Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
278/17.0T8SEI-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PREÇO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA PLENA
PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DE PROVA POR ESCRITO
INSOLVÊNCIA
TRADIÇÃO
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - SEIA - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 371, 372, 392, 393, 394 CC, 102, 106 CIRE
Sumário: 1 – Atestando o notário (o que fez constar da escritura) que os outorgantes declararam que prometiam comprar e vender, respectivamente, isto – tais declarações negociais produzidas pelos declarantes perante o notário – fica coberto pela força probatória plena, pelo que só pode ser contrariado frontalmente suscitando-se a falsidade da escritura.

2 – Não sendo suscitada qualquer falsidade da escritura, coloca-se tão só a possibilidade de se invocar que, embora os outorgantes hajam dito perante o notário o que este fez constar da escritura, o que eles/outorgantes disseram não foi sincero/verdadeiro ou foi influenciado por vícios que inquinam a validade das declarações negociais produzidas (perante o notário).

3 – Invocações estas – dos vícios da vontade (erro, dolo, coacção) e das divergências entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, simulação) – que podem, por a prova plena das afirmações atestadas se circunscrever à sua materialidade (e não também à sua sinceridade/veracidade ou à validade) e de assim não lhes ser aplicável o art. 394.º/1 do C. Civil, ser demonstradas pela prova testemunhal (com excepção da prova da simulação entre os próprios simuladores - art. 394.º/2 do CC).

4 – Assim, tendo-se os RR. limitado a impugnar o conteúdo da escritura, nada foi alegado com relevância jurídica e que careça de ser factualmente julgado; ou seja, não tem que se apreciar/julgar se um declarante prometeu efectiva/sincera/validamente comprar ou não e o outro declarante prometeu efectiva/sincera/validamente vender ou não.

5 – Atestando o notário (em escritura de CPCV) que os outorgantes declararam que o preço do negócio prometido foi integralmente pago e recebido, também tais declarações ficam cobertas pela força probatória plena.

6 – A alegação dos RR. de não ter sido efectivamente pago/recebido o preço declarado em tal escritura exige a prova da convenção de se ter declarado no documento um conteúdo contrário à verdade, pelo que, sendo “convenção contrária” ao conteúdo da escritura, é, em princípio, inadmissível a sua prova por testemunhas (cfr art. 394.º/1 do CC).

7 - Não será, porém, inadmissível tal prova testemunhal, se houver um “princípio de prova por escrito”, ou seja, um qualquer escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante, que torne verosímil o facto alegado.

8 – A mera declaração de insolvência tem como efeito “regra” a suspensão ex lege e automática do contrato-promessa em curso em que o insolvente seja parte, passando a assistir ao AI, na pendência de tal suspensão, o direito de optar ou pelo cumprimento ou pelo incumprimento do contrato-promessa (cfr. art. 102.º do CIRE).

9 – Porém, o art. 106.º/1 do CIRE prevê um regime especial: sendo a insolvência do promitente vendedor, tratando-se de promessa com eficácia real e tendo havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador, o AI não pode recusar o cumprimento, impondo-se-lhe cumprir o contrato.

10 – A “tradição” a que se refere o art. 106.º/1 do CIRE é a mesma que se verifica e exige para o corpus na aquisição derivada da posse, ocorrendo quando o promitente adquirente obtém a possibilidade de exercer uma relação material com e sobre o objecto e compondo-se de dois elementos: um negativo, o abandono do anterior possuidor, e outro, positivo, a apprehensio ou entrega ao novo possuidor.

11 – Provando-se que, na data do contrato, o promitente-vendedor entregou as chaves da fracção ao promitente-comprador, mas não se provando que este tenha estabelecido qualquer relação material positiva com a fracção, não se provou tal elemento positivo acima referido, não se podendo dizer que tenha havido “tradição” da coisa.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

C (…) e, esposa, G (…), residentes (…)

(...) , vieram propor a presente verificação ulterior de créditos e outros direitos (nos termos dos art. 146.º/2/b) do CIRE), contra a Massa Insolvente “A (…) Lda.”, os seus credores e a Insolvente, peticionando o seguinte:

A) Serem os Réus condenados a reconhecer que:

i. Por contrato promessa de compra e venda formalizado por escritura pública de 07 de Dezembro de 2012, celebrada no Cartório Notarial de (...) , o Autor prometeu comprar à sociedade “A (…), Lda.” e esta prometeu vender àquele o prédio identificado no artigo 2.ºda petição inicial;

ii. O preço estipulado para a prometida compra e venda foi de 105.000,00 €, já integralmente pago na data da celebração do dito contrato-promessa;

iii. Os outorgantes atribuíram à promessa eficácia real, que foi registada na Conservatória do Registo Predial de (...) a favor do promitente-comprador pela Ap. 734 de 07.12.2012;

iv. A sociedade “A (…) Lda.”, operou, então, a entrega do prédio prometido vender ao Autor para que dele fizesse o uso que bem entendesse como se coisa sua fosse desde então;

v. O referido contrato promessa não foi cumprido pela “A (…)Lda.”;

vi. E, em consequência, que o Tribunal proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré faltosa, substituindo a escritura pública de compra e venda da fracção descrita no artigo 3.º desta peça processual, a qual deve ser transmitida livre de ónus e encargos, e a 1ª Ré condenada a reconhecê-la e a agir em conformidade e termos da Lei.

vii Seja a 1.º Ré Massa Insolvente condenada a extinguir as garantias de hipoteca que recaem actualmente sobre a fracção identificada em 3.º, designadamente a favor do Banco (…), bem como toda e qualquer hipoteca que venha a recair sobre a fracção até à data do trânsito em julgado da sentença; ou então, condenada a entregar aos Autores os montantes dos débitos garantidos, ou os valores neles correspondentes à fracção, respectivos juros vencidos e vincendos até integral pagamento.

viii. E condenada a praticar todos os actos necessários ao levantamento das penhoras que à data da entrada da presente acção e, bem assim, do trânsito em julgado da mesma recaem ou venham a recair sobre a fracção prometida, mediante pagamento das dividas exequendas aos exequentes que penhoraram ou venham a penhorar a fracção; ou então, condenada a entregar à Autora do montante necessário para o pagamento das dívidas exequendas, respectivos juros vencidos e vincendos até integral pagamento.

B) E, a título subsidiário,

i) O reconhecimento do direito de crédito dos autores sobre a Massa Insolvente no montante de 105.000,00 Euros (cento e cinco mil euros) correspondente ao preço estabelecido pelas partes outorgantes e que, de acordo com os Autores, foi por estes integralmente pago.

ii) O reconhecimento do direito de retenção da fracção em apreço, nos termos do estatuído no artigo 755º, nº 1 alínea f) do Código Civil.

Para tanto e em síntese, alegaram que, por contrato-promessa de compra e venda formalizado por escritura pública de 07 de Dezembro de 2012, o Autor prometeu comprar à Insolvente “A (…)Lda.” e esta prometeu vender àquele o prédio descrito na Conservatória do Regista do Predial de (...) sob o número (...) 1/20090303-B e inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de (...) , (...) e (...) sob o artigo 5981.

Mais invocaram que o preço acordado (de 105.000,00€) foi integralmente pago na data da celebração do mencionado contrato promessa.

