Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/15.5GEACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DANO
BEM COMUM DO CASAL
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO CRIMINAL DA INST. LOCAL DE ALCOBAÇA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 212.º DO CP
Sumário: I - Os bens comuns do casal têm, em relação a cada um dos cônjuges, a característica de alheios.

II - Consequentemente, ao danificar elemento componente de um veículo automóvel, bem integrado no património comum do casal, qualquer um dos dois cônjuges comete o crime tipificado no artigo 212.º, n.º 1, do CP.

Decisão Texto Integral:



Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo especial, sob a forma abreviada, n.º 6/15.5GEACB da Comarca de Leiria, Alcobaça – Inst. Local – Secção Criminal – J1, mediante acusação pública, foi a arguida A... , melhor identificada nos autos, submetida a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática em autoria material de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do C. Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 17.12.2015, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

«Por tudo o que precede, julgo procedente a acusação e, em consequência, decido:

A. Condenar a arguida A.... pela prática, em autoria material, de um crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros);

(…)

C. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por B... e, em consequência, condenar a demandada A.... a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 627,82 (seiscentos e vinte e sete euros e oitenta e dois cêntimos), absolvendo-a do demais peticionado.

(…)».

3. Inconformada com o assim decidido recorreu a arguida, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. Não há, nos autos qualquer prova de que o valor dos danos causados pela arguida totalizem 627,82 €,

2. Há um simples orçamento.

3. Este orçamento não foi minimamente justificado na audiência de julgamento pelas testemunhas presentes, pelo demandante ou por quem ofereceu o orçamento.

4. Não houve qualquer prova sobre tal facto, pelo que não pode dar-se cumprimento ao disposto no art.º 412.º, n.º 4 do CPP.

5. O demandante não pagou aquele valor, pelo que não lhe é devido.

6. Só o “património conjugal” é credor e não o demandante.

7. Acresce que, se a recorrente pagasse aquele valor, o demandante poderia não mandar reparar a viatura, o que representaria um prejuízo patrimonial do dito “património conjugal”.

8. É elemento constitutivo do crime de dano que a coisa que foi destruída, no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou tornada não utilizável seja “coisa alheia” – art.º 212.º, n.º 1 do Código Penal.

9. O veículo danificado é um bem comum que faz parte do “património conjugal” do demandante e da arguida.

10. Foi adquirido durante os anos em que ambos viveram em união de facto, como se marido e esposa fossem, e com os proventos auferidos por ambos em comum.

11. O veículo danificado não é uma “coisa alheia”, relativamente à recorrente.

12. Não sendo uma “coisa alheia” não há crime.

13. Não havendo crime não há que pagar qualquer valor ao demandante.

14. O Mmo Juiz violou o disposto nos artigos 1º, n.º 1 e 212.º, ambos do Código Penal.

15. Pelo que deve ser proferido acórdão que revogue a douta sentença recorrida e absolva a recorrente do crime que lhe foi imputado e bem assim do valor a pagar.

16. Esta foi, também, a posição da Exma. Senhora Magistrada do MºPº que, em julgamento, pugnou pela absolvição da ora recorrente, dizendo mesmo, que, se ela tivesse conduzido o inquérito, não teria deduzido acusação.

17. Absolvendo-se a recorrente, far-se-á justiça.

4. O recurso foi admitido para subir nos próprios autos com efeito suspensivo.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, defendendo a respetiva improcedência.

6. Remetidos os autos à Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, contrariando a argumentação da recorrente, se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.

7. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Questão prévia

Decorre das conclusões pretender a recorrente questionar o montante indemnizatório fixado na sentença, ou seja a parte cível da decisão.

Sucede, porém, que, em função do disposto no artigo 402.º, n.º 2 do CPP, não se verificando os requisitos cumulativos previstos na norma (valor do pedido: 5 1800,00; condenação, a título de danos patrimoniais, no pagamento de € 627,82) não é admissível o recurso relativamente à parte cível da decisão, o que determina, quanto à mesma, a respetiva rejeição.

 

2. Delimitação do objeto do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado em função das conclusões, as questões a dirimir traduzem-se em saber se:

- Incorreu o tribunal em erro de julgamento;

- É errada a subsunção dos factos ao tipo legal em questão.

3. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]:

III - FUNDAMENTAÇÃO:

III.1 - Os factos:

III.1.1 - Produzida a prova e discutida a causa, resultaram PROVADOS os seguintes factos com relevância para a decisão daquela:

1. No dia 3 de Janeiro de 2015, pelas 9h30, nas bombas de abastecimento de gasolina da Cepsa, na Rua Conde de Avelar, em São Martinho do Porto, a arguida deslocou-se junto do veículo ligeiro de passageiro, marca Mitsubishi, modelo Pajero Sport 2.5, de matrícula (...) , que ali se encontrava estacionado.

2. Ato contínuo, com as duas mãos, arrancou as três escovas do para-brisas frontal e traseiro do referido veículo, assim como arrancou e partiu os vidros de ambos os espelhos retrovisores exteriores, ao mesmo tempo que também desferiu, em número não concretamente apurado, diversos pontapés por todo o veículo.

3. Com tal conduta, e para além da destruição das aludidas escovas e vidros dos espelhos retrovisores, a arguida causou diversas mossas e riscos na chapa do referido veículo, designadamente no capô e nas portas laterais.

4. O veículo identificado em 1 tem, desde 26-07-1999, a propriedade registada a favor do demandante B.....

5. No entanto, foi adquirido na pendência da vivência marital entre o mesmo e a arguida/demandada com dinheiro proveniente da economia comum do casal.

6. Com efeito, entre 1983 e 2012 o demandante e a arguida/demandada viveram como se de marido e mulher se tratassem, período durante o qual tiveram três filhos em comum e viveram com economias comuns, com contas bancárias comuns, fazendo aquisição de bens para o casal com o dinheiro delas proveniente.

7. O veículo foi adquirido para, preferencialmente, ser conduzido e utilizado pela arguida, tanto mais que o demandante não é titular de carta de condução.

8. Tal utilização incluía, por vezes, a ajuda da arguida na atividade normal do demandante enquanto pedreiro, por conta própria.

9. Todavia, para o exercício dessa atividade, era preferencialmente utilizado o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula VX (...) , cuja propriedade também se mostra registada em favor do demandante.

10. Anteriormente à data mencionada em 1, o veículo aí identificado já apresentava diversas outras mossas e amolgadelas.

11. A reparação das três escovas e dos espelhos retrovisores mencionados em 2 foi orçada num valor global de € 627,82 (seiscentos e vinte e sete euros e oitenta e dois cêntimos).

12. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de danificar o veículo identificado em 1, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia em exclusivo e que atuava contra a vontade e também em prejuízo do co-proprietário do mesmo, o demandante B.....

13. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

14. A arguida não tem averbados quaisquer antecedentes no respetivo certificado de registo criminal.

15. Encontra-se desempregada, vivendo com um companheiro, em casa deste, o qual suporta todas as despesas do respetivo agregado familiar.

16. O companheiro exerce as funções de pintor por conta de outrem, auferindo vencimento mensal de montante não concretamente apurado.

17. Os três filhos que tem em comum com o demandante, de 31, 29 e 23 anos de idade, já se encontram todos autonomizados.

18. A arguida tem como habilitações literárias o 4.º ano de escolaridade.


*

III.1.2 Quanto a factos NÃO PROVADOS, resultaram os seguintes:

a) O veículo identificado em 1 pertence exclusivamente ao demandante B....;

b) Tal veículo era o único utilizado na atividade normal do demandante enquanto pedreiro, por conta própria;

c) Desde a data mencionada em 1 que o mesmo veículo está imobilizado em virtude da conduta da arguida/demandada e, designadamente, por o demandante não ter disponibilidade económica para proceder à respetiva reparação;

d) A conduta da arguida/demandada causou um prejuízo no valor de, pelo menos, € 1.891,02 (mil oitocentos e noventa e um euros e dois cêntimos).


