Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS CRÉDITO LABORAL PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL | ||
Data do Acordão: | 02/24/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 333 CT, 129, 130 CIRE | ||
Sumário: | 1. Dentro dos poderes atribuídos ao administrador de insolvência cabe, não só, o reconhecimento de créditos não reclamados, mas ainda, o reconhecimento de garantias não invocadas ou insuficientemente alegadas. 2. Tendo o administrador de insolvência reconhecido um privilégio imobiliário especial sobre o único imóvel da massa sobre determinados créditos laborais, privilégio que não foi objeto de impugnação, o mesmo deverá ser atendido pelo juiz, “salvo erro manifesto”, procedendo à graduação dos créditos em atenção ao que conste da Lista elaborada pelo A.I. 3. O privilégio imobiliário especial conferido pela al. b), do art. 333º do CT, incide sobre os imóveis que integrem de forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes. 4. Tendo sido apreendido um único imóvel para a massa, imóvel que, além do mais, correspondia à sede da empresa/insolvente, é de presumir que a atividade da devedora/entidade patronal, fosse aí desenvolvida. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO Por apenso ao processo onde foi declarada a insolvência da requerida D (…), Lda., foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que, reconhecendo todos os créditos que constam da Lista de Credores retificada apresentada pelo Administrador de Insolvência, a fls. 61 e ss., procedeu à respetiva graduação, relativamente ao único imóvel apreendido para a massa, pela seguinte forma: “Em relação ao remanescente do produto da venda do bem imóvel, graduam-se os créditos com vista ao pagamento pela seguinte ordem:
Não se conformando com a mesma, o credor reclamante A (…) dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões: (…) Não foram apresentadas contra-alegações. Com o presente recurso, insurge-se o apelante contra a graduação de créditos efetuada relativamente ao único imóvel apreendido nos autos, por a sentença recorrida não ter tido em consideração o privilégio imobiliário de que goza o seu crédito laboral, ao abrigo do disposto no art. 333º do atual Código do Trabalho, graduando-o, também nesta parte, como comum. Para apreciação da questão aqui levantada pelo credor/apelante, teremos em consideração o seguinte circunstancialismo factual que sobressai dos elementos juntos ao presente recurso, instruído em separado: 1. A devedora D (…), Lda., foi declarada insolvente por sentença datada de 06-02-2013. 2. O credor/Apelante veio reclamar, entre outros, um crédito no montante de 41.280,00 €, enquanto trabalhador da requerida/insolvente (créditos por retribuições salariais e pela cessação da relação laboral), alegando tratar-se de um “crédito privilegiado, beneficiando de privilégio creditório geral”. 3. O Administrador de insolvência, na lista de credores reconhecidos que elaborou ao abrigo do disposto no artigo 129º do CIRE, reconheceu o reclamado crédito, quanto ao seu montante, qualificando-o, ainda, como “privilegiado”, por gozar de “privilégio mobiliário geral e imobiliário especial sobre os bens imóveis onde o reclamante prestou a sua atividade ao serviço da insolvente (art. 333º do Código do Trabalho)” – lista de fls. 61 e ss., elaborada após retificação efetuada na sequência de anterior impugnação. 4. A referida Lista, tal como se mostra junta a fls. 61 e ss. do apenso de reclamação de créditos não terá sido objeto de impugnação, pelo que o juiz a quo, na sentença recorrida, considerou reconhecidos todos os créditos constantes da mesma. 5. Foram aprendidos para massa vários bens móveis e um único imóvel (prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1373) – Autos de apreensão de bens móveis 1, 2 e 3, e Auto único de apreensão de bem imóvel. 6. A requerida tinha a sua sede no Parque Industrial de (...) , Viseu, correspondendo ao imóvel que se mostra apreendido nos autos. 1. Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade. 2. A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes do crédito referido no nº1 do art. 747º do Código Civil; b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes do crédito referido no art. 748º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social. No caso em apreço não se questionará a natureza dos créditos em questão, ou seja, de que nos encontramos perante créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação. Contudo, o privilégio imobiliário especial conferido pela al. b) do artigo 333º do CT apenas incide “sobre o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua atividade” e não sobre a globalidade dos bens imóveis da titularidade da entidade patronal, restrição que tem levantado duas questões: em primeiro lugar, quanto ao exato âmbito dos bens abrangidos, e em segundo