Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3475/12.1TBVIS-N.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 333 CT, 129, 130 CIRE
Sumário: 1. Dentro dos poderes atribuídos ao administrador de insolvência cabe, não só, o reconhecimento de créditos não reclamados, mas ainda, o reconhecimento de garantias não invocadas ou insuficientemente alegadas.

2. Tendo o administrador de insolvência reconhecido um privilégio imobiliário especial sobre o único imóvel da massa sobre determinados créditos laborais, privilégio que não foi objeto de impugnação, o mesmo deverá ser atendido pelo juiz, “salvo erro manifesto”, procedendo à graduação dos créditos em atenção ao que conste da Lista elaborada pelo A.I.
3. O privilégio imobiliário especial conferido pela al. b), do art. 333º do CT, incide sobre os imóveis que integrem de forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes.
4. Tendo sido apreendido um único imóvel para a massa, imóvel que, além do mais, correspondia à sede da empresa/insolvente, é de presumir que a atividade da devedora/entidade patronal, fosse aí desenvolvida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Por apenso ao processo onde foi declarada a insolvência da requerida D (…), Lda., foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que, reconhecendo todos os créditos que constam da Lista de Credores retificada apresentada pelo Administrador de Insolvência, a fls. 61 e ss., procedeu à respetiva graduação, relativamente ao único imóvel apreendido para a massa, pela seguinte forma:

Em relação ao remanescente do produto da venda do bem imóvel, graduam-se os créditos com vista ao pagamento pela seguinte ordem:
A) Crédito de IMI;
B) Créditos garantidos por Hipoteca (pela preferência resultante dos registos);
C) Os demais créditos fiscais na parte assinalada como privilegiada;
D) Crédito da Segurança Social;
E) Do remanescente do produto da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (neles se incluindo o crédito da credora N (...) ;
F) Do remanescente do produtor da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados (nomeadamente os juros de créditos comuns), pela ordem segundo a qual os créditos são indicados no art. 48º do CIRE, na proporção dos respetivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, em caso de insuficiência da massa para o seu pagamento integral – art. 177º, nº1, do CIRE”.

Não se conformando com a mesma, o credor reclamante A (…) dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4 do art. 658º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se ao crédito do apelante deverá ser reconhecido o invocado privilégio imobiliário especial, graduando-o em primeiro lugar relativamente ao produto do único imóvel apreendido para os autos:
1.1. Se o mesmo pode ser tido em consideração nos presentes autos.
1.2. Em caso afirmativo, qual a sua ordem de graduação.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Com o presente recurso, insurge-se o apelante contra a graduação de créditos efetuada relativamente ao único imóvel apreendido nos autos, por a sentença recorrida não ter tido em consideração o privilégio imobiliário de que goza o seu crédito laboral, ao abrigo do disposto no art. 333º do atual Código do Trabalho, graduando-o, também nesta parte, como comum.

Para apreciação da questão aqui levantada pelo credor/apelante, teremos em consideração o seguinte circunstancialismo factual que sobressai dos elementos juntos ao presente recurso, instruído em separado:

1. A devedora D (…), Lda., foi declarada insolvente por sentença datada de 06-02-2013.

2. O credor/Apelante veio reclamar, entre outros, um crédito no montante de 41.280,00 €, enquanto trabalhador da requerida/insolvente (créditos por retribuições salariais e pela cessação da relação laboral), alegando tratar-se de um “crédito privilegiado, beneficiando de privilégio creditório geral”.

3. O Administrador de insolvência, na lista de credores reconhecidos que elaborou ao abrigo do disposto no artigo 129º do CIRE, reconheceu o reclamado crédito, quanto ao seu montante, qualificando-o, ainda, como “privilegiado”, por gozar de “privilégio mobiliário geral e imobiliário especial sobre os bens imóveis onde o reclamante prestou a sua atividade ao serviço da insolvente (art. 333º do Código do Trabalho)” – lista de fls. 61 e ss., elaborada após retificação efetuada na sequência de anterior impugnação.

4. A referida Lista, tal como se mostra junta a fls. 61 e ss. do apenso de reclamação de créditos não terá sido objeto de impugnação, pelo que o juiz a quo, na sentença recorrida, considerou reconhecidos todos os créditos constantes da mesma.

