Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1958/15.0T8LRA-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA DE BENS ONERADOS COM DIREITOS REAIS DE GARANTIA
AUDIÇÃO DOS CREDORES
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 09/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO COMÉRCIO DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 164º, Nº 2 DO CIRE; ARTº 195º DO NCPC.
Sumário: 1. O incumprimento da audição do credor garantido, nos termos previstos no nº 2 do artigo 164º CIRE, não afeta, por regra, a eficácia da venda de bens onerados com direitos reais de garantia.

2. Podendo tal omissão, em abstrato, influir no resultado do processo para o credor garantido, suscetível de gerar uma nulidade processual nos termos do artigo 195º CPC e de acarretar a anulação da própria venda, a verificação dos respetivos pressupostos carece de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto.

3. Servindo a exigência de comunicação do valor base ou do preço da alienação projetada o propósito de permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem, promovendo a satisfação do seu crédito, a atribuição da faculdade de requerer a anulação da venda só faz sentido se se mostrar assegurada nos autos a sua venda a preço superior, ou seja, se a invocação da nulidade e o pedido de anulação da venda forem acompanhados da apresentação de uma proposta de aquisição e da respetiva caução legal.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

No âmbito do processo de insolvência respeitante a A... e M..., foi vendido um imóvel apreendido para a massa, a 2 de novembro de 2017.

A 27 de dezembro de 2017 veio o credor Banco I..., S.A., com crédito reconhecido com garantia hipotecária, invocar a nulidade da venda decorrente da omissão da sua notificação imposta pelo artigo 164º, nº 2 do CIRE – com a alegação de que, avaliado em 81.000 €, o referido imóvel foi vendido por 35.000 €, sem que o administrador o tenha notificado sobre a modalidade da alienação nem sobre o preço da venda, sendo que, caso tal notificação lhe tivesse sido feita, teria proposto a adjudicação do bem, pelo menos, pelo valor patrimonial de 57.578 €  –, pedindo, em consequência, que se dê tal venda sem efeito.

Por despacho de 30 de abril de 2018 foi decretada a anulação de tal venda, decisão esta que veio a ser revogada por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de julho de 2019, que determinou a baixa do processo à 1ª instância a fim de o Recorrente/comprador, R... , ser notificado do requerimento de nulidade da venda apresentada pelo Banco I..., após o que deveria ser proferida nova decisão acerca da regularidade/nulidade da venda em questão.

Efetuada a notificação do comprador, veio o interveniente R... pronunciar-se no sentido da improcedência da invocada nulidade, alegando que, como vem sendo entendido pelos tribunais superiores, a preterição da formalidade prevista no nº 2 do artigo 164º não pode ser bastante para afastar a posição jurídica do requerente, terceiro de boa fé que adquiriu um imóvel no âmbito da insolvência.

Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, a julgar procedente o incidente de nulidade da venda do imóvel em causa, declarando a mesma anulada.

Inconformado com tal decisão, o Interveniente R... dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

Termos em que deve o despacho recorrido ser  substituido por outro, que julgue a nulidade invocada pelo credor hipotecário como totalmente improcedente, mantendo-se a aquisição do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº ... pelo Recorrente, e em consequência ser cancelada a apresentação nº ... e repristinadas as apresentações de aquisição a favor do Recorrente e de cancelamento de ónus.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. Tempestividade da invocação da nulidade por parte do credor hipotecário.
2. Se a omissão da formalidade prevista no artigo 146º, nº 2 acarreta a invalidade da venda.
3. Se a invocação de tal nulidade constitui um abuso de direito.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Tempestividade da invocação da nulidade por parte do credor hipotecário
Quando ouvido pelo tribunal relativamente à invocação da nulidade da venda por preterição do disposto no nº 2 do artigo 164º do CIRE, o adquirente do imóvel e aqui Apelante veio-se opor à invocação de tal nulidade, limitando-se a invocar o entendimento dominante dos tribunais superiores de que a invocação de tal nulidade não se pode sobrepor à posição do 3º adquirente de boa fé, como é o seu caso.
A intempestividade da arguição de tal nulidade constitui uma questão nova nos presentes autos: não foi objeto de apreciação por parte da decisão recorrida, constituindo um fundamento de oposição só invocado pela primeira vez em sede de alegações de recurso.
Como tal, não poderá ser apreciada por este tribunal, tornando irrelevante o que a tal respeito é alegado pelo Apelante nas 3ª a 7ª conclusões de recurso.

