Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1499/15.6T8PRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÕES INEXATAS
ANULABILIDADE
ERRO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - PENICHE - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.249, 251 CC, 24 E 25 DO DL Nº 72/2008 DE 16/4, ART.542 CPC
Sumário: 1 -Provado, nuclearmente, que o autor/tomador de seguro declarou, no preenchimento da apólice, em 15.01.2014, que apenas teve um sinistro em 24.05.2012, quando na verdade tinha tido outro, recente - em 2.11.2013 - e grave - com perda total da mesma viatura -, noutra seguradora, tem de concluir-se que ele pretendeu omitir este último sinistro.

2 - Este escamoteando atribui jus à seguradora de operar a anulação do contrato e desresponsabilizar-se do pagamento de indemnização por sinistro alegadamente verificado no âmbito do mesmo – artºs 24º nº1, 25º nº1 e 3 do DL 72/2008 de 16.04.

3 - A instauração da ação com omissão de tal sinistro e a negação do mesmo ao longo do processo até confrontação com prova documental da sua ocorrência, implica, no mínimo, um uso manifestamente reprovável deste que permite e até exige a condenação como litigante de má fé – artº 542º nº2 al. d) do CPC.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

O (…), intentou contra A (…) COMPANHIA DE SEGUROS, SA, ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

A condenação da ré no pagamento do montante de € 31.488,00.

Alegou:

Celebrou com a R contrato de seguro para o veículo com a matrícula (...) BO, onde se incluía a cobertura de riscos sociais pelo valor de € 31.000,00.

No dia 1 de Março de 2014, deslocou-se ao Baleal, Peniche, estacionou a viatura e quando chegou junto da mesma constatou que havia sido vandalizada.

A reparação dos danos importa em € 24.907,50, e enquanto aguardava pela reparação o veículo esteve parqueado na oficina F (...) durante 107 dias, tendo sido faturado o valor de € 6.580,50.

A  R. num primeiro momento assumiu a responsabilidade pelo sinistro e posteriormente declinou qualquer responsabilidade, alegando que o A. prestou declarações inexatas aquando da celebração do contrato, o que não corresponde à verdade.

Contestou a R.

Disse que o contrato de seguro celebrado é anulável, porquanto o A. prestou declarações inexatas, tendo omitido a existência de um sinistro.

Aquando da peritagem efetuada ao veículo apurou-se o valor de € 15.887,44 como custo da reparação dos danos, importando deduzir a franquia de € 700,00 prevista no contrato.

E não estão cobertos pelo contrato de seguro quaisquer danos pelo parqueamento do veículo.

Pediu:

A sua absolvição do pedido.  

                                     

O A. respondeu à exceção invocada, tendo alegado que é falso que tenha participado um sinistro em 2 de Novembro de 2013, pelo que, o contrato de seguro é válido.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«a) Absolve-se a R. ( A ..)– COMPANHIA DE SEGUROS, SA do pedido formulado pelo A. O (…)

 b) Condena-se o A. como litigante de má fé na multa de 5 (cinco) UC’s, absolvendo-se o A. do pedido de condenação em indemnização à fundação (…)– Corações em Ação.

c) As custas são a cargo do A.»

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Contra alegou a ré pugnando pela manutenção do decidido; e requerendo a ampliação do recurso com os seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra - artºs 635º nº4 e  639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção, o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

A - Do recurso do autor:

1ª -  Alteração da decisão sobre a matéria de facto – pontos 23 e 24.

2ª – Procedência da ação.

3ª- Não condenação do autor como litigante de má fé.

B- Do recurso ampliado da ré:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto – pontos 3 a 6.

2ª – Improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

Por outro lado, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genéricamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.

Tudo, aliás, para se poder cumprir a exigência de o recorrente transmitir à parte contrária os seus argumentos, concretos e devidamente delimitados, de sorte a que esta possa exercer cabalmente o contraditório – cfr. neste sentido, os Acs. da RC de  29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 16.06.2015, p. nº48/11.0TBTND.C2, ainda inédito; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

Finalmente:

«. No âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações.» - Acs. do STJ 15.09.2011, p. 455/07.2TBCCH.E1.S1 e de  de 09.02.2012, 1858/06.5TBMFR.L1.S1, aquele citando  Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, pg. 157, nota 333.

