Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
550/09.3GCAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: AMEAÇA QUALIFICADA
CRIME PÚBLICO
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO - COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS: 153º E 155º CP
Sumário: O crime de ameaça agravado ou qualificado tem a natureza de crime público.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra
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No processo supra identificado, o arguido PS... vinha acusado da autoria material e em concurso real:
- Um crime de violação de domicilio, p e p pelo art. 190 nº 1 do CP;
- Um crime de ameaça, p e p pelo art. 153, nº 1 e 155, nº 1, al. a) do CP.
Na audiência de julgamento e na sequência de requerimento de desistência da queixa, foi proferido despacho, do seguinte teor, do qual veio a ser interposto o presente recurso:
O arguido PS..., vem acusado nos presentes autos da prática de um crime de violação de domicílio p.p, pelo artº190º, nº1 do C.Penal e de um crime de ameaça p.p. pelos artigos 153º, nº1 e 155º, nº1, alínea a), do C.Penal.
Não se suscitando quaisquer dúvidas àcerca da natureza semi-pública de violação de domicílio(c.f.r. o artº 198º do C.Penal), importa referir que em relação ao crime de ameaça imputado ao arguido, e salvo muito devido respeito por opinião contrária ,consideramos que a situação a que alude a alínea a), do nº 1 do artº 155º, tal como aliás resulta da epígrafe de tal artigo, apenas se traduz numa agravação da moldura penal do crime base ( o do artº 153º ou do artº 154º do Código Penal), não constituindo a situação de tal alínea, um novo tipo legal de crime.
Considerando assim, que o artº 155º, nº1,alínea a), apenas se traduz numa agravação da moldura do crime base e sendo o crime base-neste caso, o do artº 153º, nº1, de natureza semi-pública(c.f.r. o nº2 do artº 153º), consideramos nós que será relevante a desistência da queixa agora apresentada também no que diz respeito ao crime de ameaça.
Nestes termos, atendendo à natureza semi-pública dos crimes imputados ao arguido e face à legitimidade e tempestividade da desistência de queixa e respectiva aceitação, julgo válida e relevante tal desistência que homologo, declarando em consequência extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido.(artº 116º, nº2, 153º, nº2 e 198º, todos do C.Penal e 51º, nº2 do C.P.P.).
Sem custas , por não serem devidas.
Notifique.
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Inconformado, o Magistrado do Mº Pº interpôs recurso deste despacho, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objecto:
1)Conforme supra se referiu, a actual redacção do n° 2 do artigo 153° reporta-se, exclusivamente, à descrição contida no n° 1 desse mesmo art. 153°.
2)O artigo 155°, que, ora, prevê o tipo-de-ilícito de ameaça agravada, não contém qualquer critério que faça depender de queixa o respectivo procedimento criminal nem existe, no Código Penal, qualquer norma autónoma que estabeleça a natureza semi-pública da previsão e punição contidas nesse art. 155°.
3)Na falta de norma expressa que indique que o procedimento criminal depende de queixa o crime tem natureza pública.
4)À semelhança do que ocorre com diversos outros tipos-de-ilícitos penais previstos no Código Penal, a forma simples/base assume natureza semi-pública e quando agravados/qualificados passam a ter natureza pública.
5)O que, aliás, no caso em apreço, foi intenção clara e expressa do legislador.
6)Intenção essa que se revela coerente porquanto a agravação do tipo-de-ilícito de ameaça se reporta às mesmas circunstâncias que qualificam o tipo-de-ilícito de coacção grave/qualificada, previsão essa que sempre esteve contida no art. 155º e cuja natureza pública nunca foi questionada.
7)E tanto mais clara foi a intenção legislativa de conferir natureza pública ao crime de ameaça agravada que o legislador não fez integrar no corpo do anterior nº 2 do art. 153º, que previa a forma qualificada do ilícito de ameaça, as circunstâncias que qualificavam o tipo-de-ilícito de coacção - cfr. Exposição de Motivos do Anteprojecto de Revisão do Código Penal.
8)Antes pelo contrário, revogou o anterior nº 2, passando o anterior nº 3 a nº 2, e passou a integrar, de forma autónoma, a previsão agravada do ilícito de ameaça no corpo do art. 155° sem fazer depender o procedimento criminal de tal previsão de queixa.
9)Não faria sentido que o legislador pretendesse manter a natureza semi-pública do ilícito penal de ameaça agravada e seguisse a técnica legislativa de revogar o anterior nº 2 do art. 153°, autonomizando a previsão qualificada desse ilícito e deixando de fazer depender de queixa o procedimento criminal através de preceito expresso, em vez de, pura e simplesmente, alterar e/ou acrescentar a previsão do anterior nº 2.
10)Face ao exposto, e atenta a natureza pública do ilícito penal ameaça agravada pelo qual o arguido vinha, além do mais, acusado, a desistência de queixa apresentada pela ofendida, nessa parte, é irrelevante e, como tal, inoperante.