*

III.2 – Apreciação crítica da prova:

Tendo presente o princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal, assim como a suficiência de um sucinto exame crítico das provas oriunda das disposições conjugadas dos artigos 389.º-A, n.º 1, alínea a), e 391.º-F, ambos do mesmo diploma, importa começar por fazer notar que a arguida, tendo decidido prestar declarações sobre os factos que lhe vinham imputados, fê-lo admitindo-os na sua generalidade, apenas afirmando não saber, com o que também não deixou de admitir, ter dado pontapés no veículo (...) .

Numa toada constante de plena credibilidade, explicou inclusivamente o motivo que a levou a agir do modo descrito, relacionado com a circunstância de, sendo o veículo um bem comum do casal entretanto separado em 2012, estar impedida pelo seu ex-companheiro de o utilizar, ao mesmo tempo que aquele facultava tal utilização a terceiras pessoas, designadamente à testemunha C...., sua sobrinha, o que a arguida não aceitava e a transtornava.

Ora, para além da admissão por parte da arguida, que não deixa de se estender aos factos do foro interno provados em 12 e 13, a demonstração dos factos provados em 1 a 3 sempre decorreria dos depoimentos, nesse particular coerentes entre si, das testemunhas C....e D...., ambas presentes no local e que, desse modo, depuseram com conhecimento direto da generalidade desses mesmos factos.

Dito isto, e sendo certo que o facto provado em 4 resulta do teor do documento de fls. 47-48, temos que a plena credibilidade que nos mereceram as declarações da arguida foi mais do que suficiente para, só por si, ancorar o juízo probatório positivo inerente aos factos provados em 5 a 10.

Mas se dúvidas ainda houvesse, sempre poderiam ser dissipadas pelas declarações do demandante, que confirmou plenamente os factos provados em 6 e 10, sendo que daquele primeiro resulta também inequívoco o provado em 5, ainda que a dada altura o demandante tenha deixado escapar que «o carro é meu porque fui que o comprei».

Ora, estando-se inequivocamente no âmbito de uma economia comum de casal, essa afirmação é totalmente inócua e insuficiente para que, não obstante o que resulta da propriedade registal, considerar que o veículo em causa era pertença exclusiva do mesmo.

Antes se demonstrou, de forma cristalina, que faz parte do acervo patrimonial do entretanto dissolvido casal, com o inerente destino probatório do facto vertido na alínea a) dos não provados.

Referiu ainda o demandante, ao mesmo tempo que confirmou não ser titular de carta de condução, que, embora a arguida também o pudesse eventualmente utilizar, o veículo era preferencialmente utilizado pelos seus empregados no âmbito da sua atividade na área da construção.

Tal afirmação não teve, contudo, a virtualidade de abalar as declarações da arguida quando, de forma clara, afiançou os factos provados em 7 e 8.

E tanto assim que, por um lado, o esclarecimento da mesma em relação à circunstância de no exercício dessa atividade ser preferencialmente utilizado o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula VX (...) , estar sustentado no teor do documento de fls. 100, do qual resulta que a propriedade daquele veículo também se mostra registada em favor do demandante.

Além disso, a própria testemunha C...., sobrinha do demandante, afirmou que, antes do período (de cerca de 5 meses) em que o tio lhe emprestou o veículo em apreço, este estava parado há já cerca de um ano, o que naturalmente choca de frente com a ideia que o mesmo tentou, em vão, querer fazer passar, de que tal veículo era essencial ao exercício da sua atividade profissional, chegando ao ponto, imagine-se de, sem qualquer pejo, referir que deixou de aceitar trabalhos por não ter o veículo disponível nem dinheiro suficiente para proceder à reparação das escovas e espelhos danificados.

É assim por demais evidente a completa falta de verosimilhança e de credibilidade de uma tal versão, o que redunda na falta de demonstração da factualidade acolhida nas alíneas b) e c) dos factos não provados.