Acrescentaram que os outorgantes atribuíram à promessa eficácia real nos termos da apresentação 734 de 07.12.2012 e, bem assim, que a promitente vendedora, ora Insolvente, entregou ao Autor o prédio objecto do contrato promessa de compra e venda, para que aquele utilizasse o prédio como se de coisa sua se tratasse.

Alegaram, ainda, que, desde então, os Autores passaram a entrar e sair do imóvel quando bem entendem (utilizando, para o efeito, a chave do imóvel que estão na sua posse) nele tendo feito obras de adaptação do tecto falso, fazendo-o de forma continuada, à vista de todos, sem a oposição de ninguém, na convicção de que o faziam no uso de um direito que lhes havia sido conferido pela então proprietária do prédio, aqui Insolvente.

Invocaram, também, que, pese embora os esforços dos Autores, até à data, não foi celebrado o contrato de compra de compra e venda.

Sustentaram que o Sr. Administrador de Insolvência decidiu pelo não cumprimento do contrato promessa de compra e venda em apreço por entender não estarem reunidos os pressupostos estabelecidos no artigo 106º/1 do CIRE.

Contestaram a Massa Insolvente de A (…)Lda.” e o (credor) “C (…) pugnando ambas pela total improcedência da acção.

Invocou a Massa Insolvente que o imóvel em apreço está e sempre esteve devoluto e sem qualquer actividade, não sendo servido de água, electricidade e serviços de telecomunicações; que os AA. nunca pagaram o IMI (que se apresenta debitado nas contas da insolvente); que não “resultam provados[1] a tradição da coisa e o recebimento do preço e que se “impugnam especificadamente os arts. 3.º a 16.º da PI, bem como se impugnam especificadamente o doc. 3 (CPCV) e o conteúdo do mesmo, por não corresponder à realidade[2] .

Invocou a “C (…)” que o valor que os AA. alegam ter entregue à Insolvente não se mostra suportado em qualquer elemento documental que o legitime e demonstre; quanto à “traditio”, que o contrato-promessa de compra e venda junto aos autos não prova o conteúdo da declaração dele constante, ou seja, que houve a efectiva tradição material do bem, razão pela qual não se mostram preenchidos os pressupostos do artigo 755º/1/f) do C. Civil e não está constituído o direito de retenção invocado pelos AA; e que uma possível transmissão da fracção, na execução específica do CPCV, não faz caducar a sua garantia hipotecária, que continuará a onerar a fracção até que seja expurgada.

Foi realizada audiência prévia, proferido despacho saneador – tendo sido declarada a regularidade da instância, estado em que se mantém – e identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.

Designado e realizado julgamento, com observância do formalismo legal, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo os RR. de todos os pedidos formulados.

Inconformados com tal decisão, interpõem os AA. recurso de apelação, visando a sua revogação e substituição por outra que dê provimento aos pedidos efectuados na PI.

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

A C (…) respondeu, terminando as suas contra-alegações sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma, designadamente as referidas pelos apelantes, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso dos AA. – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal.

Foram gravados os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto; constando assim do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto, pelo que e é possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento[3].

Faculdade – de modificar a decisão de facto – em cujo uso, costumamos “avisar”, é nosso dever ser contidos, cautelosos e prudentes, uma vez que existem elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo de exteriorização e verbalização dos depoentes, não importados para a gravação, susceptíveis de influir, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhes. O que, porém – salienta-se e enfatiza-se, para que não haja quaisquer equívocos interpretativos sobre o que se acabou de dizer – não significa que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto apenas envolve a correcção de pontuais, concretas e excepcionais erros de julgamento; efectivamente, a Relação, quando aprecia as provas – e pode para tal atender a quaisquer elementos probatórios – faz um novo julgamento da matéria de facto, vai à procura da sua própria convicção, assegura o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto (ou seja, a actividade da Relação não se pode/deve circunscrever a um mero controlo formal da motivação efectuada na 1.ª Instância).

Efectuados tais prévios e “tabelares” esclarecimentos, debruçando-nos sobre as concretas questões – tendo presente as posições assumidas pelas partes nos articulados, analisados os documentos juntos, as assentadas decorrentes dos depoimentos de parte e ouvido o registo, efectuado em CD, da audiência de julgamento – concluímos, antecipando desde já a solução, que assiste, em parte, razão aos AA./apelantes[4].

Vejamos:

Os factos que, segundo os AA/apelantes, foram incorrectamente julgados são o ponto 4 dos factos provados e as 3 alíneas dos factos não provados, que, ainda segundo os AA/apelantes, devem merecer “respostas” opostas (ou mais completa, como é o caso do ponto 4) às que lhe foram dadas na sentença recorrida.

Estão em causa – em tal ponto 4 e nas 3 alíneas – os seguintes temas factuais:

 - as declarações negociais constantes do CPCV (alínea a);

- o pagamento do preço (ponto 4); e

 - a traditio da coisa (alíneas b) e c)):

E a nossa divergência com a sentença recorrida está apenas no que se deu como não provado nas alíneas a) e c).

Quanto à alínea a), não exactamente por se divergir da convicção que o tribunal a quo formou sobre tal tema factual, mas sim por, a tal propósito, nada haver (nada ter sido alegado), controvertido e juridicamente relevante, que carecesse de ser julgado[5] (designadamente, com apelo à “livre convicção” do tribunal).

Divergência que radica na posição tomada na sentença recorrida sobre a questão que sempre se coloca quando há documentos dotados de “força probatória plena”; questão que, bem resolvida, não dá lugar a qualquer referência (é como se não existisse), mas que, tendo (como é o caso) que ser deslindada, obriga a uma explicação um pouco detalhada.

Assim:

Na origem do processo/litígio está um negócio jurídico (um CPCV) formalizado por escritura pública, ou seja, por documento autêntico.

Quando assim é, de imediato surge a questão de estabelecer o alcance e a medida em que os actos referidos em tal documento autêntico e os factos neles mencionados se devem considerar como correspondendo à realidade e cobertos pela força probatória plena; e/ou em que medida, na perspectiva inversa, se podem ou não provar factos que “contrariem/neutralizem” tal força probatória plena e/ou estipulações contrárias, adicionais ou acessórias a tal documento autêntico[6].

É que, como é sabido, os documentos autênticos, de acordo com o art. 371.º, n.º 1, do CC “fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora”.

Significa isto que, no caso, estão cobertos pela força probatória plena[7]:

1.º - Os factos praticados pela entidade documentadora, ou seja, a parte em que no final da escritura o notário menciona que a leu e explicou.

2.º - Os factos atestados pelo documentador com base nas suas percepções; ou seja, a parte em que na escritura o A./outorgante declara perante o notário prometer comprar o prédio/fracção identificada nos precisos termos que da escritura consta e em que a R/Insolvente declara prometer vender tal prédio/fracção em tais precisos termos; e a parte em que o A./outorgante diz/declarara que pagou o preço e em que a R/Insolvente diz que recebeu[8].

Porém, acentua-se (em total concordância com o referido na sentença recorrida), quanto a esta segunda espécie de factos, a força probatória plena só vai até onde alcançam as percepções do notário; ou seja, apenas fica plenamente provado que os outorgantes declararam o que do documento consta, mas já não se tem como plenamente provado que um outorgante quis realmente prometer comprar e o outro quis realmente prometer vender (e/ou que um pagou mesmo e o outro recebeu mesmo).

O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas[9].

O que significa, aqui chegados, que as declarações negociais – de promessa de compra e de promessa de venda – constantes da escritura, na sua sinceridade e veracidade, não ficam, com a mera apresentação da escritura, “automaticamente” plenamente provadas.