*

Invoca o apelante, em segundo lugar, que, tendo o credor hipotecário tido conhecimento da existência do negócio e qual o preço e da celebração do contrato promessa, quando comunicou com o AI por email, como ele próprio reconhece no requerimento de 29.03.2018, agiu em abuso de direito (na modalidade de venire contra factum proprium) ao vir invocar a nulidade decorrente da omissão da notificação prevista no artigo 164º, nº 2, apenas dois meses e meio depois após o conhecimento dos termos do negócio.

Apesar de também esta ser uma questão nova, só pelo Apelante levantada pela primeira vez em sede de recurso, o tribunal não se encontraria impedido de apreciar por se tratar de questão de que o tribunal pode conhecer oficiosamente.

Contudo, para que se possa falar em “abuso de direito”, haverá, antes de mais, de determinar se o credor hipotecário tinha efetivamente o direito de peticionar a declaração de nulidade da venda com o invocado fundamento, pois só então se poderá falar que poderá ter agido em “abuso” de direito.

Passaremos, então, à determinação de quais as consequências para a venda em questão, do facto de a mesma ter sido celebrada sem audição prévia do respetivo credor hipotecário.

2. Nulidade da venda por omissão da audição prevista nos ns. 2 e 3 do artigo 164º do CIRE.

No despacho recorrido considerou-se que, não tendo sido dado, ao credor hipotecário Banco I..., prévio conhecimento da proposta de aquisição do imóvel hipotecado pelo sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (Citius), tal importa a invalidade do ato praticado (notificação) nos termos do artigo 195º do CPC, aplicável por força do art. 17º do CIRE, irregularidade que influiu na decisão da causa “porquanto o recorrente resultou coartado no exercício das faculdades conferidas pelo nº3 do artigo 164º, com prejuízo para o produto da venda”. Afirmando a nulidade da notificação efetuada, considerou nulos os subsequentes atos, declarando a anulação da venda efetuada[1]. E reconhecendo embora a existência de jurisprudência contrária (no sentido de que à omissão da formalidade prevista no nº 2 do artigo 164º é aplicável o disposto no artigo 163º do CIRE), considera que a nulidade da notificação prevista no nº 2 do artigo 164º do CIRE “constitui fundamento bastante para a declaração da nulidade do negócio efetuado, nos termos do art.195º, n1 do CPC, na medida em que perante a nulidade efetuada nulos são os atos subsequentes à mesma, no caso a alienação posta em crise pelo referido credor hipotecário.”

Insurge-se o Apelante/Adquirente contra o decidido, afirmando que a omissão pelo AI da notificação prevista no nº 2 do artigo 164º do CIRE não afeta a validade do negócio celebrado com o recorrente, terceiro adquirente de boa-fé, com os seguintes fundamentos:

- invocando, a seu favor, o Acórdão do TRC de 16-01-2018, relatado por Arlindo Oliveira, no qual se decidiu que a forma de notificação utilizada – email para o endereço que consta dos requerimentos usados pelo mandatário nos atos processuais praticados por este –, em nada interfere com a validade da venda, porquanto no processo de insolvência a eficácia dos atos do administrador de insolvência só é posta em crise nos termos previstos no artigo 163º do CIRE, sem prejuízo de o mesmo poder vir a ser responsabilizado nos termos do seu art. 59º;

- e ainda o Acórdão do TRP de 30-01-2017, relatado por Manuel Domingues Fernandes, que, afastando o legislador a aplicação do regime previsto para a ação executiva, nomeadamente o disposto nos arts. 839º, nº 1, al. c) e 195º, do CPC, pela consagração do regime especial contido no art. 163º CIRE, concluiu que a violação das formalidades previstas nos ns. 2 e 3 do artigo 164º não geram, só por si, a ineficácia da venda, a menos que venha a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as do adquirente do bem;

- conclui que a existência de regras especiais no processo de insolvência, nomeadamente no que se dispõe no artigo 163º CIRE para situações muito idênticas, como a notificação para consentimento da comissão de credores, afasta a aplicação do disposto no art. 195º CPC.



Não colocando o Apelante em causa o juízo efetuado pela decisão recorrida ao considerar verificado que o credor Banco I..., S.A., com garantia real sobre o bem a vender, não foi regulamente ouvido para efeitos do artigo 164º, nºs. 2 e 3, do CIRE, discute-se, tão só, no presente recurso, se a ausência de tal notificação regular poderá acarretar, ou não, a declaração de nulidade da referida venda, questão a que a jurisprudência não vem dando resposta unânime.

No âmbito do processo executivo dispõe o nº 1 do artigo 839º CPC que a venda “fica sem efeito(…) al. c) Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195º”, sendo que, segundo esta norma, “a prática de ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame da causa”.

