Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
197/14.2JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: LEITURA DE DECLARAÇÕES PRESTADAS ANTERIORMENTE À AUDIÊNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DEPENDENTE DE ARGUIÇÃO
CONVICÇÃO DO JULGADOR
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 10/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 323.º, 97.º, 356.º, 357.º, 119.º, 120.º, 374.º DO CPP; ART. 32.º DA CRP
Sumário: I - Sendo da competência do juiz presidente ordenar oficiosamente, deferir ou indeferir a leitura, audição ou visualização de provas contidas em actos processuais anteriores à audiência de julgamento, esta decisão deve ser fundamentada e deve ser ditada para acta com a respectiva “justificação legal”, sob pena de nulidade (artigos 323.º, c), 97.º, n.º 5 e 356.º, n.º 9 do CPP).

II - Não o tendo feito, o tribunal a quo incorreu na nulidade prevista no n.º 9 do artigo 356.º, aplicável por força do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, ambos do CPP, a qual, todavia, porque não integra o elenco das nulidade insanáveis previsto no artigo 119.º e, como tal, também não é cominada no citado artigo, depende de arguição, nos termos do artigo 120.º do mesmo diploma.

III - Não sendo arguida a nulidade, a consequência é a normalização dos efeitos originariamente precários da invocada nulidade, a qual ficou sanada.

IV - A crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

V - Expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos resultante do conjunto da prova produzida, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador, a decisão do tribunal colectivo encontra-se devidamente fundamentada.

VI - Não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.

VII - Em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo registado sob o n.º 197/14.2JACBR, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Central – Secção Criminal – J4, por acórdão de 25 de Maio de 2015, depositado na mesma data, o arguido A.. , com os demais sinais dos autos, foi condenado pela prática, em autoria material e como reincidente, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, b) do Código Penal, na pena de cinco (5) anos e seis (6) meses de prisão.

2. Inconformado com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«I

O Recorrente foi condenado nos presentes Autos pela prática, como autor material e reincidente, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos artigos 171.º/n.º 2 e 177.º/n.º 1-b), ambos do CP, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva.

II

O Recorrente não pode concordar com a decisão do Tribunal a quo que o condena a um cárcere de Cinco (5) anos e Seis (6) meses a cumprir num Estabelecimento Prisional, na medida em que não resulta da prova recolhida nos autos, sem sombra de dúvida, que o Recorrente tenha praticado o crime de que vem condenado. Tanto assim é que,

III

Basta a análise das declarações das testemunhas prestadas em sede de audiência de julgamento e as da menor C..., prestadas para memória futura, mormente das concretas passagens a que se alude nas Alegações.

IV

Salvo o devido respeito, nenhum dos depoimentos foi apto a fazer prova dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo vertidos nos pontos n.ºs 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 32 da factualidade provada do Douto Acórdão.

V

Na factualidade considerada provada no Douto Acórdão há uma clara contradição no que diz respeito ao local onde residia o recorrente à data dos factos, sendo que foi considerado que o mesmo residia ao mesmo tempo em dois locais distintos, em casa da sua irmã E... e em casa da sua mãe.

VI

Se se considera provado que à época da prática dos factos o arguido coabitava com a sua mãe e uma irmã, não é possível ter praticado os factos de que vem condenado e que pressupõem que o arguido passou a residir em casa da sua irmã E... , mãe da menor C... .

VII

O Tribunal a quo considerou provado que o recorrente ocupou o único quarto que se encontrava livre e que se situava no primeiro andar da casa da sua irmã E... , mãe da ofendida, mas, tal como se afere pelo depoimento da Testemunha H... (passagem 02:44 a 03:43), a casa é de segundo andar e a menor ter-lhe-á indicado que, alegadamente, ela e o recorrente dormiam num colchão situado no segundo andar, não existindo assim qualquer base probatória em que assente aquele facto.

VIII

A Testemunha E... confirmou que a ofendida já havia feito queixa de outro adulto, o Sr. I... , por este a ter apalpado, nas mamas e na vagina, a troco de dinheiro (passagem 09:40 a 11:02), anteriormente aos factos dos Autos, o que deveria ter sido considerado provado e que vem inquinar a credibilidade da ofendida que negou nas suas declarações ter tido qualquer envolvimento de cariz sexual com outra pessoa.

IX

Pela prova produzida em sede de julgamento, mormente pelos depoimentos da menor C... e da sua mãe E... , não é possível afirmar que aos poucos o arguido começou a brincar com a menor de modo inocente até começar a tocar-lhe no corpo, pois nunca o mesmo foi referido por qualquer testemunha.

X

A ofendida, na suas declarações, nunca referiu ter vestidas calças por forma que se considerasse provado que o recorrente lhas baixou, mencionando apenas o uso de uma camisa que foi alvo de exame pericial do qual não resultou provada a presença de qualquer vestígio de sangue nem sémen, nem qualquer haplótipo do cromossoma y.

XI

Não foi referido em qualquer momento, não constando de qualquer depoimento, que o recorrente, sabendo que a GNR andava à sua procura, no dia 25 de Maio de 2014, já não foi dormir em casa da sua irmã passando a permanentemente em casa da sua mãe, em Mortágua, pelo que não há qualquer base probatória em que se possa ter apoiado o tribunal a quo para formar essa convicção.

XII

Da prova testemunhal produzida, e à qual se aludiu nas Alegações, constata-se que nunca ninguém viu o arguido apalpar a C... , nunca viram os dois juntos na cama, nunca viram o arguido tirar-lhe o pijama e as cuecas, colocar as suas mãos na vagina dela, friccionando-a e introduzindo os dedos, nunca viram o arguido baixar as calças e as cuecas que a C... trazia vestidas e encostar o seu pénis ereto à vagina dela, friccionando-o até ejacular.

XIII

O Tribunal a quo, referindo-se às Testemunhas J... e L... , na sua fundamentação de facto, página 11 do douto Acórdão, 1.º parágrafo, concluiu que ambos viram a ofendida e o recorrente trocarem alguns beijos na boca.

