Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
59/09.5TTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO
PROCESSO DISCIPLINAR
NOTA DE CULPA
PRAZO DE DEFESA
CULPA DO TRABALHADOR
Data do Acordão: 02/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 653º, NºS 2 E 4, DO CPC; 367º, 396º, NºS 1 E 2, E 413º DO CÓDIGO DE TRABALHO DE 2003
Sumário: I – A análise crítica a que alude o artº 653º, nº 2, do CPC (sobre a decisão proferida sobre a matéria de facto) – critérios a observar no cumprimento do dever de fundamentação da decisão judicial sobre matéria de facto -, relaciona-se com a necessidade de indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção do julgador no julgamento do facto provado ou não provado.

II – A falta, absoluta ou suficiente, de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto constitui uma nulidade secundária, que deve, de acordo com o artº 653º, nº 4, do CPC, ser objecto de imediata reclamação, sob pena de se considerar sanada no que toca ao interesse de controlo das partes perante o próprio tribunal que profere a decisão.

III – Já assim não será no caso de se suscitar o controlo da Relação, por via recursória. Mas neste caso, o interesse em se obter a adequada fundamentação da decisão da 1ª instância tem de resultar da efectiva necessidade para esse controlo, na medida em que ele for suscitado pelas partes ou pela própria Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo artº 715º do CPC.

IV – O artº 413º do CT/2003, ao estabelecer o prazo de dez dias úteis para a resposta à nota de culpa apenas impõe ao empregador que aceite essa resposta dentro desse prazo.

V – Não resulta dali qualquer sanção para o empregador que indique um prazo para defesa inferior ao legal (nem sequer lhe atribui a obrigação de indicar prazo para a defesa).

VI – Nos termos do artº 396º, nº 1, do C.T./2003, o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, constitui justa causa de despedimento (elemento subjectivo, elemento objectivo e nexo de causalidade).

VII – Para a apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes (nº 2 do artº 396º).

VIII – Isto sempre de acordo com um princípio quadro, estabelecido no artº 367º do C. T./2003: o princípio da proporcionalidade, ou seja, a sanção deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O autor intentou contra a ré acção declarativa de condenação, na forma comum, pedindo que seja declarada a ilicitude de despedimento, com a condenação da ré a pagar-lhe as seguintes quantias: € 34.823,67, a título de salários em débito; € 6.120,68, a título de subsídios de férias em dívida; € 5.022,57, a título de subsídios de Natal em dívida; € 6.284,88, a título de compensação por violação do direito a férias; € 1.047,48, a título de férias vencidas no dia 01-01-2009, não gozadas; € 1.047,48, a título de subsídio das férias vencidas no dia 01-01-2009; indemnização por antiguidade, pela qual opta em detrimento da reintegração; retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do Tribunal; juros de mora sobre as aludidas quantias, desde o seu vencimento e até integral pagamento.

 Alegou, para tanto, em suma, que trabalhou por conta da ré, exercendo as funções de técnico, desde 13 de Dezembro de 1999 até 21 de Janeiro de 2009, data em que foi por ela despedido, por decisão proferida em sede de procedimento disciplinar; que tal despedimento é ilícito, por o respectivo procedimento ser nulo, por violação do princípio do contraditório, por não existir justa causa e ter sido motivado por discriminação política. Além disso, sustenta que a ré lhe ficou a dever várias quantias.

Contestou a ré alegando, no essencial, que despediu o autor com justa causa, apurada em processo disciplinar regularmente instruído. Justa causa de despedimento essa que se consubstancia no facto de o autor ter violado o dever de respeito e urbanidade devido ao seu director, insultando-o e ameaçando-o. Alegou ainda ter pago todos os créditos devidos ao autor, e ter-lhe facultado todos os períodos de férias a que tinha direito.          

Concluiu pela improcedência da acção.


