Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
681/10.7GBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
VALOR PROBATÓRIO
AUTO
Data do Acordão: 09/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 150.º E 355.º E SEGUINTES, DO CPP
Sumário: I - Não refutando in limine a posição de a reconstituição do facto, quando feita com a colaboração do arguido, não dever ser confundida com as declarações por este, então, prestadas, gozando, por isso, de autonomia, como específico meio de prova que, efectivamente, é, torna-se, contudo, indispensável que, em substância, se possa assentar, sem sofisma, estarmos perante prova por reconstituição, tal como legalmente definida no artigo 150.º do CPP, característica que lhe há-de advir, não por via da semântica a que aqui e ali se recorre, mas, pelo contrário, pelo conteúdo do auto revelador da diligência.

II - Quer se adopte a posição mais restritiva - traduzida na negação à reconstituição do facto de poder probatório para atestar a existência ou inexistência de um determinado facto histórico, reservando a reconstituição para o campo da mera verificação do modo e condições em que hipoteticamente terá ocorrido o facto probando -, quer a posição mais alargada - sustentado que a reconstituição é um meio válido de demonstração da existência de certos factos -, não pode a mesma servir finalidades de obtenção, conservação da prova, designadamente por confissão, sob pena de a consideração/valoração do respectivo auto conduzir à violação do disposto nos artigos 355.º e ss. do CPP, por aquele apenas conter verdadeiras “declarações”.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito do processo comum coletivo n.º 681/10.7GBTMR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, mediante acusação pública, foram submetidos a julgamento os arguidos A…, B…  e C… , todos melhor identificados nos autos, sendo-lhes, então, imputada a prática, em co-autoria material, de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 2, al. e) do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por acórdão de 11.03.2013 do Tribunal do Círculo Judicial de Tomar, veio a acusação pública a ser julgada improcedente e, em consequência, os arguidos absolvidos dos imputados crimes.

3. Inconformado com o, assim, decidido recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:       
I. No atinente à impugnada matéria de facto, face ao disposto pelo art.º 412.º, n.º 3, al. a) do CPP, apontam-se como incorrectamente julgados todos os factos dados como não provados constantes da acusação deduzida, indicados no ponto 2.b do acórdão recorrido.     
II. O Tribunal não podia retirar, como retirou qualquer valor probatório ao verter nos fundamentos de facto o afastamento do Auto de Reconstituição, por não conter os elementos necessários para comprovar a regularidade do ato, violando o disposto pelos art.ºs 99.º e 150.º, ambos do CPP.     
III. Na verdade, nenhum dos referidos preceitos exige para a regularidade do Auto de Reconstituição que seja precedido de despacho da autoridade judiciária e muito menos que nele se faça nova informação dos direitos e deveres nem a sua formalização, quando é certo que,      
IV. Nos autos consta de fls. 66 a 67, a constituição como arguido do A..., devidamente assinada pouco mais de uma hora antes de se iniciar a reconstituição; com a explicação dos respetivos direitos e deveres
V. Daí que tal meio de prova não possa considerar-se, como foi considerado pelo Tribunal ferido de qualquer vício/nulidade, tendo de ser apreciado em julgamento conjugadamente com os restantes de prova produzida e à luz das regras da experiência comum, de acordo com as regras do art.º 127.º do CPP.
VI. Articulando-se com os restantes elementos de prova, designadamente todas as buscas, apreensões e entregas dos objectos, identificados como foram pelos ofendidos ou seus familiares, proprietários das casas onde foram praticados os furtos, e que os arguidos guardavam, entre outros locais, nas casas onde residiam e na dos seus pais.
VII. Levando, na conjugação das diversas provas apresentadas em audiência, quer entre si quer com as regras da experiência comum, a evidenciar a veracidade da reconstituição efetuada pelo arguido, A...; não estando o tribunal perante factos que não ocorreram ou não podiam ter sequer ter ocorrido e muito menos que não se alcancem os seus autores.
VIII. Com os pormenores de atuação de cada um dos arguidos reportados como foram na reconstituição, recorrendo no que se mostrar necessário à visualização do DVD – minuto 26.12 a 43.45 -, na cassete 1 e que a testemunha,  D…, apontou de forma inequívoca, na audiência de julgamento realizada no dia 18/02/2013, como consta da gravação integral Habilus Media Studio (minutos 05.10 a 06.28), impõem-se conclusões diferentes das retiradas pelo Tribunal.
IX. Não se apurando que o arguido, A..., fosse por qualquer forma limitado na sua liberdade; coagido ou determinado a participar na reconstituição efetuada, enquadrando o recurso aos métodos proibidos enunciados no art.º 126.º do CPP, o auto de reconstituição apenas pode ser considerado legalmente realizado, nos termos do art.º 150.º do CPP.
X. Aliás, sem indicar o vício de que enferma e não o valorando, o Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação, o disposto pelos art.ºs 58.º; 59.º; 61.º; 99.º; 126.º; 127.º e 150.º, todos do CPP,
XI. Ao não conjugar os Autos de apreensão e o de reconstituição com as restantes provas produzidas, o Tribunal não fez uma correta apreciação ou exame crítico da prova, violando não só as referidas normas mas também o disposto pelos art.º 374.º, n.º 2, do CPP, sendo nulo o acórdão nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal.
XII. Assim, devem ter-se por incorretamente julgados todos os factos dados como não provados da acusação deduzida, como foram indicados no acórdão recorrido – fls. 405 e 406 – que deverão ser dados como provados e os arguidos A..., B... e C..., condenados pela prática de todos os crimes de furto pelos quais foram acusados ou então que se determine a repetição do julgamento nesta conformidade, face ao disposto pelo art.º 426.º, n.º 1, do CPP.
XIII. Termos em que e por todo o exposto, revogando o acórdão recorrido,