11)E, subsequentemente, não podia, a referida desistência, ter sido homologada nem, em consequência, ter sido declarado extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido nessa parte.
12)A decisão recorrida, ao homologar a desistência de queixa apresentada, in casu, pelo ofendida, no que ao ilícito penal de ameaça agravada concerne, e, em consequência, ao declarar extinto o procedimento criminal, nessa parte, contra o arguido, violou o disposto nos arts. 48° e 51° do Cód. Proc. Penal e os arts. 116° e 155° do Cód. Penal.
Deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência revogada a decisão recorrida na parte em que homologou a desistência de queixa da ofendida quanto ao crime de ameaça agravada.
Não foi apresentada resposta.
Foi elaborado despacho de sustentação do recorrido
Nesta instância a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta, emite parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
Responde o arguido, pugnando pela manutenção do decidido.
Foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência, cumpre-nos decidir.
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Conhecendo:
O objecto do recurso do Ministério Público incide sobre a questão de saber se é ou não admissível a homologação da desistência de queixa, quando o arguido está acusado de crime de ameaça agravado p. e p. nos arts. 153 nº 1 e 155 nº 1-a) do Código Penal, cometido em 7/10/2009.
Importa, pois, determinar se o crime de ameaça agravado imputado ao arguido é de natureza pública ou semi-pública.
Na vigência do Código Penal na versão original e posteriores alterações, mas antes da alteração operada pela Lei 59/2007, o crime de "ameaça" e o de "ameaça agravado" eram de natureza semi-pública (artigo 155 nº 3 do CP na versão original e artigo 153 nº 3 do CP na versão revista em 1995), o que significava que dependiam de queixa do respectivo ofendido/queixoso e poderiam ser objecto de desistência dessa mesma queixa até à publicação da sentença em 1ª instância.
Antes da reforma aprovada pela Lei nº 59/2007, de 4/9, a forma qualificada do crime de ameaça (que consistia na circunstância de a ameaça ser com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos) estava prevista na mesma norma que previa a forma simples ou base do tipo legal.
A ratio da agravação consistia, como diz Taipa de Carvalho in "anotação ao art. 153, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 345., "na razoável consideração legislativa de que há, no geral dos casos, uma proporção directa entre a gravidade do crime objecto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação: quanto mais grave aquele for maior será esta perturbação."
Por isso, concluiu que essa agravação se traduzia num crime de ameaça qualificado pela gravidade do crime ameaçado.
Assim, o tipo base ou simples e o tipo qualificado do crime de ameaça (previstos na mesma norma) tinham natureza semi-pública antes da entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 4/9.
Com a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4/9, o legislador entendeu alterar a natureza do crime de ameaça agravado ou qualificado.
Com efeito, enquanto o crime base (previsto no artigo 153 do CP na versão de 2007) manteve a natureza semi-pública (ver nº 2 do mesmo artigo), o mesmo já não sucedeu com o crime qualificado (previsto agora também no artigo 155, onde não se faz qualquer referência à dependência de queixa para o procedimento criminal).
Actualmente e, desde a reforma de 2007, no artigo 155 prevêem-se as agravantes aplicáveis quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coacção.
Tais circunstâncias (agravantes que, no caso do nº 1, revelam "um maior desvalor da acção", reportando-se quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coacção, traduzem um acréscimo da ilicitude em relação ao tipo base ou fundamental.
Nessa medida, verificando-se qualquer das circunstâncias agravantes previstas no artigo 155 do CP, após a reforma de 2007, o crime de ameaça (ou de coacção) passa a ser qualificado.
Tratando-se de crime qualificado obviamente que é distinto, diferente do tipo fundamental, percebendo-se que o legislador lhe confira diferente natureza, à semelhança do que sucede com outros tipos legais (v.g. artigos 203 e 204, 212 e 213, 143 e 144, do CP).
O legislador quando confere natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública (interesses esses que não podem depender da vontade de particulares apresentarem ou não queixa).
De resto, não existe qualquer outra norma a conferir a natureza de crime semi-público (ou a fazer depender de apresentação de queixa o procedimento criminal) no caso de se verificar a agravação prevista no artigo 155 do CP, na versão de 2007.
Nessa medida, não se pode defender (como se fez no despacho sob recurso) que apesar da agravante imputada ao arguido alínea a) do nº 1 do art. 155, o tipo legal é tão só o de ameaça tipificado no artigo 153 do CP.
É que não se trata apenas da agravação da pena, mas antes de crime (de ameaça) qualificado ao nível do tipo de ilícito (como sucede no caso do nº 1 do artigo 155, onde se prevêem circunstâncias que revelam um desvalor mais acentuado da acção do agente) e de crime agravado pelo resultado (como sucede no caso do nº 2 do mesmo artigo 155).
Ao arguido foi imputado o crime de ameaça agravado ou qualificado previsto nos artigos 153 nº 1 e 155 nº 1-a) do CP, que é distinto do crime base previsto no artigo 153 do mesmo código.
Tal crime qualificado não depende de participação, sendo de natureza pública.