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Efectuada a audiência de julgamento, veio a final a ser proferida sentença que julgou procedente a acção e, em consequência, decidiu declarar ilícito o despedimento do autor e condenar a ré a pagar ao autor: a quantia de € 5.339,24, acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde a data da presente decisão e até integral e efectivo pagamento, computados à taxa legal de 4 % ao ano; a quantia global de € 58.587,22, acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde o vencimento de cada prestação e até integral e efectivo pagamento, computados às taxas legais de 7% até ao dia 30-04-2003, e de 4 % ao ano de aí em diante; as retribuições que se forem vencendo até ao trânsito em julgado da decisão final, tendo em perspectiva o montante mensal de € 1.047,48 e respectivos juros de mora.

Inconformada, a ré interpôs apelação e, nas correspondentes alegações, apresentou as seguintes conclusões:

[….]

O autor fez apresentação de contra-alegações, nas quais pugna pela sua improcedência.
Recebidos os recursos e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador-Geral Adjunto em parecer, sustentando designadamente não ocorrer a invalidade do procedimento disciplinar identificada na sentença em recurso.


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II- OS FACTOS:
Na sentença da 1ª instância considerou-se a factualidade dada como provada do seguinte modo:
1- O autor A... e a ré “B...” celebraram, no dia 24 de Novembro de 1999, o acordo escrito junto a fls. 9, denominado “contrato de trabalho”, mediante o qual o primeiro prestou a sua actividade de técnico, correspondente à sua categoria profissional, sob as ordens, direcção e fiscalização da ré, desde o dia 13 de Dezembro de 1999;
2- O acordo referido no ponto anterior passou a ser por tempo indeterminado;
3- No acordo referido no ponto 6.1. consignou-se que “a remuneração mensal ilíquida é de 210.000$00 (Duzentos e dez mil escudos)”;
4- No dia 24 de Outubro de 2008, o autor frequentou as aulas do 1º ano do Ciclo de Estudos de Pós-Graduação em Sistemas de Informação Geográfica, ramo Recursos Agro Florestais e Ambientais, em que está matriculado desde o dia 17 do referido mês, pelo que não esteve nas instalações da ré no período da tarde;
5- O autor entregou à ré, na parte da manhã do dia 24 de Outubro de 2008, o documento cuja cópia consta de fls. 33;
6- No dia 27 de Outubro de 2008, o Eng.C..., director da ré, dirigiu-se ao autor pedindo-lhe que justificasse a sua falta ao serviço no dia 24 de Outubro de 2008, no período da tarde;
7- Na ocasião aludida no ponto anterior, o autor, diante de todos os funcionários presentes, apelidou o Eng. C... de “chico esperto” e de “incompetente”, e afirmou que o mesmo “se estava a armar”, e “que não sabia o que andava a fazer”;
8- Em consequência do descrito nos pontos 6. e 7., o Eng. C... sentiu-se vexado e atingido no seu prestígio pessoal e profissional;
9- O autor entregou à ré, no dia 27 de Outubro de 2008, o documento cuja cópia consta de fls. 34;
10- No dia 12 de Novembro de 2008, a ré entregou ao autor o documento cuja cópia se encontra junta a fls. 35;
11- A ré não descontou a ausência referida no ponto 4. na retribuição do autor;
12- Por carta registada com aviso de recepção, enviada no dia 11 de Dezembro de 2008 e recebida no dia 12 de Dezembro de 2008, a ré comunicou ao autor a instauração do processo disciplinar apenso aos autos, remetendo-lhe a nota de culpa, e comunicando-lhe a intenção de “eventual rescisão do seu contrato de trabalho com justa causa”, e a sua suspensão preventiva, sem perda de retribuição;
13- O autor apresentou resposta à nota de culpa;
14- Por carta registada com aviso de recepção, enviada no dia 20 de Janeiro de 2009 e recebida no dia 21 de Janeiro de 2009, a ré comunicou ao autor a decisão final do processo disciplinar, em que declara que “(…) deliberou proceder ao seu despedimento com justa causa”, cessando o contrato “na data da recepção da (…) carta”;
15- De Dezembro de 1999 até Dezembro de 2008, a ré pagou ao autor a quantia global de € 80.130,79, a título de salários ilíquidos;
16- O autor admite ter recebido da ré a quantia global de € 4.345,12, referente aos subsídios das férias vencidas nos dias 01-01-2002, 01-01-2003, 01-01-2004, 01-01-2005, 01-01-2006, 01-01-2007 e 01-01-2008, a quantia global de € 4.404,75, referente aos subsídios de Natal dos anos de 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008, e a quantia de € 628,34, a título de salário do mês de Janeiro de 2009;
17- A ré não pagou ao autor os subsídios das férias vencidas no dia 01-01-2001 e 01-01-2009.

