Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1202/18.9T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
QUOTIZAÇÕES
SEGURANÇA SOCIAL
REEMBOLSO
ENTIDADE EMPREGADORA
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 211 CRP, 64, 65 CPC, 80 LOSJ, 4, 49 Nº1 C) ETAF, LEI Nº 4/2007 DE 16/1, LEI Nº 110/2009 DE 16/9
Sumário: A acção em que a autora (entidade patronal) pede a condenação da ré (trabalhadora) a pagar-lhe quantia determinada, a título de reembolso de quotizações pagas por aquela à Segurança Social é da competência dos tribunais judiciais.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª secção cível do tribunal da Relação de Coimbra

U (…), E.P.E., com sede na (...) , propôs acção declarativa com processo comum contra C (…) residente (…, pedindo:
a) A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 5 770,99 euros, a título de reembolso de quotizações pagas pela autora à Segurança Social, referentes ao período que mediou entre Outubro de 2010 e Maio de 2014, valor de quotizações que corresponde à percentagem de 11% considerando o vencimento respectivo e cujo pagamento é da responsabilidade da ré;
b) A condenação da ré a pagar-lhe juros moratórios, à taxa legal, sobre a quantia em dívida desde a citação até integral pagamento.

Para o efeito alegou em resumo:
1. Que por sentença de 10 de Julho de 2014, transitada em julgado e proferida no âmbito do processo n.º 68/14.2TTGRD, que correu termos no tribunal de Trabalho da Guarda Secção única, a ré viu reconhecida a existência de um contrato de trabalho com a autora desde 11 de Outubro de 2010, o qual tinha por objecto a actividade de enfermagem que a ré prestou à autora no Hospital (...) ;
2. Que dado o reconhecimento contratual em causa, a autora teve que regularizar a inscrição da ré no regime da segurança social desde 11 de Outubro de 2010 até Maio de 2014, tendo por base a retribuição mensal de 1 201,48 €;
3. Que suportou, para além da percentagem que é da sua responsabilidade no identificado regime, a taxa que é da responsabilidade da ré - 11% do valor auferido a título de vencimento – e que perfez, desde 11 de Outubro de 2010 até Maio de 2014, o montante de 5 770,99;
4. Que como resultava da conjugação dos artigos 42.º, n.º 1 e 2, 44.º e 53.º do Código do Regime Contributivo do Sistema Previdencial da Segurança Social, a entidade empregadora encontrava-se obrigada ao pagamento perante o Instituto da Segurança Social ao pagamento da quotização do trabalhador, encontrando-se este, todavia, obrigado ao respectivo reembolso perante a entidade empregadora.

A ré contestou. Na sua defesa alegou que os tribunais judiciais eram incompetentes em razão da matéria para o julgamento da acção. Segundo a ré, a presente acção, que versava sobre a relação jurídica contributiva e apelava à interpretação e aplicação de normas de natureza tributária, tinha por objecto matéria que era da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, conforme artigo 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Findos os articulados, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo conheceu da excepção de incompetência, julgando-a improcedente.

A ré não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a decisão recorrida por outra que julgasse o tribunal a quo incompetente em razão da matéria para conhecer da causa e que, em consequência, absolvesse a ré da instância.

Os fundamentos do recurso consistiram, em resumo, na imputação à decisão recorrida da violação do artigo 64.º do CPC e do artigo 80.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Não houve resposta ao recurso.


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A questão suscitada pelo recurso é a de saber se a decisão recorrida, ao julgar improcedente a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria, violou o 64.º do CPC e o artigo 80.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos termos do pedido deduzido pela autora e pelos factos narrados na petição para fundamentar tal pedido.

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Para bem percebermos os fundamentos do recurso importa recordar que as razões da decisão foram ase seguintes:
1. Que era jurisprudência assente que a competência do tribunal em razão da matéria se aferia em função do pedido e da causa de pedir;
2. Que a causa de pedir e o pedido envolviam matérias laborais, administrativas e fiscais;
3. Que não se podia afirmar que o pedido feito na acção emergia da relação laboral entre a ré e o autor;
4. Que a acção aproximava-se mais de uma acção de regresso do que uma acção emergente do contrato de trabalho, ainda que obviamente com ele conexa;
5.  Que nesta acção seria discutida a eventual responsabilidade extracontratual da ré pela circunstância de não ter liquidado uma parte de um imposto que seria da sua responsabilidade (acto ilícito) por facto que lhe foi imputado (culpa) e que causou um dano patrimonial à autora (causalidade e danos) – artigo 483.º do Código Civil.