No que simultaneamente concerne ao facto provado em 11 e à alínea d) dos factos não provados, é importante realçar que, além das diversas mossas e riscos na chapa do veículo causados pela arguida, o mesmo, adquirido em 1999, ou seja, cerca de 16 anos antes desses factos, já apresentava diversas outras mossas e amolgadelas, não tendo sido feita qualquer prova capaz de distinguir umas e outras.

Ora, o orçamento constante de fls. 12 dos autos refere, genericamente, valores atinentes a serviços de pintura e de mão-de-obra de chapa em relação aos quais não é possível discernir se, e mais concretamente em que medida, se referem aos danos provocados pela arguida.

Destarte, desse orçamento é apenas possível extrair aquele facto provado em 11, sendo que o valor nele vertido corresponde à soma do orçamentado apenas relativamente à reparação das escovas e dos retrovisores, em relação à qual não estão ali quaisquer custos associados, uma vez que, como vimos, a mão-de-obra orçamentada tem apenas que ver com serviços de chapa e pintura.

Quanto à ausência de antecedentes criminais registados por parte da arguida (facto provado em 14) teve-se em conta o teor do certificado de registo criminal de fls. 96, sendo que os factos provados em 15 a 18 decorreram das declarações que, a esse respeito, a arguida decidiu prestar em termos que também se nos afiguraram plenamente credíveis. 

3. Apreciação

a.

Não contestando a recorrente o valor orçado da reparação dos estragos por si provocados no veículo, é de manter inalterado o ponto 11. dos factos provados, suportado, aliás no orçamento de fls. 12, elemento de prova – como decorre da fundamentação da convicção – só em parte valorado, sujeito à livre apreciação do tribunal (artigo 127.º do CPP).

Não se detetando do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, lacunas relevantes, juízos contraditórios, tão pouco juízos ilógicos, irrazoáveis e/ou sem a devida sustentação, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto.

b.

No que respeita à matéria de direito, diz a recorrente que, dada a natureza «não alheia» da coisa – no caso do veículo - não se mostra perfetibilizado o tipo objetivo em questão.

Em causa, portanto, a natureza «alheia» da coisa.

De acordo com o acervo factual provado o bem em causa (a viatura em que a arguida/recorrente provocou os estragos) – embora desde 1999 registado em nome do demandante – foi adquirido, no decurso do período em que ambos viveram em união de facto, com dinheiro proveniente da economia comum do «casal».

Sendo este o quadro, é, pois, de questionar se o bem – a coisa – é, ou não, alheia.

É matéria que, como dá bem nota a decisão recorrida, não tem merecido a unanimidade quer da doutrina, quer da jurisprudência.

A propósito lê-se na sentença: «A questão nevrálgica que, perante os factos provados em 4 e 8, se coloca, e que foi também suscitada em sede de alegações orais pela Digna Magistrada do Ministério Público, é a de saber se deve ser considerada como alheia coisa corpórea (neste caso o veículo supra identificado) pertencente ao património comum do casal.

Não desconhecendo entendimento divergente (por exemplo defendido por Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, UCE, 2008, p. 585, assim como pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.02.2011, disponível, como todos os demais que venham a ser citados sem indicação expressa de fonte, em www.dgsi.pt, neste caso sob Processo n.º 157/08.2GEACB.C1), em relação ao qual salvaguardamos o devido respeito, somos de parecer, na senda da lição de Manuel da Costa Andrade (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 212), que «é alheia a coisa de que o agente é apenas comproprietário».

Na verdade, e tal como se faz notar no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.07.2012 (processo n.º 70/08.3TAOHP.C1), «[O] elemento “coisa alheia” apenas pressupõe que o agente não seja o titular exclusivo do bem danificado, como sucede nos casos de propriedade em comum», pois que não é «admissível que qualquer dos titulares do direito possa destruir a coisa que lhe pertence apenas em compropriedade à revelia dos demais. Se o fizer, não destrói apenas coisa sua, destrói também coisa alheia e nessa medida poderá ser criminalmente responsabilizado pela sua atuação».

Em abono de uma tal tese cremos poder também lançar mão das judiciosas considerações do Supremo Tribunal de Justiça n.º Acórdão n.º 7/2011 (publicado no Diário da República, n.º 105, Série I, de 31-05-2011), no qual se fixou jurisprudência no seguinte sentido: «No crime de dano, p. e p. no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afetado no seu direito de uso e fruição».