V.ª s Ex.ªs farão JUSTIÇA!

4. Ao recurso respondeu o recorrido C..., defendendo o bem fundado do acórdão recorrido, designadamente ao desconsiderar o “auto de reconstituição”, por não se mostrar conforme às normas, pugnando, em consequência, pela improcedência do recurso.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal.

6. Na Relação, pronunciou-se o Exmo. Procurador – Geral Adjunto nos termos do parecer junto a fls. 403 a 405, no sentido da procedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nenhum dos sujeitos interessados reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso
De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
No caso em apreço insurge-se o recorrente contra a não valoração, para efeito da formação da convicção, do «auto de reconstituição» de fls. 68 e ss. [indicando como disposições violadas os artigos 99º, 150º, 58º, 59º, 61º, 126º e 127º do CPP], impugnando, em consequência, também com esse fundamento, a matéria de facto – concretamente todos os factos não provados.
                 Por outro lado, convoca o artigo 374º, nº 2 do CPP, normativo que – pela ausência da «leitura articulada» da prova e respectiva apreciação crítica – teria resultado postergado.


2. A decisão recorrida

Ficou a constar do acórdão recorrido [transcrição parcial]:

     
II. Fundamentação dos factos

a) factos provados

No período compreendido entre as 17H30 do dia 25 de Novembro de 2010 e as 09H00 do dia 27 de Novembro de 2010 e, posteriormente, a hora indeterminada do dia 02 de Dezembro de 2010, alguém que não foi possível identificar, dirigiu-se a uma moradia sita em (…) – Tomar e conhecida como “(…)”, pertença de E…, ali entrou e retirou objectos e valores que ali encontrou fazendo-os seus.
Em execução do plano arquitectado quem assim procedeu, na primeira ocasião, utilizando uma chave de fendas e na segunda ocasião objecto não concretamente apurado, rebentou a fechadura da porta de entrada principal da casa, logrando assim abrir a mesma, após o que entrou no seu interior.
Rebentou ainda a porta de uma arrecadação anexa à residência, onde também entrou.
Do interior da casa e da arrecadação e nas duas ocasiões em que aí se deslocou, quem o fez retirou e levou consigo os seguintes objectos:
- um aparafusador de marca BOSCH, modelo PSR24B, nº de série 784002072, cor verde e cinzenta e respectivo carregador, avaliado em € 75,00
- um berbequim marca Bosch
- uma extensão de 25 metros com a referência 10162852, marca Leroy Merlin, avaliada em € 50,00
- um rádio antigo de madeira, marca “Diana”, de forma rectangular, avaliado em € 75,00
- uma caixa em plástico de cor amarela e preta, contendo no seu interior diversas ferramentas, avaliada em € 500,00
- quatro edredons marca IKEA
- vinte e quatro toalhas de vários tamanhos, marca Armazém Americano, sendo seis próprias para uso em piscina
- nove fronhas de almofada, das marcas Área e Zara Home
- uma máquina de lavar roupa marca Ariston AVXL 140
- dois tapetes de sala em lã com 1,70 metros/2,40 metros
- dois tapetes de pele de cabra com 1,50 metros/1,00 metros
- dois candeeiros dourados
- um televisor marca Sony Bravia KDL20G2000AEP
- um DVD marca Philips DVP5160
- uma banda larga TMN (USB)
- uma coluna de som Bose Sound Dock
- um Ipod nano 8GB
- uma máquina de café marca nexpresso City Z
- uma thermomix (Bimbi)
- um computador portátil HP Pavilion
- um micro-ondas cor cinza, marca Samsung
- um Nintendo DS com quatro jogos
- uma máquina de barbear marca Rowenta
- cerca de vinte e cinco DVD contendo filmes vários e séries de televisão
- dois martelos marca Dexter
- um estojo de brocas com 38 peças, marca Dexter
- um conjunto de seis aparafusadoras marca Irazola Premium
- um conjunto de seis chaves combinadas marca Stanley
- um nível de lazer marca Bosch PLL5
- um alicate marca Dexter
- oito brocas de ponta de diamante marca Dexter
- dez chaves marca Allen
- uma lanterna Duracel B1 5000
- dois metros de velcro branco
- uma chave inglesa 150 mm.
- uma chave Stanley 12
- dez metros de cabo bipolar branco
- um saco contendo número indeterminado de parafusos de argola
- uma broca de 14 mm.
- um pincel
- uma embalagem de massa de reboco
- dez metros de cinta para cortinas
- uma embalagem de cola instantânea marca Superglue
- um x-acto 18mm.
- uma pistola aplicadora de silicone
- cinquenta e nove talheres (garfos, facas, colheres, concha de sopa) marca Zara Home
- oito chávenas de porcelana de cor preta e dourada, marca Area
- quatro argolas douradas de guardanapo, marca Zara Home
- um candeeiro branco marca Ikea
- dois candelabros de metal e vidro vintage marca Área
- três cinzeiros de procelana marca Shangay Liu
- um cinzeiro redondo em aço marca Maison Decor
- uma jarra metálica cilíndrica marca Shangay Liu
- uma figura de cão em cerâmica azul de Rimini
- quatro molduras para fotografias
- uma luneta telescópica de tripé
- um banco de ferro dobrável
- uma escultura da artista Sigita Lokosiuniene
- uma cabeça de mulher de bali, em bronze
- uma cabeça de urso em resina/Kioskos de Madrid
Quem assim procedeu ausentou-se do local e levou consigo todos estes objectos, em valor total não apurado mas de cerca de € 9.000,00, que fez seu.
Na sequência de buscas efectuadas na Rua X… – Abrantes, onde habitavam os pais dos arguidos B... e C... e na Rua Y… – Abrantes onde, então, habitava o arguido C..., aí vieram a ser encontrados e apreendidos, os supra referenciados aparafusador, a extensão eléctrica de 25 metros, a caixa contendo várias ferramentas e o rádio antigo marca “Diana”, encontrando-se este último na então residência do arguido C... e os restantes na dos pais dos arguidos C... e B....
Mais se provou [referência aos antecedentes criminais dos arguidos/recorridos].

b) factos não provados

Não se provou que tenham sido os arguidos que praticaram estes factos.
Não se provou que tenham sido os arguidos que se dirigiram para o local no veículo de matrícula RJ (...), de marca Peugeot, modelo 205, pertença do arguido A... que era o seu condutor.
Que os arguidos dividiram estes objectos entre si e levaram-nos para uma casa sita na Rua  X…  – Abrantes, onde habitavam os pais dos arguidos B... e   C... e para uma casa sita na Rua Y… – Abrantes onde, então, habitava o arguido C....
Que os arguidos A..., B... e C... tenham agido com o propósito concretizado de se apoderarem e fazerem seus os objectos supra descritos, apesar de saberem que os mesmos não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade e sem autorização do respectivo dono.
Que os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços e sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