A recorrente imputa à decisão a violação do artigo 64.º do CPC e do artigo 80.º, n.º 1, da LOSJ, com base na seguinte linha argumentativa:
1. Questão fiscal para efeitos de delimitação de competência entre os tribunais tributários e os tribunais administrativos é a que “exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matéria respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (CPPT, anotado e comentado, 6.ª edição 2011, I volume, página 230, Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa);
2. As contribuições para a Segurança Social, “(…) enquanto verdadeiras quotizações sociais, não são impostos ou taxas, mas imposições parafiscais: embora apresentem grandes semelhanças com os impostos, partilhando das características destes (patrimonialidade, obrigatoriedade, afectação a entidades públicas), contêm, em vários domínios do seu regime jurídico, algumas especificidades que deles as distinguem - designadamente quanto às finalidades, forma de criação e modificação, e natureza dos organismos em favor dos quais são atribuídos - e que melhor se acomodam à tese da parafiscalidade” - Cfr. Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2008.01.17, Processo n.º 016/07, in www.dgsi.pt;
3. O pedido formulado pela autora insere-se, sem margem para dúvidas, no âmbito da relação jurídica contributiva e visa assegurar o cumprimento, pela entidade empregadora, da respectiva obrigação contributiva, que quer a Lei nº 4/2007 de 16/1 – Lei de Bases da Segurança Social – quer o Código do regime Contributivo do Sistema Previdencial de Segurança Social estabeleceram;
4. O Tribunal dos Conflitos tem referido, há muito, que, no âmbito desta relação jurídica contributiva, a entidade empregadora não está constituída perante o trabalhador em qualquer dever jurídico - Cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 2004.10.27 (Processo n.º 2/2004), de 2006.10.04 (Processo n.º 3/2006) e de 2008.01.17 (Processo n.º 016/07), todos in www.dgsi.pt, entendendo que é da competência dos tribunais tributários conhecer da acção intentada pelo trabalhador contra a entidade patronal, pedindo a condenação a proceder aos pagamentos contributivos considerados em falta – Cfr. Acórdãos acima cit. -, situação que não é alterada pelo facto de ter sido a entidade patronal a interpor a acção;
5. Para julgar improcedente a excepção de incompetência do tribunal, socorreu-se dos ensinamentos do douto Acórdão da Relação do Porto de 06-06-2016, tirado no Proc. nº 424/13.3TTVFR.P1, ensinamentos que, salvo o devido respeito, não são transponíveis para a presente lide, os quais, aliás, apenas são aplicáveis à Ré caso esta decida interpor acção com vista a obter a condenação da Autora no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados por, designadamente, não a ter inscrito atempadamente na Segurança Social e pela emissão de um recibo onde, falsamente, fez constar o pagamento de remunerações que nunca liquidou - pois caso contrário teria efectuado os descontos das quotizações à Segurança Social referentes ao período entre Outubro de 2010 e Maio de 2014 -, com a consequente tributação, em sede de IRS, de rendimentos não auferidos pela Ré e o subsequente pagamento de impostos;
6. E tais ensinamentos não são transponíveis para a presente lide porquanto “[a] dívida de contribuições à Segurança Social não emerge de responsabilidade civil contratual, nem emerge de responsabilidade civil extracontratual. O mesmo vale por dizer: não emerge de negócio jurídico celebrado entre a entidade empregadora e a Segurança Social, nem emerge de facto ilícito extranegocial no sentido do disposto no artigo 483º/CC. Tem, sim, por fonte a própria lei, que se inscreve no direito público, (…)” designadamente na Lei de Bases da Segurança Social e no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social. A dívida de contribuições à Segurança Social não se rege pela lei civil. O regime da dívida e da sua cobrança obedece a regras específicas constantes desse acervo de direito público (…)” - Cfr. Ac. da RE, de 25.03.2010, tirado no processo 628/07.8TAELV.E1;
7. Assim, e atendendo ao alegado, verifica-se que na presente acção é peticionada a condenação da Ré no pagamento das próprias contribuições que não foram entregues nos termos da legislação sobre segurança social, ou seja, o que a Autora pretende é a condenação da Ré no pagamento de débitos que ela não descontou por falta de pagamento das remunerações base e cujo fundamento jurídico não é o disposto nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, mas sim a legislação sobre segurança social;
8. Ora, as entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, devendo para o efeito proceder, no momento do pagamento das remunerações, à retenção na fonte dos valores correspondentes. – Cfr. art. 59º, nº 1, da Lei nº 4/2007 de 16/01 e art. 42º , nºs 1 e 2, do Código Contributivo -, pelo que o pedido de pagamento das próprias contribuições – ao invés do referido na douta decisão impugnada – não emerge de responsabilidade civil extracontratual, não tendo, aliás, a autora legitimidade nem competência para cobrar receitas parafiscais – como é o caso das contribuições para a Segurança Social;
9. Assim sendo, a presente acção, enquanto versa sobre a relação jurídica contributiva e apela à interpretação e aplicação de normas de natureza tributária, tem por objecto matéria que é da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal - cfr. arts. 4º e 49°, nº 1, al. c) do ETAF .