5.1.3.

O caso vertente.

(…)

Ora como dimana do supra já expendido, considerando os princípios da imediação e da oralidade, que relevam primacialmente para uma apreciação ética dos depoimentos, a qual é mais relevante do que a apreciação incidente sobre o objetivamente verbalizado, apenas em casos extremos de patente erro na valoração dos depoimentos ou de inequívoca infirmação dos mesmos por outros meios probatórios, é que a convicção do julgador pode ser censurada.

Não é, meridiamente, o caso dos autos, neste específico conspeto.

5.1.4.

Decorrentemente, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:                   

1. No dia 15 de Janeiro de 2014 o A. celebrou com a R., através de uma Mediadora de Seguros, J (…) Lda, acordo titulado pela apólice nº (...), mediante o qual transferia a responsabilidade civil emergente da condução do veículo de matrícula (...) BO para a R., contendo as seguintes coberturas:

   a) Responsabilidade Civil (€ 50.000.000,00);

b) Responsabilidade Civil Obrigatória (€ 1.000.000,00) - Danos Materiais – € 5.000.000,00 -Danos Corporais);

c) Choque, Colisão ou Capotamento (€ 31.000,00)

d) Incêndio, Raio ou Explosão (€ 31.000,00);

e) Furto ou Roubo (€ 31.000,00);

f) Fenómenos da Natureza (€ 31.000,00);

g) Riscos Sociais (€ 31.000,00);

h) Veículo de Aluguer;

i) Assistência em Viagem;

j) Protecção Ocupantes (€ 10.000,00);

l) Extras (€ 5.000,00), acordo este que se rege pelas condições gerais e especiais que constam de fls. 47 verso e 48 e fls. 136 a 199 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

2. A celebração do acordo referido em 1. foi submetida a autorização prévia da R. atenta a idade do veículo.

3. Em 1 de Março de 2014 o A. deslocou-se a uma discoteca, no Baleal, Peniche, tendo estacionado o veículo de matrícula (...) BO no respetivo parque de estacionamento.

4. Quando regressou para junto da viatura, cerca das 3horas, encontrou-a com vários riscos no exterior, parte da chapa apresentava tentativas de furação, os vidros das portas da frente estavam partidos.

5. No interior, havia sido feita, igualmente, uma furação no volante, os painéis encontravam-se riscados, os estofos e forros estavam rasgados.

6. Nessa sequência, o A. participou a ocorrência às autoridades policiais e à R..

7. Tal participação deu origem ao processo-crime n.º 32/14.1GAPNI que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Peniche, que veio a ser arquivado, por falta de provas que permitissem a identificação dos agentes do crime.

8. Entre Março e Abril de 2014 o A. recebeu algumas comunicações por parte da R., através de mensagens escritas para o seu telemóvel, no sentido de se agendar a peritagem, disponibilizar uma viatura de substituição (e prorrogação do prazo de atribuição da mesma) e a autorizar o pagamento dos danos próprios.

9. Em 5 de Maio de 2014 a R. remete carta ao A., do seguinte teor: (…), após análise das diligências de averiguação, no que respeita às declarações prestadas na proposta de seguro subscrita por V. Exa relativa ao contrato em referência, conclui este Segurador que V. Exa prestou declarações inexactas naquela proposta, pelo que o contrato de seguro em causa, nos termos do art. 24º e 25º do DL nº 72/2008, de 16/04, deverá ser considerado anulado desde o seu início, o que se invoca para todos os efeitos legais e contratuais. (…)”, conforme documento de fls. 27 que se dá como reproduzido para todos os efeitos legais.