Mas isto também não significa, inversamente, que todo e qualquer facto atestado pelo documentador, com base nas suas percepções, possa ser “destruído/alterado” por qualquer meio de prova.

Embora a lei admita a prova testemunhal “em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada” (art. 392.º do CC), logo estabelece, reconhecendo os perigos especiais que a prova testemunhal comporta, limitações à sua admissibilidade.

Uma de tais limitações, traduz-se justamente em, de acordo com o art. 394.º/1 do CC, ser inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto “convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou autenticados”.

Porém, chama-se mais uma vez a atenção, tal limitação é apenas em relação à parte que está coberta pela força probatória plena[10], o que significa – acrescenta-se e esclarece-se – que tal proibição da prova testemunhal contra ou praeter scriptum não impede o recurso a testemunhas para prova quer dos vícios da vontade (erro, dolo, coacção) quer das divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, etc[11]), assim como não obsta à prova por testemunhas a interpretação do sentido e alcance atribuídos ao texto do documento (prova juxta scripturum).

E em que medida é que o que acaba de ser dito tem a ver com os autos?

Na medida em que – em face do conteúdo da escritura que formaliza e espelha o negócio de CPCV e que, em função disso, faz prova plena dos factos referidos e “cria” certas limitações de prova – a “neutralização ” dos efeitos jurídicos dos factos atestados pelo documentador (as declarações negociais dos outorgantes) tem necessariamente que passar pela alegação (e posterior prova) de algum dos vícios de vontade (erro, dolo, coacção) ou divergências entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, etc.) supra referidos (sendo exactamente aqui que se situa a divergência com a posição tomada na sentença recorrida).

Sem isto (sem tal alegação), voltando ao que começámos por referir, nada temos (nada está/foi alegado) com relevância jurídica e que por isso careça de ser factualmente julgado (com apelo à convicção do tribunal[12]) e incluído no elenco dos factos provados ou não provados.

Como resulta do relatório inicial, nem a R. Massa Insolvente, nem a R. C (…) invocam, sequer ao de leve, que uma qualquer divergência entre a vontade e a declaração ou um qualquer vício de vontade hajam inquinado as declarações negociais atestadas, na sua materialidade, pelo notário.

A R. massa insolvente “impugnou especificadamente o doc. 3 (CPCV) e o conteúdo do mesmo, por não corresponder à realidade”, porém, como é evidente, o que se pretende/exige, tendo em vista a “neutralização” dos efeitos jurídicos dos factos atestados pelo documentador, é a alegação de factos que hão-de consubstanciar algum vício de vontade ou divergência entre a vontade e a declaração[13].

Ainda mais claramente, perante tal impugnação da R. Massa Insolvente, não passava a ter que se apreciar/julgar – e o tribunal não tinha que fazer uso da sua convicção – se o A. prometeu efectiva/sincera/validamente comprar ou não e se a Insolvente prometeu efectiva/sincera/validamente vender ou não; sobre isto, nada tendo sido alegado/invocado pelas RR. com relevância “destrutiva” para os factos atestados pelo notário, apenas as declarações negociais, extraíveis e atestadas pela escritura, podiam/deviam ser dadas como provadas (como, aliás, também aconteceu e se fez constar do ponto 1 dos factos provados).

Atestando o notário (o que fez constar da escritura) que os outorgantes declararam que prometiam comprar e vender, respectivamente, isto – tais declarações negociais produzidas pelos declarantes perante o notário – só pode ser contrariado frontalmente suscitando-se a falsidade da escritura (cfr. art. 372.º do C. Civil, em cujo n.º 2 se diz que “o documento é falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto de percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi”).

Não sendo suscitada qualquer falsidade da escritura, fica total e plenamente assente que perante o notário foram produzidas pelos outorgantes tais declarações negociais.

E é a partir deste contexto factual – isto é, estando assente que as afirmações atribuídas na escritura aos outorgantes foram mesmo feitas (não sendo o conteúdo da escritura atacado frontalmente) – que surge e se coloca a tal possibilidade de se vir invocar que, embora os outorgantes hajam dito perante o notário o que este fez constar da escritura, o que eles/outorgantes disseram não foi sincero/verdadeiro ou foi influenciado por vícios que inquinam a validade das declarações negociais produzidas (perante o notário).

É pois tendo como ponto de partida a indiscutibilidade da materialidade de tais declarações negociais (produzidas perante o notário) que tal ataque/“neutralização” se desenha juridicamente e, claro está, sendo assim, não pode o mesmo “passar por cima” do que é o seu ponto de partida, ou seja, estando plenamente provado que declararam ao notário o que consta da escritura, não está sob discussão e nem pode dar-se como não provado algo como o que foi feito constar da alínea a) dos factos não provados[14].

E é justamente por isto – tendo que se articular tal ataque/“neutralização” com o que já está indiscutivelmente assente – que o mesmo só pode e tem necessariamente que ser feito através da alegação de factos que configurem um qualquer vício de vontade ou uma qualquer divergência entre a vontade e a declaração[15].

Exemplificando com o caso sub judice: estando indiscutivelmente assente que, perante o notário, foram produzidas as declarações constantes do ponto 1 dos factos, podiam, v. g., os RR. vir invocar que o negócio em causa era simulado e proceder à completa alegação factual dos 3 elementos que integram o conceito civilista de simulação [a) - intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; b) - acordo entre declarante e declaratário; c) - intuito de enganar terceiros)]; hipótese em que, provando-se tal alegação, passaríamos a ter como provados, sem qualquer oposição, os factos respeitantes à materialidade declarada perante o notário e os factos respeitantes à simulação (impondo-se, depois, extrair da globalidade de tais factos as devidas consequências jurídicas).

Enfim, como já se explicou várias vezes e de diversas maneiras, o facto constante da alínea a) dos factos não provados é um facto que, no contexto jurídico dos autos (do que foi alegado/invocado pelos RR.), não estava sob apreciação/julgamento[16] e que, por isso, não podia/devia ser incluído no elenco da fundamentação de facto; razão pela qual se exclui o mesmo do elenco dos factos não provados, ponto em que, como se antecipou, se dá razão aos AA/apelantes.

Isto dito, passemos aos outros dois temas da impugnação da decisão de facto: pagamento do preço (ponto 4) e traditio da coisa (alíneas b) e c)).

E começamos por ter mais uma vez a questão do alcance e medida da força probatória dos factos mencionados nos documentos autênticos.

Como já referimos, consta da escritura (CPCV) que os outorgantes declararam que o preço (€ 105.000,00) do negócio prometido foi integralmente pago e recebido.

Vindo agora dizer as RR. contestantes que, no âmbito de tal CPCV, não foi efectivamente pago nem recebido qualquer preço[17].

E alegar-se que não foi pago/recebido o preço constante da escritura exige a prova duma convenção contrária e contemporânea ao conteúdo do documento/escritura[18], mais exactamente, a prova da convenção de se ter declarado no documento um conteúdo contrário à verdade[19]; pelo que, sendo “convenção contrária” ao conteúdo da escritura, coloca-se a questão da sua prova.

Como já se referiu, uma vez que a prova testemunhal é, não raras vezes, o único meio de demonstrar a ocorrência de muitos factos, a lei (art. 392.º do CC) admite-a “em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada”.