 Regendo-se o processo de insolvência pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do Código de Insolvência (artigo 17º do CIRE), discute-se na jurisprudência se a omissão da audição do credor hipotecário prevista no nº 2 do artigo 146º se encontrará sujeita ao regime previsto nas disposições conjugadas dos artigos 839º, nº 1, al. c), e 195º, ambos do CPC, ou se se mostrará afastada pelo que especialmente se mostra regulado no artigo 163º do CIRE relativamente à violação das formalidades previstas nos artigos 161º e 162 do CIRE.

Antes de mais, há que salientar o reconhecido movimento de desjudicialização que se pretendeu efetuar com a aprovação do CIRE face ao anterior Código.

 No âmbito do CPEREF, a liquidação da massa constituía uma atribuição do liquidatário “com a cooperação e fiscalização da comissão de credores” (arts. 134º e 180º), com a exigência da concordância prévia da comissão para a prática de certos atos fundamentais da liquidação (determinação da modalidade da venda, concretização a venda por negociação particular) e com a atribuição à comissão de credores e ao devedor da faculdade de impugnação dos autos do liquidatário perante o juiz (artigo 136º).

Como salientam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, com o CIRE verifica-se a preocupação em retirar ao juiz qualquer poder de decisão ou de intervenção quanto à administração e liquidação, e, com o objetivo de dinamização e eficiência do processo, e para a melhor satisfação possível dos credores, reforçou-se a competência do administrador, eximindo-o à necessidade permanente de obter a aquiescência de outros órgãos para a concretização de atos de administração e, sobretudo de liquidação da massa insolvente, por contrapartida da expressa responsabilização pessoal perante os credores[2].

Fazendo o artigo 161º do CIRE depender do consentimento da comissão de credores (ou se esta não existir, da assembleia de credores) a prática de atos jurídicos que assumam “especial relevo” para o processo de insolvência, entre os quais se encontram os atos de alienação de bens da massa por preço igual ou superior a 10.000 € e que representem, pelo menos, 10% da massa insolvente, o legislador entendeu que a falta de tal consentimento (ou a violação do demais disposto nos artigos 161º e 162º) “não prejudica a eficácia dos atos do administrador de insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.

A regra geral é, a este propósito, “a de que a violação da lei, traduzida na falta de consentimento necessário para a prática do acto, nos termos em que ocorreu, e de que o administrador devia munir-se, não afeta a eficácia do acto, o que significa a inoponibilidade do vício à contraparte. Só assim não será quando as obrigações se projetam na massa e a vinculam por excederem manifestamente as assumidas pela outra parte[3]”.

Contudo, se o legislador assumiu expressamente a manutenção da eficácia do acto e quanto às irregularidades praticadas com violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE, nada afirma relativamente às consequências da omissão da audição do credor hipotecário imposta no nº 2 do artigo 164º.

Vejamos, assim, se se justifica a extensão da aplicabilidade, por analogia, das consequências previstas no artigo 163º do CIRE à omissão da formalidade prevista no nº 2 do artigo 164º.

Atribuindo a escolha da modalidade da alienação dos bens ao administrador de insolvência – podendo optar por qualquer uma das admitidas em processo executivo ou por qualquer outra que tenha por mais conveniente – (artigo 164º, nº 1), dispõe o legislador no nº 2 de tal norma que o credor com garantia real sobre o bem a alienar é “sempre ouvido” sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.

No nº 3 encontramos a razão de ser, o objetivo de tal audição: facultar ao credor a possibilidade de, no prazo de uma semana, ou posteriormente, mas em tempo útil, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado.

Tal como sucede no âmbito do processo executivo, o CIRE impõe a audição prévia dos credores com garantia real sobre o bem a vender, acerca da modalidade de alienação, audição esta que não é vinculativa. Assim como, tal como resulta da última parte do nº 3 do artigo 164º, se informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada, o credor vier a apresentar uma proposta (necessariamente de valor superior), o administrador de insolvência nem sequer é obrigado a aceitar tal proposta, ficando, tão só, obrigado a “colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”.

No seguimento da posição adotada por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[4], e face ao modo como o legislador encara a não aceitação da proposta efetuada pelo credor garantido – a venda feita pelo administrador é válida e eficaz –, a jurisprudência maioritária vem entendendo que, também no caso de o administrador proceder à venda sem prévia notificação do valor fixado ou projetado ao credor garante, a omissão de tal formalidade não afetará a venda realizada que permanecerá válida e eficaz, acarretando, tão só, a responsabilidade do administrador perante o credor pelo diferencial entre o valor obtido e o total do crédito garantido, tal como se acha previsto no artigo 163º CIRE.