10. No dia 6 de Maio de 2014 a R. remete carta ao A., declinando a responsabilidade, com o seguinte teor: (…) Permita-nos informá-lo que não pode esta Seguradora responder pela regularização de danos consequentes do citado sinistro, porquanto à data da ocorrência não existe seguro válido nesta Seguradora para a viatura interveniente de matrícula (...) BO, pelo que a apólice que vigorava nesta viatura foi anulada em 15-01-2014.

Nesta conformidade, declinamos toda e qualquer responsabilidade relativamente à participação mencionada. (…), conforme documento de fls. 28, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

11. Aquando da celebração do acordo referido em 1. constava da plataforma “Segurnet” que o A. tinha apenas sido interveniente num sinistro ocorrido em 24 de Maio de 2012.

12. O custo de reparação dos danos no veículo de matrícula (...) BO é de € 15.887,44 (quinze mil oitocentos e oitenta e sete euros e quarenta e quatro cêntimos).

13. Enquanto aguardava pela ordem de reparação por parte da R., o veículo de matrícula (...) BO esteve parqueado na Oficina “ F (...)” durante 107 (cento e sete) dias, tendo sido faturado, nessa sequência, um valor de € 6.580,50 (seis mil quinhentos e oitenta euros e cinquenta cêntimos).

14. No acordo referido em 1., no que respeita às coberturas de choque, colisão e capotamento e de riscos sociais, que foram contratadas com um capital seguro até € 31.000,00 (trinta e um mil euros), foi acordado entre A. e R. uma franquia a cargo do Segurado de € 700,00 (setecentos euros).

15. Na proposta de seguro de 15 de Janeiro de 2014, subscrita pelo A., no campo sob a epígrafe “Declarações Obrigatórias” do tomador é perguntado a este se o risco havia estado total ou parcialmente seguro, se o havia estado na AA (...) ou noutra congénere, com indicação do nome de tal seguradora e apólice em caso afirmativo, bem como quantos sinistros haviam sido participados nos últimos dois anos.

16. Relativamente a tais questões, foi declarado pelo A. na aludida proposta de seguro que o risco em causa já havia estado total ou parcialmente seguro, que não o havia sido na AA (...) mas sim na C (...) Companhia de Seguros, S.A. pela apólice (...), encontrando-se resolvido o contrato.

17. O A. declarou ainda na referida proposta que tinha participado um sinistro nos últimos dois anos em 24 de Maio de 2012 e quando perguntado qual a data do último sinistro declarou que foi em 24 de Maio de 2012.

18. Da referida proposta de seguro, subscrita pelo A. consta, sob a epígrafe “Declaração”, além do mais, o seguinte: (…) Responde de forma exacta e completa aos quesitos desta proposta e declarei com exactidão todas as circunstâncias que eu conheço e que são significativas para apreciação do risco pela A (…), Companhia de Seguros, SA, sabendo que, em caso de incumprimento fico sujeito às normas legais e contratuais aplicáveis, de que tomei conhecimento no anexo desta proposta com as informações pré-contratuais. (…), conforme documento de fls. 13 a 18 cujo teor  se dá como integralmente reproduzido.

19. Com a averiguação subsequente à participação pelo A. do sinistro em causa nos autos, recebida pela R., efetuada por empresa contratada pela R., veio a R. a verificar que o A.  prestou declarações inexatas quanto à questão da existência de sinistros nos últimos dois anos e a data do último sinistro.

20. O veículo de matrícula (...) BO esteve seguro na C (...) Companhia de Seguros, S.A. pela apólice (...), tendo sido participado um sinistro em 24 de Maio de 2012, no âmbito de tal apólice.

21. Posteriormente o veículo de matrícula (...) BO esteve seguro na Companhia de Seguros A (...), S.A., através da apólice (...), tendo como tomador o A., pelo período de 26 de Abril de 2013 a 4 de Novembro de 2013, tendo sido participado um sinistro pelo A. ocorrido em 2 de Novembro de 2013 àquela seguradora.

22. Tal sinistro também correspondeu a atos de vandalismo que danificaram a viatura em causa e dele terá resultado a sua perda total.