XIV

Mas, como se pode comprovar pela audição do seu depoimento (passagem 05:47 a 06:16), a Testemunha L... disse nunca ter visto o arguido e a ofendida aos beijos na rua.

XV

O Tribunal a quo, na sua fundamentação de facto, disse terem sido as testemunhas J... e L... , acima identificadas, que tomaram a iniciativa de chamar as autoridades policiais ao local, ao café, mas conforme se comprova pelo seu depoimento, foi a Testemunha B... que disse ter chamado a GNR (passagem 06:56 a 07:09).

XVI

Padecendo assim, a referida fundamentação de facto, de vícios que inquinam todo o Douto Acórdão, pois alicerça-se em factos que não resultam de qualquer prova produzida em audiência, estando antes em nítida contradição com a prova produzida.

XVII

Salvo o devido respeito, deveria ter sido valorado o depoimento da Testemunha K... que, num discurso coerente e credível, disse que a ofendida C... negou que o recorrente lhe tivesse feito qualquer mal (passagem 08:15 a 08:25).

XVIII

Não consta dos autos qualquer prova de que o arguido tenha praticado o crime previsto no artigo 171.º/2 do CP, a própria ofendida negou que o arguido tenha introduzido os dedos na sua vagina.

XIX

Não resultou dos autos, nem da prova, matéria suficiente para que se possa concluir que o arguido praticou o crime pelo qual vem condenado.

XX

Também, e, salvo o devido respeito, que muito é por V/ Exas., deverão ter em conta o princípio in dubio pro reo, pelo facto de ter sido criada uma claríssima dúvida razoável sobre se o Recorrente cometeu o crime, uma vez que, relativamente aos factos pelos quais vem condenado, nenhuma das testemunhas os corroboraram, sobejando apenas as declarações frágeis e sem qualquer credibilidade da ofendida C... , por se comprovar que esta é capaz de mentir, conforme se explica nas Alegações, ao contrário do que conclui o relatório psicológico de fls. 178 a 180 dos autos.

XXI

Como também não resulta dos autos que o Arguido tenha agido de forma deliberada, livre e consciente. Assim, salvo o devido respeito, julgou o Tribunal a quo os referidos factos de forma incorreta, uma vez que sobre os mesmos não foi produzida prova. Pelo que, não poderão os factos ser dados como provados, o que levará à insuficiência da matéria provada para a condenação do Recorrente.

XXII

É nula a reprodução das declarações do arguido em sede de audiência de julgamento, o que se invoca expressamente, pois, nos termos do artigo 357.º/3, que remete para o artigo 356.º/9, ambos do CPP, a sua permissão e a sua justificação legal deveriam ficar a constar da ata, sob pena de nulidade, pelo que não podem ser valoradas na formação da convicção do Tribunal a quo, tendo, desta forma e salvo o devido e merecido respeito, violado o disposto naqueles artigos.

XXIII

Assim, é também nula a audiência de julgamento e, consequentemente, o Douto Acórdão de que se recorre, nos termos do artigo 122.º/1 do CPP.

XXIV

Pelo supra exposto, a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta do acórdão recorrido, considerando não provados os pontos n.ºs 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 21, 22, 23 e 32 da factualidade provada e, consequentemente que o recorrente não praticou o crime de que vem acusado, pois, salvo o devido respeito, julgou-os incorretamente.

XXV

Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 32.º/2 da CRP, 127.º, 357.º/3 e 356.º/9, 365.º/3, todos do CPP.

XXVI

Por tudo isto requer-se a ABSOLVIÇÃO do Recorrente. Caso V/ Venerandas Exas. Juízes Desembargadores tenham opinião diversa, que apenas por mera cautela se admite, deverão revogar a Douta decisão do Tribunal a quo declarando nula a audiência de discussão e julgamento, e consequentemente o Douto Acórdão, por tudo o supra exposto.

Termos em que, nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso, e proferir Douto Acórdão que deverá a revogar o Douto Acórdão aqui recorrido, absolvendo o arguido ou caso não seja este o entendimento de V/ Excelências, que declare nula a audiência de julgamento e consequentemente o Douto Acórdão por violação do artigo 357.º/3 do CPP, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!»

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso, declarando-se a nulidade da permissão de audição em audiência de julgamento das declarações prestadas pelo arguido no 1º interrogatório judicial por não ter ficado consignada em acta a sua justificação legal, com a consequente nulidade do acórdão recorrido.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nada foi dito.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. O acórdão recorrido

1.1. No acórdão proferido na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«Após a audiência de julgamento, entende o Tribunal provados os seguintes factos, pertinentes à decisão da causa:

1 – a menor C... nasceu no dia 11 de Março de 2001, e é filha de D... e de E... ;

2 – o arguido é tio da menor C... , uma vez que é irmão da mãe desta;

3 – o pai da menor C... faleceu no dia 2 de Março de 2014;

4 – alguns dias após o referido falecimento do pai da menor, em data não concretamente apurada, mas ainda durante a primeira quinzena do mês de Março de 2014, o arguido deslocou-se à residência de sua irmã, E... , sita na Rua (...) , concelho de (...) , e pediu-lhe para aí passar a residir, ao que esta, por ter pena dele, o acolheu;

5 – assim, a partir do ora apontado momento, passaram a residir na aludida casa de habitação a menor C... , a sua mãe, a sua irmã F..., nascida no dia 28 de Abril de 2006, bem como o arguido;

6 – o arguido ocupou o único quarto que se encontrava livre, situado no primeiro andar da mencionada casa de habitação;

7 – a menor C... , por seu turno, partilhava quarto com a sua mãe e com a sua irmã, o qual se situava no rés-do-chão da mesma casa de habitação;

8 – a partir do momento em que passou a residir com a irmã e as sobrinhas (ajudando na efectivação de algumas tarefas da lida da casa, como a preparação de refeições), o arguido, que não conhecia as menores até então, formulou o propósito de, aproveitando-se da fragilidade da C... , que havia perdido o seu pai e contava apenas 13 anos de idade, ter com ela contactos de natureza sexual;