5. Foram aprendidos para massa vários bens móveis e um único imóvel (prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1373) – Autos de apreensão de bens móveis 1, 2 e 3, e Auto único de apreensão de bem imóvel.

6. A requerida tinha a sua sede no Parque Industrial de (...) , Viseu, correspondendo ao imóvel que se mostra apreendido nos autos.
 Apesar de, na reclamação de créditos que apresentou junto do Administrador de Insolvência, o credor/apelante não ter invocado devidamente[2] a existência, a seu favor, do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333º do atual Código do Trabalho, o Administrador de Insolvência veio a reconhecer a existência de tal privilégio na lista que apresentou ao abrigo do disposto no artigo 129º do CIRE.
A sentença recorrida, reconhecendo os créditos constantes da Lista de Credores Reconhecidos elaborada pelo A.I. e apesar de nela efetuar uma introdução teórica sobre os privilégios mobiliários e imobiliários especiais, nomeadamente, sobre o privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua atividade previsto no art. 377º do Código do Trabalho, e sobre o modo da sua graduação face às demais garantias reais, é completamente omissa quanto à existência do privilégio imobiliário especial que o AI reconhecera a tal credor, na Lista de Créditos Reconhecidos e não objeto de impugnação.
Desconhecendo-se quais os motivos de tal omissão, nomeadamente, se se deveu a mero lapso, pelo facto de não ter atentado no reconhecimento de tal garantia por parte do AI, ou se por considerar que o seu reconhecimento dependeria de invocação pelo seu beneficiário, poder-se-á levantar a questão do âmbito dos poderes do juiz perante a uma lista de créditos reconhecidos e não objeto de qualquer impugnação, face ao teor do nº3 do artigo 130º do CIRE.
Uma das áreas onde mais sobressai a intenção do legislador de impulsionar a desjudicialização do processo foi a da verificação e graduação de créditos.
Com a intenção de introduzir mecanismos tendentes a uma maior eficiência e celeridade processuais e a aligeirar o próprio controlo jurisdicional, o artigo 130º, nº3, do CIRE prevê que, não havendo impugnações, “é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo o erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.
Quanto à determinação do exato sentido de tal norma, há que atender às considerações constantes do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprovou o atual Código de Insolvências, da autoria de Osório de Castro: “Aí, a sentença de verificação e graduação de créditos deve limitar-se a homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência e a graduar os créditos em atenção ao que conste dessa lista, pois os titulares dos interesses envolvidos não contestaram a lista do administrador, e a este é imposta pela lei a tarefa da sua elaboração, com a diligência devida. Ressalva-se expressamente a necessidade de correções que resultem da existência de erro manifesto[3]”.
Dúvidas podem levantar-se quanto ao âmbito da expressão “erro manifesto”, nomeadamente se o juiz, perante uma lista não impugnada pode ir mais além do que a verificação dos seus erros internos manifestos.
A doutrina tem vindo a entender que o juiz, no uso do seu poder de direção do processo, pode pedir ao administrador de insolvência os elementos em que se baseou para elaborar a lista, nomeadamente quando desconfie, perante o processo em causa e a lista apresentada, de alguma irregularidade[4].
Segundo Fátima Reis Silva, o nº 3 do artigo 130º estabelece uma verdadeira cominação: “O juiz não tem sequer conhecimento da relação material subjacente a cada reclamação, nem tem acesso aos documentos juntos pelos credores, já que o administrador não é obrigado a apresentá-los em tribunal (artigo 133º), pelo que ou se limita a homologar a relação do administrador ou terá de o notificar para apresentar em tribunal as reclamações, caso se entenda que tal notificação cabe dentro dos poderes de fiscalização do juiz. Por outras palavras, ou o erro manifesto deriva da própria lista ou não será percetível ao juiz. (…) Quanto à graduação de créditos a situação é idêntica. O juiz não pode sequer aferir se as garantias referidas pelo administrador estão corretas[5]”.
