Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
59/14.3T8TCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
OBRA PÚBLICA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/13/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – TRANCOSO – INST. LOCAL – SEC. COMP. GEN.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 334º DO C.CIVIL; ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 5 DE FEVEREIRO DE 2015.
Sumário: I – As questões relativas à reivindicação de terreno por particular, onde foi irregularmente implantada obra pública, não devem ser decididas com base na aplicação acrítica das figuras jurídicas importadas da “apropriação irregular”, da “expropriação indirecta”, ou da “ocupação apropriativa”, devendo proceder-se a uma ponderação, num juízo de proporcionalidade, da gravidade da ofensa aos interesses sociais satisfeitos pela afectação ao domínio público da propriedade privada e da gravidade do prejuízo causado ao proprietário desapossado, com eventual recurso à figura do abuso de direito.

II – Quando a afectação a um fim público de terreno pertencente a particular se baseou em doação verbal do terreno pelo particular à autarquia, deve considerar-se que, não deixando esse acto de ser nulo, por falta de forma, se traduz num assentimento à afectação a um fim público do referido terreno, sendo que a sua posterior reivindicação resulta no exercício abusivo de um direito, por venire contra factum próprio.

III – Nessas situações, a autarquia tem o direito de reagir contra actos do proprietário ou de terceiro que impeçam ou perturbem a prossecução do destino a que o terreno, por força da afectação, se encontra adstrito, incluindo a dedução de procedimento cautelar, visando a remoção desses obstáculos.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Requerente deduziu procedimento cautelar não especificado contra os Requeridos, visando o decretamento de providência que os intime a absterem-se de, por qualquer meio que seja, impedirem ou dificultarem o acesso e a passagem pelo caminho identificado nos arts. 7º e 8º do requerimento inicial e a desocuparem-no caso tal se venha a revelar necessário e, finalmente, que os condene a pagar-lhe, a título de sanção pecuniária compulsória, o montante de € 75,00 por cada dia que, por qualquer meio que seja, impeçam ou dificultem a passagem, a pé ou de carro, pelo caminho atrás mencionado, contados desde a data da citação.

Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese:

- é proprietário, por força de doação verbal feita por C..., de um terreno correspondente ao leito do caminho, que foi integrado no domínio público.

- nesse terreno o Requerente, no ano de 2003, alcatroou o caminho que era em terra batida e dotou-o de iluminação pública, construindo os serviços camarários uma rede de abastecimento público de água da qual derivam dois ramais.

- ainda em 2003 o Requerente instalou no caminho em causa um contentor para resíduos domésticos.

- Em 2007 C... doou o prédio do qual proveio o leito do cami­nho aos Requeridos, e que correspondia a um terreno que era delimitado no seu limite Norte pelo limite Sul cujo caminho já tinha doado ao Requerente.

- Descreve actos dos Requeridos que manifestam que estes não respeitam o seu direito de propriedade sobre o caminho e o de passagem de todos quantos por ele passam desde a sua existência, ambos existentes anteriormente à data do negócio celebrado pelos Requeridos e elenca os prejuízos decorrentes dessa conduta.

- Invoca também a sua qualidade de possuidor, referindo que o caminho, desde que existe, é utilizado de forma pacífica, pública, contínua e de boa-fé, sem estorvo ou oposição de quem quer que seja, designadamente sem oposição dos ora Requeridos, a pé e de carro, não só por C... e mulher, mas por todos quantos necessitam de por ele.

Os Requeridos deduziram oposição à providência requerida, questionando a sua admissibilidade e alegando que o seu decretamento acarretará mais danos para os requeridos do que o benefício que o Requerente poderá obter.

Impugnando os factos alegados pelo Requerente, concluem pela improce­dência da providência.

O Requerente respondeu, impugnando a generalidade dos documentos apresentados, concluindo como no requerimento inicial.