c) fundamentação dos factos

Os factos acima provados tiveram por fundamento a seguinte motivação, depoimento da testemunha E…, dono do imóvel, disse que recebeu uma chamada telefónica da sua vizinha F… dando-lhe conhecimento de que a sua casa tinha sido assaltada, por duas vezes, em Novembro e Dezembro de 2010, que veio para Portugal para se inteirar do que tinha acontecido, confirmou que lhe tinham furtado a casa, forçando a fechadura e fez uma relação dos objectos que lhe furtaram (fls 14 e ss); o valor deles foi por referência ao preço que peles deu e os restantes pelo valor comercial dos mesmos; os agentes da autoridade G… e H.. deslocaram-se ao local e constataram os factos, ou seja a casa aberta fruto de ter sido forçada a fechadura; o agente D… elaborou e participou no auto a que chamou de reconstituição dos factos de fls. 68, mas que em bom rigor não pode ser tido como tal; na verdade a reconstituição dos factos e de acordo com o que dispõe o art.º 150º nº 1 do CPP consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo; e o n.º 2 do preceito determina o que deve constar do despacho que ordena a reconstituição do facto; ora a fls. 72 dos autos o que temos é o arguido A... a descrever aos agentes da autoridade o que ele juntamente com o B... e o C... fizeram; não pode ter-se por bem elaborado e de acordo com o que refere o art.º 150º nº 1 do CPP esta diligência denominada reconstituição dos factos; nas buscas foram encontrados alguns objectos do queixoso E..., mas na de fls. 44 aí moram os pais dos arguidos B... e C... e na busca de fls. 46 aí moram o I... mais a mulher J... e o C... mais a namorada L...; não podemos com certeza dizer que aqueles bens chegaram aquele local por terem sido furtados pelos arguidos; as demais testemunhas nada presenciaram.
Foram ainda elementos de prova os certificados dos RC.

3. Apreciando
Dissente o recorrente da matéria de facto vertida no acórdão recorrido, concretamente dos factos [todos] que o Colectivo deu como não provados, surgindo na base da discórdia a circunstância de o Tribunal a quo haver desconsiderado – afastando a respectiva valoração - o «auto de reconstituição» de fls. 68 e ss., indicado como meio de prova pela acusação.
Com efeito, defende que caso assim não tivesse sucedido, considerando os demais elementos de prova, designadamente documental – autos de busca, apreensão e reconhecimento dos objectos –, apreciados, conjugadamente, à luz das regras da experiência, não poderia o Colectivo ter deixado de chegar aos seus autores, naturalmente, os arguidos/recorridos.
É, pois, crucial debruçarmo-nos sobre a prova por reconstituição para concluirmos se merece censura a expressa desconsideração – não valoração -, para o efeito de formação da convicção, do auto de fls. 68 e ss.
Previamente, contudo, vejamos o que do mesmo ficou a constar.
Sob a designação «AUTO DE RECONSTITUIÇÃO DOS FACTOS» e após se mostrar consignado «Aos vinte e dois (22) dias do mês de Dezembro do ano de 2010 procedeu-se à reconstituição dos factos referentes ao NUIPC acima indicado, estando presentes no acto além do arguido A... o(s) Órgãos de Polícia Criminal … a prestar serviço no Núcleo de Investigação Criminal do Destacamento Territorial da GNR de Tomar» na parte relevante para os presentes autos ficou exarado:
«O Arguido informou também que na mesma noite, pelas 01H00/02H00 deslocou-se igualmente com o B... e com o C... a uma outra residência localizada ali perto e denominada   (...), referindo que se deslocaram pelo mesmo local, no entanto deixaram o veículo numa estrada localizada na parte inferior, vindo posteriormente para a referida residência reformulando o facto de a mesma não possuir alarme na data em que praticaram o furto.
O Arguido aponta para o local onde o veículo ficou estacionado e indica que se dirigiu para junto deste, onde aguardou a fim de verificar se aparecia alguém, enquanto que o B... e o C... se introduziram na propriedade, sabendo indicar que não estaria ninguém porque estava uma janela com as portadas fechadas, tendo então o B... espreitado para o interior com a utilização de um fox, fazendo inclusivamente referência ao facto de ser possível visualizar a cozinha. De seguida, o B... e o C... foram junto do veículo chamar o Arguido e dirigiram-se todos para junto da porta onde o C... forçou o postigo com uma chave de fendas, acedendo posteriormente à parte interior destrancando a mesma. O Arguido indicou que do interior da habitação subtraíram um (1) televisor LCD de marca “Sony”, modelo “Bravia”, uma máquina de café, cápsulas, um dvd (leitor de dvd), filmes, colchas, tapetes, lençóis. Relativamente aos artigos furtados refere que C... ficou com os lençóis e os tapetes, o Arguido com o LCD que se encontrava avariado, motivo pelo qual veio a deitar fora. O Arguido informa ainda que se deslocaram aquela habitação por uma segunda vez nessa mesma noite, porque o B... quis ir buscar uma máquina de lavar roupa de marca “Ariston” que se encontrava no anexo da residência. Que inclusivamente o B... deu dinheiro ao Arguido para pagar o combustível. O Arguido informou também que passados alguns dias através de uma conversa que teve com o C... este veio a referir que voltou lá novamente com um colega com a alcunha R...e que é possuidor de um veículo automóvel de marca “Hiunday”, côr vermelha e levaram mais endredons e roupas de cama. Questionado se quando praticavam os furtos faziam uso de luvas, o Arguido informou que sim e que o planeamento para praticar os furtos nas residências era feito ao acaso, no entanto verificavam sempre se estava alguém na residência. Em acto contínuo, o Arguido indicou o local onde estacionou o veículo na noite do furto, referindo que em virtude dos artigos serem muitos, foi lá deixado o motor a gasolina de uma avião telecomandado, motor esse que veio de uma outra residência em São Pedro na mesma noite, explicando que em virtude do motor não caber no veículo juntamente com os tapetes e a máquina de lavar, indicou o local onde o motor foi deixado. O Arguido indicou também o anexo onde se encontrava a máquina de lavar roupa, referindo que a entrada foi efectuada pela porta depois do B... ter desferido um pontapé na mesma. Que para além da máquina de lavar foi também subtraída uma caixa de ferramentas. Em acto contínuo o Arguido indicou a janela que dá acesso à cozinha de onde o C... subtraiu uma máquina de café “Nespresso”. Dos artigos ali subtraídos o Arguido (A...) apenas ficou com o LCD avariado sendo os restantes vendidos ao Amílcar, desconhecendo no entanto o valor pelo qual foram vendidos em virtude de não ter recebido qualquer montante.
Terminada a diligência neste local pelas …».
O dito «Auto de Reconstituição dos Factos» mostra-se assinado pelo arguido A... e, de seguida, pelos vários militares da GNR, entre os quais a testemunha D…, cujo depoimento é invocado na petição recursiva.
Especificamente a propósito de tal meio de prova dispõe o artigo 150.º do CPP:
«1. Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
2. O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audovisuais …
(…)».
Refere Germano Marques da Silva que a «reconstituição consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo (art. 150.º, n.º 1) e tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma.
A reconstituição, contrariamente à generalidade dos meios de prova, não tem por finalidade a comprovação de um facto histórico, mas antes verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma da sua execução. A reconstituição do facto é uma representação da realidade suposta e por isso para ter utilidade pressupõe que o facto seja representado, tanto quanto possível, nas mesmas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e que se possam verificar essas condições» - [cf. “Curso de Processo Penal”, T. II, Verbo, 2002, pág. 196].
Também Manuel Simas Santos e Manuel Leal – Henriques se pronunciam sobre a matéria adiantando que se dá «… a reconstituição quando se procura certificar a forma como determinado facto terá ocorrido, tentando repeti-lo nas mesmas circunstâncias de modo e lugar, a fim de se aquilatar do merecimento da descrição que dele é feita pelos intervenientes processuais» - [cf. Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, 2010, pág. 213].
A reconstituição do facto é, pois, um processo de «controlo experimental de um dado acontecimento, relevante para fins processuais», desenvolvido de acordo com determinadas «condições de tempo e de topografia» - Costa Pimenta, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., pág. 426.
A temática em apreço tem sido, igualmente, objecto de tratamento jurisprudencial, destacando-se, entre outros, o acórdão do STJ 03.07.2008 [proc. n.º 824/08 – 5], do qual, em síntese, ficou a constar: «I. A reconstituição do facto, como meio de prova, a que se refere o art.º 150.º do CPP representa em si um meio autónomo de prova tal como os demais legalmente admitidos. II. Envolvendo a participação de personagens que podem ter intervindo no âmbito de outras vias de captação probatória, como o interrogatório de arguido, a prova testemunhal, pericial e outros, aquela participação assume autonomia face às demais participações ocorridas no âmbito desses outros meios de prova. III. Decorre daqui que tratando-se da participação de um arguido na reconstituição do facto há que não confundi-la, por exemplo, com as suas respostas em interrogatório judicial, visto estar-se face a duas intervenções autónomas, não confundíveis e sujeitas ao regime da sua livre apreciação, tal como prevista no art.º 127.º do CPP».
Ideia que já transparecia do acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 05.01.2005, CJ, Acs. STJ XIII, 1, 159, ao considerar que « … A reconstituição do facto, prevista como meio de prova autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, uma vez realizada e documentada em auto ou por outro modo, vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» - art.º 127.º do CPP», para concluir no sentido de que «A reconstituição do facto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado da reconstituição, e as declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto diluem-se nos próprios termos da reconstituição …».
