Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2705/18.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
SOCIEDADE COMERCIAL
ACCIONISTA
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS, 6, 20 Nº1 CIRE, 271 CSC
Sumário: 1 - Um accionista (ou sócio) não tem, durante a vida da sociedade, qualquer crédito (sobre ela) decorrente da sua entrada/participação de capital, razão pela qual não tem, enquanto tal, legitimidade (não é seu credor) para pedir a insolvência da sociedade (ainda que alegue factos que preencham, fora de qualquer dúvida, algum dos factos enumerados no art. 20.º/1 do CIRE).

2 - Quem não possui legitimidade para uma concreta causa, não resolve tal “falta” fazendo intervir quem porventura tenha/possua tal legitimidade ou dizendo que vem em substituição de quem tem/possui tal legitimidade.

Decisão Texto Integral:



Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

M (…), casada, residente (…) , intentou a presente acção especial de insolvência contra P (…) SA, com sede na (...) , pedindo que se decrete a sua insolvência; e pedindo, ainda, a título incidental, que seja admitida a intervenção principal provocada de A (…) e do Ministério Público.

Alegou, em resumo, que é accionista minoritária da requerida e que a mesma se encontra em falência técnica desde 2009, tendo encerrado o ano de 2017 com capitais próprios negativos de € 193.571,43; sucedendo que, nem o chamado A (…) – que tem, como presidente do CA da requerida, o dever de a apresentar à insolvência – nem o Ministério Público pediram a sua insolvência.

Assim, uma vez que, enquanto accionista, é “credora da requerida (…) na liquidação do seu património (…) em resultado da sua participação social[1], podendo “a manutenção da sociedade (…) originar a dissipação dos seus bem e em prejuízo da requerente[2], entende que tem legitimidade para pedir a presente insolvência; e “caso se entenda que a requerente não tem legitimidade própria para o efeito deverão desempenhar estas mesmas funções e posições os chamados A (…)  e o Ministério Público[3].

Conclusos os autos, foi de imediato proferido despacho em se indeferiu, “por manifesta falta de fundamento legal, a requerida intervenção provocada na lide dos indicados terceiros, porquanto inexiste qualquer situação de preterição de litisconsórcio necessário que importe acautelar”.

Citado a Requerido, veio deduzir oposição, sustentado, muito em resumo, que a Requerente não é credora e, como tal, carece de legitimidade para requerer a presente insolvência.

Conclusos os autos – e após vários requerimentos um pouco fora da tramitação normal – foi pela Exma. Juíza proferida decisão a indeferir o presente pedido de insolvência.

Decisão em que se expendeu o seguinte:

(…)

Nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º1, do CIRE a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito (…).

“Quem for legalmente responsável pelas suas dívidas” nos termos da definição constante do n.º2, do artigo 6.º, do CIRE, “para efeitos deste Código, são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que subsidiariamente”.

Conforme se lê na anotação ao artigo 6.º do CIRE de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, 2.ª edição, pag. 104, “É, porém, essencial que estejamos sempre em presença de uma responsabilidade ilimitada, o que se traduz na concertação de dois vectores fundamentais: um é a não dependência dos montantes das dívidas ou da sua natureza ou fonte; outro é o da afectação da totalidade das forças do património do responsável no pagamento. (…) O pensamento legislativo pode, porém, exprimir-se da seguinte forma: são responsáveis legais todos aqueles, mas só aqueles, que estão sujeitos a pagar a generalidade das dívidas do insolvente por determinação da lei, que é sempre e unicamente a fonte da responsabilidade”.

Ora, deste conceito excluem-se, naturalmente, os sócios das sociedades anónimas, uma vez que nos termos do disposto no artigo 271.º, do CSC, na sociedade anónima, o capital é dividido em acções e cada sócio limita a sua responsabilidade ao valor das acções que subscreveu.

Ou seja, e em consonância com a própria essência do tipo de sociedade em questão, enquanto limitativa da responsabilidade dos associados ao valor das acções que subscrevem.

No caso dos autos, e tratando-se a Requerida de uma sociedade anónima, a Requerente não responde pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da sociedade e, como tal, não preenche o conceito de “responsáveis legais” que a lei exige para puder ter legitimidade para requer a insolvência.

Termos em que por esta via, falece, em absoluto, legitimidade à Requerente para o presente pedido de insolvência.

A Requerente para justificar a sua qualidade de credora limitou-se a invocar a sua qualidade de accionista, alegando tal ser suficiente para lhe conferir a qualidade de credora.

Salvo o devido respeito, entendemos que não lhe assiste razão.

A mera qualidade de accionista não lhe confere automaticamente um direito de crédito sobre a sociedade que lhe legitime o pedido de insolvência.

Para efeitos do disposto no artigo 20.º, n.º1, do CIRE, qualquer credor (ainda que sendo sócio da sociedade requerida) pode desencadear o processo de insolvência, para isso tendo legitimidade, bastando para tal que na petição inicial indique as razões da origem, natureza e montante do seu crédito, configurando uma relação jurídica creditícia.