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III. Apreciação

As conclusões das alegações dos recursos delimitam o seu objecto (arts. 684° nº 3 e 690° nº 1 do C. P. Civil), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver, no âmbito das conclusões, se podem equacionar basicamente da seguinte forma:
- a de saber se se impõe determinar ao tribunal a quo que fundamente a decisão sobre a matéria de facto, ordenando, para tal, nova “reprodução da prova”;

- a de saber se se impõe alterar a decisão de facto, no que toca às respostas aos quesitos 1º e 2º da Base Instrutória;

- a de saber se, tal como concluiu a sentença da 1ª instância, ocorreu invalidade insuprível no processo disciplinar, geradora da ilicitude do despedimento;

- na resposta negativa a esta questão, saber através da análise do mérito dos fundamentos invocados para o despedimento este foi lícito ou ilícito;
- a de saber se, por o contrato de trabalho ter sido, validamente alterado quanto ao valor da retribuição, sendo, posteriormente, integral e pontualmente cumprido pela ré, não são devidos os créditos salariais fixados na sentença.

Apreciando

1- Quanto à questão da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:

Quando a recorrente suscita esta questão, visa nas suas próprias palavras conseguir uma repetição integral do julgamento na 1ª instância.
Na verdade, defende que, não tendo o tribunal a quo respeitado o dever de fundamentação e não tendo sido gravados os depoimentos testemunhais, então esta Relação deveria determinar, ao abrigo do disposto no art. 712.º n.º 5 do Código de Processo Civil, que a 1ª instância fundamentasse a decisão sobre a matéria de facto, ordenando, para tal e previamente, “a reprodução da prova”.
Solução bem drástica e de utilidade pouco alcançável, quando a recorrente não indica quais os concretos factos essenciais que não estão devidamente fundamentados e não impugna a decisão sobre a matéria de facto em moldes de colocar esta Relação perante a eventual necessidade de perceber melhor a decisão da 1ª instância – a recorrente apenas pretende a alteração das respostas de “não provado” a dois quesitos da Base Instrutória, com respostas restritivas fundamentadas somente em documentos juntos aos autos.
A recorrente sustenta que não foi feita a análise crítica a que alude o artº 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que a decisão proferida sobre a matéria de facto declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
O objectivo da observância de tais critérios para o cumprimento do dever de fundamentação desse tipo de decisão judicial relaciona-se com a necessidade de indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção do julgador no julgamento do facto provado ou não provado (v. por exemplo, Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 1997, pg. 348).
Esse controlo é, sobretudo, feito por via de recurso pelas Relações.
Mas também é exercido pelas partes no domínio do direito que lhes assiste de confrontarem o próprio tribunal perante os seus próprios argumentos ou falta deles. Direito que decorre do disposto no n.º 4 do mesmo art. 653.º, quando estabelece que, depois do exame da decisão, as partes podem reclamar contra a falta de motivação da decisão.
A falta, absoluta ou suficiente, de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto é, quanto a nós, uma nulidade secundária, que deve, de acordo com essa norma, ser objecto imediato de reclamação, sob pena de se considerar sanada (cfr. artºs 201.º e 205.º) no que toca ao interesse de controlo das partes perante o próprio tribunal que profere a decisão (neste sentido, v. Ac. da Relação de Coimbra de 1-2-2005, in www.dgsi.pt, proc. 3781/04).
Já assim não será no caso de se suscitar o controlo da Relação, por via recursória. Mas neste caso, o interesse em se obter a adequada fundamentação da decisão da 1ª instância tem de resultar da efectiva necessidade para esse controlo, na medida em que ele for suscitado pelas partes ou pela própria Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 715.º do CPC.
Ora, no que toca à reclamação perante o tribunal a quo, verificamos que ela não ocorreu. Na acta onde consta a leitura da decisão de facto, pode ler-se que ambos os advogados das partes estiveram presentes e que estes declararam nada ter a reclamar.
Já no que toca a esta Relação, por via do recurso, verificamos que a recorrente requer, nos termos do nº 5 do art. 712º do CPC, que se ordene à 1ª instância a melhor fundamentação da sua decisão de facto, mas não indica os factos essenciais que não estão devidamente fundamentados, nem impugna aquela decisão relativamente a factos que, por não estarem devidamente fundamentados, suscitem dúvidas na apreciação das provas, dúvidas que poderiam ser melhor esclarecidas com outra fundamentação por parte da 1ª instância.
Ou seja, a recorrente não justifica a necessidade ou a utilidade em proceder a essa determinação do ponto de vista do controlo que esta Relação poderia fazer sobre a matéria de facto. O seu interesse apenas poderá, portanto, ser o de conhecer melhor a fundamentação mas, para isso, deveria ter utilizado o mecanismo de reclamação junto da 1ª instância e não o fez.
Deste modo, concordando embora que a decisão de facto da 1ª instância poderia ser mais exemplar no que toca ao exercício de dever de fundamentação, não ordenaremos a baixa do processo nos termos pretendidos no recurso.

2- Quanto à questão da alteração da resposta aos quesitos 1.º e 2.º da Base Instrutória:
A recorrente defende que, “em face dos recibos de vencimento juntos aos autos, deveria ter sido dada a seguinte resposta aos pontos 1.º e 2.º da base instrutória: “1.º) Provado apenas que o vencimento base do A. referido nos recibos dos primeiros pagamentos, e por aquele assinados, era de 54.547$00, sendo posteriormente aumentado; 2.º) Provado que no recibo de vencimento assinado pelo A. em 31.12.2008, o vencimento mensal base nele referido era de € 821,66”.
Os quesitos em causa tinham a seguinte redacção:
1º- Logo na altura em que celebraram o acordo referido em A), o autor e a ré convencionaram que o vencimento base do primeiro seria de Esc. 54.547$00?
2º- No dia 31-12-2008, o autor auferia, ao serviço da ré, o vencimento mensal base de € 821,66?

Estes quesitos mereceram, por parte da 1ª instância, a resposta de “não provado”.

Vejamos:

A modificabilidade da decisão de facto por esta Relação, quanto à matéria de tais quesitos, seria possível se os elementos fornecidos pelo processo impusessem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (art. 712.º n.º 1 al. b) do CPC).

No que toca ao quesito 1º perguntava-se claramente se o acordo estabelecido no início do contrato de trabalho seria o de Esc. 54.547$00. Ora, uma resposta como a que a recorrente propõe não é meramente restritiva. Extravasa a matéria quesitada. Na realidade, considerar-se que “o vencimento base do A. referido nos recibos dos primeiros pagamentos, e por aquele assinados, era de 54.547$00, sendo posteriormente aumentado” não se relaciona com o questionado acordo inicial. Quando muito poderia ser um facto instrumental que conduziria a concluir pela verificação do outro, esse sim essencial. Ora, tendo-se perguntado directamente se aquele acordo existia, sem que se alcançasse a sua prova, nenhum relevo tem agora a verificação deste facto instrumental, o qual, em si mesmo, é irrelevante. Recorde-se que o que a ré alegou na sua contestação foi a existência daquele acordo inicial. Por outro lado, diga-se, embora sem grande importância neste raciocínio, que os “recibos” juntos em cópia nos autos referentes às datas mais próximas do início do contrato referem o valor (ilíquido) de € 61.300$00 e não o de Esc. 54.547$00 (esse seria o valor líquido).