9 – no seguimento do seu desígnio, desde então e de forma progressiva, o arguido foi ganhando a confiança da sua sobrinha C... ;

10 – destarte, aos poucos começou a brincar com a menor de modo inocente até começar a tocar-lhe no corpo;

11 – por várias vezes dizia o arguido à C... frases do jaez de “Estás gira!” e “Estás bonita!”, conseguindo que a menor aceitasse os galanteios e os contactos físicos e começasse a criar uma progressiva dependência afectiva por ele;

12 – em diversas ocasiões, mesmo na via pública, o arguido beijou a C... na boca;

13 – em data não concretamente apurada, mas durante o mês de Abril de 2014, o arguido começou a pedir à menor C... que passasse a dormir consigo, no quarto por ele ocupado, no primeiro andar da referida casa de habitação, ao que a mesma acedeu, dado que a dependência afectiva que havia criado por ele era tão forte que sentia já não conseguir passar sem a sua presença;

14 – assim, enquanto a sua mãe e irmã continuaram a dormir no quarto situado no rés-do-chão, a C... passou a dormir com o arguido no quarto por este ocupado;

15 – a partir do momento em que passaram a dormir juntos, em um número de vezes não concretamente determinado apalpou o arguido a C... , por cima e por baixo da roupa;

16 – em um número não concretamente apurado de ocasiões, e quando se encontravam na cama, tirou também o arguido o pijama e as cuecas da menor, colocando as suas mãos na vagina da C... , friccionando-a e aí lhe introduzindo os dedos, tirando-os de seguida;

17 – em um número não concretamente determinado de vezes, e estando ambos na cama, o arguido baixou as calças e cuecas que a C... trazia vestidas e encostou o seu pénis erecto à vagina da menor, friccionando-o até ejacular;

18 – por via do contacto que foi mantendo com o arguido, a C... faltava frequentemente à escola para poder passar mais tempo com ele;

19 – ao longo do tempo em que foi mantendo os contactos acabados de referir com o arguido, era recorrente a C... levar a sua irmã F... ao estabelecimento de cafetaria “ (...) ”, sito em (...) , concelho de (...) , onde esta acabava por passar largos períodos de tempo, sozinha, para que assim pudesse ter a C... maior liberdade com o arguido;

20 – por via disso, no dia 25 de Maio de 2014, cerca das 21 horas e 30 minutos, populares que se encontravam no interior do mencionado café, ao verem que a menor F... ali se encontrava sozinha havia algum tempo, e após esta lhes ter contado alguns pormenores do envolvimento da sua irmã com o arguido, ligaram à Guarda Nacional Republicana de (...) , que fez deslocar ao local militares do seu efectivo, aos quais deram conta dessa situação;

21 – por ter tido conhecimento de que a Guarda Nacional Republicana de (...) andava à sua procura, no dia 25 de Maio de 2014 o arguido já não dormiu em casa da sua irmã, passando a residir permanentemente na casa da sua mãe, em Mortágua;

22 – o arguido, à época com 55 anos de idade, aproveitando o ascendente emocional que criou junto da sobrinha C... , a qual contava 13 anos, agiu sempre com o intuito de, com as condutas descritas nos pontos 15, 16 e 17 (da presente factualidade provada), satisfazer os seus instintos sexuais à custa da menor, bem sabendo da idade da mesma, e que, com o seu comportamento, interferia com o livre desenvolvimento sexual da C... , sem capacidade para querer e entender o total alcance e significado de tais actos;

23 – o arguido actuou sempre de modo deliberado, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram punidas pela lei penal;

24 – o arguido é o terceiro de 12 irmãos, laborando os respectivos progenitores na construção civil (o pai) e no serviço doméstico (a mãe);

25 – concluiu a 4ª classe, dedicando-se depois à actividade agrícola e aos trabalhos da construção civil, com o seu pai;

26 – já foi casado, tendo quatro filhos;

27 – à época da prática dos factos acima descritos coabitava o arguido com a sua mãe (viúva, de 86 anos de idade) e uma irmã;

28 – há vários anos que deixou o arguido de exercer qualquer actividade profissional regular, encetando um clima de conflito quase diário com as suas familiares;

29 – aquando dos factos acima descritos e objecto dos presentes autos, havia sido já o arguido julgado e condenado por diversas vezes, nas décadas de 80 e 90 do século XX, e na primeira década do século XXI, pela prática de crimes de furto, furto qualificado, furto de uso de veículo, condução sem habilitação legal, burla e falsificação de documento, havendo cumprido várias penas de prisão efectiva;

30 – designadamente, o arguido foi condenado no processo comum colectivo n.º 45/03.9GATBU, do então Tribunal Judicial de Tábua, através de acórdão cumulatório  datado de 17 de Setembro de 2008 e transitado em julgado em 13 de Outubro de 2008, o qual determinou a pena de 5 anos de prisão por diversos crimes de cariz doloso;

31 – o arguido esteve preso, em cumprimento da pena aludida no ponto 30 (destes factos assentes), até ao dia 28 de Dezembro de 2013;

32 – não obstante a reclusão de alguns anos não conseguiu interiorizar o arguido o essencial de uma prudência que o pudesse levar a evitar a prática de novos factos susceptíveis de valoração e condenação criminais.»

*

1.2. Quanto a factos não provados consta do acórdão recorrido (transcrição):

«Não há outros factos provados com relevo para a decisão da causa.