Ora, estando ali patenteado um conceito amplo de ofendido em relação ao crime que nos ocupa, a dada altura da fundamentação de tal aresto faz-se notar, com pertinência para a questão sub judice, que «o elemento de alieneidade da coisa servirá essencialmente para excluir do âmbito da proteção da norma as condutas em que a coisa é danificada pelo exclusivo proprietário, ou em que nenhum direito ou interesse se mostre atingido pela conduta do sujeito ativo, por ninguém se ter apropriado da coisa» (sublinhado nosso).

A não se entender assim, e tal como pertinentemente se sublinha no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.06.2011 (Processo n.º 267/06.0GBACB.C1), «sempre que o direito de propriedade tivesse dois ou mais titulares, então estaria legitimado que qualquer deles, pudesse, até, destruir a coisa objeto do direito à revelia dos restantes», o que, também do nosso ponto de vista, é inaceitável.

Na situação dos autos, está demonstrado que a arguida não é exclusiva proprietária do veículo, também pertencente ao demandante, que danificou, razão por que consideramos estar verificado o integral preenchimento do elemento objetivo do tipo (…)».

Semelhante apreciação encontra apoio nas palavras de Costa Andrade, quando, a propósito, escreve: «A qualificação da coisa como alheia é determinada pelos princípios do, categorias e norma da lei civil. A exigência de se tratar de coisa alheia exclui as coisas insuscetíveis de apropriação (v.g. a atmosfera), as rei nullius (animais selvagens e abandonados …) e as coisas pertinentes à propriedade exclusiva do agente. Já é alheia a coisa de que o agente é apenas comproprietário. Como, fundadamente, decidiu o Ac. da RC de 18-1-89: “comete o crime de Dano o agente que destrói árvores frutíferas das quais é proprietário (juntamente com o ofendido)” (BMJ 383º, 616). Nesta linha, não pode acompanhar-se a RL quando decide que “não é crime, por constituir um ilícito civil, a danificação de bens comuns do casal, feita por um dos cônjuges em detrimento do outro” – cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, T. II, pág. 212 e ss.].

A mesma orientação é perfilhada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em cujo parecer, reportando-se ao caso concreto, discorre: «Perante esta materialidade, tem de se concluir que o veículo em questão, sendo compropriedade do demandante e da arguida, não tendo, por isso, a arguida a exclusividade da propriedade do bem danificado, incorreu no crime de dano, pois além de destruir coisa sua destruiu também coisa alheia contra a vontade do outro comproprietário».

Entendimento idêntico parece ser o de Leal-Henriques e Simas Santos enquanto, a respeito do crime de furto, para o efeito da respetiva punição distinguem entre a fungibilidade e a infungibilidade da coisa comum, propendendo no primeiro caso, sempre que o quantum subtraído por um dos comproprietários não exceder a quota a que tem direito, para a não punição e, ao invés, tratando-se de coisa infungível para a punição.

E versando, agora, sobre os bens comuns do casal, não deixa de relevar o que afirmado vem no acórdão do STJ de 14.07.2011 (CJ, ASTJ, T. II, pág. 241 e ss), a saber: «Os bens comuns do casal têm, em relação a cada um dos cônjuges, a característica de alheios, não tendo nenhum dos respetivos membros direito de, “per si”, de modo pleno e exclusivo, a dispor das coisas que integram esse património (…) Por isso, se um dos mesmos tornar não utilizável qualquer um desses bens comuns, a respetiva conduta é integradora de um crime de dano».

Concluindo, dir-se-á que, pese embora a questão não recolha unanimidade, estando em causa coisa não divisível sem prejuízo para o seu valor, não podemos deixar de acompanhar a decisão do tribunal a quo, a qual se nos afigura haver procedido a uma correta aplicação do direito, não resultando, em consequência, violadas as normas indicadas.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Condena-se a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Coimbra, 14 de Setembro de 2016

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)