Prova esta – reconhecendo a lei os perigos especiais que a prova testemunhal comporta – que é afastada/limitada em certos casos, designadamente[20], de acordo com o art. 394.º/1 do CC, se tiver por objecto “convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou autenticados[21].

Em todo o caso, uma vez que tal regra – a regra do n.º 1 do art. 394.º do CC – aplicada sem restrições, pode dar lugar, em certos casos, a graves injustiças, foram-lhe sendo introduzidas, não obstante o silêncio da lei, algumas excepções[22].

Uma de tais excepções[23] – seguramente, a mais corrente – é a de haver um começo ou princípio de prova por escrito, querendo-se com isto dizer que não será inadmissível a prova testemunhal se houver um “qualquer escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante, que torne verosímil o facto alegado”[24]

Havendo um qualquer escrito – invoca-se para fundamentar tal excepção – a prova testemunhal é admissível uma vez que já não é o único meio de prova do facto; desaparecendo, em grande parte, o perigo da prova testemunhal quando desacompanhada de tal começo de prova por escrito[25].

Em todo o caso, sublinha-se, para se estar perante um começo de prova por escrito, têm que se verificar os seguintes 3 requisitos:

a) um escrito;

b) proveniente daquele a quem é oposto;

c) que torne verosímil o facto alegado.[26]

Não é totalmente seguro que seja este o caso dos autos, ou seja, não temos nos autos um qualquer começo ou princípio de prova por escrito (uma vez que, como se referiu, um dos requisitos do começo de prova por escrito é o escrito ser proveniente daquele a quem é oposto, isto é, no caso o A./apelante).

Não podia pois (por força do art. 394.º/1 do C. Civil) ser produzida prova testemunhal sobre o facto constante do ponto 4 dos factos provados, por tal tema da prova dizer respeito a uma convenção contrária ao conteúdo da escritura de CPCV referida em 1 da fundamentação de facto[27].

Podendo, ao invés, por tal inadmissibilidade não lhe ser extensível, ser produzida prova por confissão das partes, confissão que, no caso, se coloca apenas em relação ao A./apelante, única parte que pode confessar (por lhes ser desfavorável) não ter pago à insolvente os € 105.000 constantes da escritura.

E foi exactamente isto que aconteceu.

No final da inquirição da testemunha (…), a Exma. Juíza, estando o A. marido ((…)) presente na sala de audiências, determinou oficiosamente a sua tomada de depoimento e de declarações de parte e, passando a ouvi-lo, este disse não haver pago qualquer quantia à insolvente, acrescentando que pagou os € 105.000,00, em dinheiro vivo, ao V (…)

E é justamente aqui, neste seu esclarecimento – ter pago € 105.000,00, em dinheiro vivo, ao V (…) – que se situa, quanto ao que se deu como provado no ponto 4 dos factos[28], a divergência recursiva dos AA/apelantes.

A nosso ver, sem qualquer razão.

O que consta do ponto 4 dos factos provados – que “o Autor não entregou à R. Insolvente “A (…), Lda.”, a quantia referida em 1. ou qualquer outra quantia” – foi/ficou claramente confessado pelo A. marido (C (…)).

O esclarecimento que ele deu/acrescentou – ter pago os € 105.000,00 (ou qualquer outra quantia), em dinheiro vivo, ao V (…)– não merece crédito e não pode dar-se como verdadeiro/provado (e acrescentar-se ao que consta do ponto 4 dos factos provados).

Segundo os depoimentos coincidentes do V (…)(que foi sócio-gerente da A (…), também declarada insolvente) e do A (…)(que foi gerente da aqui insolvente), o prédio/fracção objecto do CPCV sub judice havia sido objecto de anterior CP de Permuta entre a aqui insolvente e a A (…) ou seja, como forma de pagamento do material e trabalho prestado pela A(…) em obras da aqui insolvente, esta prometeu transmitir à Aq(…) pelo preço de € 137.500,00 o prédio/fracção objecto do CPCV sub judice (negócio que terão formalizado através do documento particular de fls. 58 e ss. dos autos).

Ainda segundo os depoimentos coincidentes do (…) a A (…) em execução de programa contratual decorrente de tal CP de Permuta, prestou serviços à insolvente no valor de tais € 137.500,00.

Sendo a partir daqui que ganha forma a versão do preço de € 105.000,00 (constante do CPCV) ter sido pago, em dinheiro vivo, pelo A. C (…) ao V (…); argumentando-se que este já havia cumprido a totalidade da sua prestação no CP de Permuta, que passou a sua posição em tal CP de permuta ao C (…) e que, como a insolvente já tinha recebido todo o preço, quem tinha que receber o pagamento do C (…) era o V (…) (e não a insolvente).

Sucede que, num processo, as coisas não podem ser tratadas e vistas com tamanha ligeireza: se alguém tem uma determinada posição contratual e a transmite, isso tem que ser devidamente alegado (até para que possam ser escrutinadas a validade da anterior posição contratual e a validade/eficácia da sua transmissão), ou seja, não se omite que havia um anterior CP de Permuta entre a A (…) e a aqui insolvente, quando, depois, se pretende convencer que o preço do (único) CP que se alegou foi pago no âmbito dum anterior CP de Permuta (não alegado), cuja posição contratual se diz (e não se alegou) ter sido tomada/transferida para o aqui promitente-comprador.

É que tudo isto – sem entrar na questão da “informalidade” com que tudo isto foi introduzido no processo e na respectiva apreciação processual e substantiva (sendo que esta não tem/teria lugar sem sede de reapreciação da decisão de facto) – constitui uma enorme e incontrolável trapalhada factual.

Repare-se que o CP de Permuta era com a A(…) e na contabilidade desta (como o V (…) admitiu) não foi lançado sequer um cêntimo – dos 105.000,00 que, segundo ambos (o V (…) e o C (…)), foram recebidos/pagos dentro dum veículo automóvel estacionado junto do Cartório Notarial – decorrente da transmissão onerosa da posição contratual que a A (…) teria em tal CP de permuta.

O que, naturalmente, suscita todas as dúvidas e incertezas sobre o efectivo e real procedimento do V (…) e do A. (…)

Não é, todavia, crível – até pelo “tom” dos depoimentos – que o V (.,..) tenha pretendido ludibriar/enganar o A. (…) seu primo, e que lhe tenha passado (por € 105.000,00) a posição contratual da A (…) no CP de permuta por saber que a aqui insolvente não iria conseguir (por não ter meios financeiros) distratar a hipoteca incidente sobre o prédio/fracção.

Bem mais verosímil é o referido pelo A (…) (no início do seu depoimento), segundo o qual o “V(…) lhe pediu, como a A (…)andava mal, para fazerem o contrato ao primo”, ou seja, que o CPCV sub judice tenha sido uma forma de evitar que o prédio/fracção cumprisse a sua função de garantia patrimonial dos credores da A(.,..) (também insolvente) e, neste contexto e nesta lógica, não é nada crível/verosímil que alguma verba haja sido entregue pelo A. (…) ao V (…)

Sendo justamente por tudo isto que ao ponto 4 dos factos provados não pode ser acrescentado (por ter ficado provado exactamente o contrário) que o A. C (…) pagou € 105.000,00 (ou qualquer outra quantia), em dinheiro vivo, ao V (…)[29].