23. O A. sabia que quando omitia a existência do sinistro referido em 21. na proposta de seguro, declarando apenas existir um sinistro participado nos últimos dois anos ocorrido em 24/05/2012, prestava declarações inexatas.

24. Aquelas declarações prestadas pelo A. influíram na celebração do acordo referido em 1., pois caso tivesse declarado a existência de um segundo sinistro sofrido em 2 de Novembro de 2013, a R. iria constatar que a sinistralidade de tal veículo era elevada, e atento o tipo de sinistro ocorrido, não teria a R. aceite tal seguro de danos próprios, nos quais se incluía a cláusula de riscos sociais, ou teria contratado em condições diferentes, com um prémio de seguro mais elevado ou sem a cobertura de riscos sociais, dado que a viatura já tinha historial desse tipo de sinistro.

25. A disponibilização do veículo de aluguer pela R. ao A. decorreu do facto de existir na apólice essa cobertura e ter sido acionada pelo A., tendo a R. aceite tal acionamento no decurso do processo de regularização aberto em consequência da participação do sinistro pelo A..

26. Em 2 de Abril de 2014 foi enviada mensagem para o telemóvel do A. de que teria sido autorizado pagamento de danos próprios, o que ocorreu por lapso da R., porquanto o processo estava ainda em fase de instrução e a AA (...) ainda não tinha tomado posição quanto a qualquer assunção de responsabilidade, e nunca foi dada ordem à oficina para reparação.

5.2.

Segunda questão.

A julgadora decidiu, de jure, a causa, alicerçada no seguinte discurso argumentativo:

«Importa assim, antes de mais, averiguar da existência, validade e eficácia de tal contrato de seguro – já que a responsabilidade da R. depende, desde logo, da existência, validade e eficácia de contrato de seguro relativo ao veículo objeto do sinistro.

Dispõe o artigo 24º, nº 1 do DL nº 72/2008, de 16 de Abril, que o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. O nº 2 do mesmo preceito dispõe que o disposto no nº 1 também é aplicável a circunstância cuja menção não seja solicitada em questionário fornecido pelo segurador para o efeito. 

Por sua vez, dispõe o artigo 25º, nº 1 do mesmo diploma que em caso de incumprimento doloso do dever referido no nº 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.

Por declarações inexatas entendem-se aquelas que traduzem factos ou circunstâncias que não correspondem à verdade.

Para que as declarações inexatas determinem a anulabilidade do contrato de seguro, há-de poder concluir-se que consubstanciam uma manifesta violação do princípio da boa fé.

Efectivamente, o princípio da boa fé preside à celebração e cumprimento de todo e qualquer contrato, nos termos do disposto nos artigos 227.º, n.º 1 e 762.º, n.º 2, do Código Civil.

Como em qualquer contrato, as partes outorgantes do contrato de seguro devem em todo o seu processo formativo agir de boa fé, sendo aquele contrato considerado um contrato de boa fé por se basear nas declarações prestadas pelo segurado.

Nos termos do artigo 227º, nº 1 do Código Civil, quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.

…Quer não chegue a concluir-se qualquer contrato porque um dos interessados rompe as negociações, quer se conclua um contrato que todavia se mostra ferido de invalidade por culpa de uma das partes, o lesado tem direito à indemnização pelos danos que não teria sofrido se não tivesse encetado negociações ou não tivesse celebrado um contrato nulo ou anulável…

Por fim, e para que haja lugar à anulabilidade do contrato, é necessário demonstrar que a declaração inexata teria podido influir sobre a existência ou condições do contrato.

A sanção da invalidade do contrato prevista no artigo 25º do DL nº 72/2008, de 16 de Abril, refere-se à previsão de um caso de erro como vício da vontade – declarações falsas – que incide sobre a própria formação do contrato por impedirem a formação da vontade real da seguradora, uma vez que tal formação baseia-se em factos ou circunstâncias ignorados, porque foram omitidos ou escondidos…

Face à factualidade provada que consta dos pontos 15., 16., 17., 18., 19., 20., 21., 22. e 23., não há dúvidas que o A. prestou declarações inexatas ao declarar que nos últimos dois anos apenas tinha sofrido um sinistro em Maio de 2012, omitindo dolosamente o sinistro que havia sofrido em Novembro de 2013, do qual até resultou a perda total do veículo objeto de seguro, e cuja existência conhecia.