Veio a ser proferida decisão que julgou o procedimento nos seguintes ter­mos:

Nestes termos e nos demais de direito, julgamos procedente o presente procedimento cautelar inominado, e, consequentemente, decide-se condenar os requeridos:

A. A absterem-se de, por qualquer meio que seja, impedirem ou dificultarem o acesso e a passagem pelo caminho identificado em 4) e 5) dos factos indiciariamente provados;

B. A desocupar esse caminho caso tal se venha a revelar necessário para efetivação do determinado em A.;

C. A pagar à Requerente, título de sanção pecuniária compulsória, o montante de €75,00 [setenta e cinco euros] por cada dia que, por qualquer meio que seja, impeçam ou dificultem a passagem, a pé ou de carro pelo caminho referido em A..

Os Requeridos interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:

...

Foi apresentada resposta, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

1. Do objecto do recurso

Conforme decorre do art.º 639º, n.º 1, do Novo C. P. Civil, o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, impondo-lhe deste modo a lei, além da obrigação de alegar a de concluir, a indicação sintética das razões pelas quais entende dever o recurso ser julgado procedente.

São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso, ou seja que indicam ao tribunal superior quais os pontos discordantes da decisão que deverão corresponder àqueles que tiverem sido desenvolvidos no corpo das alega­ções, não podendo ser conhecida qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações – excepto as de conhecimento oficioso –, ainda que versada no respectivo corpo [1], afirmando nas mesmas a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados [2].

Não se exige que o recorrente, nas conclusões, reproduza o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 690º-A, nº1, a) e b) e nº2, do Código de Processo Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas uma complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara no corpo alegató­rio.

Mas esta consideração não dispensa o recorrente de fazer alusão àquela questão que pretende ver apreciada, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo a que ao ler as conclusões das alegações resulte inquestionável que o recorrente pretende impugnar o julga­mento da matéria de facto.[3]

Quanto a este aspecto – impugnação da matéria de facto e sua inclusão das conclusões de recurso – , escreve Abrantes Geraldes [4]:

Sem perder demasiado tempo com regimes anteriores, podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora passa a vigorar sempre que o recurso envolva a impugnação da matéria de facto:

a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os con­cretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.

Da leitura das extensas alegações apresentadas pelos Recorrentes resulta a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto bem como a sua vontade da mesma ser reapreciada.

Assim, no capítulo que intitulam como Da análise dos factos indiciaria­mente provados, manifestam a sua discordância quanto ao julgamento de determina­dos factos que em seu entender deveriam ser julgados de outro modo.

No entanto, nas conclusões que formulam, a finalizar as alegações de re­curso, os Requerentes não fazem qualquer alusão expressa à sua pretensão de ver reapreciada toda a matéria de facto a que aludem no corpo das alegações, descorti­nando-se apenas na alínea B das conclusões a sua discordância quanto ao facto julgado provado sob o n.º 6.

Assim, pese embora os Recorrentes não tenham identificado expressa­mente o facto em questão, sendo o mesmo identificável, deve conhecer-se da sua impugnação, não se conhecendo do demais nesta matéria que apenas se encontra no corpo das alegações, sem qualquer tradução nas suas conclusões.

Considerando o acima exposto e que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recurso cumpre apreciar as seguintes questões:

a) O processo enferma de vícios processuais que determinam a sua nuli­dade?

b) O facto julgado provado sob o n.º 6 deve ser julgado não provado?

c) O Autor não é titular de qualquer direito sobre o caminho em causa?

d) Os Recorrentes não adoptaram qualquer comportamento que possa causar prejuízo a outrem?

2. Das nulidades processuais

...

3. Dos factos

Como na delimitação do objecto do recurso se deixou dito, os Recorrentes discordam do facto provado na decisão sob o n.º 6, pretendendo que após reaprecia­ção de provas que indicam seja o mesmo julgado não provado.

Assim, para a alteração pretendida convocam os seguintes depoimento:

...

A prova deste facto encontra-se na decisão fundamentada nos seguintes termos:

No entanto, de todo o manancial probatório, resultou para nós suficiente e indiciaria­mente demonstrada a versão do requerente.

Expliquemos.

...