Maria José Costeira, pronunciando-se sobre os problemas levantados pela aplicação de tal norma, refere que o que se pretende com a mesma é que o juiz chancele e confira força executiva a uma espécie de projeto de sentença, cujos pressupostos, na prática não pode verificar, uma vez que o juiz não tem elementos para aferir se as garantias referidas pelo administrador estão corretas[6].
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda defendem uma interpretação em termos amplos do conceito de erro manifesto, “não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos de crédito constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos que necessite”.
Já quanto a Mariana França Gouveia[7] conclui não dever interpretar-se a norma do nº3 do art. 130º como uma imposição ao juiz, até porque é ele o autor da sentença, mas apenas como uma possibilidade de simplificação processual à sua escolha.
Para João Labareda, se a vinculação judicial a decidir conforme a lista ainda se aceita sem dificuldade de maior quanto à verificação dos créditos, quanto à graduação há ressalvas que se impõem:
“Assim, relativamente às garantias e privilégios cuja constituição dependem da verificação de requisitos ad substantiam, ou o processo contém elementos que permitem constatá-los – o que só sucederá se a lista for instruída com eles (…) –, ou o tribunal terá de solicitar ao administrador a respetiva evidência[8]”.
Em nossa opinião, haverá que precisar que no nº3, do art. 130º, se encontra a referência a dois momentos decisórios distintos.
No caso de falta de impugnação da lista de credores reconhecidos, refere-se aí que o juiz se limitará:
•          a homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência (atribuindo-se à falta de impugnações em efeito cominatório);
•          a graduar os créditos em atenção ao que conste dessa lista.
Assim, e antes de mais, o efeito cominatório só se encontra previsto para os elementos que, ao abrigo nº2 do artigo 129º, deveriam constar da lista de créditos a elaborar pelo administrador – identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas – e só em relação a esta lista se encontra previsto o despacho de mera homologação, “salvo o caso de erro manifesto”.
O efeito cominatório só funciona quanto à existência, montante e natureza dos créditos e, eventualmente, quanto as garantias de que gozem, sendo que, para que funcione será necessário que tais elementos constem da lista.
Já quanto à graduação de créditos, é tarefa que incumbe ao juiz em primeira mão, embora “tendo em atenção ao que consta dessa lista”: para tal, o juiz terá que proceder à qualificação jurídica dos direitos de crédito reconhecidos e aferir se as garantias referidas pelo administrador se mostram corretas (sob pena de se permitir a violação de normas imperativas).
Como refere Salvador da Costa[9], na sentença de graduação de créditos importa operar a qualificação jurídica dos direitos de crédito existentes ao tempo da declaração de insolvência e que tenham sido declarados reconhecidos e atentar na natureza dos bens ou direitos integrantes da massa insolvente, no confronto com os direitos reais de garantia que os onerem. Após essa análise, deve verificar quais os direitos reais de garantia e os privilégios que se extinguiram por efeito da declaração de insolvência, e por fim, proferir a decisão de graduação, ou seja, a definição da prioridade entre os direitos de crédito quanto à satisfação pelo produto dos bens do insolvente.
No caso em apreço, reconhecendo o AI ao crédito em apreço o privilégio imobiliário especial contido no artigo 333º do Código do Trabalho, garantia que não foi objeto de qualquer impugnada, o juiz a quo não se encontrava vinculado a reconhecê-la, mas encontrava-se obrigado a proceder à apreciação da questão de determinar se o crédito de tal credor gozava ou não do privilégio que aí lhe fora atribuído.
Não o tendo feito, cometeu uma nulidade, impondo-se, assim, a este tribunal apreciar da existência de tal privilégio, ao abrigo dos poderes conferidos pelo nº1 do art. 665º do NCPC.
Dispõe o artigo 333º do Código do Trabalho[10], aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12.12, a cujo regime se encontra sujeita a situação em apreço, atendendo à data em que foi proferida a declaração de insolvência[11]:

1. Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade.

2. A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes do crédito referido no nº1 do art. 747º do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes do crédito referido no art. 748º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.

No caso em apreço não se questionará a natureza dos créditos em questão, ou seja, de que nos encontramos perante créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação.

Contudo, o privilégio imobiliário especial conferido pela al. b) do artigo 333º do CT apenas incide “sobre o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua atividade” e não sobre a globalidade dos bens imóveis da titularidade da entidade patronal, restrição que tem levantado duas questões: em primeiro lugar, quanto ao exato âmbito dos bens abrangidos, e em segundo lugar, se o trabalhador tem, na reclamação de créditos, de alegar e provar em que imóveis prestou a sua atividade para que lhe seja reconhecido tal privilégio.

Quanto à questão sobre quais os imóveis do empregador se devem ter por abrangidos por aquele privilégio, tem sido defendidas duas teses: uma que restringe o privilégio ao imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua atividade, com exclusão de qualquer outros de que a entidade patronal seja titular; outra, que estende o privilégio a todos os imóveis de que seja proprietário o empregador e que se encontrem igualmente afetos à sua organização empresarial (escritório, armazém, fábrica, local de venda ao público)[12].

Segundo esta última corrente, independentemente do específico local onde o trabalhador tenha desempenhado funções, para que o seu crédito se encontre abrangido por tal privilégio dever-se-á exigir uma conexão entre o imóvel em causa e o funcionamento da empresa, sua entidade patronal[13].  

Tal entendimento tem a grande vantagem de eliminar diferenças de tratamento entre os créditos dos vários trabalhadores da mesma empresa, uma vez que inexistem razões objetivas que as justifiquem. Como salientam José Pedro Anacoreta e Rita Garcia e Costa[14], não existe nenhuma razão para que os créditos de dois trabalhadores da mesma empresa tenham um tratamento diferente, apenas porque um prestou serviço num imóvel propriedade da empresa e outro num imóvel arrendado; assim como, o trabalhador que exerce as suas funções fora das instalações da empresa ou que está sujeito ao regime do teletrabalho não gozaria de qualquer garantia especial sobre os imóveis do empregador[15].

A principal alteração introduzida pelo Código de Trabalho de 2009 – que consistiu em que, enquanto antes de dispunha quanto ao privilégio imobiliário especial que a garantia abrangia “os bens imóveis do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade”, passou a dispor “o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua atividade –, poderia ser entendida como um provável reconhecimento de que a tese preferível era a de considerar abrangidos pelos privilégios os concretos bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador exercesse a sua atividade.

Não é esse o sentido que lhe tem sido dado pelos nossos tribunais.

Com efeito, o Acórdão do STJ de 13.01.2015[16], começando por afirmar não haver dúvidas, face a tal alteração, de que tal privilégio “apenas contempla o imóvel em que o trabalhador presta a sua atividade”, acaba por apelar à noção de estabelecimento comercial, enquanto “conjunto de elementos afetados pelo comerciante” (aqui, também industrial) “ao exercício da sua empresa”, consistindo esta, na “atividade profissionalmente exercida e dispondo de organização em ordem à realização de fins de produção ou troca de bens e de serviços”.

Tal acórdão acaba, assim, por concluir que, “para o efeito que vem sendo considerado, não releva uma ligação ou conexão com um qualquer imóvel onde os trabalhadores tenham exercido funções, exigindo-se, antes, que esse imóvel faça parte integrante, de forma estável, da empresa encarada como unidade produtiva e emanação do complexo organizacional do empregador.”

Adotamos, assim a posição de que, para efeitos de verificação do privilégio em causa, o imóvel deve integrar de uma forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores; deve estar afeto à atividade prosseguida pela empresa e, como tal, à atividade de cada um desses trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes.[17]

Quanto à segunda questão, tem vindo a ser entendido impender sobre o credor reclamante o ónus de alegação e de prova da conexão entre a sua atividade ou a atividade empresarial da empresa e o imóvel relativamente ao qual pretende fazer valer o referido privilégio especial.

Ao reclamarem os seus créditos, os credores da insolvência devem indicar “a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida e, neste ultimo caso, os bens ou direito objeto de garantia e respetivos dados de identificação registral, se aplicável” (art. 128º, nº1, al. c), do CIRE, de acordo, aliás, com as regras gerais do ónus da prova contidas no art. 342º do Código Civil.

Contudo, as regras quanto ao ónus da prova só assumem relevância no caso de não prova de determinado facto (se o facto se vem a demostrar, as regras do ónus da prova perdem o seu interesse), como forma de se evitar uma situação de non liquet.

Ora, no caso em apreço, apesar de o credor reclamante se ter limitado a invocar, relativamente aos seus créditos laborais, a existência de um “privilégio creditório geral” (levantando a questão, não só da ausência de alegação de factos que preenchessem a sua fattispecie, mas, inclusive, da falta de invocação do próprio privilégio), o Administrador de Insolvência veio a reconhecer que tais créditos se acham garantidos por um privilégio imobiliário especial sobre o imóvel a apreendido.