Assim, não modificaremos a resposta a este quesito.

No que toca ao quesito 2º, admitimos que a sua formulação é conclusiva, como a recorrente afirma (“auferir”, se tiver o significado de fixado ou acordado esse valor para a retribuição encerra uma questão de direito), embora corresponda exactamente ao que alegou (v. art. 4.º da contestação).

Admitimos, porém, que na resposta a esse quesito, possa caber, a resposta “factual” proposta pela recorrente, com base no recibo constante de fls. 126, aceite quanto ao seu conteúdo pelo autor na resposta à contestação. Não pode, contudo, consignar-se como provado que o recibo tem assinatura do autor, porque na verdade ela não consta desse recibo (v. fls. 126).

Assim, decidimos alterar a resposta a tal quesito, consignando-se como provado que:
No recibo de vencimento do autor, emitido pela ré, com a data de 31.12.2008, consta no lugar que indica o montante do vencimento o valor de € 821,66”.


3. Quanto à questão da invalidade do procedimento disciplinar:
Na sentença recorrida, considerou-se ilícito o despedimento em função da invalidade do procedimento disciplinar.
Pelos motivos assinalados na seguinte passagem que se transcreve:
No caso concreto, e uma vez que o objecto da presente acção reside exactamente na impugnação de um despedimento, há que indagar desde logo da validade do procedimento disciplinar, que o autor afirma ser nulo, por violação do princípio do contraditório, dado ter-lhe sido concedido apenas 5 dias para responder à nota de culpa.
Analisando o procedimento disciplinar apenso, constata-se que, na realidade, a ré apenas concedeu ao autor o “prazo de cinco dias úteis” para responder à nota de culpa. Tal prazo é inferior ao legalmente previsto nos arts. 413º e 418º, nº 2, do Código do Trabalho - 10 dias úteis.
Por outro lado, o autor invocou tal facto logo no decurso do procedimento disciplinar.
Ora, como se dispõe no art. 430º, nº 2, al. b), do Código do Trabalho, o procedimento disciplinar é inválido se “não tiver sido respeitado o princípio do contraditório, nos termos enunciados nos artigos 413º, 414º e no nº 2 do artigo 418º” (sublinhado nosso). Ou seja, a lei determina o respeito absoluto dos trâmites impostos nas ditas normas legais, incluindo a concessão do prazo de 10 dias úteis para resposta à nota de culpa, punindo qualquer desvio a tais mandamentos com a sanção da invalidade do procedimento.
Por conseguinte, entendemos que a concessão de prazo de defesa inferior ao legalmente previsto importa a invalidade do procedimento disciplinar. Neste sentido, veja-se a posição de Carlos Morais Antunes e Amadeu Guerra (“Despedimentos e Outras Formas de Cessação do Contrato de Trabalho”, Almedina, 1984, p. 154), que afirmam que “prejudicado ficará também o princípio do contraditório e o da audiência do arguido se a entidade patronal não respeitar o prazo legal para o trabalhador deduzir, por escrito, a sua defesa. Ficará, de facto e inequivocamente, abalado o direito do trabalhador se defender”.
Assim sendo, julgamos que o facto de a ré apenas ter concedido ao autor o prazo de 5 dias úteis para responder à nota de culpa importou a violação do princípio do contraditório, causando a invalidade do procedimento disciplinar. E a tal conclusão não obsta o facto de o autor ter respondido à nota de culpa, pois é certo que, por um lado, invocou logo aí a violação do princípio do contraditório, e, por outro lado, não beneficiou de todo o tempo que a lei impõe para analisar a imputação que lhe é efectuada e organizar e reunir convenientemente toda a sua defesa.