…facto esse susceptível de influenciar a R. na decisão de contratar e na definição das condições contratuais, e conforme resultou da factualidade que consta do ponto 24. dos factos provados, teve influência na decisão tomada pela R. ao contratar com o A., mostram-se assim reunidos os pressupostos de que o artigo 25º do DL nº 7272008, de 16 de Abril, faz depender a anulabilidade do contrato de seguro.

…Na verdade, a declaração de anulabilidade do contrato da R. ao A. produziu todos os efeitos nos termos do referido artigo 25º.

O nº 3 do mesmo preceito dispõe que o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no nº 1 do artigo 24º do mesmo diploma, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.

Conforme decorre do artigo 289º, nº 1 do Código Civil, tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

…Assim, e porque aquando do sinistro em causa nos autos não existia qualquer contrato de seguro válido que vinculasse a R. perante o A., importa absolver a R. do pedido.».

A presente subsunção dos factos provados às normas legais pertinentes mencionadas e a subsequente interpretação destas, alcançam-se como adequadas e curiais, pelo que importa corroborá-las e chancelá-las.

Aliás, e como é bom de ver, a eventual censura da decisão jurídica sempre estaria inelutavelmente dependente da alteração da decisão sobre a matéria de facto.

Em seu abono e quiçá ad abundantiam dir-se-á que efetivamente nos encontramos perante uma atuação voluntaria e finalística no sentido de uma viciação da vontade da seguradora em contratar e, assim, trilhada, no mínimo, a latere da boa fé.

Naquela vertente da viciação urge ter presente que para a validade e eficácia de um negócio jurídico mister é que a vontade dos outorgantes seja livremente formada, esclarecida  e sã, em si mesma, e por reporte ao objeto visado.

Se o não for a lei comina o negócio de nulo, anulável, ou  ineficaz.

De entre os vícios da vontade, constam o erro na declaração – artº 247º do CC -  o erro vício sobre o objeto do negócio – artº 251º- o erro sobre os motivos – artº 252.

O erro vício e o erro sobre os motivos  distinguem-se do erro na declaração (erro obstáculo) – artº 247º do CC – porque neste forma-se, sem erro, uma certa vontade, mas, por lapso, declara-se outra: a declaração negocial tem um conteúdo diferente do que foi pretendido.

Já naqueles há conformidade entre a vontade real e a que foi declarada: somente a vontade real formou-se em consequência do erro.

A profunda semelhança entre os casos de erro na declaração e erro vício permite compreender a identidade de tratamento/cominação para ambos: a anulabilidade do negócio. – cfr. P. Lima e A. Varela CC Anotado, 2ª ed. ps. 216/218.

Por outras palavras, e quanto ao erro sobre os motivos:

«O erro-vício ou erro-motivo, que se traduz num erro na formação da vontade e do processo de decisão, existe quando ocorre uma falsa representação da realidade ou a ignorância de circunstâncias de facto ou de direito que intervieram nos motivos da declaração negocial, de modo que, se o declarante tivesse perfeito conhecimento das circunstâncias falsas ou inexactamente representadas, não teria realizado o negócio ou tê-lo-ia realizado em termos diferentes» - Ac. do STJ  de 20.05.2010, p. 3655/1998.L1.S1 in dgsi.pt, como os infra referidos.

Para que este erro releve importa:

- que o mesmo se mostre determinante/essencial - essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro – para a formação da vontade e emissão da correspondente declaração negocial;

- que o declaratário conheça ou devesse conhecer essa essencialidade.