E, em nosso entender, tais poderes cabem no âmbito das amplas competências nesta sede atribuídas pelo CIRE ao administrador de insolvência: a lista que este elabora ao abrigo do artigo129º deve conter a relação não só dos credores que tenham deduzido reclamação como “daqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento”, dela fazendo constar “a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante do capital e juros, as garantias pessoas e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas” (ns. 1 e 2 do art. 129º).

Ou seja, não só pode reconhecer créditos que não tenham sido objeto de reclamação, como pode reconhecer garantias pessoais e reais e privilégios, não expressamente invocados pelos seus beneficiários.

E o juiz, para a aferição da verificação dos pressupostos que integrem o preenchimento de tal privilégio, deverá socorrer-se dos elementos constantes dos autos, ainda que não alegados.

Voltando ao caso em apreço e tendo sido apreendido um único imóvel para a massa, é de presumir que a atividade da devedora/entidade patronal, fosse aí desenvolvida[18] (além do mais, trata-se um armazém, destinado a industria e comércio, com logradouro, tendo nele aposto os dizeres “Dispromar”, como se pode ver da fotografia constante do Auto de Apreensão de tal imóvel). Por outro lado, haverá que ter em consideração que tal imóvel corresponde à sede da requerida.

Damos, assim, por assente que os créditos laborais da titularidade do apelante gozam do invocado privilégio imobiliário especial sobre o único imóvel apreendido para a massa.

Quanto à forma de graduação, a conjugação do citado art. 333º do CT com o disposto no art. 735º do Código Civil, não deixa agora dúvidas: a graduação faz-se de acordo com o disposto no Código Civil.

O privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos laborais é graduado depois de ressarcidos todos os créditos por despesas de justiça (artigo 746º do CC), mas antes dos créditos do Estado previstos no nº1 do artigo 748º, nº1 do CC (nomeadamente, antes do imposto municipal sobre imóveis e do imposto municipal sobre transmissão onerosas de imóveis), dos créditos das autarquias locais e dos créditos relativos a Segurança Social.

Tal privilégio prefere ainda sobre a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção, mesmo que estas garantias se tenham constituído em momento anterior à declaração de insolvência (artigos 668º, nº1, e 751º do CC).

O crédito do apelante, na parte em que se encontra garantido pelo privilégio especial imobiliário, será, assim, de graduar em primeiro lugar, tal como por si é defendido nas suas alegações de recurso.

A apelação é de proceder na íntegra.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, relativamente à graduação de créditos respeitante ao único imóvel apreendido para a massa, e que se altera nos seguintes termos:

Em relação ao remanescente do produto da venda do bem imóvel, graduam-se os créditos com vista ao pagamento pela seguinte ordem:

A) Créditos salariais do trabalhador A (...) ;

B) Crédito de IMI;

C) Créditos garantidos por Hipoteca (pela preferência resultante dos registos);

D) Os demais créditos fiscais na parte assinalada como privilegiada;

E) Crédito da Segurança Social;

F) Do remanescente do produto da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (neles se incluindo o crédito da credora N (…);

G) Do remanescente do produtor da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados (nomeadamente os juros de créditos comuns), pela ordem prevista no art. 48º do CIRE, na proporção dos respetivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, em caso de insuficiência da massa para o seu pagamento integral – art. 177º, nº1, do CIRE”.

Sem custas.       

Coimbra, 24 de fevereiro de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

Luís Cravo

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. Dentro dos poderes atribuídos ao administrador de insolvência cabe, não só, o reconhecimento de créditos não reclamados, mas ainda, o reconhecimento de garantias não invocadas ou insuficientemente alegadas.

2. Tendo o administrador de insolvência reconhecido um privilégio imobiliário especial sobre o único imóvel da massa sobre determinados créditos laborais, privilégio que não foi objeto de impugnação, o mesmo deverá ser atendido pelo juiz, “salvo erro manifesto”, procedendo à graduação dos créditos em atenção ao que conste da Lista elaborada pelo A.I.

3. O privilégio imobiliário especial conferido pela al. b), do art. 333º do CT, incide sobre os imóveis que integrem de forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes.

4. Tendo sido apreendido um único imóvel para a massa, imóvel que, além do mais, correspondia à sede da empresa/insolvente, é de presumir que a atividade da devedora/entidade patronal, fosse aí desenvolvida.