Nessa medida é irrelevante a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravado aqui em apreço.
No mesmo sentido, entre outros, Acórdãos da Rel. Porto, de 1/7/2009, proferido no processo nº 968/07.6PBVLG.P1, e de 6/1/2010, proferido no recurso nº 540/08.3TAVLG.P1.
No mesmo sentido, Ac. da Rel. Guimarães, de 15-11-2010, no processo 343/09.8GBGMR.G1, com o sumário, “O crime de ameaça agravado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs153º, nº1 e 155º, nº1, ambos do C.Penal passou, após a redacção que lhe foi dada pela Lei nº59/2007, de 04/09, a ter natureza pública”.
Nesse aresto se refere, sempre que há um crime "simples" e um "qualificado" ou "agravado", «se o legislador pretende atribuir natureza "semi-pública" ao simples e "pública" ao qualificado, coloca a menção de que "o procedimento criminal depende de queixa" após a definição do tipo simples e antes do qualificado, leva-nos a concluir que se trata de crime público. É assim nas ofensas corporais (arts. 143 e 144), no furto (arts. 203 e 204), no abuso de confiança (art. 205 nºs 1, 3 e 4) e na burla (arts. 217 e 218). Quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie, é no fim do respectivo capítulo que faz a concretização - p. exemplo, arts. 178 (para os crimes sexuais) e 187 (para os crimes contra a honra)».
No mesmo sentido, Ac. da rel. Lx de 13-10-2010, proferido no Proc. 36/09.6PBSRQ.L1 3ª Secção.
Do exposto entendemos não ser de sufragar a posição assumida no despacho recorrido e sustentada com fundamento na opinião de Pedro Daniel dos Anjos Frias, in Revista Julgar nº 10, pág. 39 a 57.
É certo que para a reacção penal mais gravosa prevista no art. 155 do CP, será sempre necessário o preenchimento do tipo matricial do art. 153 nº 1. Mas o mesmo acontece em relação ao crime de furto simples e furto qualificado, arts. 203 e 204, referindo aquele os elementos objectivos do tipo e limitando-se este a referir, “quem furtar”, sendo que necessária mente tem de ser “coisa móvel alheia”, o mesmo em relação ao dano simples e qualificado, arts. 212 e 213 em que em ambos se reproduzem os mesmo elementos do tipo, apenas acrescentando este as qualificativas e como em relação ao dano, no crime de ofensa à integridade física simples e grave, arts. 143 e 144 do CP.
Por outro lado, verifica-se que na ofensa à integridade física simples, art. 143 nº 2 do CP, não é possível a desistência da queixa, já que o procedimento criminal não depende de queixa, “quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções e por causa delas” e, uma das qualificativas da ameaça, art. 155 nº 1 al. c) do CP, é esta concretizar-se contra as pessoas referidas na al. l) do nº 2 do art. 132, no exercício das suas funções ou por causa delas, sendo que essas pessoas são, entre as demais indicadas na referida alínea l), “agente das forças ou serviços de segurança”, “agente de força pública”, no exercício das suas funções ou por causa delas.
Ora, a razão para que a ameaça agravada seja crime público, nesta hipótese será a qualidade do sujeito ameaçado, e esta será a razão para que “não se possa dar relevância à vontade da vítima”.
Situação idêntica à da qualificativa da al. b) do nº 1 do referido art. 155 do CP, em que a ameaça é praticada “contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”. Visa-se uma maior protecção do sujeito ameaçado, dada a sua especial vulnerabilidade.
E, não faria qualquer sentido que a ameaça qualificada pelas als. c) ou b), do art. 155 nº 1 do CP fossem insusceptíveis de desistência da queixa e, a qualificada pela al. a) tivesse tratamento jurídico diferenciado.
Sendo que estas qualificativas das als. b) e c) do art. 155 inexistiam como agravantes da ameaça, antes da alteração operada pela Lei 59/2007.
Entendemos, pois, que assiste razão ao recorrente, alegando que o Sr. Juiz a quo não podia ter homologado a desistência de queixa quanto ao dito crime de ameaça agravado imputado ao arguido.
Assim, que se revoga a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos quanto ao crime de ameaça agravado imputado ao arguido.
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Questões diferentes e, a ter em conta oportunamente, são as de saber se haverá lugar à ameaça e, em caso afirmativo, se há lugar à agravação.
Ameaçar é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro.
A acusação apenas indica que a ofendida foi perseguida com dois punhais empunhados pelo arguido ao mesmo tempo que dizia, “quem é o primeiro? quem é o primeiro?”, e que o arguido agiu “por forma a perturbar o sentimento de segurança da ofendida, bem sabendo que a assustava”.
Que mal futuro se anunciou? A haver perigo parece ser no imediato.
Ameaça com a prática de que crime?
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Decisão:
Acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que considere irrelevante a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravado imputado ao arguido e ordene os subsequentes trâmites processuais.
Sem custas.

Jorge Dias (Relator)
Brízida Martins