Assim, e designadamente, não se provou que:

- tenha o arguido apalpado diariamente a C... por cima e por baixo da roupa, na zona dos peitos;

- tenha o arguido beijado a C... na boca, na presença da menor F... ;

- haja o arguido agarrado na mão da menor e colocado sobre o seu pénis erecto, pedindo-lhe que ela o friccionasse até ejacular, o que sucedia sempre;

- nas ocasiões acabadas de mencionar ejaculasse o arguido para as pernas da menor C... e se limpasse ao seu pijama, após o que iam, um de cada vez, à casa de banho para se lavarem;

- haja o arguido pedido à C... para lhe dar beijos no pénis, recusando esta sempre;

- em uma determinada ocasião tenha pedido o arguido à C... para introduzir o pénis na sua vagina, o que esta recusou;

- após todas as ocasiões em que teve algum tipo de contacto físico com a C... , lhe haja o arguido dito “Não contes isto à tua mãe, a ninguém, senão desgraças a minha vida!”, mais lhe dizendo que se ela contasse a alguém o que se passava entre eles nunca mais lhe falava;

- haja sido a C... que, durante as brincadeiras que tinha com o arguido, tentava apalpar-lhe o pénis e beijá-lo, repelindo-a o arguido;

- tenha a C... agarrado anteriormente os testículos do senhor I... , de 82 anos de idade, enquanto a mãe da menor tentava subtrair-lhe algo;

- haja a menor C... acusado o dito senhor I... de ter abusado dela;

- por diversas vezes a C... e o ex-marido da sua irmã G..., conhecido por M... , se tenham beijado e acariciado mutuamente;

- hajam ido a C... e o referido M... juntos a uma festa com “tasquinhas” em (...) , concelho de (...) , retornando a menor a casa às 4 horas da madrugada;

- tenha a mãe da menor dito ao arguido, na manhã seguinte, que a C... e o M... estavam a ser procurados por “assaltarem” uma casa;

- haja o arguido proposto à mãe da C... esclarecer a apontada situação na Guarda Nacional Republicana, pedindo-lhe todavia a menor para não o fazer, senão “atirava-se da ponte abaixo” ou “punha na cadeia” o arguido;

- tenha sido a mãe da C... a pedir ao arguido que passasse uns dias em casa dela, invocando carecer de ajuda após a morte do seu marido;

- haja o arguido tentado ajudar na educação e na limpeza da C... e da sua irmã F... enquanto lá esteve;

- não consiga o arguido ter uma erecção há mais de quatro anos.»

                                                        *

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica, ponderada e maturada do conjunto dos elementos probatórios produzidos, “peneirados”, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.), à luz das regras normais da experiência da vida [ou seja, das «(…) definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judicio, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade» – Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Curso de processo penal”, volume II, Lisboa, 1988, pág. 30].

Diga-se que este foi um dos julgamentos em que se fez sentir, de forma evidente, a necessidade de adopção de um especial senso crítico na depuração dos contributos processuais prestados e avaliáveis em sede de audiência, maxime para efeitos de determinação da factualidade praticada pelo arguido.

Portanto, o ditame do art. 127º C.P.P. – com o seu apelo às regras da experiência e à livre convicção da entidade julgadora – revelou-se de uma clara acuidade e oportunidade na apreciação da prova produzida (e, também, não produzida), por forma a, de modo realista e convincente, edificar a estrutura sustentadora de uma ciência minimamente resistente a dúvidas, incertezas e aporias.

Tudo o que acaba de ser dito é enquadrável, no entanto, na ideia geral de que a verdade judicial não é (nem pode ser) uma verdade “absoluta”, no sentido de uma verdade “ontologicamente” indestrutível. A verdade judicial alicerça-se em factos alcançados – e alcançáveis – através da interpretação e depuração dos diversos elementos probatórios produzidos e analisados em audiência de julgamento (quando a mesma ocorra) ou relativamente aos quais as partes estão de acordo quanto à significação e valoração próprias. A convicção do julgador baseia-se, pois, em tal conjunto de elementos, mediante a produção do dito juízo de verosimilhança, a que as normais regras da experiência comum não serão alheias. Podendo assim dizer-se que a verdade intra-processual assume contornos algo “formais” (no sentido de que é “elaborada” a partir de um determinado percurso metódico delineado pelas próprias regras processuais) e “contextuais” (porque dependente da prova adquirida e da quantidade e qualidade de informação e conhecimento que tal prova inclui) (a propósito, cfr. Prof. Rossano Adorno, “La fisionomia del thema probandum nel processo penale”, “Il Foro Italiano”, Anno CXXXVIII, n.º 4, 2013, págs. 134 e 135).

Não devendo ainda esquecer-se que – e bem – em um Estado-de-direito democrático como aquele em que felizmente nos movemos, dotado de um processo penal de cariz essencialmente acusatório (e integrado por princípios de investigação material), as presunções (legais) incriminatórias constituem algo de proscrito (a propósito da ideia de processo de estrutura acusatória como o do C.P.P. português de 1987, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in “Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal”, Coimbra, 1991, págs. 30 a 34).

Posto isto, o que temos nós in casu?

A começar, o depoimento de H... , dos quadros da Directoria do Centro da Polícia Judiciária, a qual se referiu às démarches investigatórias que conduziram ao processo em que nos encontramos, maxime, a partir do relatório de ocorrência de fls. 99 a 102 dos autos, elaborado pela Guarda Nacional Republicana de (...) .

Já relativamente ao depoimento para memória futura prestado pela C... (cfr. auto de fls. 142 e 143 do presente processo e transcrição constante do Apenso I), comecemos por dizer algo que decorre de um juízo médico-legal especializado (relatório psicológico de fls. 178 a 180): pese embora seja a depoente «(…) uma criança que possui um funcionamento cognitivo global com algumas fragilidades, (…) não parecem ser suficientes para, por si só, colocarem em causa a sua capacidade para prestar testemunho. Com efeito, (…) consegue manter um discurso fluente, espontâneo, compreendendo as questões que lhe são colocadas e respondendo em conformidade». A C... «(…) parece ser uma criança capaz de relatar factos que digam respeito a si ou a outrem, para além de não se ter revelado demasiado imaginativa, não recorrer a fantasias, nem se mostrando sugestionável, pelo que, do ponto de vista psicológico, é de aceitar a veracidade do seu discurso» (fls. 180 verso). Quanto ao conteúdo propriamente dito do depoimento em questão, revela o mesmo algo de complexo e, ao mesmo tempo (segundo cremos), bem simples: a atitude de um certo laconismo e uma clara “defesa” quanto a parte da dinâmica referente ao relacionamento que manteve com o seu tio e ora arguido. Porque o ponto é este: a depoente “fechou-se” em diversos momentos do seu depoimento e não quis dar senão uma versão sincopada daquilo que efectivamente se passou entre ambos… Seja como for, nem por isso deixou de ficar mais ou menos claro o “uso sexual” (introdução de dedos e encosto do pénis erecto junto da vagina, com subsequente ejaculação…) que o arguido foi fazendo da C... ao longo do período temporal em que com ela dormiu, no quarto do primeiro andar da casa de habitação em causa.