lugar, se o trabalhador tem, na reclamação de créditos, de alegar e provar em que imóveis prestou a sua atividade para que lhe seja reconhecido tal privilégio. Quanto à questão sobre quais os imóveis do empregador se devem ter por abrangidos por aquele privilégio, tem sido defendidas duas teses: uma que restringe o privilégio ao imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua atividade, com exclusão de qualquer outros de que a entidade patronal seja titular; outra, que estende o privilégio a todos os imóveis de que seja proprietário o empregador e que se encontrem igualmente afetos à sua organização empresarial (escritório, armazém, fábrica, local de venda ao público)[12]. Segundo esta última corrente, independentemente do específico local onde o trabalhador tenha desempenhado funções, para que o seu crédito se encontre abrangido por tal privilégio dever-se-á exigir uma conexão entre o imóvel em causa e o funcionamento da empresa, sua entidade patronal[13]. Tal entendimento tem a grande vantagem de eliminar diferenças de tratamento entre os créditos dos vários trabalhadores da mesma empresa, uma vez que inexistem razões objetivas que as justifiquem. Como salientam José Pedro Anacoreta e Rita Garcia e Costa[14], não existe nenhuma razão para que os créditos de dois trabalhadores da mesma empresa tenham um tratamento diferente, apenas porque um prestou serviço num imóvel propriedade da empresa e outro num imóvel arrendado; assim como, o trabalhador que exerce as suas funções fora das instalações da empresa ou que está sujeito ao regime do teletrabalho não gozaria de qualquer garantia especial sobre os imóveis do empregador[15]. A principal alteração introduzida pelo Código de Trabalho de 2009 – que consistiu em que, enquanto antes de dispunha quanto ao privilégio imobiliário especial que a garantia abrangia “os bens imóveis do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade”, passou a dispor “o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua atividade –, poderia ser entendida como um provável reconhecimento de que a tese preferível era a de considerar abrangidos pelos privilégios os concretos bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador exercesse a sua atividade. Não é esse o sentido que lhe tem sido dado pelos nossos tribunais. Com efeito, o Acórdão do STJ de 13.01.2015[16], começando por afirmar não haver dúvidas, face a tal alteração, de que tal privilégio “apenas contempla o imóvel em que o trabalhador presta a sua atividade”, acaba por apelar à noção de estabelecimento comercial, enquanto “conjunto de elementos afetados pelo comerciante” (aqui, também industrial) “ao exercício da sua empresa”, consistindo esta, na “atividade profissionalmente exercida e dispondo de organização em ordem à realização de fins de produção ou troca de bens e de serviços”. Tal acórdão acaba, assim, por concluir que, “para o efeito que vem sendo considerado, não releva uma ligação ou conexão com um qualquer imóvel onde os trabalhadores tenham exercido funções, exigindo-se, antes, que esse imóvel faça parte integrante, de forma estável, da empresa encarada como unidade produtiva e emanação do complexo organizacional do empregador.” Adotamos, assim a posição de que, para efeitos de verificação do privilégio em causa, o imóvel deve integrar de uma forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores; deve estar afeto à atividade prosseguida pela empresa e, como tal, à atividade de cada um desses trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes.[17] Quanto à segunda questão, tem vindo a ser entendido impender sobre o credor reclamante o ónus de alegação e de prova da conexão entre a sua atividade ou a atividade empresarial da empresa e o imóvel relativamente ao qual pretende fazer valer o referido privilégio especial. Ao reclamarem os seus créditos, os credores da insolvência devem indicar “a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida e, neste ultimo caso, os bens ou direito objeto de garantia e respetivos dados de identificação registral, se aplicável” (art. 128º, nº1, al. c), do CIRE, de acordo, aliás, com as regras gerais do ónus da prova contidas no art. 342º do Código Civil. Contudo, as regras quanto ao ónus da prova só assumem relevância no caso de não prova de determinado facto (se o facto se vem a demostrar, as regras do ónus da prova perdem o seu interesse), como forma de se evitar uma situação de non liquet. Ora, no caso em apreço, apesar de o credor reclamante se ter limitado a invocar, relativamente aos seus créditos laborais, a existência de um “privilégio creditório geral” (levantando a questão, não só da ausência de alegação de factos que preenchessem a sua fattispecie, mas, inclusive, da falta de invocação do próprio privilégio), o Administrador de Insolvência veio a reconhecer que tais créditos se acham garantidos por um privilégio