Sendo que o ónus da prova de tais requisitos impende sobre o enganado (o deceptus) – cfr.  Acs. do STJ  de 20.01.2005, p. 04B4349,  27.05.2010, p. 237/05.6TBSRE.C1.S1 e de  15.05.2012, p. 5223/05.3TBOER.L1.S1, in dgsi.pt.

Importando ainda reter que:

« Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste…»

E que:

«A essencialidade do erro (ou do dolo) deve ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante ou do contraente enganado…» - Ac. do STJ de 20.01.2005, p. 04B4349 e P. Lima e A. Varela, ob. cit. p.218.

O erro pode advir de uma atitude dolosa do declaratário, o qual, artificiosa, fraudulenta, consciente e intencionalmente, induz ou mantem em erro o autor da declaração.

Na verdade:

«No dolo exige-se, cumulativamente, que haja erro, induzido, mantido ou dissimulado, através de artifício, sugestão ou embuste» – Ac. do STJ de 30.10.2002, p. 02S1199.

Nesta perspetiva da boa fé há que não olvidar o primordial princípio ínsito na ordem jurídica atinente ao dever de as partes atuarem com diligência, lealdade, e colaboração.

Princípio este que paira sobre toda a ordem jurídica e que dimana de algumas concretas normas, como sejam, vg., as dos artºs artºs 406º, 762º e 798º do CC.

Tudo com vista à tutela do valor confiança que os contraentes depositam no cumprimento das prestações recíprocas, o qual é fulcral para o liminar estabelecimento e o ulterior normal fluir de negócios jurídicos necessários ao profícuo desenvolvimento do tráfego jurídico-económico.

Destarte, a violação dos aludidos deveres acessórios de conduta - a apreciar em função dos deveres co-envolvidos e do grau e intensidade dos atos perpetrados e que objetivamente revelem censura, pode clamar, de per se, a conclusão sobre o direito do contraente enganado em não cumprir o contrato, extinguindo o mesmo ou fazendo cessar os seus efeitos por qualquer meio/modo legalmente concedido.

No caso vertente, e outrossim como concluiu a julgadora, os factos apurados, máxime os ora postos sub sursis pelo recorrente, demonstram o claro preenchimento da previsão dos citados artºs 24º e 25º do DL 72/2008 de 16.04.

Ou seja, a vontade da seguradora foi viciada por erro consistente no escamoteamento por parte do autor do sinistro de novembro de 2013,  sendo que, sem tal erro, e no pleno conhecimento do historial de sinistralidade do autor, a ré não contrataria ou não o faria nesses termos, pois que, no mínimo, certamente que outorgaria com condições mais onerosas para aquele.

5.3.

Terceira questão.

Estatui o artº 542º nº2 do CPC:

Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A redação dada ao artº456º do CPC  pretérito – correspondente ao citado artº 542º - pelo DL 329-A/95 de 12.12,  alargou o âmbito da aplicação do instituto da litigância de má fé, pois que nele abarcou não apenas os casos de atuação dolosa como também os de atuação gravemente negligente.

Efetivamente, «a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição " cuja falta de fundamento não devia ignorar", ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização» - Ac. do STJ de  20.03.2014, p. 1063/11.9TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt.

Isto porque, e numa perspetiva mais prosaica, a propositura de uma ação judicial é um ato sério, que normalmente acarreta prejuízos e incómodos para os demandados.

Por isso, a lei impõe àquele que intenta uma ação, certos deveres de cuidado.

 E, do mesmo lado, quem exerce o direito de defesa deve fazê-lo com cautela, não deturpando a realidade, pretendendo, como se diz na gíria, “atirar o barro à parede”.

Sendo que, inclusive, e como se plasma no preâmbulo de tal diploma: «Como reflexo do princípio da cooperação e dos deveres que lhe são inerentes, permite-se, sem quaisquer limitações, a condenação como litigante de má fé da própria parte vencedora, desde que o seu comportamento processual preencha alguma das previsões contidas no nº2 do artº 456º…»

Tal alargamento teve, naturalmente, em vista, restringir os casos de litigância  maliciosa ou  altamente temerária, pretendendo incutir nas partes a necessidade de uma sã atitude processual, pautada e norteada por uma atuação o mais clara e linear possível, sem subterfúgios, truques e mentiras.