No contexto a que acabamos de fazer referência, percebemos também, a partir do (apetece-nos dizer “inenarrável”…) depoimento da mãe da menor e irmã do arguido, E... , o clima de “proximidade” permanente da C... e seu tio, os quais passaram a dormir juntos, no mencionado quarto sito no primeiro andar da casa da depoente. Assim como ficámos a conhecer, a partir do relato da aludida testemunha, os gritos que a mesma foi ouvindo variadas vezes à sua filha, ao longo de algumas noites… Mas, para além disso, a depoente referiu nunca ter visto nada “daquilo” que se passava no quarto entre o seu irmão e a menor. Esta postura – (des)educacional, em primeiro lugar – da testemunha em relação às suas filhas (uma, de 13 anos, entregue à permanente “companhia” do tio, outra, de oito anos, quase que entregue à sua sorte…, no estabelecimento de café da aldeia…), bem reveladora de um clima familiar absolutamente desestruturado, caído na mais completa anarquia a partir do desaparecimento da figura paterna, acaba por não se afigurar tão estranho quanto isso perante a percepção da postura existencial da depoente. Trata-se de uma pessoa notoriamente carecida de um apoio social e comunitário efectivo que a possa auxiliar, de facto, na condução da vida – própria e familiar – de todos os dias (ou seja, algo que, com uma frequência ainda maior à que seria expectável, vai acontecendo a algumas franjas da nossa população, “esquecida” em zonas mais ou menos recônditas deste nosso mundo contemporâneo, tão supostamente desenvolvido ou em vias de o ser…).

Ficam-nos, depois – e na ausência de uma prestação testemunhal da menor F... –, outros contributos que apontam, de um modo claro, para o referido “acompanhamento” constante do arguido relativamente à sua sobrinha C... .

Reportamo-nos aos depoimentos de J... (primo do falecido pai das menores) e L... , duas pessoas que, no “ (...) ”, constataram o “abandono” a que amiúde a dita F... era votada pela C... – e evidentemente que para tal contribuindo também e sobretudo (vamos dizê-lo desta forma bem mais soft…) o alheamento da mãe de ambas as irmãs –, ficando a F... horas a fio, sozinha, naquele estabelecimento, sem ninguém que dela cuidasse ou alimentasse… Isto, a par da constatação, fácil de fazer (e feita, de facto, por ambas as mencionadas testemunhas) de continuar a C... a “passear” com o arguido, com quem trocava até, e em público, alguns beijos na boca. Foram os dois depoentes que tomaram a iniciativa de, no dia 25 de Maio de 2014 – e após mais um dia de “abandono” da F... no “ (...) ” –, chamar as autoridades policiais ao local (deslocação a que se refere o já acima aludido relatório de ocorrência de fls. 99 a 102 deste processo).

E nada de muito diverso – antes pelo contrário – nos avançou a testemunha B... , pessoa que revelou conhecer bem a situação – absolutamente descontrolada – da família em causa, sobretudo após o falecimento do pai das menores: entregando-se a mãe ao consumo do álcool e “ficando” a C... com o arguido, restou o evidente desamparo da F... , que o depoente atestou tratar-se de uma criança, na altura e em tal contexto, sem perspectivas de género algum.

E quanto ao arguido, qual o relevo da sua prestação no presente processo?

Em audiência de julgamento, e após se remeter ao silêncio, acabou por negar, na totalidade, os factos que lhe são imputados na acusação pública, dizendo, de uma forma absolutamente desconexa, pobre e tergiversante, que tudo não passa de uma enorme “mentira”, pois que nunca foi “pedófilo”, antes só quis “orientar” a educação da sua sobrinha C... . Concretizando, nunca dormiu com ela nem teve qualquer tipo de “intimidade” ou acto desrespeitoso, antes se apercebeu também de que se tratava de uma jovem com muito “à-vontade”, característica que a ele não agradou… Mas curiosamente, após a audição do conteúdo das suas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, nas quais, de modo evidente e inequívoco, admitiu que pelo menos por três vezes mexeu na zona da vagina da sua sobrinha, aí lhe introduzindo os dedos, tudo se ficando a dever a momentos de embriaguez da sua parte (cfr. auto de fls. 80 a 86, e gravação de CD-R), apressou-se o arguido a dizer em audiência – e a dizê-lo com a maior desfaçatez possível, e em um jeito absolutamente histriónico e teatral, note-se… – terem aquelas suas declarações em interrogatório judicial sido o fruto da ingestão de alguns medicamentos de sua mãe e que (certamente por engano…) ele ministrou para si, ficando a padecer da “desorientação” daí advinda…

Ora, se não se exigia ao arguido um cabal esclarecimento das suas afirmações, a verdade é que a própria assunção de alguns comportamentos de cariz sexual perpetrados em relação à sua sobrinha – assunção, repita-se, ocorrida em sede de primeiro interrogatório judicial – deverá, nos termos e para os efeitos do art. 357º/n.ºs 1-b) e 3, em conjugação com o art. 141º/n.º 4-b), ambos C.P.P. (na redacção conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21/2), ser tomada em conta, por aquilo que revela de (minimamente) crível, à luz das normais regras do acontecer. Enfim, algo de distinto da “odisseia” dos “malfadados” fármacos da mãe do arguido, invocados em audiência de discussão e julgamento… Pois que se – desde logo, por uma questão de probidade e respeito intelectual por todos os que lidam com o presente processo – esta última postura do arguido (relativa aos medicamentos, note-se) não merecerá grandes comentários, o resto assume uma relevância não despicienda.