No caso concreto, considerou o Colectivo que o auto denominado de reconstituição dos factos não podia reconduzir-se a tal meio de prova já que em substância mais não traduzia do que a descrição, levada a efeito pelo arguido A..., aos agentes de autoridade, do que ele juntamente com o B... e o C... fizeram.
Interpretação que não deixa de merecer a nossa aquiescência, pois que não refutando in limine a posição de que a reconstituição do facto quando feita com a colaboração do arguido não deve ser confundida com as declarações por este, então, prestadas, gozando, por isso, de autonomia, como específico meio de prova que, efectivamente é, afigura-se-nos, contudo, indispensável que em substância, possamos assentar, sem sofisma, estarmos perante prova por reconstituição, tal como legalmente definida, característica que lhe há-de advir, não por via da semântica a que aqui e ali se recorre, mas pelo conteúdo da diligência.
Com efeito, não é o nomen juris que releva, mas antes a substância da coisa, não podendo, pois, a «reconstituição» ser confundida com meras declarações, ainda que a espaços, ilustradas, como, com o devido respeito, transparece do auto [com o teor acima reproduzido], que materializa a diligência em questão, ser o caso.
Na verdade, analisando o auto, tendo presente que na reconstituição se repoduzem as condições e, em simultâneo, se repetem os factos, visando a comprovação da possibilidade empírica de determinadas circunstâncias processualmente relevantes, forçoso se torna concluir pelo vazio do mesmo no que concerne à substância do específico meio de prova, ou seja a versão cénica que se pretendia ver reproduzida foi, pode-se dizer na íntegra, substituída pelas afirmações/reporte dos factos por parte do arguido A..., ou, dito de outro modo, a realidade dinâmica suposta por tal meio de representação dos factos resulta inexistente.
Quer se adopte a posição mais restritiva, defendida, entre nós, por Germano Marques da Silva, que se traduz em negar à reconstituição do facto o poder probatório para atestar da existência ou inexistência de um determinado facto histórico, reservando a reconstituição para o campo da mera verificação do modo e condições em que hipoteticamente terá ocorrido o facto probando [cf. o acórdão do TRC de 16.11.2005, no sentido de não ter a reconstituição «por finalidade apurar a existência do facto em si, mas se podia ter ocorrido de determinada forma» ou «que serve para confirmar ou infirmar a veracidade ou possibilidade intrínseca de outros meios de prova … que não para provar o facto em si»], quer a posição alargada – a que melhor acolhimento tem merecido no seio da jurisprudência, designadamente do STJ [cf. acórdãos de 05.01.2005 e de 20.04.2006, sustentando que a reconstituição é um «meio válido de demonstração da existência de certos factos»] - o certo é que não pode a mesma servir finalidades de obtenção, conservação da prova, designadamente por confissão, circunstância a que a consideração/valoração do auto em questão, no caso conduziria, em violação do disposto nos artigos 355º e ss. do CPP, pois que de verdadeiras «declarações», e tão só «declarações» [detectando-se a preocupação na substituição da correspondente forma verbal do verbo «dizer» pela do verbo «indicar»] , se trata.
Donde, independentemente, das questões formais, não desprezíveis, contudo – vg. que se traduzem em saber se requisito formal da «reconstituição do facto» é a sua determinação pelo juiz ou pelo Ministério Público ou se, mesmo não determinada por tais entidades, pode ainda assim ser efectuada pelos OPC no âmbito de uma investigação reservada ou com delegação de competência, regendo, apenas, o n.º 2 do artigo 150.º do CPP para os casos em que seja proferido despacho ordenando a reconstituição [cf. vg. acórdão do TRL de 08.02.2007; vd. ainda o acórdão do TRP 12.12.2007] – o facto é que razões, quanto a nós, mais definitivas, de ordem material, que se prendem com a substância do meio de prova em referência, nos conduzem a sufragar a posição perfilhada pelo Colectivo de juízes quanto à desconsideração/não valoração da prova em questão, não se vislumbrando no modo de assim proceder violação dos artigos 99º, 150º, 58º, 59º, 61º, 126º, 127º, todos do CPP.