Desta forma, o vício acima apontado não pode considerar-se sanado, pelo que cumpre reconhecer razão ao autor, concluindo pela invalidade do procedimento disciplinar.
O despedimento do autor efectuado pela ré é, portanto, ilícito.
Vejamos:
Nos factos considerados provados, acima transcritos, não se fez constar que a ré apenas concedeu ao autor o “prazo de cinco dias úteis” para responder à nota de culpa.
Apenas se consignou, como provado, que (facto 12.) por carta registada com aviso de recepção, enviada no dia 11 de Dezembro de 2008 e recebida no dia 12 de Dezembro de 2008, a ré comunicou ao autor a instauração do processo disciplinar apenso aos autos, remetendo-lhe a nota de culpa, e comunicando-lhe a intenção de “eventual rescisão do seu contrato de trabalho com justa causa”, e a sua suspensão preventiva, sem perda de retribuição, bem como que (facto 13.) o autor apresentou resposta à nota de culpa.
Mas, o processo disciplinar consta dos autos (junto como “apenso”) e, portanto, esta Relação pode considerar como provado o seu conteúdo, não tendo este sido posto em causa nos autos, ao abrigo do disposto no art. 712.º n.º 1 al. b) do CPC.
É o que fazemos.
Ora, do processo disciplinar consta que, na verdade, quando foi notificada a nota de culpa por carta, esta referia que o autor ficava notificado para, querendo, apresentar a defesa por escrito e requerer quaisquer diligências de prova, no prazo de cinco dias úteis a contar da recepção da comunicação.
Mas, observado o mesmo processo disciplinar, constatamos que o autor, embora não consigamos perceber em que data, apresentou detalhada resposta à nota de culpa, subscrita por advogado com procuração.
Observamos ainda que no relatório final do mesmo processo, a resposta à nota de culpa é analisada no seu conteúdo.
Portanto, verificamos que a resposta à nota de culpa, independentemente de ter sido apresentada dentro de qualquer prazo, foi aceite pela ré.
Assim sendo, não vemos onde possa estar a invalidade do procedimento por violação dos direitos de defesa e do princípio do contraditório.
O art. 413.º do CT/2003, ao estabelecer o prazo de dez dias úteis para a resposta à nota de culpa apenas impõe ao empregador que aceite essa resposta dentro desse prazo. Não resulta dali qualquer sanção para o empregador que indique um prazo para defesa inferior ao legal (nem sequer lhe atribui a obrigação de indicar prazo para a defesa). Poderíamos é certo questionar, no caso de ser indicado um prazo inferior ao legal e de o trabalhador não ter apresentado a resposta, se o trabalhador não teria sido prejudicado na sua defesa. Mas, no caso dos autos, manifestamente não o foi. Independentemente da data em que apresentou a resposta, esta foi aceite pela ré.
O princípio do contraditório foi, assim, respeitado, não ocorrendo a invalidade assinalada pela 1ª instância.
Nessa medida, entendemos que não se verifica qualquer invalidade do procedimento disciplinar por desrespeito do princípio do contraditório e que resultasse dos termos conjugados dos artigos 430.º n.º 2 e 413.º do Código do Trabalho de 2003.
Dito isto, não verificamos que o procedimento disciplinar seja inválido e que, por isso, seja ilícito o despedimento.