Restando-nos, agora, a menção a uma outra irmã do arguido, de nome K... , com um depoimento sintético mas verdadeiramente “notável”: admitindo nunca haver visto pessoalmente a sua sobrinha C... nem com ela desenvolver qualquer tipo de relação de proximidade, teria mantido a testemunha, não obstante, uma conversa telefónica com tal sobrinha, conversa essa na qual a mesma lhe confidenciou jamais ocorrer qualquer contacto íntimo com o arguido… Sem grande rebuço, diremos estar-se perante um depoimento cuja credibilidade, na opinião do Tribunal, é nula, perante a sua dose de irrealismo, pobreza e comprometimento com a vontade de, a todo o custo, tentar “salvar” a posição do arguido…

Pelo que, e em suma, entende-se ser de formar a convicção judicativo-decisória nos moldes em que efectivamente se formou, ficando assim de fora de tal convicção o conjunto de factos dados como não assentes (relevando também para este ponto, por exemplo, o resultado negativo do relatório de fls. 225 e 226, referente à perícia a material biológico contido na camisa de dormir da menor C... , apreendida a fls. 26-A).

Quanto à percepção da personalidade do arguido e suas condições económicovivenciais valeu, para além de uma ou outra nota do próprio, o teor do relatório social de fls. 612 a 615 e ainda da informação clínica de fls. 617 [emitida pela psicóloga do Estabelecimento Prisional de Aveiro, a qual, a partir das duas vezes que atendeu o arguido no respectivo serviço de acompanhamento, formou a ideia de estarmos perante alguém «(…) muito manipulativo no relacionamento com o outro»].

Por último, tomou-se também em consideração o conteúdo de fls. 326 e 328 (certidões dos assentos de nascimento da C... e da F... ), e ainda 560 a 574 (certificado do registo criminal do arguido).»

                                                        *

2. Apreciando

2. 1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1]) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação([2]), sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso([3]).

Atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- nulidade da reprodução das declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial;

- impugnação da matéria de facto;

- violação do princípio in dubio pro reo.


2.1.1. Da nulidade da reprodução das declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial

Alega o recorrente que a audição das suas declarações, prestadas em sede de primeiro interrogatório perante a juíza de instrução, efectuada em audiência de julgamento, é nula por ter sido violado o disposto no artigo 357.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Com a entrada em vigor das alterações ao Código de Processo Penal introduzidas pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, as declarações do arguido produzidas no primeiro interrogatório judicial podem ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência ou em julgamento exerça o direito ao silêncio, estando tais declarações sujeitas à livre apreciação da prova, desde que, previamente, o juiz o tenha informado desta possibilidade - artigo 141.º, n.º 4, b) do Código de Processo Penal.

Em conformidade, o artigo 357.º, n.º 1, b) do Código de Processo Penal permite a reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido, desde que o tenham sido perante autoridade judiciária com a assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º.

Contudo, as declarações anteriormente prestadas, reproduzidas ou lidas, não valem como confissão e, sendo correspondentemente aplicável o disposto nos números 7 a 9 do artigo 356.º, deve ficar a constar da acta quer a permissão da reprodução ou leitura, quer a sua justificação legal, sob pena de nulidade (n.ºs 2 e 3 do citado artigo 357.º).

Como resulta dos autos, aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que teve lugar no dia 29/5/2014, estando o arguido assistido pela sua defensora oficiosa nomeada, a Mma. Juíza de Instrução deu a conhecer ao arguido o conteúdo da informação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal (auto de interrogatório judicial de arguido detido de fls. 80 a 86).

Na acusação pública o Ministério Público indicou como meios de prova, além do mais, as declarações prestadas pelo arguido aquando do seu interrogatório judicial (fls. 384).

Em sede de audiência de julgamento, no decurso da produção de prova, procedeu-se à audição das declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial.

A este respeito ficou a constar da respectiva acta o seguinte (fls. 639):

«De seguida, procedeu-se à audição das declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório perante juiz de instrução, findas as quais o arguido pediu a palavra para alguns esclarecimentos, o que fez (gravação com início às 12 horas e 8 minutos e termo pelas 12 horas e 15 minutos).»

Assim, no caso dos autos, nada impedindo que o tribunal colectivo tivesse determinado a reprodução na audiência de julgamento das declarações prestadas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial, verifica-se que se fez constar da acta a audição daquelas declarações na audiência de julgamento mas nada se disse acerca da sua justificação legal.

Sendo da competência do juiz presidente ordenar oficiosamente, deferir ou indeferir a leitura, audição ou visualização de provas contidas em actos processuais anteriores à audiência de julgamento, esta decisão deve ser fundamentada e deve ser ditada para acta com a respectiva “justificação legal”, sob pena de nulidade (artigos 323.º, c), 97.º, n.º 5 e 356.º, n.º 9 do Código de Processo Penal)

Não o tendo feito, o tribunal a quo incorreu na nulidade prevista no citado n.º 9 do artigo 356.º, aplicável por força do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, ambos do Código de Processo Penal, a qual, todavia, porque não integra o elenco das nulidade insanáveis previsto no artigo 119.º e como tal também não é cominada no citado artigo, depende de arguição, nos termos do artigo 120.º do mesmo diploma.

A referida nulidade ocorreu no decurso da audiência de julgamento pelo que deveria sido arguida até ao final da audiência, perante o tribunal em que foi cometida, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, o que não sucedeu, posto que o recorrente apenas a veio invocar em sede de recurso.

A consequência é a normalização dos efeitos originariamente precários da invocada nulidade, a qual ficou sanada.