E sendo certo que a jurisprudência era amplamente magnânima na condenação a tal título, criou-se uma convicção de impunidade que levava a colocar ou a contestar em juízo casos de total insustentabilidade, ou, pior, distorcidos ou falseados na sua génese factual.

Com os inerente prejuízos para o sistema da justiça e, outrossim, para os próprios sujeitos processuais vítimas de tal atuação.

Importa, pois, na sequência do atual desígnio legislativo, impor uma cultura de rigor nesta matéria, com os inerentes benefícios, a todos os títulos e níveis, dai advenientes.

Não obstante, há que apreciar e decidir com as cautelas e precauções necessárias.

O fundamento ético do instituto exige que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjetivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata) - Ac. da RP de 20.10.2009, p. 30010-A/1995.

Destarte e dada a relatividade da verdade judicial decorrente, designadamente, das várias interpretações e correlativas soluções jurídicas que podem incidir sobre um determinado complexo factual «a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual…» - Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

Nesta conformidade: «Para a condenação como litigante de , exige-se que o procedimento do litigante evidencie indícios suficientes de uma conduta dolosa ou gravemente negligente…ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão).» -  Ac.  do STJ de 28.05.2009, p. 09B0681.

No caso vertente.

Estamos com a julgadora quando expende que « o A. deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, já que instaurou a presente ação pedindo o pagamento de indemnização à R., omitindo que havia sofrido um sinistro em 2 de Novembro de 2013, o que também havia feito aquando do preenchimento da proposta de seguro, facto que voltou a alegar mesmo após a R. ter invocado a existência desse sinistro, pretendendo com isso receber indemnização da R. que sabia não ter direito, pois prestou declarações inexatas e com esse fundamento a R. declarou a anulabilidade do mesmo.

Resultou ainda que o A. alterou dolosamente a verdade dos factos, pois sabia que tinha sofrido um sinistro em Novembro de 2013, e negou tal facto, invocando que apenas havia sofrido um acidente em Maio de 2012, o que não corresponde à verdade.»

(sublinhado nosso).

Na realidade, os factos provados e a própria postura do autor – ziguezagueante e contraditória -  ao longo do processo, negando a existência do sinistro de novembro de 2013 -  o que não é minimamente compreensível e aceitável considerando a maior  gravidade e atualidade do mesmo, por reporte ao de 2012 -, o qual apenas admitiu quando nos autos foi confrontado com prova documental inatacável, clamam a meridiana conclusão de que ele atuou inviamente, com desrespeito pela parte contrária e pelo tribunal, alcandorando-se a mesma a uma gravidade tal que é  totalmente inadmissível e, assim, censurável, a título de má fé.

Improcede o recurso do autor.

E desta improcedência flui a inutilidade de apreciação do recurso ampliado da ré.

6.

Sumariando.

I -Provado, nuclearmente, que o autor/tomador de seguro declarou, no preenchimento da apólice, em 15.01.2014, que apenas teve um sinistro em 24.05.2012, quando na verdade tinha tido outro, recente -  em 2.11.2013 - e grave - com perda total da mesma viatura -, noutra seguradora, tem de concluir-se que ele pretendeu omitir este último sinistro.           

II - Este escamoteando atribui jus à seguradora de operar a anulação do contrato e desresponsabilizar-se do pagamento de indemnização por sinistro alegadamente verificado no âmbito do mesmo – artºs 24º nº1, 25º nº1 e 3 do DL 72/2008 de 16.04.

III - A instauração da ação com omissão de tal sinistro e a negação do mesmo ao longo do processo até confrontação com prova documental da sua ocorrência, implica, no mínimo, um uso manifestamente reprovável deste que permite e até exige a condenação como litigante de má fé – artº 542º nº2 al. d) do CPC.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2016.06.14.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos