aplicação analógica do n.º 5 do art. 1, fora do âmbito da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
7. Não foi devidamente ponderada o grau de ilicitude do facto criminoso e a concreta culpa do agente, nomeadamente o erro sobre a ilicitude.
8. A matéria de facto provada é insuficiente para decisão de condenação pelo crime p.p. no art. 204, n.º 2. alínea e).
9. A medida da pena foi excessiva, ultrapassou a medida da culpa, que se teve como diminuta, face à promoção da suspensão provisória do processo, e inadequada e desproporcional face ao fim da pena, atentas as circunstâncias concretas, quer da ilicitude do facto, quer da culpa do agente.
10.Assim, caso se aplicasse uma sanção sempre seria de aplicar ao arguida o mínimo da pena.
Pelo que antecede, violados foram os artºs 32º-2 e 5da CRP, bem como os artºs 343, 344, 356,374,n.º2,379 n.º 1 .c) n.º 2 410.º, n 2 a) do CPP, artigos 2.º n.º 4 , 10.º n.º 3, 13.º,16.º, 17.º do CP, artigo 297 do CC, e n.º 5 do artigo 1, n.º 3 do art. 27.º da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro
Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, absolvendo o arguido, ou revogando a decisão por outra que lhe seja mais favorável, fazendo-se JUSTIÇA!
Respondeu o Ministério Público defendendo a absolvição do arguido porquanto o pedido de renovação da licença foi efectuado dentro do prazo legal.
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta concordante com a posição do Ministério Público em 1ª instância ou então pela declaração de nulidade da sentença por a mesma padecer do vício da alínea a., do nº 2, do artº 410º, do Código de Processo Penal.
No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o recorrente nada disse.
Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.
Cumpre conhecer do recurso
Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.
É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).
Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
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Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):
1. O arguido é titular da licença de uso e porte de arma de caça n.º 2510, com validade até ao dia 20 de Dezembro de 2008 para a espingarda marca Choque, n.º 178379, da sua propriedade;
2. O arguido não efectuou o pedido de renovação da referida licença na PSP de Viseu dentro dos 180 dias após terminar a validade da mesma como podia e devia, apenas o tendo feito no dia 14 de Outubro de 2009;
3. O arguido manteve a referida arma na sua posse, bem sabendo que não era titular de licença de uso ou porte de arma válida e que, portanto, tal detenção lhe era proibida e punida por lei penal, tendo agido livre e conscientemente;
4. O arguido é funcionário das Nações Unidas e aufere a quantia mensal de € 6.000,00;
5. A mulher exerce a profissão de educadora de infância;
6. Vivem em casa própria;
7. Têm dois filhos de 13 anos de idade;
8. O arguido tem o 6º ano de escolaridade;
9. Ao arguido não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.
O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida, apreciada e julgada de acordo com as regras de experiência comum e a livre convicção do Tribunal.
Considerou-se, nomeadamente, nos documentos de fls. 3 e 6 e as declarações do arguido o qual confessou os factos de que estava acusado.
No que se refere à prova do elemento subjectivo, esta é sempre indirecta, devendo extrair-se dos demais elementos dos autos conjugados com as regras de experiência comum.
Nesta perspectiva, afigura-se-nos inegável, tendo em conta a situação concreta do arguido e ainda as características da arma em questão que aquele, não podia ignorar a ilegalidade da detenção da mesma e que, actuando da forma descrita nos factos provados, sabia que a sua posse e detenção não lhe era permitida por lei, tanto mais que declarou saber que a licença tinha validade e que já havia renovado a licença algumas vezes.
As declarações do arguido foram ainda relevantes para prova da sua situação socio-económica.
No que concerne aos antecedentes criminais relevou o C.R.C. junto aos autos a fls. 50.
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Embora seja arguida uma nulidade da sentença (ainda que por razões diversas, tanto o recorrente como o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto entendem que a mesma padece do vício previsto no nº 2, alínea a., do artº 410º do Código de Processo Penal), há uma questão que surge a montante desta e que, caso se confirme a tese do Ministério Público, exclui o seu conhecimento.
Com efeito, perante os factos constantes da acusação e que foram na sua totalidade dados por provados, teremos que concluir que a conduta do arguido não é criminalmente punível, tal como refere o Ministério Público na sua resposta e no parecer junto desta Relação.
