Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5046/16.4T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: PRESCRIÇÃO DO TÍTULO DE CRÉDITO EXEQUENDO
LIVRANÇA EM BRANCO
ABUSO
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - SOURE - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 70º E 77º DA LULL; 15º DO RCCG.
Sumário: I – É comum que a subscrição de uma livrança em branco garanta a satisfação de um direito de crédito, facultando ao credor o acesso a uma ação executiva na hipótese de incumprimento da respetiva obrigação, sendo a livrança preenchida de acordo com o que tiver sido pactuado aquando da sua subscrição em branco pelo devedor, sob pena do preenchimento se revelar abusivo.

II - A possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objectiva nos contratos sujeitos ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (RCCG).

III - Uma liberdade total na inserção das datas de emissão e de vencimento de uma livrança subscrita em branco permitiria ao credor defraudar os interesses públicos e do devedor que presidem ao instituto da prescrição dos créditos cambiários, proporcionando a criação de direitos de crédito imprescritíveis, sendo certo que o nosso ordenamento não permite uma renúncia antecipada à prescrição – art.º 302º, n.º 1, do C. Civil – e comina com a nulidade os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais de prescrição – art.º 300º do C. Civil –, o que suscita até a hipótese de invalidade do previsto naquela cláusula, por força do art.º 280º do C. Civil.

IV - Destinando-se a livrança subscrita em branco a facilitar a cobrança do crédito em causa, na hipótese de se verificar o incumprimento da respectiva obrigação, resolvido o contrato, com fundamento nesse incumprimento, a boa-fé determina que a livrança seja coincidentemente preenchida com a resolução do contrato, iniciando-se, a partir desse momento, a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Na execução para pagamento de quantia certa que contra si foi intentada veio a Executada deduzir oposição mediante embargos, alegando, em síntese, o seguinte:
- A livrança dada à execução tem por base o contrato de crédito nº ..., que visou a aquisição de uma viatura automóvel, o qual há muito foi resolvido com a financeira, tendo esta retomado o veículo em 09/11/2011, pelo valor então em dívida.
- Tal livrança não foi preenchida pela opoente, não apresentando a exequente qualquer pacto de preenchimento, pelo que aquele escrito não pode produzir efeitos como livrança, não sendo título executivo.
- A embargante desconhece quais os documentos que lhe foram dados a assinar e desconhecia inclusive o que era uma livrança. Desconhece ainda o conteúdo do contrato assim como qualquer pacto de preenchimento da livrança e suas condições de preenchimento ou produção de efeitos, o que nunca lhe foi comunicado pela Exequente.
- Estando comprovado que exequente e executada puseram termo ao contrato através da retoma do veículo em 09/12/11, era a partir de tal data que se contavam os três anos para accionar a livrança e, ao não fazê-lo, não só o preenchimento da livrança foi abusivo, como o débito está prescrito.
- A executada foi mantida em erro por todo este tempo, pois deu o assunto por encerrado em 2011 e 7 anos depois é confrontada com a alegada dívida aposta na livrança o que traduz má-fé por parte da exequente e um venire contra factum proprium.
Conclui pela procedência dos embargos.
A Exequente contestou, alegando, em síntese:
- Celebrou com a embargante um contrato de mútuo, no montante total de €26.615,76, que esta se obrigou a pagar em 72 prestações, iguais, mensais e sucessivas, de €368,08, que se destinou à aquisição de uma viatura automóvel.
- Resultado do incumprimento reiterado das obrigações contratuais, a exequente resolveu o contrato, por carta registada com AR de 11/05/12, interpelando a embargante para o pagamento da quantia em dívida, o que não sucedeu até ao momento.
- A livrança foi preenchida de acordo com o pacto de preenchimento previsto na cláusula 10ª do contrato de crédito, cláusula que a embargante aceitou.
Concluiu pela improcedência dos embargos e juntou documentos.
A Embargante impugnou os documentos juntos com a contestação, invocando a nulidade do contrato e dizendo que nunca recebeu os demais.