Face ao exposto, é de manter a resposta dada ao facto julgado provado sob o n.º 6 na decisão.

Os factos provados são os seguintes:

...

4. O Direito aplicável

A Requerente solicitou ao tribunal o decretamento, em procedimento cau­telar comum, de providência que intime os Recorrentes a absterem-se de, por qualquer meio que seja, impedirem ou dificultarem o acesso e a passagem pelo caminho identificado nos arts. 7º e 8º do requerimento inicial e a desocuparem-no caso tal se venha a revelar necessário e, finalmente, que os condene a pagar-lhe, a título de sanção pecuniária compulsória, o montante de € 75,00 por cada dia que, por qualquer meio que seja, impeçam ou dificultem a passagem, a pé ou de carro, pelo caminho atrás mencionado, contados desde a data da citação.

Na sua essência o procedimento cautelar é destinado a garantir, a quem o invoca, a titu­laridade de um direito, contra a ameaça ou um risco que sobre ele paira e que é tão imi­nente que a sua tutela não pode aguardar a decisão judicial.

Para que determine uma intervenção judicial preventiva e cautelar é neces­sário que se verifique o pressuposto comum às providências cautelares atípi­cas: – que exista uma situação de perigo de lesão do direito invocado – periculum in mora –, que cause neste um fundado receio dessa lesão se verificar, caso o tribunal a não impeça com a adopção duma medida provisória urgente – art.º 381º do C. P. Civil.

Na apreciação deste requisito não basta um simples juízo de probabili­dade, tornando-se necessário um juízo de certeza sobre a situação de perigo e de previsibi­lidade sobre a verificação iminente da lesão, susceptíveis de, objectiva­mente, justificar o receio transmitido pelo requerente com a propositura do proce­dimento cautelar [5].

Assim, são requisitos das providências cautelares não especificadas:

a) o fundado receio de que outrem cause lesão grave ou dificilmente repa­rável ao seu direito;

b) probabilidade séria da existência do direito ameaçado;

c) adequação da providência solicitada para evitar a lesão;

d) não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretenda evitar.

A decisão recorrida decretou as providências requeridas, tendo conside­rado que, apesar da Requerente não ter um título válido de aquisição do terreno onde se situa o caminho em discussão, dado que acedeu à sua posse em resultado de uma doação nula, por inobservância de forma, o princípio da “intangibilidade do domínio público”, legitima a manutenção da posse do referido terreno e consequentemente o exercício dos meios necessários para assegurar essa posse.

Os Recorrentes contestam a aplicabilidade desse princípio, vincando que o terreno onde se encontra o caminho lhes foi validamente doado, pelo que os actos que nele praticam não são susceptíveis de ofender os direitos de outrem.

Provou-se que em 2003 C... e mulher, M..., eram proprietários de dois prédios contíguos, tendo nesse ano doado um deles a A...

Anteriormente a esta doação mas no mesmo ano, C... abriu no limite norte do prédio do qual se mantiveram proprietários, um caminho que liga a estrada/caminho que limita pelo lado nascente o mencionado prédio ao limite nascente/sul do prédio que doaram a A..., para que este pudesse aceder ao seu prédio, tendo o A..., verbalmente, doado esse caminho ao Municí­pio de ...

Em 2007, C... e mulher doaram o prédio, do qual haviam permanecido proprietários, aos Recorrentes, sem nele estar incluído o terreno onde havia sido aberto o referido caminho.

Em 2003 o Município de ..., considerando-se proprietário do ter­reno correspondente ao leito do caminho, que inicialmente era em terra batida, colocou toutvenant no mesmo e quatro postes de electricidade de cimento armado com uma linha aérea de baixa tensão que iluminam uma extensão de quase 200 metros. Desde então até à presente data, é o Município de ... quem paga a electricidade consumida por esses postes de electricidade. Ainda no ano de 2003, os serviços camarários construíram no caminho em apreço uma rede de abastecimento público de água, da qual derivam dois ramais, uma para a propriedade de A... e mulher, outro para a propriedade de C... e mulher. No mesmo ano, o Requerente colocou ainda no caminho um contentor para resíduos domésticos, sendo, desde então, efectuada regularmente a respectiva recolha, quer pela actual, quer pela anterior sociedade concessionária destes serviços que, para o efeito, sempre utilizaram o mencionado caminho.