Isto dito, não se detectando no que respeita à confecção técnica da decisão, apreciada a partir do seu texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência, qualquer dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2 do CPP, a preconizada alteração da matéria de facto para além de dever ser dirigida a concretos pontos de facto, teria de vir suportada em concretos meios de prova que impusessem decisão diversa da recorrida [cf. artigo 412.º, n.º 3 do CPP], o que não sucede, pois que sendo apontados como incorrectamente julgados «todos os factos dados como não provados constantes da acusação deduzida» [cf. o ponto I das conclusões], à parte o valor [no caso desvalor] da reconstituição – inexistente enquanto tal – o recorrente apenas remete para o depoimento da testemunha D… , a cuja audição [na íntegra] procedemos e, como tal, estamos em condição de afirmar que não é o mesmo de modo a impôr decisão diversa da recorrida, pois que para além de relatar as diligências, em que interveio, consideradas em sede de fundamentação [motivação da matéria de facto], no que respeita aos objectos apreendidos no decurso das buscas limitou-se a referir que na [busca] efectuada na Rua X…, onde residia, entre outros, o pai dos arguidos   B... e   C..., ter o mesmo dito que aqueles [objectos] não eram dele, antes haviam sido para ali levados pelo   B... [que não morava lá], enquanto que na [busca] executada na Rua Y…, onde residiam o arguido   C..., a companheira, a   L... e  I…, deu conta de ter sido o rádio encontrado numa «divisão desabitada [quarto]», quarto, esse, «que não foi reclamado por ninguém», acrescentando que «o quarto ocupado pelo   C... e companheira era outro».
Sendo este o quadro, poderia porventura defender-se que a prova produzida – no essencial, ainda que de forma sucinta, suficientemente explanada e criticamente apreciada, em sede de fundamentação, não inviabilizando, assim, a percepção do juízo subjacente que conduziu a que se tivessem como não provados os factos que o recorrente defende deveriam ter sido considerados provados, não padecendo, pois, a decisão da invocada nulidade [artigos 374.º, nº 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP] – se revela apta a consentir uma solução diferente da que veio a ser acolhida, asserção que, contudo, não é susceptível de ser confundida com o facto de a mesma [prova] assim o impor.
Nesta medida, apenas, se com recurso ao texto da decisão fosse possível afirmar uma evidente violação das regras da experiência – o que não é o caso, transparecendo, antes [de forma expressa, aliás, enquanto ali se mostra consignado «não podemos com certeza dizer que aqueles bens chegaram aquele local por terem sido furtados pelos arguidos» (sic)] a dúvida que assolou o tribunal, dúvida, essa, que, quer considerando o lapso de tempo que mediou entre a data dos factos e a da realização das buscas [superior a 15 dias], quer a identidade de objectos apreendidos [uma ínfima parte dos que haviam sido objecto de subtracção], quer as circunstâncias de lugar [as quais não consentem uma ligação definitiva aos arguidos] em que os mesmos vieram a ser encontrados, não se nos afigura de todo irrazoável – é que a matéria de facto seria susceptível de sofrer modificação.
Concluindo: não resultando violadas as disposições legais convocadas; não traduzindo, em substância, o auto de fls. 68 e ss. uma reconstituição dos factos, antes, a narrativa – ainda que aqui e ali ilustrada - prestada por um dos arguidos e, nessa medida, por se reconduzir a meras «declarações», insusceptível de, sem incorrer em violação da lei, ser valorada; não impondo a prova convocada decisão diversa da recorrida, tão pouco resultando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, vício de conhecimento oficioso a denunciar insuficiência, contradição e/ou erro ao nível da sua confecção técnica é de manter inalterada a decisão de facto e, consequentemente, de direito.           
III. Decisão  
Termos em que acordam os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.


(Maria José Nogueira - Relatora)

(Isabel Valongo)