Apreciação do tribunal:

Como se vê pela exposição acabada de efectuar, a pretensão da recorrente assenta, em síntese, na alegação de que a presente acção versa sobre a relação jurídica contributiva e que as acções relativas a esta relação são da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal nos termos do artigo 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

Segundo ela a acção versa sobre a relação jurídica contributiva pelo seguinte:
1. O pedido formulado pela autora visa assegurar o cumprimento, pela entidade empregadora, da respectiva obrigação contributiva, que quer a Lei nº 4/2007 de 16/1 – Lei de Bases da Segurança Social – quer o Código do regime Contributivo do Sistema Previdencial de Segurança Social estabeleceram [3.ª conclusão];
2. Na presente acção é peticionada a condenação da ré no pagamento das próprias contribuições que não foram entregues nos termos da legislação sobre segurança social, ou seja, o que a autora pretende é a condenação da Ré no pagamento de débitos que ela não descontou por falta de pagamento das remunerações base [8.ª conclusão].

A decisão é de manter embora por razões diferentes das que sustentaram a recorrida. Vejamos.

Em sede de competência em razão da matéria importa tomar em consideração, antes de mais, o seguinte:
1. Que “constitui jurisprudência pacífica que a competência em razão da matéria se fixa em função dos termos em que o autor propõe a acção, atendendo ao direito que o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente reconhecido, devendo, por isso, a questão da competência ser decidida em conformidade com o pedido deduzido e com a causa de pedir em que o mesmo se funda” (acórdão do STJ de 26-03-2019, proferido no processo n.º 2468/15.1T8CHV-AG, publicado em dgsi.pt.);
2. Que os tribunais judiciais são competentes para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. É o que resulta do n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, do n.º 1 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e do artigo 64.º do CPC;
3. Que a competência em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de 1.ª instância, é determinada pelas leis de organização judiciária (n.º 2 do artigo 40.º da LOSJ e o artigo 65.º do CPC).

Segue-se do exposto que a razão estaria do lado da recorrente se, tendo em conta o objecto acção, definido pelo pedido e pela causa de pedir, a competência para o seu conhecimento fosse atribuída pelos artigos 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c), do ETAF aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Esta condição não se verifica.

Comecemos por apreciar a alegação da recorrente segundo a qual a presente acção versa sobre a relação jurídica contributiva.

A resposta a esta alegação remete-nos para o artigo 10.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, e para o objecto da presente acção.

Nos termos do artigo supra referido, a relação jurídica contributiva consubstancia-se no vínculo de natureza obrigacional que liga ao sistema previdencial:

a) Os trabalhadores e as respetivas entidades empregadoras;

b) Os trabalhadores independentes e quando aplicável as pessoas coletivas e as pessoas singulares com atividade empresarial que com eles contratam;

c) Os beneficiários do regime de seguro social voluntário.

Para o caso interessa-nos a hipótese prevista na alínea a), ou seja, a relação jurídica contributiva que intercede entre a segurança social e os trabalhadores e as respectivas entidades empregadoras.

