Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53/06.8TBMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: DANOS PATRIMONIAIS
DESPESAS
TRANSPORTE
USO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONVOLAÇÃO
Data do Acordão: 06/15/2010
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 563.º, N.º 3 E 664.º DO CC
Sumário: a) – Às despesas de transporte alternativo por paralisação em consequência de acidente de viação de veículo automóvel deve abater-se o que os lesados teriam despendido com a utilização desse veículo fosse em despesas de consumo pelos quilómetros percorridos (v. g., combustíveis), fosse em manutenção (v. g., seguros),
b) – Nenhum juízo de equidade pode suprir a falta de alegação e prova dessas despesas, em especial as distâncias a percorrer, antes o suprimento só pode ocorrer em relação ao cálculo do respectivo valor;

c) – A tristeza ou abatimento do dono de um Renault 5 com mais de 15 anos, de cujo uso está privado há mais de 6, por falta de reparação, não justifica a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais;

d) – O dano de privação do uso de veículo por imobilização para reparação, que a lesada usava para se deslocar para o trabalho e para os afazeres pessoais, é indemnizável como dano patrimonial, com recurso à equidade;

e) – O tribunal pode, na condenação, sem incorrer em nulidade, convolar para dano patrimonial importância erradamente pedida a título de dano não patrimonial (art.º 664.º do CC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            I. Relatório

            A... e marido B... propuseram, em 19.1.06, no Tribunal Judicial da comarca de Montemor-o-Velho acção com forma de processo ordinário emergente de acidente de viação contra “IEP, Instituto das Estradas de Portugal”, ora “EP – Estradas de Portugal, SA” e C...., pedindo a condenação destes no pagamento da indemnização já liquidada de € 12.086,40, a título de danos patrimoniais (€ 2.086,40) e não patrimoniais (€ 10.000,00) sofridos pela A. e nas quantias a liquidar ulteriormente quanto à actualização da reparação do veículo automóvel interveniente no acidente e quanto ao pagamento das deslocações para o trabalho desde Outubro de 2003, bem como nos respectivos juros de mora a contar da citação.

            Alegaram, para tanto, que no dia 28.1.03, pelas 7H30, a A., quando conduzia o veículo automóvel de matrícula IQ-..., sua pertença e de seu marido, foi vítima de um acidente de viação provocado pelo veículo de matrícula RQ ... conduzido pelo R. Ce propriedade da R. “EP” à ordem, por conta e no interesse de quem conduzia, que, saindo repentinamente da faixa de rodagem que lhe era destinada, foi embater na faixa contrária por onde circulava a A.

            Em consequência do embate o veículo IQ sofreu danos cuja reparação foi orçamentada [em 3.2.03] em € 1.685,11 e porque era usado pela A. nas suas deslocações para o trabalho e porque ficou impedido de circular teve de comprar passe social, no que despendeu, de Fevereiro a Setembro [de 2003] a importância de € 391,40, porque ficou “ligeiramente” magoada despendeu em medicamentos € 9,89 e porque a falta do veículo lhe tem causado transtornos, tristeza, abatimento e cansaço, sofreu danos não patrimoniais que computou em € 10.000,00.

            Citados, a Ré “EP” contestou, excepcionando a incompetência material do tribunal, a favor da jurisdição administrativa e impugnou fundamentalmente a medida dos danos e a existência de danos não patrimoniais e, aceitando a responsabilidade do acidente concluiu pela absolvição da instância ou pela procedência parcial da acção.

            O R., por seu turno, aceitando a responsabilidade do acidente, ainda que reportasse a invasão da faixa de rodagem contrária a súbito encandeamento dos raios solares e impugnou a matéria atinente aos danos patrimoniais e à falta de gravidade quanto aos não patrimoniais, concluindo pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.

            Os AA. responderam à matéria da excepção de incompetência em razão da matéria no sentido da sua improcedência.

            Foi proferido despacho saneador que, além do mais, julgou improcedente a excepção e, seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, fixou-se a mesma sem reclamação.

            A Ré “EP” recorreu desse despacho quanto à improcedência da excepção, mas veio desistir do recurso.

            Foi admitida a ampliação da base instrutória com mais 2 quesitos indicados pelos AA. e 1 pelos RR. e o pedido por danos patrimoniais e não patrimoniais foi ampliado para a importância de € 15.224,80.          

            Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi lida a decisão sobre a matéria de facto, que não foi objecto de reclamação.

            Proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e os RR. solidariamente condenados no pagamento das seguintes quantias:

            a) - € 7.260,00, pela privação do uso do veículo durante cerca de 5 anos e meio (€ 5,00 por dia útil e em 11 meses do ano);

            b) - € 1.685,11, de reparação do veículo;

            c) – Despesas de deslocação de € 3.463,40, mas com o abatimento das importâncias deixadas de efectuar com o transporte próprio, tudo sem prejuízo do que vier a liquidar-se no incidente de liquidação de sentença quanto ao valor da reparação futura e à entrega do veículo, desde logo fixando a importância que considerou dentro dos limites tidos por provados (art.ºs 565.º e 566.º, n.º 3, CC) no quantitativo de € 10.000,00, acrescido dos juros legais de mora, à taxa anual de 4% desde a citação e sem prejuízo da ulterior graduação desses danos em quantia diversa, naquele incidente de liquidação e absolveu os RR. do pedido de danos não patrimoniais.

            Inconformados, recorreram quer os AA., quer os RR., em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:

1. Os AA.

a) – Com base nos depoimentos das testemunhas D..., E..., F...e G..., resulta que a A. passou a viver mais triste, abatida e cansada, tendo sido uma pessoa activa e com boa disposição, pelo que deve responder-se ao quesito 13.º “provado apenas que, por causa  do referido em 6. a 9. a A. passou a viver mais triste, abatida e cansada e anteriormente era uma pessoa activa e com boa disposição”;

b) – Os AA. não faziam o apuramento das despesas com o automóvel, gasolinas, mudanças de óleo, revisões e reparações, etc.;

c) – Partindo do pressuposto de que essas despesas são 10% ou 20% das despesas feitas com autocarro, porque a A. nada pagava de comboio, o tribunal da Relação pode, desde já, fixar o montante global das despesas efectuadas pelos AA., com recurso à equidade seja até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, seja pelo que os AA. terão de pagar até à sua indemnização total, uma vez provado, na resposta ao quesito 10.º que a A. despende mensalmente € 53,60 no passe social;

d) – Para além da indemnização pelo não uso do veículo a título de dano patrimonial a A. sofreu ainda danos não patrimoniais resultantes de agressões à saúde psicológica e anímica, tendo-se tornado mais triste, mais abatida e mais cansada, o que se não confunde com aqueles danos e que importam em quantia não inferior a € 2.000,00.

            Concluíram pelo pedido de revogação da sentença no respeitante à alín. c) do dispositivo, fixando-se o montante indemnizatório das despesas feitas e das que serão ainda efectuadas até reparação integral, com recurso à equidade.

            Os RR. não responderam às alegações.

*

            2. Os RR.

            a) – O tribunal a quo absolveu os RR. quanto ao pedido por danos não patrimoniais ao considerar que os prejuízos sofridos com a imobilização não são danos que mereçam a tutela do direito à luz do n.º 1 do art.º 496.º do CC.

            b) – Os AA. nada peticionaram a título de imobilização do veículo, pelo que nada lhes poderia ter sido atribuído a esse título;

            c) – É nula a sentença na parte em que, como dano patrimonial, condenou os RR. pela privação do uso do veículo automóvel desde 28.1.03 até à data da sua entrega aos AA. após reparação efectiva, por violação das alín.s d) e e) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, nessa medida devendo ser revogada.

            Os AA. responderam no sentido da improcedência do recurso.

            Colhidos os vistos, cumpre apreciar, sendo questões a decidir:

A) - Quanto à apelação dos AA.

a) – Impugnação da matéria de facto quanto à matéria da resposta dada ao quesito 13.º;

b) – A possibilidade de fixação, na Relação, em valor líquido, da indemnização correspondente às despesas de deslocação em transporte público alternativo, com recurso à equidade quanto à parte subtractiva das despesas que o veículo automóvel acidentado podia ter suportado, se em circulação;

            c) – Os danos não patrimoniais em função do estado psicológico gerado na A. pela imobilização do veículo.

*

            B) - Quanto à apelação dos RR.