Na sequência de convite que lhe foi dirigido para o efeito a Embargada esclareceu a forma pela qual procedeu ao cálculo do valor em dívida e inscrito na livrança.
A Embargante limitou-se a impugnar os documentos juntos com este último articulado.
Foi proferida decisão no despacho saneador que julgou improcedentes os embargos.
A Embargante interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
Não foi apresentada resposta.
1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas as questões a apreciar são as seguintes:
- nulidades da sentença
- impugnação da matéria de facto
- prescrição do título executivo
2. Da nulidade da sentença
A Recorrente alega que a sentença é nula porque não conheceu de questões que devia ter conhecido - art.º 615º, n.º 1, d), do C. P. Civil - e porque conheceu de questões que não podia ter conhecido - artigo 615.º, n.º 1, b), do C. P. Civil.
Quanto à primeira causa de nulidade o Recorrente não explicita quais são as questões cuja análise e resolução foi omitida pela decisão recorrida, pelo que não é possível verificar a existência da alegada nulidade.
Quanto à segunda causa de nulidade invocada, o Recorrente alega que na sentença foram considerados provados factos cuja prova ainda não existia no processo. Esta alegação não consubstancia a existência do vício previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do C. P. Civil, mas sim um erro de julgamento sobre a matéria de facto que podia ser já considerada provada nesta fase processual.
Por estas razões improcede a invocada nulidade da sentença recorrida.
3. Da impugnação da matéria de facto provada
A decisão recorrida é um despacho saneador que conheceu imediatamente do mérito da causa, por ter entendido que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total do mérito do pedido formulado, nos termos do art.º 595º, n.º 1, b), do C. P. Civil, tendo, por isso, o valor de sentença.
Nela, foi dito que, atentos os documentos juntos ao processo de execução e os documentos juntos pelas partes com os articulados nos presentes embargos, se julgavam  provados os seguintes factos:
1. “M..., S.A.” propôs execução sumária para pagamento de quantia certa contra D..., com base em livrança, no montante de €5.439,65 (cinco mil quatrocentos e trinta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos).
2. A embargante celebrou com a embargada um contrato de mútuo, por via do qual lhe foi concedido um empréstimo de €19.000,00 (dezanove mil euros).
3. Tal quantia seria paga em 72 (setenta e duas) prestações iguais, mensais e sucessivas de €369,08 (trezentos e sessenta e nove euros e oito cêntimos).
4. Perfazendo o total do empréstimo e respectivos encargos a quantia de €26.615,76 (vinte e seis mil seiscentos e quinze euros e setenta e seis cêntimos).
5. O referido empréstimo destinou-se a permitir à embargante a aquisição da viatura de marca Audi, modelo A8, com a matrícula ...
6. O pagamento das prestações seria feito por débito em conta, iniciando-se com o pagamento da primeira prestação em 27/06/2006.
7. Em 09/12/2011 a embargante entregou a viatura objecto do contrato destinando-se o produto da sua venda a ser imputado ao contrato.
8. Nessa venda, em leilão, foi obtido o valor líquido de €2.800,00 (dois mil e oitocentos euros).
9. Mediante a quantia recebida, procedeu o exequente à imputação daquele valor para regularização do débito vencido, permanecendo em dívida o valor de €2.421,36, correspondente a prestações vencidas e não pagas.
10. Por carta registada com aviso de recepção, datada de 11 de Maio de 2012, a exequente comunica à embargante a intenção de resolver o contrato por incumprimento, caso esta, no prazo de 8 dias, não pague o valor em dívida.
11. Em 18/05/2012 o contrato foi resolvido pelo valor de €4.786,97, correspondente a prestações vencidas e não pagas, acrescido de juros de mora e outras despesas do contrato, sendo esse valor em 14/10/2015 de € 5.430,29, valor pelo qual foi preenchida a livrança em 6 de Maio de 2016.
12. Consta da cláusula 10ª do contrato de crédito, denominada de “Garantias”:
“Livrança: Os mutuários obrigam-se a entregar à F..., a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas, devidamente subscrita pelo(s) Mutuário(s) e assinada pelo(s) Avalista(s), que poderá ser livremente preenchida, pela F..., designadamente no que refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento a F... seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes. A F... poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos.”.
E na mesma decisão foram julgados não provados os seguintes factos:
- que a embargada retomou o veículo pelo valor então em dívida;
- que a embargante, na data da celebração do contrato assinou vários papeis que lhe foram entregues, desconhecendo a que se destinavam, pois nada lhe foi explicado;
- que a embargante desconhecia o que era um livrança;
- que aquando da retoma do veículo foi a executada informada que nada mais teria a pagar e o assunto estaria encerrado;
- que a executada desconhece o conteúdo do contrato, assim como qualquer pacto de preenchimento da livrança e suas condições de preenchimento ou produção de efeitos.
O Recorrente discorda que se possam desde já considerar não provados estes factos, como também discorda que se possam considerar provados os factos constantes que acima constam nos n.º 7 a 11.
Atenta a fase em que o processo se encontrava quando foi proferida a decisão apenas era possível considerar provados factos sobre os quais existia acordo das partes, confissão ou se encontrassem plenamente provados por documentos, e não provados aqueles que fossem incompatíveis com os factos julgados provados.
Relativamente ao ponto 7, se é certo que as partes estão de acordo, manifestado nos articulados, que em 09/12/2011 a embargante entregou a viatura objecto do contrato, já esse acordo não existe quanto ao facto de ter sido convencionado que o produto da venda da viatura seria imputado no valor em dívida pela embargante, uma vez que esta alegou ter existido um acordo com um conteúdo diverso – o de que a entrega da viatura liquidaria integralmente esse valor.
Assim apenas é possível considerar provado que em 09/12/2011 a embargante entregou à F... a viatura objeto do contrato.
Quanto ao ponto 8 o mesmo resulta da alegação contida no artigo 4.º do articulado complementar junto pela Exequente a convite do tribunal, não tendo esse facto sido impugnado, pelo que o mesmo se encontra provado por acordo tácito das partes, nos termos do artigo 574.º, n.º 2, do C. P. Civil.
O ponto 9 mais não traduz que uma conclusão jurídica pelo que não deve ser considerado enquanto facto provado.
O conteúdo dos pontos 10 e 11 não foi alegado por nenhuma das partes, uma vez que o Exequente se limitou a alegar que “resolveu o contrato por carta registada com aviso de receção datada de 11 de Maio de 2012 conforme documento n.º 2 que junta”.
Esse documento é a cópia de uma missiva endereçada à Ré pela F... para a morada que consta do contrato referido em 2., datada de 11.5.2012, com o seguinte conteúdo:
Assunto: Incumprimento do Contrato de Crédito n.º ...
...
Na sequência do não cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato acima identificado vimos pela presente informar V.ª Exª que iremos proceder à sua resolução por incumprimento.
Assim, caso não proceda à liquidação do montante em dívida, num total de 4.546,70 €, no prazo de 8 dias, procederemos à rescisão por incumprimento, com todas as consequências legais,
...
Aguardando o pagamento, subscrevemo-nos com os nossos cumprimentos.
O Réu impugnou este documento sob a alegação que nunca recebeu essa carta.
 Não existindo acordo das partes sobre aqueles factos e não se encontrando os mesmos provados documentalmente, não é possível considerar provado o que consta dos pontos 10. e 11.
Nenhum dos factos que nesta fase podia já ser considerado provado é incompatível com qualquer um dos factos julgados não provados, pelo que não era possível naquele momento efectuar esse julgamento negativo, dado que ainda não tinha decorrido a fase de produção de prova, designadamente a audiência de julgamento.
Por essa razão não era possível julgar aqueles factos como não provados.
Assim sendo, apenas é possível considerar provado documentalmente e por acordo expresso ou tácito das partes os seguintes factos:
1. “M..., S.A.” propôs execução sumária para pagamento de quantia certa, contra D..., com base em livrança, no montante de €5.439,65 (cinco mil quatrocentos e trinta e nove euros e sessenta e cinco cêntimos).
2. A embargante celebrou com a embargada um contrato de mútuo, por via do qual lhe foi concedido um empréstimo de €19.000,00 (dezanove mil euros).
3. Tal quantia seria paga em 72 (setenta e duas) prestações iguais, mensais e sucessivas de €369,08 (trezentos e sessenta e nove euros e oito cêntimos).
4. Perfazendo o total do empréstimo e respectivos encargos a quantia de €26.615,76 (vinte e seis mil seiscentos e quinze euros e setenta e seis cêntimos).
5. O referido empréstimo destinou-se a permitir à embargante a aquisição da viatura de marca Audi, modelo A8, com a matrícula ...
6. O pagamento das prestações seria feito por débito em conta, iniciando-se com o pagamento da primeira prestação em 27/06/2006.
7. Em 09/12/2011 a embargante entregou a viatura objecto do contrato.
8. A viatura foi vendida pela Exequente, em leilão, tendo sido obtido o valor líquido de €2.800,00 (dois mil e oitocentos euros).
9. Consta da cláusula 10ª do contrato de crédito, denominada de “Garantias”:
“Livrança: Os mutuários obrigam-se a entregar à F..., a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas, devidamente subscrita pelo(s) Mutuário(s) e assinada pelo(s) Avalista(s), que poderá ser livremente preenchida, pela F..., designadamente no que refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento a F... seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes. A F... poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos.”.
Atento o teor do documento de fls. 63 e o acordo das partes nos articulados, tendo em consideração que a invocação de desconhecimento de factos pessoais é ineficaz, é possível ainda aditar neste tribunal, nos termos do art.º 662º, n.º 1, do C. P. Civil os seguintes factos:
10. A livrança referida em 1. foi subscrita em branco pela embargante aquando da celebração do contrato mencionado em 2, no cumprimento do disposto na transcrita cláusula 10.
11. A Exequente posteriormente apôs-lhe a data de emissão de 6.5.2016 e a data de vencimento de 6.6.2016.
3. A prescrição do título de crédito exequendo
Na oposição à execução movida pela embargante esta havia invocado a prescrição da obrigação cambiária exequenda, alegando que, tendo o contrato subjacente à livrança junta como título executivo sido extinto por vontade das partes em 9.12.2011, quando em 2018 foi deduzida a execução com fundamento na obrigação cambiária titulada por aquela livrança, esta já havia prescrito nos termos do art.º 70º da LULL, aplicável ex vi art.º 77º do mesmo diploma, considerando que houve abuso na aposição da data de emissão da livrança.
A Exequente, além de alegar que o contrato em causa apenas foi por si resolvido em 11.5.2012, defendeu que o prazo de prescrição de três anos previsto no art.º 70º da LULL não se completou, pois o mesmo só iniciou a sua contagem na data de vencimento aposta na livrança, ou seja em 6.6.2016, pelo que ainda não havia decorrido quando a Embargante foi citada para a presente execução.
A sentença recorrida seguiu a posição da Exequente considerando que a obrigação cambiária exequenda não estava prescrita.
Um dos fundamentos do presente recurso é precisamente esta questão da prescrição.
Argumenta a Recorrente:
‘Também em relação à prescrição e abusivo preenchimento da livrança, não foi tido em consideração pelo Tribunal a quo que o aludido empréstimo foi feito por 6 anos (72 prestações), com início em data desconhecida, atento o contrato junto como doc. Nº 1 A com a contestação, mas que se tivermos em conta o documento 1 C junto com aquele mesmo articulado, nele foi aposto por alguém que não a Embargante, que teve início em 27/06/2006, ou seja, terminaria em Junho de 2012.
Ora, em tal data, segundo a Embargada, já se encontrava resolvido o contrato por esta, pelo que a livrança deveria ser accionada.
Não pode o preenchimento de uma livrança ficar em carteira da financeira por anos a fio, vencendo juros e encargos, pelos anos que lhe aprouverem, pois assim nunca prescreveriam e não é esse o espírito da Lei.
Repare-se que na Sentença recorrida é tido como normal que tendo a Embargada posto termo ao contrato em 2012, tenha acumulado juros e despesas até 2015 e que só em 2016 preencheu e accionou a livrança dada à execução, concluindo com base nisso que a obrigação cambiária não prescreveu.
É uma solução que deixa o devedor numa posição de total inferioridade e desigualdade face ao credor, atenta a discricionariedade que a este título se concede a este.
É pois uma situação inaceitável e desconforme aos princípios que nos regem, nomeadamente, o da boa fé.
Atenta a data da resolução do contrato pelo credor, o crédito venceu-se na sua totalidade, pelo que a livrança deveria estar datada daquela data e o prazo de prescrição decorreria a partir desta, pelo que a Decisão recorrida tinha de considerar prescrito o crédito reclamado através daquele título, uma vez que estamos no domínio das relações imediatas, razão pela qual pode ser oposta a excepção do preenchimento abusivo por parte do subscritor.
Só assim se compreende o comando do art. 70º da LULL que diz que todas as ações contra o aceitante relativas a letras, aplicável às livranças pelo art. 77º, prescrevem em três anos a contar do vencimento.
É comum que a subscrição de uma livrança em branco garanta a satisfação de um direito de crédito, facultando ao credor o acesso a uma ação executiva na hipótese de incumprimento da respetiva obrigação, sendo a livrança preenchida de acordo com o que tiver sido pactuado aquando da sua subscrição em branco pelo devedor, sob pena do preenchimento se revelar abusivo.
Neste caso provou-se que constava do contrato de mútuo celebrado entre a Exequente e a Embargante a seguinte cláusula sob o título “Garantias”:
 “Livrança: Os mutuários obrigam-se a entregar à F..., a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas, devidamente subscrita pelo(s) Mutuário(s) e assinada pelo(s) Avalista(s), que poderá ser livremente preenchida, pela F..., designadamente no que refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento a F... seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes. A F... poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos.”
A possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objectiva nos contratos sujeitos ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (RCCG).
Dispõe o art.º 15º deste diploma que são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé.
Como explica Sousa Ribeiro[1], o que está em causa nesta particular valência da boa fé é a salvaguarda de uma composição de interesses que não seja excessivamente desequilibrada. De modo que a valoração da conformidade à boa fé se coloca ainda dentro da necessária ponderação de interesses que aquele juízo envolve: há que medir se o grau de vantagens que o predisponente se auto-atribui encontra razão atendível do ponto de vista dos seus interesses, e se isso acarreta ou não prejuízos relevantes para a contraparte, não justificáveis por aqueles interesses.
O controlo do conteúdo constitui-se, assim, como um puro juízo sobre a razoabilidade dos termos contratuais, ponderando a sua repercussão nos interesses das partes. Juízo que tem um padrão de referência de natureza exclusivamente normativa, dado pela posição que caberia ao aderente se a cláusula não existisse. O que conta é o confronto entre a ordem contratual preformulada e a que resultaria da aplicação dos padrões legais. Divergências para além do razoável, que importem, em benefício do predisponente, uma desvirtuação significativa do equilíbrio dos efeitos contratuais, não são admitidas.
Ora, uma liberdade total na inserção das datas de emissão e de vencimento de uma livrança subscrita em branco permitiria ao credor defraudar os interesses públicos e do devedor que presidem ao instituto da prescrição dos créditos cambiários, proporcionando a criação de direitos de crédito imprescritíveis, sendo certo que o nosso ordenamento não permite uma renúncia antecipada à prescrição – art.º 302º, n.º 1, do C. Civil – e comina com a nulidade os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais de prescrição – art.º 300º do C. Civil –, o que suscita até a hipótese de invalidade do previsto naquela cláusula, por força do art.º 280º do C. Civil [2].
A auto-atribuição desta liberdade resulta, no mínimo, numa desvirtuação irrazoável dos padrões legais, que deve ser considerada proibida pelo disposto no art.º 15º do RCCG.
Revelando-se que a convenção dessa liberdade de preenchimento viola a proibição contida no art.º 15º do RCCG, o disposto nesse segmento da cláusula 10ª do contrato outorgado entre Exequente e Embargante é nulo – art.º 12º do RCCG –, o que, encontrando-se o contrato já extinto, implica a aplicação na parte afectada das normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos – art.º 13º do RCCG.
É, pois, necessário, integrar o pacto de preenchimento, na parte relativa às datas de emissão e vencimento da livrança subscrita em branco, de acordo com os ditames da boa-fé – art.º 239º do C. Civil –, uma vez que, tendo-se revelado nulo o acordado pelas partes, não faz aqui sentido recorrer à vontade presumível destas.
Ora, destinando-se a livrança subscrita em branco a facilitar a cobrança do crédito em causa, na hipótese de se verificar o incumprimento da respectiva obrigação, resolvido o contrato, com fundamento nesse incumprimento, a boa-fé determina que a livrança seja coincidentemente preenchida com a resolução do contrato, iniciando-se, a partir desse momento a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL [3].
Tendo, na versão da própria Exequente, o contrato de mútuo que unia esta à Embargante sido por aquela resolvido em 11.5.2012 e mostrando-se aposta na livrança de garantia subscrita em branco a data de vencimento de 6.6.2016, estamos perante um preenchimento abusivo da livrança, objectivamente frustrador do funcionamento do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL, pelo que, para efeitos de verificação da ultrapassagem deste prazo, deve considerar-se que a data do vencimento da livrança é a de 11.5.2012, pelo que o crédito cambiário exequendo se encontrava já prescrito à data da citação para os termos da execução, pelo decurso do prazo de 3 anos previsto no art.º 70º da LULL.
Uma vez que, na versão da própria Exequente, o crédito cambiário titulado pela livrança dada à execução se encontra prescrito, por razões de economia processual, não se justifica que a ação prossiga para apuramento dos factos que se encontram controvertidos, devendo o recurso proceder, revogando-se a decisão recorrida, sendo esta substituída por outra que, julgando verificada a prescrição do crédito exequendo, determine a extinção da execução.
Atenta a procedência deste fundamento do recurso fica prejudicada a apreciação das demais razões alegadas pela Recorrente.
Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se extinta a execução.
Custas do recurso pela Exequente.

                                                                       Coimbra, em 11/06/2019


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[1] Em A boa fé como norma de validade, em Direito dos Contratos. Estudos, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 259-260.

[2] No entanto, a jurisprudência, em regra, tem vindo a admitir a validade de cláusulas deste tipo, como nos dá conta, embora criticando essa posição, Carolina Cunha, em Letras e Livranças. Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 604 e seg. V.g. Acórdãos do S.T.J. de 19.10.2017, relatado por Rosa Tching, e de 20.10.2015, relatado por Garcia Calejo, do T. R. P. de 29.1.2019, relatado por Lina Baptista, e de 7.1.2019, relatado por Jorge Seabra, do T. R. G. de 28.2.2019, relatado por Fernando Freitas, e de 25.10.2018, relatado por Raquel Tavares, e ainda do T. R. E. de 23.3.2017, relatado por Isabel Imaginário
 
[3] Neste sentido, Gonsalves Dias, em Da Letra e da Livrança, vol. IV, Livraria de António Gonsalves, Coimbra, 1942, pág. 561-562, Carolina Cunha, em Manual de Letras e Livranças, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 200 e seg., e os Acórdãos do S.T.J. de 30.4.2002, relatado por Ribeiro Coelho, da Relação de Lisboa de 10.11.2005, relatado por Gil Roque, do T. R. C. de 28.11.2018, relatado por Arlindo Oliveira, e do T. R. G. de 20.10.2016 e de 16.11.2017, relatados por Damião da Cunha.