Resulta do citado preceito que a relação jurídica contributiva consiste numa relação de natureza obrigacional entre, de um lado, a segurança social e, do outro, os trabalhadores e as respectivas entidades empregadoras.

Assim, a presente acção versaria sobre a relação contributiva tal como ela é prevista na alínea supra mencionada se o pedido e a causa de pedir da presente acção suscitassem questões relativas às obrigações da autora ou da ré, enquanto respectivamente, entidade empregadora e trabalhadora, para com a segurança social, o que não é o caso. Com efeito, na presente acção não se discute a obrigação de a ré pagar quotizações à segurança social, nem a responsabilidade da autora pelo pagamento de tais quotizações.

Embora o facto de onde procede a pretensão - pagamento das quotizações à segurança social em virtude de a autora ser a entidade empregadora da ré – tenha relação com o cumprimento da obrigação contributiva, o direito que a autora quer ver reconhecido não emerge directamente da relação jurídica contributiva. E não emerge directamente porque, como se escreveu acima, a relação jurídica contributiva caracteriza-se por ser uma relação de natureza obrigacional entre, de um lado, a segurança social e, do outro, os trabalhadores e as respectivas entidades empregadoras, e no caso, não se discute a relação obrigacional para com a segurança social. Na verdade, a acção não se destina a obter o reembolso de quotizações pagas à segurança social. Ela visa obter o reembolso de uma quantia em dinheiro paga a título de quotizações, que é coisa diferente de pretender o reembolso das quotizações. Para se poder falar com propriedade em reembolso das quotizações seria necessário que o pedido fosse dirigido contra a entidade a quem foi paga a quotização, no caso a segurança social, o que não é o caso.

Não tem, assim, amparo no pedido e nos fundamentos da acção, as seguintes alegações da recorrente:
1. Que o pedido formulado pela autora visa assegurar o cumprimento, pela entidade empregadora, da respectiva obrigação contributiva, que quer a Lei nº 4/2007 de 16/1 – Lei de Bases da Segurança Social – quer o Código do regime Contributivo do Sistema Previdencial de Segurança Social estabeleceram;
2. Que na presente acção é peticionada a condenação da ré no pagamento das próprias contribuições que não foram entregues nos termos da legislação sobre segurança social, ou seja, o que a autora pretende é a condenação da ré no pagamento de débitos que ela não descontou por falta de pagamento das remunerações.

Em suma a presente acção não versa sobre a relação jurídica contributiva, tal como ela é configurada na alínea a) do artigo 10.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

Apreciemos agora a alegação de que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para o conhecimento da presente acção resulta dos artigos 4.º e 49.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

O artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais delimita o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais. Os números 1 e 2 do preceito procedem à delimitação positiva desse âmbito, indicando os litígios cuja apreciação compete aos tribunais administrativos e fiscais. Os n.ºs 3 e 4 operam a delimitação negativa, indicando alguns dos litígios que estão excluídos dessa competência.

Apesar de a recorrente não indicar expressamente a norma do artigo 4.º do ETAF de onde resultava a competência dos tribunais da ordem administrativa e fiscal para o conhecimento da presente acção, deduz-se que teve em vista a alínea a) do n.º 1, na parte em que dispõe que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais”.

E laboramos neste pressuposto porque a outra norma onde a recorrente vê fundamento para atribuir a competência, para o conhecimento da presente acção, aos tribunais da ordem administrativa e fiscal é a da alínea c) do n.º 1 do artigo 49.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, segundo a qual “compete aos tribunais tributários conhecer das acções destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal”.

É isento de dúvida que a presente acção destina-se a obter o reconhecimento de um direito, concretamente o direito ao reembolso da quantia que a autora despendeu com as quotizações devidas pela ré à segurança social no período de Outubro de 2010 a Maio de 2014.

Sucede que este direito – a existir - não está compreendido entre os “direitos legalmente protegidos no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais” e no âmbito “direitos legalmente protegidos em matéria fiscal” (2.ª parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 49.º do ETAF) pois os direitos tidos em vista por estas normas são os direitos de natureza fiscal ou parafiscal a exercer em processo judicial tributário contra a administração tributária. É o que resulta do artigo 96.º do Código de Procedimento e Procedimento Tributário, segundo o qual o processo judicial tributário tem por função a tutela plena, efectiva e em tempo útil dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária, e da alínea h) do artigo 97.º do Código de Procedimento e Procedimento Tributário combinada com o n.º 1 do artigo 9.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário.