imobiliário especial sobre o imóvel a apreendido. E, em nosso entender, tais poderes cabem no âmbito das amplas competências nesta sede atribuídas pelo CIRE ao administrador de insolvência: a lista que este elabora ao abrigo do artigo129º deve conter a relação não só dos credores que tenham deduzido reclamação como “daqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento”, dela fazendo constar “a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante do capital e juros, as garantias pessoas e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas” (ns. 1 e 2 do art. 129º). Ou seja, não só pode reconhecer créditos que não tenham sido objeto de reclamação, como pode reconhecer garantias pessoais e reais e privilégios, não expressamente invocados pelos seus beneficiários. E o juiz, para a aferição da verificação dos pressupostos que integrem o preenchimento de tal privilégio, deverá socorrer-se dos elementos constantes dos autos, ainda que não alegados. Voltando ao caso em apreço e tendo sido apreendido um único imóvel para a massa, é de presumir que a atividade da devedora/entidade patronal, fosse aí desenvolvida[18] (além do mais, trata-se um armazém, destinado a industria e comércio, com logradouro, tendo nele aposto os dizeres “Dispromar”, como se pode ver da fotografia constante do Auto de Apreensão de tal imóvel). Por outro lado, haverá que ter em consideração que tal imóvel corresponde à sede da requerida. Damos, assim, por assente que os créditos laborais da titularidade do apelante gozam do invocado privilégio imobiliário especial sobre o único imóvel apreendido para a massa. Quanto à forma de graduação, a conjugação do citado art. 333º do CT com o disposto no art. 735º do Código Civil, não deixa agora dúvidas: a graduação faz-se de acordo com o disposto no Código Civil. O privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos laborais é graduado depois de ressarcidos todos os créditos por despesas de justiça (artigo 746º do CC), mas antes dos créditos do Estado previstos no nº1 do artigo 748º, nº1 do CC (nomeadamente, antes do imposto municipal sobre imóveis e do imposto municipal sobre transmissão onerosas de imóveis), dos créditos das autarquias locais e dos créditos relativos a Segurança Social. Tal privilégio prefere ainda sobre a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção, mesmo que estas garantias se tenham constituído em momento anterior à declaração de insolvência (artigos 668º, nº1, e 751º do CC). O crédito do apelante, na parte em que se encontra garantido pelo privilégio especial imobiliário, será, assim, de graduar em primeiro lugar, tal como por si é defendido nas suas alegações de recurso. A apelação é de proceder na íntegra. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, relativamente à graduação de créditos respeitante ao único imóvel apreendido para a massa, e que se altera nos seguintes termos: “Em relação ao remanescente do produto da venda do bem imóvel, graduam-se os créditos com vista ao pagamento pela seguinte ordem: A) Créditos salariais do trabalhador A (...) ; B) Crédito de IMI; C) Créditos garantidos por Hipoteca (pela preferência resultante dos registos); D) Os demais créditos fiscais na parte assinalada como privilegiada; E) Crédito da Segurança Social; F) Do remanescente do produto da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (neles se incluindo o crédito da credora N (…); G) Do remanescente do produtor da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados (nomeadamente os juros de créditos comuns), pela ordem prevista no art. 48º do CIRE, na proporção dos respetivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, em caso de insuficiência da massa para o seu pagamento integral – art. 177º, nº1, do CIRE”. Sem custas.
Coimbra, 24 de fevereiro de 2015
Maria João Areias ( Relatora ) Fernando Monteiro Luís Cravo
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC. 1. Dentro dos poderes atribuídos ao administrador de insolvência cabe, não só, o reconhecimento de créditos não reclamados, mas ainda, o reconhecimento de garantias não invocadas ou insuficientemente alegadas. 2. Tendo o administrador de insolvência reconhecido um privilégio imobiliário especial sobre o único imóvel da massa sobre determinados créditos laborais, privilégio que não foi objeto de impugnação, o mesmo deverá ser atendido pelo juiz, “salvo erro manifesto”, procedendo à graduação dos créditos em atenção ao que conste da Lista elaborada pelo A.I. 3. O privilégio imobiliário especial conferido pela al. b), do art. 333º do CT, incide sobre os imóveis que integrem de forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes. 4. Tendo sido apreendido um único imóvel para a massa, imóvel que, além do mais, correspondia à sede da empresa/insolvente, é de presumir que a atividade da devedora/entidade patronal, fosse aí desenvolvida.
|