            Se a sentença incorreu em excesso de pronúncia, ou se condenou em quantia superior ou em objecto diverso do pedido.

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            II. Fundamentos

1.De facto

Impugnada a matéria quanto à resposta do quesito 13.º, vejamos se procede a alegação.

Perguntava-se em tal quesito se “por causa do referido em 6. a 9. [necessidades do veículo e transporte público alternativo] a A. passou a viver mais triste, abatida e cansada, com prejuízo no rendimento profissional e na harmonia familiar, dado que sempre foi uma pessoa activa e com constante boa disposição” e o tribunal respondeu não provado, o que os reclamantes contrapõem que deve responder-se “provado apenas que por causa do referido em 6.a 9. a A. passou a viver mais triste, abatida e cansada e anteriormente era uma pessoa activa e com boa disposição”

Ouvidas as gravações dos depoimentos das testemunhas indicadas (coincidentes, como seria suposto, com as transcrições efectuadas pelos recorrentes e que não foram contrariadas pelos recorridos), consta-se que, efectivamente, o acidente em causa e a falta do veículo gerou à A. sentimento de tristeza e abatimento, antes sendo pessoa activa e bem disposta.

Daí que se imponha alterar a redacção da resposta ao quesito 13.º para a redacção proposta, independentemente da valoração de tal matéria e que, antecipando, se afigura irrelevante, porque carente de gravidade bastante para merecer a tutela do direito, à luz do n.º 1 do art.º 496.º do CC.

O quadro factual provado é, assim, o seguinte:

a) – No dia 28 de Janeiro de 2003, cerca das 7H30, no lugar da ..., concelho e comarca de ..., ocorreu um acidente de viação entre os veículos IQ-..., propriedade dos AA. e conduzido pela A. A... e o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula RQ ..., propriedade da “EP - Estradas de Portugal”, conduzido pelo R. C..., motorista da referida entidade, por conta e interesse desta;

b) – No dia, hora e local referidos, num local onde a estrada é curva, o R.C... conduzia o veículo RQ ... pela metade direita da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha e, repentinamente, sem nada que o fizesse prever, sai da sua hemi-faixa de rodagem em direcção à metade esquerda da faixa de rodagem, acabando por embater no veículo IQ-... conduzido pela A. A..., que circulava em sentido contrário, pelo lado direito da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha;

c) – Em Janeiro de 2003 a A. A... trabalhava na Figueira da Foz na limpeza das carruagens que circulavam no caminho-de-ferro;

d) – O veículo em que a A. se deslocava ficou impedido de circular, estando o custo da reparação orçamentado em € 1.685,11;

e) – Os RR. não procederam à reparação do veículo em causa, nem à sua substituição;

f) – Ao montante referido em d) acrescerá, agora, o valor que será exigido aos AA. correspondente à deterioração que o veículo sofreu pelo não uso e falta de reparação;

g) – Os AA. não têm dinheiro para custear tal reparação do seu bolso;

h) – A A. necessitava do carro para se deslocar para o emprego, transportando-se de carro de Pedra Branca até Liceia, onde apanhava o comboio para a Figueira da Foz;

i) – Depois do acidente referido em a) passou a deslocar-se de camioneta, perdendo mais tempo em viagens nos dias úteis e aos sábados;

j) – Tem que andar com os sacos das compras a pé;

l) – Passou a despender mensalmente € 53,60 para comprar o passe social, correspondendo de Fevereiro a Setembro a quantia de € 394,20;

m) – Do acidente referido em a) não resultaram ferimentos;

n) – A “EP” procurou resolver a situação, nomeadamente pagando uma indemnização correspondente ao montante que, em seu entender, mos AA. despenderiam na aquisição de uma viatura idêntica à acidentada;

o) – A A. antes do acidente fazia-se transportar de comboio desde Liceia porque não pagava nada de viagens nesse meio de transporte;

p) – Desde Setembro de 2003 até Janeiro de 2008 despendeu em passes sociais e despesas em deslocações de camioneta a quantia de € 3.069,20;

q) – Os AA. sempre dispuseram, desde a data do acidente até aos dias de hoje, de outro veículo automóvel, usado pelo A. marido para se deslocar para o seu trabalho da C.P. na Pampilhosa;

r) – Por causa do referido em 6. a 9. da base instrutória a A. passou a viver mais triste, abatida e cansada e anteriormente era uma pessoa activa e com boa disposição.

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2. De direito

            A) – A apelação dos AA.

            a) – Quanto à fixação em importância líquida dos danos patrimoniais decorrentes das despesas de deslocação em transporte público, cumpre dizer o seguinte:

            - A sentença recorrida apurou que entre a data do acidente (Fevereiro de 2003) e Janeiro de 2008 a A. despendeu a importância de € 2.463,40 e de acordo com a resposta dada ao quesito 10.º passou a despender mensalmente com o passe social € 53,60, até o veículo se mostrar reparado, para o que a A. não dispõe de capacidade financeira.

            Entendeu que a tais despesas devem abater-se os gastos feitos com o veículo, se operante, seja em combustível, revisão mecânica periódica, reparações extraordinárias e inspecção anual, seguro e outras despesas proporcionais ao número de quilómetros percorridos.

            Foi um entendimento correcto e o único consonante com o princípio da reconstituição natural e a teoria da diferença em sede indemnizatória, como o impõem os art.ºs 562.º e 566.º, n.º 2, do CC.

            É certo que a indemnização deve ser fixada com referência à data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e só em último caso e excepcionalmente deve relegar-se para liquidação o montante dos danos.

            Todavia, o uso da equidade, possibilitado pelo n.º 3 do art.º 566.º do CC, não dispensa o lesado do ónus de alegação e prova dos factos onde o tribunal possa objectivar o juízo de equidade, sob pena de esta se confundir com insindicável livre arbítrio.

            O mesmo é dizer que os juízos de equidade não podem suprir a falta de factos em que assentam os danos, o suprimento só pode ocorrer em relação ao respectivo valor.

            Daí que, no cálculo das despesas que a A. sempre faria com o veículo próprio, em especial e pela sua regularidade, nas deslocações para o trabalho, para abater àquelas que efectuou em transportes, importaria partir de dados, de todo ausentes, como a distância percorrida pelo veículo, o seu consumo e manutenção…

            Propõem os recorrentes que se considerem 10 ou 20% das despesas dos transportes públicos. Porque não mais? (permita-se a pergunta). Não há, até, situações em que o transporte em veículo próprio, se com um único utente, é mais dispendioso que o transporte público?

            Ora, não dispondo este tribunal de elementos que, com o mínimo de segurança, possam fixar qualquer valor justo com vista a compará-los, para mais ou para menos, com os que a A. despendeu em transportes, como a 1.ª instância também não dispos, outra solução não havia, nem há, que relegar o seu conhecimento para o incidente regulado no n.º 2 do art.º 378.º do CPC, nesse sentido nenhuma censura merecendo a sentença recorrida.

            Improcede, portanto, a pertinente conclusão recursiva.

*

b) – Os danos não patrimoniais

Sustentam os AA. recorrentes que, a par do dano emergente da privação do uso que deduziram como não patrimonial e que o tribunal assumiu como patrimonial, a A., com a imobilização do veículo, já por mais de 6 anos e com a tristeza, abatimento e cansaço em que mergulhou, sofreu também um dano não patrimonial autónomo, com ilicitude incidente na sua saúde psicológica e anímica.

Sem razão, contudo.

Independentemente da alteração imposta pelo princípio da objectividade, à matéria de facto e à consequente prova de que a A. passou a viver triste, abatida e cansada desde que deixou de poder dispor do seu veículo automóvel, entendemos que tais danos, separadamente da indemnização pelo dano da privação do uso do veículo, não têm gravidade bastante para que mereçam a tutela do direito.

Com referem P. Lima e A. Varela[1]a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”.

Ora, a tristeza ou abatimento da dona de um veículo automóvel, Renault 5, do ano de 1987 (doc. fls. 53, junto pelos recorrentes) causada por um acidente, ainda que sem culpa, e imobilização, se bem que por mais de 6 anos, não assume gravidade bastante legalmente exigida para a compensação por danos não patrimoniais.[2]

Assim sendo, soçobra também esta conclusão recursiva.

Em suma, improcede a apelação dos AA.

*

            B) – A apelação dos RR.