Estamos perante actos que revelam a destinação do caminho a uma utiliza­ção pública, pelo que a realidade descrita configura uma situação de afectação a um fim público de terreno não pertencente a uma entidade pública, uma vez que tendo a doação ao Município do terreno onde se encontra implantado o caminho sido efectuada verbalmente a mesma é nula, por inobservância de forma - art.º 947º, n.º 1, e 220º do C. Civil.

Estamos perante uma situação que a doutrina e a jurisprudência francesa desde os finais do século XIX legitimaram através da figura da expropriação indi­recta [6].

Segundo esta tese, a administração pública tem a faculdade de adquirir o imóvel que ocupou materialmente, sem título, desde que o tenha afectado a um fim público. Nestas situações, o proprietário do bem não tem o direito a obter a restituição do bem ocupado, tendo apenas direito a reclamar o pagamento de uma indemnização pelo prejuízo sofrido, operando-se a transferência do direito de propriedade para a administração pública sobre o bem ocupado logo que essa indemnização seja paga.

Esta posição faz prevalecer de forma absoluta o interesse público sobre os interesses dos particulares, atendendo à máxima segundo a qual um ouvrage public mal planté ne se détruit pas, apoiando-se também em razões pragmáticas. Se a administração tem a possibilidade de expropriar o bem ocupado, atenta a sua utili­dade pública, para quê determinar a sua devolução com a consequente destruição das obras públicas nele já implantadas, para depois voltar a reerguê-las com todos os custos inerentes, após um processo expropriativo regular!

Também em Itália a jurisprudência criou a figura próxima da ocupação apropriativa, segundo a qual a construção de uma obra pública em terreno ilegitima­mente ocupado, determina a aquisição originária desse terreno pela administração pública, ao mesmo tempo que constitui um acto ilícito que confere ao proprietário do terreno o direito a ser indemnizado pelo prejuízo sofrido, tendo esta solução vindo a obter consagração legal no artigo 43º do Testo unico delle disposizioni legislative e regolamentari in materia di espropriazione per pubblica utilità.

Estas posições têm, contudo, vindo a ser questionadas, por se traduzirem numa ofensa inadmissível ao direito de propriedade.

Assim, a Cour de Cassation considerou que a transferência da propriedade não consentida pelo proprietário para a administração pública, só pode ocorrer na sequência de um processo de expropriação regular, pondo em causa a viabilidade da figura da expropriação indirecta [7].

Por sua vez, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já condenou o Estado Italiano, em mais de uma centena de casos, devido ao recurso abusivo à figura da ocupação apropriativa, tendo a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovado a Resolução 1516, de 2 de Outubro de 2006, em que fez notar a ausência de progressos na solução do problema estrutural da expropriação indirecta, pelo Estado Italiano, a qual era qualificada como uma prática abusiva das colectividades locais equivalente a um confisco ilegal violadora do direito de propriedade [8].

O Tribunal Constitucional Italiano [9] também já se pronunciou sobre esta questão tendo no mais recente acórdão sobre esta temática dito que “o justo equilí­brio entre o interesse público e o interesse privado não pode considerar-se satisfeito com uma disciplina que permita à administração pública adquirir um bem com violação do esquema legal e manter a obra pública realizada, sem que pelo menos ressarcie integralmente o dano causado, correspondente ao valor de mercado do bem ocupado”.

Em Portugal, na doutrina, Alves Correia, inicialmente, na dissertação As garantias do particular na expropriação por utilidade pública [10], distinguiu entre as situações de via de facto e de apropriação irregular, correspondendo as primeiras aos casos de ilegalidade grave e patente da ocupação, e as segundas às situações de ilegalidade simples e leve, que equiparou às situações de expropriação indirecta tratadas pela jurisprudência francesa, dando estas últimas lugar apenas ao pagamento de uma indemnização.