Contra esta conclusão não depõe a circunstância de a autora pedir o reembolso de uma quantia paga a título de quotizações e de as quotizações dos trabalhadores por conta de outrem para a segurança social caberem no conceito de tributos parafiscais (alínea a) do artigo 3.º da Lei Geral Tributária e o n.º 2 do mesmo preceito). Com efeito, como se escreveu acima, a presente acção não se destina a obter o reembolso de quotizações pagas à segurança social. Ela visa obter o reembolso de uma quantia em dinheiro paga a título de quotizações, que é coisa diferente de pretender o reembolso das quotizações.

Segue-se do exposto que as questões suscitadas pela acção não estão compreendidas nas que aludem a 2.ª parte da alínea a) do artigo 4.º do ETAF e a alínea c) do artigo 49.º do mesmo diploma.  

Vejamos, de seguida, as razões pelas quais a competência do tribunal a quo é de manter, embora por razões diferentes das da decisão recorrida.

Como expusemos acima, a decisão sob recurso entendeu que na presente acção seria discutida a eventual responsabilidade extracontratual da ré pela circunstância de não ter liquidado uma parte do imposto que seria da sua responsabilidade (acto ilícito) por facto que lhe foi imputado (culpa) e que causou um dano patrimonial à autora (causalidade e danos) artigo 483.º do Código Civil. 

Salvo o devido respeito esta interpretação do objecto da acção não tem apoio nos factos que lhe servem de fundamento nem no pedido deduzido.

Com efeito, visto o princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos enunciado no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, a presente acção visaria efectivar a responsabilidade civil extracontratual da ré se o facto de onde procede a pretensão da autora se analisasse numa violação ilícita e culposa de um direito dela ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses dela, autora.

Não é o que se passa no caso. A autora baseia a sua pretensão no facto de, na qualidade de entidade empregadora da ré, ter pago à Segurança Social as quotizações da responsabilidade desta. Trata-se de um facto lícito, descrito, de resto, na petição, como tendo constituído o cumprimento de um dever legal.

O conhecimento deste facto não é atribuído a outra ordem jurisdicional e, entre os tribunais judiciais, as leis de organização judiciária também o não atribuem a nenhum tribunal de competência especializada, designadamente aos juízos do trabalho. Vejamos.

A questão suscitada pelo pedido e pela causa de pedir, embora tenha relação com a relação de trabalho subordinado estabelecida entre a ré e a autora, não emerge directamente de tal relação. Deste modo, não estamos perante questão cuja resolução caiba, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aos juízos do trabalho.

A questão suscitada pela presente acção tem pontos de contacto com as questões da competência cível dos juízos de trabalho previstas na alínea n) do n.º 1 do artigo 126.º da LOSJ, ou seja, com as questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja directamente competente. Com efeito a questão em discussão na presente acção trava-se entre a entidade empregadora e uma trabalhadora e tal questão emerge de uma relação conexa com a relação de trabalho, concretamente do pagamento de quotizações da ré à segurança social, que a autora fez devido precisamente à sua condição de entidade empregadora da ré.

Tem pontos de contacto mas não se ajusta à hipótese prevista em tal alínea porque o pedido da autora não foi deduzido em cumulação com qualquer outro para o qual o juízo de trabalho fosse competente.

Segue-se do exposto que a competência para a presente acção não cabe nem aos tribunais administrativos e fiscais nem aos juízos do trabalho.

Assim por aplicação do artigo 64.º do CPC e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a competência para o conhecimento da presente acção cabe ao tribunal a quo.

Improcede, em consequência, a alegação da recorrente segundo a qual, ao julgar competente para a presente acção os tribunais judiciais a decisão recorrida violou o artigo 64.º do CPC e o artigo 80.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário. 

Decisão:

Julga-se o recurso improcedente e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Visto o disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas custas do recurso.

Coimbra, 21 de Janeiro de 2020.

Emídio Santos ( Relator )

Catarina Gonçalves

Maria João Areias