A requerente limitou-se a alegar a sua qualidade de accionista, não alegando quaisquer factos donde se possa concluir que se apresenta como credora – ainda que condicional da requerida.

Em consequência, carece de legitimidade e verifica-se manifesta improcedência do pedido, o que conduz ao indeferimento do presente pedido de insolvência (…)”

Inconformada com tal decisão, interpõe a requerente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que a julgue parte legítima e mande prosseguir os autos.

Termina a sua alegação com conclusões que, pela sua extensão, aqui não transcrevemos.

A requerida respondeu, sustentando, em síntese, que não violou a decisão recorrida as normas processuais e substantivas referidas pela recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação

A – Os factos pertinentes são os que já emergem do relatório precedente.

B – Quanto ao direito:

Estão colocadas em crise duas decisões:

A decisão de indeferimento das intervenções principais provocadas; e

A decisão de indeferimento do próprio pedido de insolvência.

Decisões que, a nosso ver, são irrepreensíveis.

Efectivamente, a requerente, em face do que alegou, não possui legitimidade para pedir a insolvência de requerida; e quem não possui legitimidade para uma concreta causa, não resolve tal “falta” fazendo intervir quem porventura tenha/possua tal legitimidade ou dizendo que vem em substituição de quem tem/possui tal legitimidade[4].

O cerne de ambas as decisões está, em face do que alegou, na congénita ilegitimidade processual da requerente.

Vejamos pois:

A propositura de um processo de insolvência reveste indiscutível gravidade para o visado.

Daí que o legislador exija que o requerente, além de solicitar a declaração de insolvência, preencha também necessariamente uma condição de recurso à acção e de prossecução dela, que a um tempo assegure seriedade, verosimilhança e viabilidade ao pedido de insolvência; ou seja, o sujeito que pretenda obter a insolvência de outro está adstrito a alegar e provar a verificação de um dos factos enumerados no art. 20.º/1 do CIRE, que são aquilo a que se pode chamar índices significantes da situação de insolvência.

Porém, não basta tal alegação e prova.

É que não pode efectivar uma tal intromissão na vida de outrem toda e qualquer pessoa, mas apenas uma das pessoas a que a lei confere/reconhece legitimidade.

Ou seja, o que a requerente/apelante alegou preenche, fora de qualquer dúvida, um dos factos enumerados no art. 20.º/1 do CIRE[5], porém, isso não chega[6], uma vez que a requerente/apelante, em face do que alegou, não é uma pessoa a quem a lei confira/reconheça legitimidade para pedir a insolvência da requerida.

Efectivamente (e para além da apresentação à insolvência por parte do próprio devedor), de acordo com o art. 20.º/1 do CIRE, “a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor (…), ou ainda pelo Ministério Público, em representação de entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados (…)

Ora, como bem se observou na decisão recorrida, a requerente não é legalmente responsável pelas dívidas da requerida, não é credora e não é o Ministério Público.

Os responsáveis legais pelas dívidas do devedor estão definidos no art. 6.º/2 do CIRE como “as pessoas que, nos termos da lei, respondem pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário”.

Será o caso dos “sócios de responsabilidade ilimitada” (os sócios de sociedades em nome colectivo e os sócios comanditados de sociedades em comandita e os sócios de sociedades comerciais sem personalidade jurídica e os sócios de sociedades civis), bem como os membros de responsabilidade ilimitada de entidades não societárias.

Não é evidentemente o caso da requerente/apelante – accionista da sociedade anónima requerida – cuja responsabilidade está limitada ao valor das acções que subscreveu (cfr. art. 271.º do CSC).

Assim como a requerente/apelante não é credora da requerida.

Aliás, a requerente teve alguma dificuldade em construir/alegar tal crédito, tendo apenas dito, como consta do relatório inicial, que, enquanto accionista, é “credora da requerida (…) na liquidação do seu património (…) em resultado da sua participação social”, podendo “a manutenção da sociedade (…) originar a dissipação dos seus bem e em prejuízo da requerente”.

Ou seja – é o que resulta da alegação da requerente – não é credora, uma vez que só poderá vir a ser, no futuro e eventualmente[7], se e no momento da liquidação do património da requerida, ou seja, num momento em que já nem se colocará sequer a questão da insolvência da requerida; seja como for – é o que conta – até lá a requerente não tem qualquer crédito (sequer condicional ou litigioso) sobre a requerida (os accionistas e sócios não têm, durante a vida das sociedades, qualquer crédito sobre elas e decorrente das entradas de capital impostas pelo contrato social)[8]

Não sendo, como é evidente (a requerente/apelante) o Ministério Público.

E, caso fosse, também não teria legitimidade, uma vez que o Ministério Público só tem legitimidade em representação de entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados[9].