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] A alegação de que beneficia de um “privilégio creditório geral”, é perfeitamente genérica, não identificando, sequer, em concreto qual o privilégio de que se pretende prevalecer, nomeadamente, se se trata de um privilégio mobiliário ou imobiliário e em que norma o mesmo se encontra previsto; por outro lado, o privilégio que agora invoca é um privilégio imobiliário especial e, não, geral.
[3] Cfr., versão integral de tal preâmbulo, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Ministério da Justiça, Gabinete de Política Legislativa, Coimbra Editora, pág. 227.
[4] Cfr., neste sentido, Mariana França Gouveia, “Verificação do Passivo”, estudo publicado in “Novo Direito da Insolvência”, edição especial da THEMIS – revista da FD da UNL, pág. 156.
[5] Cfr., “Algumas Questões Processuais no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa”, in Miscelâneas Nº2, pág. 77.
[6] Cfr., “Verificação e Graduação de Créditos”, estudo publicado in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Ministério da Justiça, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, pág. 75.
[7] “Verificação do Passivo”, obra citada, pág. 156, in fine.
[8] “O Novo Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas,”, estudo publicado in Miscelâneas Nº2, Revista do IDET, Almedina, pág. 47.
[9] “O Concurso de Credores”, 3ª ed., Almedina, Maio 2005, pág. 362.
[10] Que corresponde, sem grandes alterações, ao artigo 377º do anterior Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto: a única alteração consiste em que enquanto a redação anterior se referia “aos bens imóveis do empregador”, passou a referir-se “ao bem imóvel do empregador”.
[11] Como é jurisprudência uniforme, é este o momento decisivo para definir o regime normativo aplicável à graduação de créditos no processo de liquidação universal do património do insolvente – cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 10.05.2011, relatado por Gregório Silva Jesus, disponível in www.dgsi.pt.
[12] Cfr., Acórdão do STJ de 10.05.2011, relatado por Gregório Silva Jesus, onde se defende que, apurado terem todos os trabalhadores exercido a sua atividade naquele complexo de edifícios constitutivos do estabelecimento industrial da falida, beneficiam os seus créditos de privilégio imobiliário especial sobre a totalidade dos imóveis – disponível in www.dgsi.pt.
[13] Cfr., neste sentido, Acórdão do TRC de 18-012.2013, relatado por Falcão Magalhães, disponível in www.dgsi.pt.
[14] “Prevalência de Créditos Laborais Face à Hipoteca?”, artigo disponível in www.uria.com/documentos/publicationes/1926/documento/articuloUM.pdf?id=3169.
[15] Em sentido, semelhante se pronuncia o Acórdão do STJ de 13.01.2015 relatado por Fernando Vale, disponível in www.dgsi.pt.: “só o entendimento perfilhado permite evitar, nas empresas de construção civil como a insolvente, discriminações de tratamento entre os trabalhadores das mesmas empresas, conforme as funções por si exercidas o fossem no estabelecimento da respetiva sede – v. g. pessoal administrativo, da área financeira e contabilística, de gestão, etc. – ou nos seus edifícios construídos ou em edificação – v. g. trolhas, serventes, carpinteiros, canalizadores, pintores, eletricistas, etc. –, o que, sem qualquer dúvida, tornaria tais discriminações completamente arbitrárias e destituídas de fundamento legal e, mesmo, ético, e sem qualquer possibilidade de harmonização com o critério interpretativo dimanado do art. 9º, nº3, do CC.   
[16] Acórdão relatado por Fernando Vale, disponível in www.dgsi.pt., e em que se decide pela exclusão do privilégio relativamente a determinadas frações autónomas, por representarem o resultado da atividade da empresa insolvente, integrando o respetivo património, mas não a unidade ou organização produtiva da empresa, que, aí, não está (nem, jamais, esteve) centrada.
[17] Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 13.11.2014, relatado por Pinto de Almeida, embora reportado ainda ao art. 377º do Código do Trabalho de 2003.
[18] Cfr., neste sentido, Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2ª ed. Pág. 175, e Joana Costeira, “Os Efeitos da Declaração de Insolvência no Contrato de Trabalho: A Tutela dos Créditos Laborais”, Almedina 213, pág. 126.