A forma como os AA/apelantes pretenderam demonstrar o pagamento do preço do contrato prometido passa, repete-se, por uma grande trapalhada factual – que inclui a estipulação e execução de prestações contratuais da A (…) (nunca antes alegadas[30]) e o episódio inverosímil da entrega de € 105.000,00 em notas, ao primo, num veículo estacionado à porta do Cartório Notarial (sendo que não há um qualquer documento bancário respeitante ao levantamento, coevo ou não, de qualquer quantia, assim como não há um qualquer documento que revele o rasto do regresso de qualquer quantia ao sistema bancário) – e, como sempre referimos, as trapalhadas factuais não podem “beneficiar o infractor/autor”, tendo, isso sim, que ser decididas contra quem as gera, razão pela qual, repete-se, concordamos inteiramente com a sentença recorrida ao não incluir entre os factos provados um qualquer pagamento, fosse a quem fosse (à insolvente, ao primo V (…), à A(…)), pelo aqui A/apelante.

E sendo esta a nossa avaliação/convicção da globalidade da prova produzida, ou seja, não tendo ficado totalmente convencidos sobre serem os AA/apelantes, real e efectivamente, os compradores finais[31], ficámos também com dúvidas sobre o facto referido na alínea b) e, nesta linha de raciocínio, em face de tais dúvidas, concordamos que na sentença recorrida se haja dado com não provado que “a partir de 7 de Dezembro de 2012, os AA. tenham passado a utilizar o imóvel referido em 1. dos factos provados, nele entrando e saindo quando bem entendiam, nele depositando materiais e fazendo obras de alteração do tecto, à vista de todos, sem oposição de ninguém e como se de coisa sua se tratasse.”

É certo que as testemunhas indicadas pelos AA. referiram tal utilização, porém, a testemunha (…) fê-lo em termos muito pouco consistentes e convincentes e a “testemunha” V (…), em face do que se vem de referir, tem na situação “interesses” que lhe retiram credibilidade.

Resta pois o depoimento do A (…), que admitiu ter entregue as chaves ao A. (…), mas que a propósito do facto constante da alínea b) foi bem mais contido e reticente, dizendo que “não sabe dos negócios entre o V (…) e C (…)”, que “não sabe quem – se o V (…) ou o M (…) – lá punha as coisas” e falando repetidamente em “eles” quando se referia a factos ocorridos após a data do CPCV, em perfeita sintonia com a dúvida, supra referida, sobre quem foi/foram, real e efectivamente, os compradores finais.

Nesta linha de raciocínio, repete-se, tendo ficado com dúvidas sobre serem os AA/apelantes, real e efectivamente, os compradores finais, não ficámos convencidos da factualidade referida na alínea b) e, em face de tais dúvidas, concordamos que na sentença recorrida se haja dado como não provado tal facto[32].

Já quanto ao facto referido na alínea c) – ter a insolvente, após a escritura, entregue ao Autor a chave do imóvel – em face do referido pelo António Fausto, entendemos que o mesmo deve ser considerado como provado.


*

III - Fundamentação de Facto

Os factos com relevo são os seguintes:

1. Por escritura pública outorgada a 7 de Dezembro de 2012, no Cartório Notarial sito em (...) , perante a Sr.ª Notária (…), foi lavrado o documento intitulado “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA, cuja certidão se encontra junta aos autos com a referência n.º 1260275 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e no qual se lê, designadamente, o seguinte:

“ (…) Primeiro

J (…) (…) que outorga na qualidade de gerente da sociedade comercial por quotas com a firma “A (…) LDA.” (…)

Segundo

C (…) (…)

Foi verificada a identidade dos outorgantes pela exibição dos mencionados documentos de identificação.

E pelo primeiro outorgante foi dito, na qualidade em que outorga:

Que promete vender ao segundo outorgante, pelo preço de cento e cinco mil euros, a fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente a um estabelecimento comercial, sito no rés-do-chão esquerdo, tendo na cave um espaço destinado a arrumos e acesso directo a partir do arruamento público, que faz parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta x (...) , lote dois, freguesia e concelho de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 7594, com o valor patrimonial correspondente de €104.090,00, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número sete mil quatrocentos e cinquenta e um, da mesma freguesia e ali registada a aquisição a favor da sociedade sua representada pelas inscrições apresentação dez, de sete de Janeiro de dois mil e três, apresentação quatro mil quinhentos e cinquenta e um, de três de Março de dois mil e nove e apresentação três mil seiscentos e setenta e dois, de dezassete de Abril de dois mil e nove, a operação de transformação fundiária – reparcelamento pela inscrição apresentação quatro mil setecentos e vinte, de três de Março de dois mil e nove, bem como o título constitutivo de propriedade horizontal pela inscrição apresentação um, de dezassete de Agosto de dois mil e doze e uma servidão pela inscrição apresentação três mil novecentos e quarenta e oito, de dezassete de Abril de dois mil e nove (…).

Que o preço convencionado para a prometida venda foi já integralmente recebido, que atribuem a esta promessa eficácia real, e acordam em conferir ao presente contrato-promessa o direito à execução específica, operando-se nesta data a tradição do mencionado imóvel.

Disse o segundo outorgante:

Que aceita este contrato, nos termos exarados

Declarou ainda o primeiro outorgante:

Que a sociedade sua representada se obriga a efectivar a prometida venda, através do competente acto formal, livre de quaisquer ónus ou encargos, designadamente assegurando o cancelamento da mencionada hipoteca. (…) ”

2. O prédio referido em 1. encontra-se inscrito na respectiva matriz sob o artigo 5981 da União de Freguesias de (...) , (...) e (...) , com o valor patrimonial de 106.432,03€ e encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...) 1/20090303, mostrando-se inscrita pela “AP.734 de 2012/12/17” a promessa de alienação entre o “sujeito activo” C (…) e o “sujeito passivo” A (…), Lda.”

3. Nos processo que correu termos no Juízo de Competência Genérica de (...) sob o n.º 617/13.3TBMLG, a 30 de Junho de 2014, foi proferida a Sentença cuja certidão se mostra junta aos autos com a referência n.º127708 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. O Autor não entregou à Ré Insolvente “A (…), Lda.”, a quantia referida em 1., nem qualquer outra quantia.

5. O prédio referido em 1. não se encontra servido de água, electricidade, nem telecomunicações.

6. O Autor desenvolve a sua actividade profissional na área da caixilharia de alumínios.

7. Após ter sido lavrado o documento referido em 1. dos factos provados, a Insolvente entregou ao Autor a chave do imóvel referido em 1.

8. A “A (…), LDA.” foi declarada insolvente por sentença de 03/08/2017, transitada em julgado.

9. O Sr. AI recusou o cumprimento do CPCV em apreço (por entender não estarem reunidos os pressupostos estabelecidos no artigo 106.º/1 do CIRE)[33].


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B) Factos Não Provados

Não se provou que:

a) A partir de 7 de Dezembro de 2012, os Autores passaram a utilizar o imóvel referido em 1. dos factos provados, nele entrando e saindo quando bem entendiam, nele depositando materiais e fazendo obras de alteração do tecto, à vista de todos, sem oposição de ninguém e como se de coisa sua se tratasse.


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IV – Fundamentação de Direito

O A., segundo alegou, terá celebrado, na qualidade de promitente-comprador, um contrato-promessa de compra e venda, com eficácia real, de uma fracção autónoma com a insolvente, esta na qualidade de promitente vendedora; terá pago a totalidade do preço de € 105.000,00, recebido as chaves da fracção e a tradição do imóvel, passando a utilizá-lo, não tendo até ao momento sido outorgada a escritura pública de compra e venda.