4. A questão da justa causa do despedimento:
Não sendo ilícito o despedimento pela invalidade do procedimento, vejamos agora da questão da (in)existência de justa causa para o despedimento, questão que se impõe analisar nos termos do disposto no art. 715.º n.º 1 e 2 do CPC.
Nos termos do artigo 396º, n.º 1 do CT/2003, “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, constitui justa causa de despedimento”.
Importa, assim, averiguar de três elementos fundamentais: se o comportamento imputado ao trabalhador é culposo (elemento subjectivo); se ocorre uma situação de impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho (elemento objectivo); se ocorre uma relação causal (nexo de causalidade) entre aquele comportamento e aquela situação de impossibilidade.
Mais ainda: para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes de acordo (nº 2 do citado artº 396º). Sempre de acordo com um princípio quadro, estabelecido no artigo 367º daquele Código do Trabalho: o princípio da proporcionalidade, ou seja, a sanção deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor.
Sendo este o quadro legal de referência, vejamos se os factos apurados podem justificar o despedimento.
Os factos provados como consubstanciadores de violação dos deveres funcionais do autor, são os seguintes, reproduzidos nos factos acima já transcritos:
- no dia 27 de Outubro de 2008, o Eng. C..., director da ré, dirigiu-se ao autor pedindo-lhe que justificasse a sua falta ao serviço no dia 24 de Outubro de 2008, no período da tarde;
- na ocasião, o autor, diante de todos os funcionários presentes, apelidou o Eng. C... de “chico esperto” e de “incompetente”, e afirmou que o mesmo “se estava a armar”, e “que não sabia o que andava a fazer”;
- em consequência, o Eng. C... sentiu-se vexado e atingido no seu prestígio pessoal e profissional;
Tais comportamentos do autor integram, sem dúvida, a infracção disciplinar consubstanciada no incumprimento do dever previsto no art. 121º nº 1 alínea a) do CT/2003 (o trabalhador deve “respeitar e tratar com urbanidade e probidade o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as demais pessoas que estejam ou entrem em relação com a empresa”)
E, a nosso ver, na sua materialidade, podem ser integradores de justa causa para despedimento nos termos do art. 396º nº 1 e 2, al. i) do mesmo Código.
Ora, embora o autor nas contra-alegações do recurso venha sustentar que, sendo as expressões proferidas uma violação do dever de urbanidade e de respeito para com o empregador, porque não se trata de uma conduta reiterada não se justificaria a aplicação da sanção disciplinar máxima, entendemos que a mesma é suficientemente grave para destruir irremediavelmente a confiança no relacionamento laboral da ré para com o autor.
Uma manifestação de conflito expressada com palavras, proferidas diante de todos os funcionários da ré presentes, como “chico esperto”, “incompetente” e que o mesmo “se estava a armar”e “que não sabia o que andava a fazer”, são aptas a vexar, como vexaram, o superior hierárquico, estando encontrado um caldo de cultura para que se possa dizer que não seria exigível à ré que continuasse a manter ao seu serviço trabalhador que tratou o superior da forma como o fez.
O comportamento do autor, para além de culposo, é apto a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal na posição do empregador.
É de considerar que o mesmo, pela sua gravidade e consequências, torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (396 nº1 do Código do Trabalho). O quadro do incumprimento revela a inviabilidade da relação laboral, atendendo ao quadro apontado do artigo 396º nº 2 do Código do Trabalho. Seguindo o que a doutrina e a jurisprudência vêm afirmando, quanto à inexigibilidade de manutenção da relação laboral, neste caso ela confirma-se, porque é de concluir que deixaram de existir as condições mínimas para sustentar uma vinculação duradoura que obriga a intensos contactos funcionais entre as partes e que não é razoável exigir do empregador a subsistência da relação, por ter sido intoleravelmente quebrada a confiança.
A sanção foi, quanto a nós proporcional, não sendo exigíveis ao caso sanções conservatórias.
Assim, acolhida a justa causa, entendemos que o despedimento foi lícito.
E, por isso, procederá a apelação nesta parte.