A sentença recorrida, a partir da prova de que a A., mercê do acidente, passou a perder mais tempo em viagens, por ter de deslocar-se de camioneta a caminho do emprego e no regresso a casa e ter de andar com os sacos de compras a pé, por tais contratempos e incómodos decorrentes da privação do uso do veículo, que aguarda ainda reparação, considerou tal dano patrimonial e indemnizável com recurso à equidade.

Quantificou em € 5,00 por dia útil o valor a indemnizar, a arbitrar em 11 meses do ano, a 4 semanas de cada um e durante, até agora, cerca de 5 anos e meio.

Aderiu, assim, à corrente doutrinária e jurisprudencial que autonomiza como dano indemnizável a mera privação do uso do veículo, em desfavor daqueloutra que não prescinde da prova de um prejuízo específico ou quantificado.

E, na esteira, também, da corrente que considera que tal dano assume natureza patrimonial (e não não-patrimonial), assim o considerou.

O objecto do recurso dos RR. não respeita tanto à configuração abstracta da mera privação do uso do veículo como dano indemnizável ou à sua natureza, antes ao excesso dos poderes do tribunal e à consequente nulidade de sentença.

Ainda assim e porque é pressuposto do que vai apreciar-se, cumpre salientar que também nós aderimos àquela posição, que julgamos maioritária no STJ, que considera que a simples privação do uso do veículo automóvel decorrente da paralisação devido a acidente de viação integra um prejuízo de que o seu proprietário deve ser compensado, desde logo tendo em conta os poderes que o art.º 1305.º do CC lhe confere, em último caso com recurso às regras da equidade (art.º 563.º, n.º 3, do CC).[3]

Aliás, no caso, a fronteira entre as duas posições é ténue, provada que ficou a necessidade de utilização do veículo pelo A. nas suas idas para o trabalho e regresso a casa.

E não obstante se haver provado que os AA. dispunham de outro veículo, provado ficou também dele não poder dispor a A., afectado que está a meio de transporte do marido para o seu local de trabalho.

Quanto à natureza do dano de privação do uso – patrimonial ou não patrimonial – também aqui a jurisprudência se divide.[4]

Comungamos da natureza patrimonial, na medida em que o uso de um veículo automóvel constitui precisamente uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, ainda que com recurso à equidade.

Ora, aqui chegados, vejamos, então, se ocorrem as nulidades de sentença que constituem o thema decidendum do recurso.

Sustentam os recorrentes que os AA. se limitaram a pedir, na petição inicial, a título de danos patrimoniais, a importância de € 2.086,40 e de danos não patrimoniais a importância de € 10.000,00, de que foram absolvidos

A sentença recorrida, ao condenar os RR. por danos patrimoniais na indemnização equitativa provisória de € 10.00,00 condenou em quantia superior ao pedido, bem como em objecto diverso e conheceu de questões não suscitadas pelas partes, incorrendo nas nulidades das alíns. d) e e) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC.

Sem razão, salvo o devido respeito.

O pedido global (danos patrimoniais e não patrimoniais) formulado na sequência da ampliação requerida na sessão de audiência de julgamento de 28.2.08 (fl.s 135) e tacitamente deferida, passou para € 15.224,80.

Ora, a condenação, na importância provisória de € 10.000,00 contém-se obviamente dentro desse pedido. É uma espécie do género deste.

Por outro lado, a factualidade provada integradora daquele dano provém dos art.ºs 23.º a 27.º da petição inicial (exceptuando a do art.º 25.º- quesito 7.º- que não resultou provada) e embora os contratempos e “transtornos” tivessem sido qualificados como danos não patrimoniais, a par daqueles do estado de espírito da A., o Ex.mo Juiz, expressamente aderindo à tese da patrimonialidade de tal dano, valorou-o como tal.

Qualificar diversamente das partes um dano, de não patrimonial para patrimonial, comporta um juízo que supõe a interpretação de regras de direito (art.ºs 483.º, 562.º, 564.º a 566.º e 496.º, do CC).

Conclui-se, assim, não ter havido condenação em quantia superior ou em objecto diverso do pedido ou excesso de pronúncia, em consequência se não verificando as nulidades de sentença arguidas.

De acordo com o princípio da reconstituição natural decorrente dos art.ºs 562.º a 564.º e 566.º do CC os lesantes têm a obrigação de restituir os lesados na situação em que se encontravam antes do acidente, devendo ser responsabilizados pelos prejuízos de não terem ordenado a reparação do veículo em devido tempo, como assim considerou, e bem, a sentença recorrida.

A Ré embora na fase pré-judicial tivesse equacionado a onerosidade excessiva da reparação, é certo que foi matéria a que não deu desenvolvimento nem factual, nem jurídico, pelo que é questão que extravasa o presente recurso.

Bem andou também o Ex.mo Juiz a quo ao reconhecer a existência para a A. de um dano de privação do uso de veículo, servindo-se para o respectivo cálculo de juízos de equidade, afigurando-se razoável e equitativa a fixação do prejuízo, por dia útil, em € 5,00.

*

            III. Conclusões

            a) – Às despesas de transporte alternativo por paralisação em consequência de acidente de viação de veículo automóvel deve abater-se o que os lesados teriam despendido com a utilização desse veículo fosse em despesas de consumo pelos quilómetros percorridos (v. g., combustíveis), fosse em manutenção (v. g., seguros),

            b) – Nenhum juízo de equidade pode suprir a falta de alegação e prova dessas despesas, em especial as distâncias a percorrer, antes o suprimento só pode ocorrer em relação ao cálculo do respectivo valor;

            c) – A tristeza ou abatimento do dono de um Renault 5 com mais de 15 anos, de cujo uso está privado há mais de 6, por falta de reparação, não justifica a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais;

            d) – O dano de privação do uso de veículo por imobilização para reparação, que a lesada usava para se deslocar para o trabalho e para os afazeres pessoais, é indemnizável como dano patrimonial, com recurso à equidade;

            e) – O tribunal pode, na condenação, sem incorrer em nulidade, convolar para dano patrimonial importância erradamente pedida a título de dano não patrimonial (art.º 664.º do CC).

*

            IV. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedentes ambas as apelações e em manter, nos termos referidos, a sentença recorrida.

            Custas da apelação dos AA. e das devidas na 1.ª instância de acordo com o montante oportunamente a liquidar no respectivo incidente, pelos AA., enquanto parte vencida, não as devendo os RR., quanto ao seu decaimento, dada a isenção que lhes confere o art.º 2.º, n.º 1 do CCJ e art.ºs 9.º, n.º 2 do DL 239/04 de 11.12 e 16.º, n.º 3, do anexo.

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_________________________

        (António Magalhães – Vencido, quanto à parte da

condenação pelo dano da perda da privação do uso do veículo, nos termos do voto de vencido que exarei no acórdão de 2.3.10, proferido na Apelação n.º 27/08.4TBVLF.C1 desta Relação, (in, www.trc.pt), fundamentalmente por aderir à tese doutrinária e jurisprudencial que limita a respectiva ressarcibilidade à verificação de danos patrimoniais efectivos e quantificados).


[1] “Código Civil, Anot.”, I, 4.ª ed.-, pág. 499.
[2] V. Ac. STJ de 3.5.07, Proc. 07B1184/ITIJ.
[3] V., nesse sentido, Abrantes Geraldes, “Temas da Responsabilidade Civil”, I, 3.ª ed., pág. 78 e ss e a resenha jurisprudencial aí efectuada, de ambas as posições, e em especial os Acs. do STJ com texto em anexo de 9.5.02 e 29.11.05, também no ITIJ.
No mesmo sentido e por mais recentes, v. Acs. STJ de 8.10.09, Proc. 1362/06.1TBVCD.S1, 12.1.10, Proc. 314/06.6TBCSC.S1 e 29.4.10, Proc. 344/04.2GTSTR.S1, no ITIJ.
No mesmo sentido, ainda, Freitas Rangel, “A Reparação Judicial dos Danos na Responsabilidade Civil”, 3.ª ed., pág. 33.
[4] V. no 1.º sentido os Acs. STJ de 9.5.96, CJ, IV, 2.º, 61, 9.5.02, Proc. 935/02/ITIJ, 26.11.02, CJ, V, 19, 29.11.05, CJ, XIII, 3.º, 151 e 5.7.05, CJ, II, 151. No 2.º, Ac. STJ de 4.12.03/ITIJ, com voto de vencido de Salvador da Costa, naquele sentido.