E pediu, muito em síntese, a execução específica de tal CPCV ou, então, se assim não se entender, que lhe seja reconhecido o crédito de € 105.000,00 sobre a massa insolvente.

Na sentença recorrida, considerou-se que “(…), pese embora tenha sido redigido em Cartório Notarial documento intitulado “contrato promessa de compra e venda”, não resultou provado nos autos que o Autor tenha prometido à insolvente comprar à Insolvente e esta tenha prometido vender a este o prédio em apreço nos autos (…), não resultando, assim, provado que o Autor e a Insolvente tenham acordado nos termos alegados pelos Autores. Deste modo, não resultando provado que entre o Autor e a Ré Insolvente tenha sido celebrado contrato promessa de compra e venda (ou qualquer outro contrato), falece o primeiro dos pressupostos necessários à procedência de qualquer dos pedidos feitos pelos Autores.

Como resulta do que supra se expendeu, não é isto que deve ser extraído dos factos, devendo, ao invés, concluir-se que o A. e a insolvente celebraram o CPCV reproduzido no ponto 1 dos factos provados; CPCV a que atribuíram eficácia real e cuja promessa de alienação inscreveram no registo (cfr. ponto 2 dos factos).

Sucedendo que tal CPCV estava em curso – ainda não havia sido cumprido nem definitivamente incumprido[34] – quando a ali promitente-vendedora foi declarada insolvente.

Ora, como é sabido, a mera declaração de insolvência tem como efeito “regra” a suspensão ex lege e automática do contrato-promessa em curso em que o insolvente seja parte, passando a assistir ao administrador da insolvência, na pendência de tal suspensão, o direito de optar ou pelo cumprimento ou pelo incumprimento do contrato-promessa (cfr. art. 102.º do CIRE).

Sendo esta a regra – maxime quando se está perante uma promessa meramente obrigacional (isto é, sem eficácia real) – prevê, todavia, o art. 106.º/1 do CIRE um regime especial para a promessa real em que tenha havido tradição da coisa.

Efectivamente, de acordo com o referido art. 106.º/1 do CIRE, sendo a insolvência do promitente vendedor, tratando-se de promessa com eficácia real e tendo havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador, o administrador de insolvência não pode recusar o cumprimento, impondo-se-lhe cumprir o contrato.

Temos pois, verificando-se tais pressupostos, que o contrato-promessa continua a poder ser executado, ou seja, que o promitente-comprador mantém o direito à execução específica.

A 1.ª questão está pois em saber se se verificam tais pressupostos.

Sendo inquestionável que a insolvência é do promitente vendedor e que atribuíram à promessa de transmissão eficácia real, que inscreveram no registo, toda a questão se circunscreve a saber se se verificou/provou a tradição da coisa a favor do A. e aqui promitente-comprador.

O que – pese embora estar (agora) provado que “após a escritura, a insolvente entregou ao Autor a chave do imóvel” – não consideramos estar provado, uma vez que a “traditio”, a nosso ver e salvo o devido respeito por opinião diversa, pode não se esgotar na entrega das chaves (sem prejuízo do artigo 1263.º/b) do C.C., na esteira de uma velha tradição romanista, conferir igual valor à tradição material e à tradição simbólica).

A “tradição” a que se refere o art. 106.º/1 do CIRE tem que ser a mesma que se verifica e se exige para o corpus na aquisição derivada da posse.

A similitude está aliás bem patente no facto de quer a tradição a que se refere o art. 106.º/1 do CIRE quer a tradição respeitante ao corpus da posse gerarem direitos de gozo sobre a coisa; sendo, no caso do art. 106.º/1 do CIRE, um mero direito pessoal de gozo – subsistente enquanto a promessa não for extinta e que se manterá por via do direito de retenção caso a extinção seja acompanhada do nascimento dum crédito indemnizatório a favor do promitente-comprador.

A tradição – “traditio” – é pois o acto material; que só ocorre quando o promitente adquirente obtém a possibilidade de exercer uma relação material com e sobre o objecto; e se compõe (no corpus da posse e também aqui, no art. 106.º/1 do CIRE) de dois elementos: um negativo, o abandono do anterior possuidor, e outro, positivo, a apprehensio ou entrega ao novo possuidor.

E se em alguns casos, pela própria natureza dos objectos e coisas, tal materialidade anda algo esbatida, o certo é que não prescinde da possibilidade de, por algum modo, reter ou fruir a coisa.

É que, importa sublinhá-lo, o corpus não resulta nem se “adquire” por simples consenso, não é um mero efeito do contrato e/ou por tal ser referido no documento que formalizou o contrato (transmite-se um direito por simples acto de vontade, mas não se concede que, pelo mesmo modo, se transmita a relação material).

É verdade que, quanto aos imóveis, se admite, para espoletar a “traditio”, uma espécie de tradição simbólica, porém, depois, para a “traditio” se consumar, tem que se estabelecer algum grau de relação material positiva entre o novo titular da corpus e a coisa.

Vale a pena, a tal propósito, citar o Prof. Manuel Rodrigues quando o mesmo diz[35] que a “a tradição dos imóveis exige, em 1.º lugar, que o vendedor abandone ao comprador o gozo da coisa ou do direito” e “em 2.º lugar, a prática de actos que traduzam os poderes materiais que se podem exercer sobre as coisas. Por este modo se estabelece a relação material positiva entre o novo titular da posse e a coisa possuída. (…) Donde a posse, em tal caso, só se adquirir porque adquirente exerceu sobre o prédio qualquer acto material que denuncia um poder sobre ele, embora sem as qualidades exigidas para constituir uma posse unilateral (…)”.

Assim como não é despiciendo citar o STJ, em Acórdão de 19/04/2001[36], relatado pelo Conselheiro Quirino Soares:

“A tradição da coisa exprime, na disciplina dos direitos reais, a transmissão da detenção de uma coisa entre dois sujeitos de direito, sendo constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e um elemento positivo, a tradicionalmente chamada apprehensio (acto que exprime a tomada de poder sobre a coisa). (…)

É no elemento positivo da traditio (apprehensio) que se verificam as variações que explicam a distinção entre tradição material e tradição simbólica. (…)

A tradição material é, portanto, a realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.

A relevância atribuída à tradição simbólica foi a natural consequência de nem sempre a apprehensio poder ser materialmente realizada, por impossibilidade objectiva ou subjectiva, mas o seu uso generalizou-se e diversificou-se de acordo com as necessidades do comércio jurídico. (…)

Mas também a traditio material varia de configuração e intensidade, de acordo com a natureza da coisa alienada. (…)

A traditio material, suposta pelo legislador, não implica, portanto, um acto plasticamente representável, de largar e tomar, bastando-se com a inequívoca expressão de abandono da coisa e a consequente expressão de tomada de poder material sobre a mesma, por parte do beneficiário”.

Ou, mais recentemente, reafirmando o STJ[37] que a traditio se configura como o poder de facto sobre a coisa que o promitente- vendedor conferiu ao promitente-comprador; que não necessita de ser tão enérgica como na aquisição originária, porque está em causa apenas a transferência do poder do promitente-vendedor para o promitente-comprador e não a aquisição de um direito novo; mas que não existirá quando se verifique que, afinal, o promitente-comprador não deu ao imóvel uso real, permanente e efectivo, afectando-o à satisfação dos seus interesses e necessidades de forma que se justifique a tutela reforçada da confiança na estabilidade da sua posição jurídica.