5. A questão das diferenças salariais:
A sentença da 1ª instância condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 33.730,44, a título de diferenças salariais em débito, de Dezembro de 1999 até 21-01-2009, tomando como base o salário do autor acordado como consta do contrato de trabalho escrito com a ré, celebrado no dia 24 de Novembro de 1999.
Ora, do referido acordo constava, conforme se consignou no ponto 3. dos factos provados, acima transcritos, que “a remuneração mensal ilíquida é de 210.000$00 (Duzentos e dez mil escudos)”.
A ré veio sustentar que, não obstante esse acordo escrito, o salário convencionado no início entre as partes foi o de Esc. 54.547$00, aumentando o seu valor ao longo do tempo da vida do contrato até ao montante de € 821,66, valor que vigorava em 31-12-2008.
Ora, não provou que fosse esse o valor inicialmente acordado, em divergência do acordo escrito.
De modo que, na falência daquele argumento, sustenta agora que depois do contrato escrito ocorreu uma “modificação objectiva do contrato de trabalho consubstanciada na redução da retribuição” e corporizada em declarações negociais escritas de ambas as partes emitidas nos recibos de pagamento, sendo que, assim não se entendendo, sempre teria havido uma declaração negocial tácita de redução da retribuição.
Não nos parece que assim seja.
Mas sem entrar em delongas nessa apreciação, o que é certo é que o princípio da irredutibilidade da retribuição sempre impediria aquela redução remuneratória por acordo das partes.
A ré defende que esse princípio pode ser afastado por acordo das partes.
Não é exacto.
O artigo 122.º al. d) do CT/2003 proíbe o empregador de diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos no mesmo Código ou em IRCT´s.
As excepções ali previstas (casos previstos no Código ou em IRCT) não se verificam no caso. Sendo certo que a diminuição por acordo não é uma delas.
Ao contrário, como refere Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, 4ª ed., pag. 609, o citado art. 122.º al. d) estabelece “não poder ser diminuído o vencimento do trabalhador, nem com o seu acordo”.
Mesmo no domínio da LCT (Dec. 49.408, de 24-11-1969), o seu artigo 21.º, n.º 1, al. c), apenas admitia a diminuição da retribuição por acordo desde que autorizada pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência. Excepção esta enquadrada pelas ideias corporativas da época.
Agora, um acordo desse tipo, um acordo que implicasse a renúncia do trabalhador a todo ou parte do salário, é excluído. Como bem se compreende, dada a indisponibilidade dos créditos salariais por parte do trabalhador durante a vigência do contrato, que tem vindo a ser defendida pela doutrina e pela jurisprudência e justificada, quer pela natureza da retribuição, entendida como crédito alimentar, indispensável ao sustento do trabalhador e da sua família, quer pela situação de subordinação económica e jurídica em que o trabalhador se encontra face ao empregador, que o pode inibir de tomar decisões verdadeiramente livres, em resultado do temor reverencial em que se encontra face aos seus superiores ou do medo de represálias ou de algum modo poder vir a ser prejudicado na sua situação profissional (veja-se, entre outros, João Leal Amado, A Protecção do Salário, pag. 196-222; Pedro Romano Martinez, ob. cit., pag. 612).
Concluindo-se, assim, que um acordo de diminuição de retribuição, como o que é defendido pela ré, não seria válido, não há como sustentar que ao autor não são devidos os créditos decorrentes das diferenças entre o que lhe foi efectivamente pago a título de retribuição e o valor apurado com base na retribuição acordada no início do contrato de trabalho.
A apelação improcede, pois, nesta parte.


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III- DECISÃO

Termos em que se delibera julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente:

- revogar a sentença da 1ª instância, na parte em que declarou ilícito o despedimento do autor e em que condenou a ré a pagar ao autor as quantias de € 5.339,24, a título de indemnização pelo despedimento, de € 13.617, 24, a título de compensação referente às retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento, bem como a quantia referente às retribuições que, desde a data da sentença, se vencessem até ao trânsito em julgado da decisão final que considerasse o despedimento ilícito, absolvendo a ré dos respectivos pedidos.

- manter a sentença no que toca à condenação da ré a pagar ao autor as quantias de € 33.730,44, a título de salários em débito (de Dezembro de 1999 até 21-01-2009), € 6.129,68, a título de subsídios de férias em dívida e de € 5.109,86, a título de subsídios de Natal em dívida, acrescidas de juros de mora nos termos assinalados na mesma sentença.

Custas na acção e no recurso pelas partes, na proporção do respectivo decaimento.


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Luís Azevedo Mendes (Relator)
Felizardo Paiva
José Eusébio Almeida