Contudo, como salientam David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, não só o artigo 163º do CIRE consagra uma regra excecional, oposto ao regime regra das invalidades dos atos processuais, contido nos arts. 195º e ss. do CPC, como se encontram em jogo interesses distintos: “Enquanto o artigo 161º CIRE tutela interesses difusos, o artigo 164º, nº 2, do mesmo diploma tutela posições jurídicas individuais associadas à posição de credor garantido, isto é, específicas  garantias processuais construídas e destinadas a assegurar a eficácia dos direitos reais de garantia em causa[5]”.

E se aceitamos que, como regra geral, a omissão das formalidades previstas no nº 2 do art. 164º não deverá acarretar a nulidade da venda, que deverá permanecer válida e eficaz, não podemos deixar de ter em consideração que a omissão da audição do credor garantido prescrita por lei poderá, em abstrato, influir no resultado do processo para o credor garantido – pode impedir o credor de sugerir uma modalidade alternativa que pudesse levar a um melhor resultado da venda ou de ele próprio apresentar uma proposta de aquisição de valor superior. Ou seja, a omissão de tal formalidade legal é suscetível de, em abstrato, gerar uma nulidade processual nos termos do artigo 195º do CPC[6].

Contudo, a verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada era suscetível de influir na decisão da causa[7].

Ora, relativamente a tal questão temos por relevantes os seguintes factos, que se podem ter por assentes face aos elementos constantes do presente apenso e da consulta do processo principal:

1. A 8 de outubro de 2017 o credor hipotecário Banco I... teve conhecimento, por email que lhe foi enviado pelo AI, que este havia celebrado “um contrato promessa de compra e venda pelo preço de 35.000,00 €, admitindo-se para breve a celebração da correspondente escritura” (facto admitido pelo Banco Invest no seu requerimento junto aos autos).

2. A 02 de novembro de 2017 o AI procedeu à venda por negociação particular do imóvel em causa, pelo preço de 35.000 €, ao aqui apelante.

3. O Banco I... veio invocar a nulidade decorrente da sua falta de notificação para efeitos do artigo 164º, nº 2 do CIRE, por requerimento enviado a 27 de dezembro de 2017.

De tal factualidade desde logo ressalta que, apesar de a comunicação efetuada pelo AI não ter respeitado as formalidades legais (questão que cai fora do âmbito do presente recurso por o Apelante se ter conformado com a decisão que relativamente à mesma foi proferida pela 1ª instância), o certo é que pelo email que lhe foi enviado pelo AI a 08 de outubro de 2017 – mais de um mês antes da formalização da venda –, o credor garantido teve conhecimento do preço e da modalidade pela qual a venda se iria realizar, sem que tenha demonstrado qualquer interesse na respetiva aquisição, remetendo-se ao silêncio. Atentar-se-á, ainda, que não bastaria qualquer manifestação de interesse, uma vez que a lei só lhe dá relevância quando aquela se concretize numa proposta de aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada, proposta esta que “só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa falida, no valor de 20% do montante da proposta (…)”.

Ou seja, se a notificação em falta não visa a obtenção do consentimento do credor garantido, do qual a lei prescinde, mas unicamente possibilitar que o credor contribua para a sua venda pelo melhor valor, facultando-lhe a sua aquisição (por si ou por terceiro) por um preço superior, então, só no caso de o credor pretender apresentar efetivamente uma proposta concreta, acompanhada de uma caução, a omissão da notificação poderia ganhar alguma relevância – e atenção que, mesmo nesta situação o AI não se encontraria vinculado à aceitação de tal proposta.

Ora, o credor garantido não só não se manifestou quando teve conhecimento de que o AI havia já celebrado um contrato promessa de compra e venda pelo valor de 35.000 € e que a escritura se realizaria em breve, como, mesmo quando, cerca de um mês após a celebração da respetiva escritura, veio invocar a nulidade da venda por ausência de prévio cumprimento das formalidades legais da sua notificação para os efeitos do artigo 164º, se limita a afirmar que “o banco teria, se notificado como devia, adjudicado o bem pelo menos pelo valor patrimonial referido, €57.597,20 €”, sem que manifeste algum interesse atual na sua aquisição e, muito menos, que faça uma concreta proposta negocial, proposta esta que, de qualquer modo, para ser válida, como já atrás referimos, sempre teria de vir acompanhada de uma caução no valor de 20% da proposta.