E dito isto, revertendo ao caso dos autos, é justamente esta 2.ª exigência – a relação material, ainda que num limiar mínimo de “energia[38]” – que os autos não retratam que se haja alguma vez estabelecido entre os AA./apelantes e o objecto prometido.

De relevante, apenas se provou que, na data do contrato e por ocasião do mesmo, a insolvente entregou ao A. as chaves do imóvel/fracção; porém – como resulta do facto não provado – não se provou que os AA. tenham estabelecido qualquer relação material positiva com o imóvel/fracção, não se provou que “a partir de 7 de Dezembro de 2012, os AA. tenham passado a utilizar o imóvel referido em 1. dos factos provados, nele entrando e saindo quando bem entendiam, nele depositando materiais e fazendo obras de alteração do tecto, à vista de todos, sem oposição de ninguém e como se de coisa sua se tratasse”, ou seja, não se provou que os AA. tenham praticado, ainda que “num limiar mínimo de energia”, o elemento positivo acima referido.

Em síntese, os factos permitem descortinar – com a entrega das chaves – o “abandono” do antigo “possuidor”, típico da “traditio”; porém, nada está alinhado, em termos de factos provados, que permita divisar a apprehensio – o acto que denuncia que os novos “possuidores” e aqui AA/apelantes adquiriram poder sobre o objecto prometido.

Não está pois demonstrado o pressuposto da “tradição da coisa” e, por conseguinte, não está preenchida a totalidade da previsão de que o art. 106.º/1 do CIRE faz depender a manutenção do direito à execução específica (pedido a título principal), impondo-se assim, por tal motivo, não conceder tal direito[39].

Temos pois, aqui chegados, que a situação dos autos é a de promessa real sem traditio, a qual entra na regra do art. 102.º/1 do CIRE., ou seja, como se começou por referir, em que a mera declaração de insolvência suspende ex lege e automaticamente o contrato-promessa em curso, passando a assistir ao AI, na pendência de tal suspensão, o direito de optar ou pelo cumprimento ou pelo incumprimento do contrato-promessa (cfr. art. 102.º do CIRE).

Pelo que, tendo o AI (como confessadamente o admitiu) já optado pelo seu incumprimento, têm (em abstracto) os AA/apelantes o direito a exigir o crédito que resulta do art. 102.º/3/c) do CIRE, que, no caso e em concreto, é igual a “zero”, uma vez o valor da prestação da devedora/insolvente é igual ao valor da contraprestação que ainda não tinha sido realizada pelos AA/apelantes (que, como se provou, não haviam entregue qualquer quantia, a título de preço/sinal, à insolvente), impondo-se assim, por tal motivo, também julgar improcedente o pedido subsidiário.


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É quanto basta – mostrando-se, em face dos raciocínios expostos, prejudicada a questão do direito de retenção (do art. 755.º/1/f) do CC) invocado – para julgar totalmente improcedente a apelação.

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V – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas, em ambas as instâncias, pelos AA/apelantes.

Coimbra , 25/06/2019

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Art. 11.º da Contestação.
[2] Art. 12.º da Contestação.
[3] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 154 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 1997, pág. 254.
[4] Embora tal razão parcial não tenha qualquer repercussão sobre o útil desfecho final dos autos.
[5] Ou seja, o que consta da alínea a) dos factos não provados não passa a facto provado, deixando, isso sim, de constar do elenco factual.
[6] Sem prejuízo do juízo de validade/invalidade que, depois, possa vir a incidir sobre tais factos e estipulações.
[7] Assunto em que seguimos de perto o ensinamento de Antunes Varela, Manual, 1.ª ed., pág. 504 e ss.
[8] Aqui também por força dos arts. 352.º e 358.º/2 do C. Civil.
[9] Antunes Varela, obra citada, pág. 506.
[10] Lembra-se, mais uma vez, que apenas fica plenamente provado que, perante o notário, os outorgantes “proferiram as palavras” que a escritura lhes atribui; não a veracidade, sinceridade e validade de tais “palavras”.
[11] Com uma única excepção, respeitante à prova da simulação entre os próprios simuladores (art. 394.º, n.º 2, do CC).
[12] Efectivamente, o tribunal não deixa de ter de considerar os factos provados por documentos, no que não faz intervir a sua “livre convicção”.

[13] Impugnar o conteúdo dum documento autêntico é, com todo o respeito, bastante inócuo, uma vez que o que fica coberto pela força probatória do mesmo (nos termos supra referidos) não é beliscado com meras impugnações; ou seja, tendo a R. Massa impugnado o conteúdo da escritura (em que a devedora até foi outorgante), não passa a parte contrária – no caso, os aqui AA. – a ter que provar o conteúdo negocial da escritura e não pode dar-se como não provada, sem mais (sem quaisquer concretas e positivas alegações/invocações), a não veracidade/sinceridade das declarações constantes da escritura; face ao que fica coberto pela força probatória plena, a sua “destruição/neutralização” coloca, primeiro, o ónus alegatório e, depois, o ónus probandi a cargo de quem pretende tal destruição/neutralização (e não cumpre tais ónus quem se limita a impugnar), ao contrário do que se expendeu na sentença recorrida (conforme consta da transcrição da nota seguinte).

[14] Em tal alínea a) deu-se como não provado que “o A. (…) tenha prometido comprar à Insolvente “A (…) Lda. e esta tenha prometido vender ao Autor o prédio referido em 1. dos factos provados.

E mais à frente produziram-se os seguintes raciocínios:

“Neste conspecto, considerando que a escritura pública junta aos autos não prova a veracidade das declarações que o Autor e a Insolvente fizeram perante a Sr.ª Notária e atentando a toda a demais prova produzida nos autos – que, para além de não provar a veracidade de tais declarações, lança sobre estas uma sombra [irreparável] de dúvida – resultaram tais factos como não provados.

Com efeito, impendendo sobre os Autores o onus probandi relativamente aos factos constitutivos do seu direito – e entre os quais se insere, indiscutível e primeiramente, a existência de um contrato enquanto acordo vinculativo assente sobre duas ou mais declarações de vontade – resultaram tais factos como não provados.“

[15] O Acórdão desta Relação de Coimbra, de 09/01/2018, in ITIJ, citado na sentença recorrida, refere-se, não às declarações negociais, mas sim às declarações confessórias contrárias à verdade; à hipótese (idêntica à que teremos a seguir, a propósito do ponto 4 dos factos provados) de se ter declarado na escritura que se recebeu o preço e de se invocar que tal não corresponde à realidade, defendendo-se, em tal Acórdão, ser possível a prova de que o declarado ao notário (a declaração confessória inserta na escritura) não corresponde à verdade, prova essa, porém, sujeita às limitações impostas pelo art. 394.º/1 do C. Civil (com o que concordamos, como a seguir, a propósito do ponto 4 dos factos provados, diremos) e prova essa, como também se refere, a cargo de quem invoca ser a declaração confessória contrária à verdade.

[16] Mais, admitindo que o Acórdão invocado se tivesse debruçado sobre uma situação idêntica à dos autos (e já referimos que não), o facto que, aplicando o Acórdão, interessaria era/seria o facto oposto, ou seja, o que interessaria era um facto provado (com o respectivo ónus a cargo dos RR.) a dizer que efectiva e realmente o A. não prometeu comprar e a Insolvente efectiva e realmente não prometeu vender (e não um facto negativo, do qual, é sabido, não resulta provado o seu contrário, continuando a persistir, no contexto dos factos provados da sentença, o que resulta do ponto 1 dos factos).