Improcede, portanto, esta questão.

2.1.2. Da impugnação da matéria de facto

Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.

É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([4]).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa([5]).

Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:

«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º)([6]).

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.

Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.

São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.

Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.

À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado([7]).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão([8]).

Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, bem como sobre os ónus impostos ao recorrente, passemos à análise do caso concreto.

O recorrente manifesta discordância sobre a matéria de facto por considerar que foram incorrectamente julgados os pontos 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 32 dos factos provados que consubstanciam a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado pelo que foi condenado.

Analisando a motivação e as conclusões constata-se que o recorrente não alega que a descrição que o acórdão recorrido faz do conteúdo das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas, assim como a análise que faz da prova documental e pericial, não corresponde ao que, na realidade, disseram o arguido e as testemunhas, nem ao que consta daquela prova documental ou pericial.

O que o recorrente faz é coisa totalmente diferente.

Esquecendo a valoração que o tribunal colectivo fez das suas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, nas quais, de modo evidente e inequívoco, admitiu que, pelo menos, por três vezes, mexeu na zona da vagina da sua sobrinha, aí lhe introduzindo os dedos, tudo se ficando a dever a momentos de embriaguez da sua parte, o recorrente faz a leitura de partes seleccionadas dos depoimentos das testemunhas para, a partir de tais excertos, conferir à prova produzida uma outra leitura, substituindo a sua própria convicção à convicção do tribunal a quo, sem apontar em concreto um erro de julgamento, concluindo que a prova é insuficiente para conduzir à sua condenação, o que se configura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto em sede de recurso.

Ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso da matéria de facto não tem por finalidade, nem pode ser confundido, com a realização de um “novo julgamento” fundado numa nova convicção mas apenas apreciar a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido em relação aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera imporem uma decisão diversa.

Como resulta da leitura da fundamentação da matéria de facto o tribunal colectivo procedeu à apreciação global da prova produzida, numa perspectiva crítica e à luz das regras da experiência comum, nomeadamente às declarações para memória futura prestadas pela menor C... (auto de fls. 142 e 143 do presente processo e transcrição constante do Apenso I), salientando que, como decorre do juízo médico-legal especializado (relatório psicológico de fls. 178 a 180), pese embora seja a depoente «(…) uma criança que possui um funcionamento cognitivo global com algumas fragilidades, (…) não parecem ser suficientes para, por si só, colocarem em causa a sua capacidade para prestar testemunho. Com efeito, (…) consegue manter um discurso fluente, espontâneo, compreendendo as questões que lhe são colocadas e respondendo em conformidade», a menor C... «(…) parece ser uma criança capaz de relatar factos que digam respeito a si ou a outrem, para além de não se ter revelado demasiado imaginativa, não recorrer a fantasias, nem se mostrando sugestionável, pelo que, do ponto de vista psicológico, é de aceitar a veracidade do seu discurso» (fls. 180 verso).

Quanto ao conteúdo propriamente dito do depoimento em questão, sublinha que o mesmo revela «algo de complexo e, ao mesmo tempo (…) bem simples: a atitude de um certo laconismo e uma clara “defesa” quanto a parte da dinâmica referente ao relacionamento que manteve com o seu tio e ora arguido. Porque o ponto é este: a depoente “fechou-se” em diversos momentos do seu depoimento e não quis dar senão uma versão sincopada daquilo que efectivamente se passou entre ambos… Seja como for, nem por isso deixou de ficar mais ou menos claro o “uso sexual” (introdução de dedos e encosto do pénis erecto junto da vagina, com subsequente ejaculação…) que o arguido foi fazendo da C... ao longo do período temporal em que com ela dormiu, no quarto do primeiro andar da casa de habitação em causa».

Por outro lado, o tribunal colectivo valorou igualmente as declarações do arguido que «em audiência de julgamento, e após se remeter ao silêncio, acabou por negar, na totalidade, os factos que lhe são imputados na acusação pública, dizendo, de uma forma absolutamente desconexa, pobre e tergiversante, que tudo não passa de uma enorme “mentira”, pois que nunca foi “pedófilo”, antes só quis “orientar” a educação da sua sobrinha C... . Concretizando, nunca dormiu com ela nem teve qualquer tipo de “intimidade” ou acto desrespeitoso, antes se apercebeu também de que se tratava de uma jovem com muito “à-vontade”, característica que a ele não agradou… Mas curiosamente, após a audição do conteúdo das suas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, nas quais, de modo evidente e inequívoco, admitiu que pelo menos por três vezes mexeu na zona da vagina da sua sobrinha, aí lhe introduzindo os dedos, tudo se ficando a dever a momentos de embriaguez da sua parte (cfr. auto de fls. 80 a 86, e gravação de CD-R), apressou-se o arguido a dizer em audiência – e a dizê-lo com a maior desfaçatez possível, e em um jeito absolutamente histriónico e teatral, note-se… – terem aquelas suas declarações em interrogatório judicial sido o fruto da ingestão de alguns medicamentos de sua mãe e que (certamente por engano…) ele ministrou para si, ficando a padecer da “desorientação” daí advinda…

Ora, se não se exigia ao arguido um cabal esclarecimento das suas afirmações, a verdade é que a própria assunção de alguns comportamentos de cariz sexual perpetrados em relação à sua sobrinha – assunção, repita-se, ocorrida em sede de primeiro interrogatório judicial – deverá, nos termos e para os efeitos do art. 357º/n.ºs 1-b) e 3, em conjugação com o art. 141º/n.º 4-b), ambos C.P.P. (na redacção conferida pela Lei n.º 20/2013, de 21/2), ser tomada em conta, por aquilo que revela de (minimamente) crível, à luz das normais regras do acontecer. Enfim, algo de distinto da “odisseia” dos “malfadados” fármacos da mãe do arguido, invocados em audiência de discussão e julgamento… Pois que se – desde logo, por uma questão de probidade e respeito intelectual por todos os que lidam com o presente processo – esta última postura do arguido (relativa aos medicamentos, note-se) não merecerá grandes comentários, o resto assume uma relevância não despicienda».