Efectivamente, ainda que se entenda que este poder de acção do Ministério Público vai para além da defesa dos direitos de crédito das entidades públicas que ele normalmente representa (estado, autarquias locais, institutos públicos e instituições da Segurança Social), na medida em que este poder de acção já resulta do art. 13.º/1 do CIRE (havendo que encontrar um sentido útil e não redundante para o que se quis dizer com o art. 20.º/1 do CIRE), ou seja, ainda que se entenda que o Ministério Público é titular dum poder de acção próprio, este terá como limite a defesa de interesses públicos, designadamente, dos valores do crédito e da economia, sendo que, no caso, em face do alegado, apenas se divisam estritos interesses particulares[10].

Em síntese e como se começou por referir, a requerente/apelante, em face do que alegou, não possui legitimidade processual para pedir a insolvência da requerente[11]; pelo que, repete-se, bem andaram as decisões recorridas ao indeferir as intervenções principais provocadas e ao indeferir o próprio pedido de insolvência.

Improcede pois “in totum” o que a apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva – mostrando-se prejudicados todos os argumentos não directamente enfrentados – o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do decidido na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.


*


III - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e confirmam-se integralmente as decisões recorridas (a intercalar e a final).

Custas, em ambas as instâncias, pela requerente/apelante.


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Coimbra, 29/01/2019

Barateiro Martins ( Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Art. 13.º da PI.
[2] Art. 14.º da PI.
[3] Art. 87.º da PI.

[4] Como claramente resulta do art. 316.º do CPC, invocado pela requerente, a intervenção principal provocada é dirigida às situações de litisconsórcio – em que a parte que já está na causa tem legitimidade (embora não possa porventura estar sozinha, por se tratar duma situação de litisconsórcio necessário) – e não às situações em que alguém, que não tem legitimidade, pretende que aquele que possui legitimidade intervenha na concreta causa que ele intentou sem legitimidade (se fosse assim, estava encontrado o meio de todos acabarmos por ter legitimidade para todas as acções, enfim, para esvaziar o pressuposto processual da legitimidade).

[5] E não os três que refere; a requerente não alegou o incumprimento de uma única obrigação vencida da requerida, o que, claro está, afasta a alegação dos (invocados) factos índices enumerados no art. 20.º/1, a) e b) e a situação de insolvência (mais comum) constante do art. 3.º/1 do CIRE; o que a requerente (abundantemente) alegou diz exclusivamente respeito ao facto índice enumerados no art. 20.º/1, h), facto índice este que está apenas ligado à situação de insolvência constante do art. 3.º/2 do CIRE.
[6] E não é isso que aqui está em causa, ou seja, não é por a requerida estar em falência técnica há anos, não é por o seu passivo ser há anos manifestamente superior ao activo (verificando-se a situação de insolvência do art. 3.º/2 do CIRE), que a requerente adquire legitimidade e pode substituir-se a quem tinha (além dos deveres gerais do art. 65.º do CSC) o dever específico de apresentação à insolvência (art. 18.º/1 do CIRE), o qual, de acordo com o art. 19.º do CIRE, “cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer dos seus administradores” (qualidade que a requerente não invoca ter ou ter tido).

[7] Dizer “eventualmente” nem será porventura o mais certo, uma vez que a requerente alega abundantemente que a requerida está em situação líquida negativa desde 2009 – e que encerrou o ano de 2017 com capitais próprios negativos de € 193.571,43 – pelo que, num momento final de liquidação do património da requerida, nem terá por certo qualquer crédito a receber.

[8] É muito sintomático do que vimos de dizer – não ser a requerente credora da requerida – a circunstância de, a final, a requerente só haver logrado identificar dois credores da requerida: a accionista maioritária M (…), credora de € 660.285,61 (decorrente por certo de suprimentos e/ou de prestações além das “entradas”, de que nem sequer foi alegado ter sido deliberada a sua restituição); e o fornecedor C (…), Lda., credor de € 120.000,00 (crédito de que, em rigor, também não alegou o incumprimento por parte da requerida).
[9] A dívida ao Estado, de € 99,20, referida na conclusão 15.ª, é um facto novo (que não consta da PI); mas, acima de tudo, como se referiu, a requerente não pode fazer intervir o Ministério Público para suprir a sua total falta de legitimidade.

[10] A questão da perda de metade do capital social (prevista no art. 35.º do CSC), que a requerente abundantemente invoca e que já nem consegue situar no tempo (mas que diz ser anterior a 2009), apenas dá lugar, caso os sócios não adoptem qualquer medida que a corrija, à obrigação da sociedade publicitar e dar a conhecer a terceiros tal situação (cfr. art. 171.º/2 do CSC, na redacção do DL 19/2005, de 18-01).
[11] Aliás, como se transcreveu no relatório inicial, é a própria requerente a dizer que, “caso se entenda que a requerente não tem legitimidade própria para o efeito, deverão desempenhar estas mesmas funções e posições os chamados A (…) e o Ministério Público”.