[17] As RR. não são totalmente claras em tal alegação, porém, é o este o sentido/interpretação que deve retirar-se das suas contestações.
[18] É exactamente a hipótese do Acórdão citado na sentença recorrida.

[19] Cfr. Vaz Serra, in RLJ, ano 101, pág. 272; onde distingue a situação dos autos da simples quitação (um testemunho do seu autor contra si mesmo), em que, como declaração unilateral que é, a prova dos factos contrários ou adicionais ao seu conteúdo não terá por objecto uma convenção (não lhe sendo assim aplicável o art. 394.º/1 do C. Civil).

[20] As outras duas limitações são as que constam do art. 393.º do CC. Assim:

1.º - Tendo em vista a validade do acto, não podem ser provadas por testemunhas as declarações negociais que, por disposição da lei ou por estipulação das partes, têm que ser emitidas ou provadas por documento (formalidades ad substantiam ou ad probationem) – 393.º/1 do CC;

2.º - Não podem ser provadas por testemunhas factos que contrariem factos já plenamente provados – 393.º/2 do CC.
[21] Na parte, já se vê, em que o conteúdo de tais documentos não está coberto pela força probatória plena; uma vez que quando tal sucede – quando o conteúdo está coberto pela força probatória plena – funciona a limitação constante do art. 393.º/2 do CC, referida na nota anterior.
[22] Em que se seguem de perto as soluções consagradas nos Códigos Francês e Italiano – cfr. Vaz Serra, in RLJ, ano 107, pág. 311; excepções que são hoje pacíficas na doutrina e na jurisprudência – cfr. Carvalho Fernandes, a prova da simulação pelos simuladores; Ac. STJ de 17/06/2003, in CJ 2003, II, pág. 112; Ac. RC de 09/12/1997, in BMJ 472.º - 576; e Ac. RP de 27/09/1994, in BMJ 439.º - 655.
[23] As outras duas são:

1.ª - a de ter sido impossível àquele que invoca a prova testemunhal obter uma prova escrita; e

2.ª - a de ser impossível prevenir a perda, sem culpa, da prova escrita.
[24] Cfr. Vaz Serra, in RLJ, ano 107, pág. 312.
[25] A convicção do tribunal passa a formar-se a partir e com base num documento – num começo e prova por escrito.
[26] Cfr. Vaz Serra, in RLJ, ano 107, pág. 312, a propósito dos requisitos exigidos pelos Códigos Francês e Italiano; mas “igualmente verdadeiros no nosso direito”.

[27] Embora também seja entendido (cfr., v. g., Acórdão do STJ 12/2/2019, in ITIJ) que “a declaração confessória só vale como tal no confronto da pessoa a quem a confissão é feita nos termos do negócio jurídico em que se insere, e já não relativamente a terceiros, como são os credores e a massa insolvente do confitente”; e que, em consequência, a declaração vertida pelo promitente-vendedor em contrato-promessa, celebrado por documento particular, no sentido de que lhe foi entregue certa quantia a título de sinal, não implica, no confronto da massa insolvente do promitente-vendedor e dos credores da massa, a prova plena de que tal entrega ocorreu realmente.
[28] Deu-se como positivamente provado o facto negativo de não ter havido pagamento; bem e de acordo com o ónus probatório que impõe a contraprova (em relação à declaração confessória constante da escritura) a cargo dos RR. (ou seja, não se fez como em relação à supra referida alínea a), em que se procedeu como se o ónus da prova pertencesse aos AA.).

[29] O que, não tendo isto ficado provado, nos dispensa de apreciar se a “trapalhada factual”, em que se traduziria o “pagamento” do A. (…) à insolvente, configurava uma mera concretização do pagamento que já estava antes alegado ou, mais do que isso, envolvia factos essenciais que deviam oportunamente ter sido alegados (embora, claro está, propendamos para esta 2.ª hipótese, uma vez que a entrega dos € 105.000,00 ao V (…) só ganharia relevo e sentido jurídicos se nos autos tivéssemos a devida alegação do anterior contrato promessa de permuta, o cumprimento da prestação contratual da A(…) e a transmissão da sua posição contratual) e que não o tendo sido não podiam ser substituídos pelo “salto” na decisão de facto (“ficcionando-se” que o A. (…), ao entregar os € 105.000,00 ao V (…), pagou à insolvente).
[30] Uma coisa é a junção dum contrato – a parte estipulativa – outra a execução do mesmo e o cumprimento da prestação da A (…) não resulta sequer do contrato.
[31] Não queremos dizer que tenhamos ficado convencidos que o CPCV foi simulado (na modalidade relativa, de interposição fictícia de pessoa), porém, ficou a convicção de haver uma interposição real (mandato sem representação): do A. actuar em nome próprio, mas no interesse e por conta do primo V (…)
[32] Aliás, segundo foi referido, quem colocou o tecto falso na loja foi o V(…) e não os AA..
[33] Os pontos 8 e 9 resultam da análise crítica das provas (cfr. art. 607.º/4, ex vi art. 663.º/2, ambos do CPC).

[34] O que se diz nas conclusões 23 e 24 e 28 e 29, a propósito da sentença proferida no processo n.º 617/13.3TBMGL, não faz, com todo o respeito, qualquer sentido jurídico. O processo n.º 617/13.3TBMGL é o processo de jurisdição voluntária de fixação judicial de prazo, a que os AA. tiveram que recorrer, nos termos do art. 777.º/2 do C. Civil, por as obrigações de contratar decorrentes do CPCV serem puras (não estabelecerem o tempo/prazo de cumprimento), ou seja, em face do meio processual em causa, a respectiva sentença limitou-se naturalmente a fixar o prazo para a outorga da escritura, sem cuja fixação os AA. não podiam sequer avançar para a marcação da escritura no notário. A partir de tal fixação de prazo e da posterior marcação da escritura, a insolvente, faltando à escritura, terá ficado incursa em mora e, estando em mora, os AA. poderiam lançar mão dos procedimentos conducentes à resolução contratual, porém, não se alega que estes procedimentos alguma vez (designadamente, antes da insolvência da A (…)) tenham sido efectuados, o que, aliás, estaria em completa contradição com o pedido de execução específica, ou seja, em face do alegado, o CPCV estava vigente e em curso aquando da declaração de insolvência da A (…) (doutro modo, insiste-se, o pedido principal formulado seria, perdoe-se-nos a expressão, um “nado morto”).
[35] In “A posse”, pág. 216.
[36] Publicado in RLJ n.º 133-367 e ss, com anotação favorável do Prof. Calvão da Silva, in RLJ, Ano 133 - p. 370 e Ano 134 - pág. 21.

[37] Em Ac. de 16/02/2016, in ITIJ, relatado pela Conselheira Clara Sotto Mayor, em que se aborda a traditio enquanto requisito ou elemento constitutivo do direito de retenção do art. 755.º/1/f) do C. Civil.
[38] Para usar a expressão do Prof. Manuel Rodrigues, in obra citada, pág. 202.

[39] Caso se considere/considerasse que também tal pressuposto se verifica, haveria então, antes de decidir, que dar cumprimento ao art. 830.º/5 do C. Civil, ou seja, haveria que notificar os AA. para proceder ao depósito do preço (€105.000,00).