No que se refere ao depoimento prestado pela testemunha K... , irmã do arguido, o mesmo não mereceu qualquer credibilidade, revelando-se totalmente interessado e inverosímil, pois «admitindo nunca haver visto pessoalmente a sua sobrinha C... nem com ela desenvolver qualquer tipo de relação de proximidade, teria mantido a testemunha, não obstante, uma conversa telefónica com tal sobrinha, conversa essa na qual a mesma lhe confidenciou jamais ocorrer qualquer contacto íntimo com o arguido… Sem grande rebuço, diremos estar-se perante um depoimento cuja credibilidade, na opinião do Tribunal, é nula, perante a sua dose de irrealismo, pobreza e comprometimento com a vontade de, a todo o custo, tentar “salvar” a posição do arguido…».

Ao contrário do que afirma o recorrente também não se verifica qualquer contradição, muito menos insanável, entre os pontos 4, 5, e 27 dos factos provados quanto ao local onde vivia o arguido.

O que resulta da sequência lógica e cronológica da referida factualidade é que, à época da prática dos factos acima descritos, coabitava o arguido com a sua mãe (viúva, de 86 anos de idade) e uma irmã (ponto 27).

Alguns dias após o falecimento do pai da menor, em data não concretamente apurada, mas ainda durante a primeira quinzena do mês de Março de 2014, o arguido deslocou-se à residência de sua irmã, E... , sita na Rua (...) , concelho de (...) , e pediu-lhe para aí passar a residir, ao que esta, por ter pena dele, o acolheu (ponto 4);

Assim, a partir desse momento, passaram a residir na aludida casa de habitação a menor C... , a sua mãe, a sua irmã F... , nascida no dia 28 de Abril de 2006, bem como o arguido (ponto 5).

Sendo certo que o tribunal a quo alcançou a sua convicção ponderando de forma conjugada e crítica toda a prova produzida em audiência de julgamento, ou seja, as declarações para memória futura prestadas pela menor C... , as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos prestados pelas testemunhas, assim como a prova documental e pericial produzida, debalde se encontra no recurso em causa alegação que infirme a formação de tal convicção, sendo que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e outra é detectar-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, posto que o recurso da matéria de facto deve incidir sobre provas que imponham decisão diversa e não simplesmente sobre provas que permitam decisão diferente.

Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.

Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”([9]).

No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”([10]).

Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”([11]).

A decisão proferida sobre a matéria de facto envolveu a apreciação de todo o conjunto da prova carreada para os autos e produzida, discutida e analisada em pormenor durante a audiência de julgamento com base na oralidade e imediação, obrigando não só à apreciação das declarações e dos vários depoimentos produzidos em audiência e avaliação da respectiva credibilidade, como da prova documental e pericial constante dos autos discutida em audiência, com a intervenção do arguido e da sua ilustre defensora, que sobre ela puderam exercer amplamente o contraditório, sendo manifesto que a fundamentação da matéria de facto é coerente e rigorosa, estruturada nos elementos de prova que referencia e analisa de forma racional, lógica e crítica, bem como nas regras da experiência que indica e não são questionadas.

A decisão do tribunal colectivo encontra-se devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos resultante do conjunto da prova produzida, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.

Através da motivação da decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido fica-se ciente do percurso efectuado pelo tribunal colectivo onde seguramente a racionalidade se impõe mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, espelhando aquela decisão o confronto crítico das versões dos factos, explicitando o resultado desse confronto e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum.

Por conseguinte, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.

Improcede, pois, a questão da impugnação da matéria de facto.

2.1.3. Da violação do princípio in dubio pro reo

O nosso regime jurídico processual-penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova.

A livre apreciação da prova pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objectivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção.

O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois.

Como acentua Jescheck “serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do direito que surjam numa situação probatória incerta”([12]) ou, dito de outro modo, significa que a persistência de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido([13]).

A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir «pro reo», tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal([14]) ([15]).

Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio([16]).

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável([17]).

Daí que o tribunal de recurso só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido([18]).

O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

Em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico.

No caso em apreço o recorrente alega a violação do princípio in dubio pro reo essencialmente como corolário do erro de julgamento que invoca, sendo que, em momento algum, resulta do acórdão recorrido que relativamente aos factos provados e objecto dos autos, o tribunal se defrontou com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.

Ao contrário, o que sobressai da motivação da decisão da matéria de facto é uma descrição aprofundada das declarações e dos depoimentos que foram acolhidos, bem como da prova documental e pericial que foi produzida, perfeitamente convergentes, atenta a credibilidade que lhes foi atribuída, assim como a desconsideração feita relativamente às declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento que se revelaram inverosímeis, com destrinça subsequente na matéria de facto provada e naquela outra não provada.

Tudo a permitir concluir pela inexistência de qualquer violação ao invocado princípio in dubio pro reo.

Improcede, portanto, esta questão.

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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e, consequentemente, confirmar o acórdão recorrido.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

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Coimbra, 14 de Outubro de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.
[5] - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[6] - Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012.
[7] - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

[8] - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[9] - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004.
[10] - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/3/2002, CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44; No mesmo sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 19/6/2002, 4/2/2004 e 16/11/2005, in www.dgsi.pt/jtrp.
[11] - Prof. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, pág. 211.
[12] - Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edição, pág. 127.
[13] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, edição de 1974, pág. 215.
[14] - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166.
[15] - No mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 05.02.2009, 14.10.2009 e de 15.04.2010, proferidos nos processos nºs 2381/08 - 5, 101/08.7PAABT.E1.S1 - 3 e 154/01.9JACBR.C1.S1 - 5, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos/secçãocriminal.
[16] - Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
[17] - Neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), pág. 25.
[18] - Acórdão do STJ de 02.05.1996, CJ, ACSTJ, 1996, Tomo II, pág. 177.