Concluindo, e ainda que se admita que a preterição de tal formalidade é suscetível, em abstrato, de constituir uma nulidade, a qual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 195º e 839º, nº1, al. c), do CPC, poderá acarretar a anulação da própria venda, a verificação dos pressupostos da nulidade tem de ser aferida em função do caso concreto: “não basta constatar que o administrador de insolvência incumpriu o nº 2 do artigo 164º do CIRE. É preciso demonstrar, em termos plausíveis, que essa irregularidade era suscetível de ter impacto na venda[8]”.

Servindo, a exigência de comunicação do valor base ou do preço da alienação projetada, o propósito de permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem, promovendo a satisfação do seu crédito, a atribuição da faculdade ao credor garantido de requerer a anulação da venda só faz sentido se se encontrar assegurada a sua venda a preço superior, ou seja, se a invocação da nulidade e o pedido de anulação da venda forem acompanhados da apresentação de uma proposta de aquisição e da respetiva caução legal, nos termos em que se encontram previstos nos ns. 3 e 4 do artigo 164º. A assim se não entender, correr-se-ia o risco de, reconhecida a nulidade decorrente da preterição de tal formalidade e declarada a venda anulada, o credor acabar por não apresentar qualquer concreta proposta de aquisição, o anterior comprador perder o interesse na mesma e o bem vir a ser transmitido por um preço inferior ao da venda anulada[9].

Concluindo, não se tem por verificada a invocada nulidade processual, com a consequente manutenção da validade e eficácia da alienação efetuada ao interveniente/Apelante.

A decisão aqui tomada relativamente à invocação da nulidade por parte do credor garantido leva a que se mostre prejudicada a questão do eventual abuso de direito também levantada pelo Apelante nas suas alegações de recurso.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a invocada nulidade da venda, que mantém a sua inteira validade e eficácia.

Custas da apelação suportar pela massa insolvente nos termos do artigo 148º CIRE.              

                                                      Coimbra, 07 de setembro de 2020

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº 7 do CPC.

1. O incumprimento da audição do credor garantido, nos termos previstos no nº2 do artigo 164º CIRE, não afeta, por regra, a eficácia da venda de bens onerados com direitos reais de garantia.

2. Podendo tal omissão, em abstrato, influir no resultado do processo para o credor garantido, suscetível de gerar uma nulidade processual nos termos do artigo 195º CPC e de acarretar a anulação da própria venda, a verificação dos respetivos pressupostos carece de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto.

3. Servindo, a exigência de comunicação do valor base ou do preço da alienação projetada, o propósito de permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem, promovendo a satisfação do seu crédito, a atribuição da faculdade de requerer a anulação da venda só faz sentido se se mostrar assegurada nos autos a sua venda a preço superior, ou seja, se a invocação da nulidade e o pedido de anulação da venda forem acompanhados da apresentação de uma proposta de aquisição e da respetiva caução legal.


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[1] Cfr., Despacho proferido a 30 de abril de 2018, anulado por Acórdão do TRC, para cuja fundamentação se remete no Despacho recorrido.
[2] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, Lisboa 2013, p.636.
[3] Luís A. Carvalho Martins e João Labareda, obra citada, p.646.
[4] Obra citada, pp.650-653.
[5] Artigo e local citados, pp.22-24, em especial, nota 14.
[6] Embora tal questão não seja aqui colocada diretamente, haverá que atentar em que o STJ, em Acórdão proferido a 04-04-2017, julgou inconstitucional a interpretação, no que respeita ao artigo 163º do CIRE, no sentido de que “um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela atuação do administrador de insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o juiz do processo, e que a decisão judicial proferida na 1ª instância, que decretou a pedida nulidade da venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar ação de responsabilidade civil contra o administrador de insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, ns. 1 e 5, da Constituição da República por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efetiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador” – Acórdão relatado por Fonseca Ramos, disponível in 04-04-2017.
[7] Acórdão do TRG de 13-06-2019, relatado por Alcides Rodrigues.
[8] David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, “A proteção dos credores garantidos e o regime do artigo 164º, nº2, do CIRE”, in Revista de Direito da Insolvência, nº2, 2018, Almedina, pp.14-15.
[9] Discordamos aqui de David Sequeira Dinis e Luís Bértolo de Sousa, quando afirmam não ser de exigir ao credor que, ao arguir a nulidade, apresente uma proposta de aquisição do bem, superior à proposta efetivamente aceite pelo administrador de insolvência, por o prazo de arguição da nulidade, 10 dias, ser demasiado curto (artigo e local citados, p. 33). Com efeito, o referido prazo não é inferior ao prazo regra de uma semana para apresentação de proposta de aquisição do bem, que lhe seria dado se a comunicação do preço da alienação projetada houvesse sido cumprida (nº3 do artigo 164º CIRE).