Este tema foi posteriormente desenvolvido pelo mesmo autor no Manual do Direito do Urbanismo[11], que dando nota das censuras que vinham sendo feitas às teses defensoras de uma legitimação pela afectação a um fim público de uma ocupa­ção ilegal, concluiu que as figuras jurídicas da “apropriação irregular” e da “expropriação indirecta”, bem como da “ocupação apropriativa” não podem em face das razões expostas, ser admitidas no nosso direito, pelo que as questões da manutenção da obra publica irregularmente implantada ou da demolição da mesma e da restituição do terreno ao seu proprietário não devem ser decididas com base na aplicação acrítica daquelas teorias ou doutrinas, mas com base na ponderação feita pelo juiz dos interesses co-envolvidos nos casos concretos.

A jurisprudência, norteando-se pelos primeiros ensinamentos de Alves Correia, seguiu o critério da distinção entre os casos de ilegalidade grave e patente da ocupação e os de ilegalidade simples e leve, incluindo nestes últimos situações em que a área do terreno ocupado excedeu a daquele que foi objecto de expropriação [12], ou em que tendo havido declaração de utilidade pública, não se seguiu um processo expropriativo, tendo aquela caducado [13], ou em que houve um acordo pré-contratual de cedência do terreno ocupado [14], ou em que a declaração de utilidade pública foi anulada por vício formal [15], tendo recusado a possibilidade do proprietário lesado reivindicar com sucesso o prédio ocupado. Já nos casos em que a administração pública se apossou do terreno sem qualquer título que o legitimasse, e sem qualquer iter procedimental de declaração de utilidade pública, reconheceu o direito do proprietário lesado recuperar o prédio ilegitimamente ocupado [16].

Esta posição da jurisprudência baseia-se nas seguintes razões que se en­contram expostas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Fevereiro de 2015 [17]:

Perante actos de que resulte a violação ilegítima do direito de proprie­dade - ilegitimidade que ocorre designadamente nos casos em que alguma entidade se apropria de um prédio fora do quadro do processo expropriativo ou excedendo materialmente os limites desse acto – o proprietário pode obter o reconhecimento do seu direito e a reconstituição da situação anterior, mediante a restituição do bem e, eventualmente, a atribuição de uma indemnização pelos danos decorrentes da ocupação ilegal.

Esta é a solução que, em regra, também deve ser adoptada sempre que se verifique uma situação que se reconduza ao que soe apelidar-se de expropriação de facto, em resultado da apropriação ou ocupação de um prédio que não seja legiti­mada pelas regras que regulam o instituto da expropriação por utilidade pública.

Porém, a diversidade de motivações ou de circunstâncias que envolvem as situações de apropriação ilegítima de um prédio alheio é susceptível de convocar a aplicação de outras regras ou de outros princípios que permitem moderar o resul­tado que se obteria a partir das da aplicação irrestrita das regras a que obedece a acção de reivindicação.

A apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários gradientes que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objectiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou na ausência de culpa, ou é traduzida em situações que se manifes­tam através da violação dos limites objectivos do prédio expropriado, por vezes, em resultado de um mero erro ou de excesso na execução do acto expropriativo. Enfim, casos existem em que a violação objectiva do direito de propriedade é precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respecti­vos contornos legais.

Em tais circunstâncias, a aplicação dos efeitos típicos da acção de reivin­dicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos. O reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava, pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas.

Para situações como estas tem sido desenvolvida uma tese, intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos, que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do CC.

Posto que tal princípio não esteja expressamente consagrado na lei, en­contra sustentação no disposto nos arts. 159º e segs. do CPTA, na medida em que se permite afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público. Ou ainda no art. 173º, nº 3, do CPTA, nos termos do qual a situação jurídica fundada em actos consequentes praticados há mais de um ano é susceptível de obter uma garantia que impede a sua modificação quando os danos sejam de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença anulatória. E também no art. 134º, nº 3, do CPA, nos termos do qual o efeito da nulidade do acto administrativo “não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito”. Outrossim com o art. 162º, nº 3, do novo Cód. de Proc. Administrativo, aprovado pela Lei nº 4/15, de 7-1, segundo o qual o disposto quanto à nulidade dos actos administrativos “não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da protecção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo”.

Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na res­tituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado.”

A solução para uma equilibrada composição dos interesses públicos e pri­vados neste domínio, com respeito pelo direito fundamental à propriedade privada consagrado no artigo 62º da Constituição, passa por figuras como o abuso de direito – art.º 334º do C. Civil –, que, no caso concreto, tenha em consideração num juízo de proporcionalidade, por um lado a gravidade da ofensa aos interesses sociais satisfei­tos pela afectação ao domínio público da propriedade privada e, por outro lado, a gravidade do prejuízo causado ao proprietário desapossado.

No presente caso, tendo a afectação do caminho ao domínio público sido precedida de uma doação verbal do mesmo ao Município de ..., pela voz do seu proprietário na altura [18], apesar do acto ser nulo, por vício de forma, não sendo idóneo para operar a transmissão da propriedade para a esfera pública, não deixa de traduzir o assentimento daquele no sentido do respectivo terreno que lhe pertencia ser afecto ao domínio público.

Ora, quando a afectação de um prédio pertencente a um particular ao do­mínio público tem na sua base o consentimento desse particular nessa afectação, não se pode considerar que o domínio público existente esteja ferido de um vício no seu acto constitutivo. Aquele consentimento não pode deixar de relevar quando a titularidade do direito de propriedade não coincide com o tipo de afectação operado, impedindo, por exemplo, uma restituição do terreno à posse do seu proprietário, por força da figura do abuso de direito – art.º 334º do C. Civil –, na modalidade do venire contra factum proprio. Se o proprietário do terreno consentiu na sua afectação ao domínio público, ofende os ditames da boa-fé, designadamente a tutela da confiança que foi criada com aquele assentimento, uma restituição do mesmo à sua posse, com prejuízo para os interesses públicos servidos por aquele domínio.

Consubstanciando a afectação pública o acto administrativo que coloca um bem a desempenhar a função que justificou a sua sujeição pelo legislador a um regime específico de direito público, com a consequente modificação do seu estatuto jurídico [19], independentemente da posição que se tome quanto aos termos e conteúdo da subsistência do direito de propriedade privada, a administração pública passa a ter o direito de reagir contra actos materiais levados a cabo pelo titular do direito de propriedade ou por terceiro que impeçam ou perturbem a prossecução do destino a que a coisa, por força da afectação, se encontra adstrita, incluindo a dedução de procedimento cautelar, visando a remoção desses obstáculos.

Assim, encontra-se perfeitamente demonstrada a aparência do direito in­vocado pelo Requerente.

Quanto à verificação de um fundado receio que outrem cause lesão grave ou dificilmente repa­rável ao seu direito, uma vez que essa lesão já se encontra em curso como decorre dos factos provados, dado que o caminho, por força dos com­portamentos dos requeridos não é transitável, ela resulta evidente pela manutenção dessa situação.

Mesmo que se considerasse que os Requeridos eram os titulares do direito de propriedade sobre o leito do caminho, por força da doação que lhes foi feita em 2007 pelo C..., o que não se provou, uma vez que, conforme resulta do descrito no ponto 12 dos factos dados como provados o terreno doado não abrangia o referido caminho, as suas condutas, visando impedir o trânsito público nessa via, sempre seriam ilegítimas, prejudicando as pessoas que nele necessitassem de se  deslocar, uma vez que pela afectação do mesmo a um fim de interesse público com consentimento do anterior proprietário (o doador), os Requeridos sempre teriam deixado de poder exercer os seus poderes de domínio sobre o caminho.

Por estas razões, estão preenchidos os pressupostos de decretamento da providência requerida, pelo que deve improceder o recurso interposto pelos Requeri­dos, confirmando-se a decisão recorrida.

Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos Recorrentes.

                                   Coimbra, 13 de Outubro de 2015.

Sílvia Pires (Relatora)

Henrique Antunes

Maria Domingas Simões

[1] Neste sentido o Ac. do T. R. C. de 17.12.2014, relatado por Fonte Ramos, acessível em www.dgsi.pt.

[2] Ac. do S. T. J. de 4.3.2015, relatado por Leones Dantas, acessível em www.dgsi.pt.

[3] Ac. do S. T. J. de 23.2.201º, relatado por Fonseca Ramos, acessível em www.dgsi.pt.

[4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 114, ed. 2013, Almedina.

[5] Neste sentido Moitinho de Almeida, in Procedimentos Cautelares Não Especificados, pág. 22, edição de 1981, Coimbra Editora.

[6] Descrevendo esta construção:

 André de Laubadère/ Jean-Claude Venezia/ Yves Gaudemet, em Traité de droit administratif, Tomo 2, pág. 372-374, 9.ª ed., L.G.D.J.,

Jean-Marie Auby/ Pierre Bon, em Droit administratif des biens, pág. 318-319, 3.ª ed., Dalloz,

 Jean Rivero/ Jean Waline, Droit administratif, pág. 152-153, 14.ªed., Dalloz,

 Claudie Boiteau, em Les avatars de l´expropriation dite “indirecte”, em RFDA, 10. année, pág. 1121-1127, e

René Hostiou, em La Cour Européenne des droits de l´homme et la Théorie de l’ expropriation indirecte, Révue Trinestrelle des droits de l´homme, 18. année, n.º 70, pág. 386-395.

[7] Ver referências a esses acórdãos em Claudie Boiteau, ob. e loc. cit., e René Hostiou, em La cour européene des droits de l´homme condomne la théorie de l´expropriation indirecte, AJDA, n.º 5/2006, pág. 225.

[8] Ver a referência a estas decisões, em René Hostiou, na ob. cit., na nota 8.

[9] Na Sent. n.º 349/2007, acessível em www.cortecostituzionale.it.

[10] Pág. 172-177, da separata do vol. XXIII do Suplemento ao BFDUC, ed. 1983.

[11] Pág. 352-363, do vol. II, da ed. de 2010, da Almedina.

[12] Ac. do S.T.J. de 9.1.2003, relatado por Dionísio Correia, acessível em www.dgsi.pt.

[13] Ac. do S.T.J. de 29.4.2010, relatado por Alves Velho,

   Ac. do T. R. P. de 29.3.2011 relatado por Cecília Agante,

   Ac. do T. R. L. de 24.9.2009, relatado por Maria José Mouro, todos acessíveis em www,dgsi.pt.

[14] Ac. do S.T.J. de 18.2.2014, relatado por Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt.

[15] Ac. do S.T.J. de 15.4.2015, relatado por Abrantes Geraldes,

   Ac. do T. R. P. de 29.10.2012, relatado por Carlos Querido, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

[16] Ac. do S.T.J., de 4.5.2015, relatado por Granja da Fonseca,

   Ac. do S.T.A. de 16.1.2008, relatado por Jorge de Sousa, ambos em www.dgsi.pt.

   Em sentido contrário, porém, o ac. do T. R. P. de 8.5.2014, relatado por Judite Pires, acessível em www.dgsi.pt .

[17] Relatado por Abrantes Geraldes, acessível em www.dgsi.pt.

[18] O facto do mesmo pertencer a uma comunhão conjugal e se ter provado que a declaração de vontade de doação partiu apenas do cônjuge marido não tem relevância na análise desta questão, uma vez que a falta de intervenção do outro cônjuge somente confere a este o direito a requerer a anulabilidade do acto, no prazo de 1 ano, nos termos do art.º 287º, n.º 1, 1682º, n.º 1, a) e n.º 2, e 1687º, do C. Civil, o que não se provou que tivesse ocorrido.

[19] Ana Raquel Gonçalves Moniz, in O Domínio público. O Critério e o regime jurídico da dominialidade., ed. 2006, pág. 138-139, Almedina.