Vejamos:
O arguido foi condenado porque detinha uma arma da classe D e, tendo a respectiva licença caducado em 20 de Dezembro de 2008, apenas em 14 de Outubro de 2009 efectuou o respectivo pedido de renovação, ou seja, foi condenado porque o tribunal entendeu que a sua conduta integrava o crime previsto e punido pelo artº 86º, nº 1, alínea c. da Lei nº 25/2006, de 23 de Fevereiro, que nos diz que “quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver (…) arma da(s) classe(s) (…) D, (…), é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
Quer isto dizer que o tribunal entendeu que a arma esteve “fora das condições legais” entre 28 de Dezembro de 2008 e 14 de Outubro de 2009.
Vejamos:
O artº 29º, nº 1 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro determinava que “nos casos em que se verifique a caducidade das licenças, o respectivo titular tem o prazo de 180 dias para promover a sua renovação ou proceder à transmissão das respectivas armas”.
Perante este normativo, e atenta a data de validade da licença — 20 de Dezembro de 2008 —, o arguido poderia renovar a mesma até 18 de Junho de 2009.
Em 6 de Maio de 2009, foi publicada a Lei n.º 17/2009 que entrou em vigor no dia 5 de Junho de 2009 (artº 8º, nº 1) e que deu ao referido artº 29º, nº 1, a seguinte redacção:
“Nos casos em que se verifique a caducidade da licença, o respectivo titular tem o prazo de 180 dias para promover a sua renovação, solicitar outra licença que permita a detenção, uso ou porte das armas adquiridas ao abrigo da licença caducada ou proceder à transmissão das respectivas armas.”
É perante este normativo que o Ministério Público entende que o recorrente podia renovar a licença até 2 de Dezembro de 2009 (5 de Junho de 2009 + 180 dias) e consequentemente, ao tê-lo feito em 14 de Outubro de 2009, não se verificou o requisito “fora das condições legais” exigido pelo artº 86º, nº 1, alínea c., da Lei nº 25/2006, de 23 de Fevereiro.
Parece-nos que tem razão.
Com efeito, não se tendo o prazo do artº 29º (redacção original) esgotado quando entrou em vigor a nova redacção do mesmo — só se esgotaria em 18 de Junho de 2009 —, parece-nos correcta a interpretação de que com a entrada em vigor da nova redacção daquele artigo, o prazo nele concedido terá que ser contado a partir da data da mesma para os casos anteriores.
Aliás, não poderia ser outra a interpretação.
Com efeito, com a entrada em vigor da Lei nº 25/2006, de 23 de Fevereiro, foi estatuído que “todos os possuidores de armas de fogo não manifestadas ou registadas devem, no prazo de 120 dias contado da sua entrada em vigor, requerer a sua apresentação a exame e manifesto, não havendo nesse caso lugar a procedimento criminal” (artº 115º, nº 1), o que obriga a que o artº 29º, na sua redacção inicial, seja interpretado no sentido de que para os casos de caducidade da licença ocorridos antes da sua entrada em vigor, o prazo passasse a correr desde esta data.
E dizemos “obriga” porque qualquer outra leitura da norma teria como consequência a penalização mais gravosa daqueles que “apenas” tinham deixado caducar a licença, ou seja, quem não tinha licença eram-lhe concedidos 180 (cento e oitenta) dias para requerer a legalização da arma e quem a deixara caducar, apenas poderia requerer a renovação se aquela não tivesse caducado até 180 (cento e oitenta) dias antes da entrada em vigor da lei.
Ora, sendo a redacção actual idêntica à original, parece-nos que não há qualquer razão para a interpretar de modo diverso, ou seja, os 180 (cento e oitenta) dias contam-se a partir da data de entrada em vigor da lei nova.
Nesta conformidade, há que considerar que o arguido requereu a renovação da licença dentro do prazo a que se refere o artº 29º, nº 1 da Lei nº 25/2006, de 23 de Fevereiro e consequentemente que não se encontra preenchido o elemento “fora das condições legais” exigido pelo artº 86º do mesmo diploma legal.
Assim sendo, há que absolvê-lo
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Face ao exposto, acorda-se em, revogando a sentença recorrida, absolver o arguido.
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Sem tributação
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Coimbra, 17 de Novembro de 2010