Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
702/08.3TBOVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: CONVENÇÃO DE CHEQUE
OBRIGAÇÕES
CHEQUE ADULTERADO
RESPONSABILIDADE
BANCO
PAGAMENTO
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GR. INST. CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 35º L.U. DO CHEQUE; 73º DO D. L. Nº 298/92, DE 31/12; E 799º DO C. CIVIL
Sumário: I – A convenção de cheque adstringe as partes – necessariamente o banqueiro e o seu cliente – a uma pluralidade de deveres, alguns ainda que puramente acessórios.

II – A par do dever principal que para o banco decorre de pagar o cheque que seja sacado sobre a conta e à custa de fundos que nela se encontrem disponíveis, é possível recortar diversos deveres acessórios, entre os quais se contam o dever de fiscalização (controlar a autenticidade e regularidade do cheque – artº 35º da LUC) e o dever de competência técnica.

III – Tal convenção ou contrato de cheque também cria deveres para o cliente, entre os quais avultam os deveres de adequada guarda e conservação dos módulos de cheques e o cuidado no preenchimento e na entrega do cheque aos tomadores ou beneficiários…, diligência esta aferida pelo critério do chamado “bónus pater famílias”.

IV - O dano decorrente do pagamento de cheque adulterado deve ser imputado em função da culpa que possa ser assacada ao banqueiro ou ao sacador, assente na violação dos deveres contratuais que para um e para outro emergem da convenção de cheque que reciprocamente os vincula.

V – Demonstrando-se a contribuição de ambos para a produção do facto danoso, a responsabilidade deverá ser repartida proporcionalmente às respectivas culpas (artº 570º CC).

VI – Por força da presunção de culpa que vulnera o banco, a este cabe a prova de que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (artº 799º, nº 1 do CC).

VII – Nestas condições, para se exonerar da sua responsabilidade, o banqueiro deve fazer a prova de que a falsificação do cheque é imputável a uma culpa do cliente ou que cumpriu deveres de diligência e cuidado cuja observância lhe era exigível.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            I- RELATÓRIO

            I.1- «A..., Ldª» e «B..., Ldª», intentaram em 18.4.08, acção declarativa de condenação contra, «Banco C... , «Banco D..., «Banco E..., «BancoF... e «Banco G..., pedindo que se condene:

1. o R. C (...) solidariamente com os outros RR. a pagar:

a) à lesada « A (...)» a quantia global de 2.161.390,88 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da petição inicial até integral pagamento;

b) à lesada « B (...)», a quantia global de 268.720,40 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da petição inicial até integral pagamento;

2. o R. D (...) solidariamente com os outros RR., na proporção das suas responsabilidades, a pagar à A (...) a quantia de 540.780,00 € correspondente 25,2% do valor global de 2.161.390,88 € acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de entrada da petição inicial até efectivo pagamento;

3. o R. Banco E (...) solidariamente com os outros RR. a pagar à :

a) « A (...)» a quantia de 1.084.585,95 €, correspondente a 50,18% do valor global 2.161.390,88 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de entrada da petição inicial em Tribunal até integral pagamento;

b) « B (...)» a quantia de 81.561,98 €, correspondente a 31,39 % do valor supra global 268.720,43 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de entrada da petição inicial em Tribunal até integral pagamento;

4. o R. Banco F (...) solidariamente com os outros RR. a pagar à:

a) « A (...)» a quantia de 490.635,72 €, correspondente a 22,70 % do valor global 2.161.390,88 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de entrada da petição inicial em Tribunal até integral pagamento;

            b) « B (...)» a quantia de 178.271.80 €, correspondente a 68,61% do valor global 268.720,43 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de entrada da petição inicial até integral pagamento;

5. o R. Banco G (...) solidariamente com os outros RR., na proporção das suas responsabilidades, a pagar à « A (...)» a quantia de 45.389,20 €, correspondente a 2,10% do valor global 2.161.390,88 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de entrada da petição inicial até integral pagamento.

Para tanto e em síntese, alegam que:

Com vista ao cumprimento das suas obrigações fiscais e parafiscais, celebraram, primeiro, com H..., a título individual, e posteriormente com a sociedade «I.... , Ldª», pertencente àquele,um acordo mediante o qual H (...) prestava-lhes os seus serviços na área da contabilidade e no cumprimento das suas obrigações fiscais, tendo, designadamente, acordado que seria aquele que procederia às declarações necessárias junto da administração fiscal e da segurança social com vista ao cumprimento de todas as obrigações fiscais e parafiscais por parte das autoras e que procederia ao pagamento das quantias devidas pelas autoras a título fiscal e parafiscal junto das entidades competentes.

Durante, pelo menos, os anos de 1996 a Janeiro de 2004, as autoras emitiam os cheques com as importâncias a pagar à Administração Fiscal, a título de IVA/IRS e IRC, preenchidos de acordo com as indicações dadas pelo H (...), a favor dos CTT, por ali se poder proceder ao pagamento dos impostos.

Porém, quase todos os meses, desde pelo menos Abril de 1996, no que respeita à autora « A (...)» e, a partir de 2002, no que respeita à autora « B (...)», após ter recebido os cheques da respectiva sócia-gerente, o H (...), em vez de efectuar os pagamentos aludidos, alterava a identificação do beneficiário do cheque, rasurando a sigla CTT e ali inscrevendo outros nomes.

Posteriormente, o H (...) forjava as assinaturas dessas pessoas, endossando os cheques a si próprio e depositava-os em contas que lhe pertencem ou em contas conjuntas com a sua então esposa, fazendo suas essas quantias de dinheiro que sabia não lhe pertencerem.

As pessoas que aquele fazia constar no local destinado ao beneficiário do cheque não existem tendo sido por ele inventadas para este efeito. Depois de ter os cheques na sua posse, o H (...) elaborava declarações que não correspondiam à realidade, em que o valor correspondia em média a 10% dos impostos devidos e do valor que tinha indicado às autoras, após o que entregava estas declarações e efectuava o pagamento das mesmas, por cheque seu ou por multibanco com desconto em contas bancárias suas ou que ele controlava.

Até Janeiro de 2004, aquando da denúncia efectuada pelas autoras junto do Ministério Público/PSP de Ovar, nunca esta situação tinha sido detectada, nem pelas autoras nem pela administração fiscal.

A alteração do beneficiário do cheque era manifesta e perceptível, designadamente para um funcionário bancário. O C (...) não verificou os endossos nem efectuou qualquer diligência junto dos demais bancos co-réus, junto das autoras, nem junto do H (...) sobre esta situação e dos demais bancos réus não verificaram os cheques quanto ao beneficiário, endosso e titular, nem contactaram as autoras para aferir se tais cheques eram para pagar, tendo todos agido sem observarem os deveres de diligência e zelo que sobre si impendiam, pelos que são responsáveis pela indemnização dos danos que lhes advieram da descrita actuação.

I.2- Os RR. contestaram, alegando, em resumo:

[…]

            I.3- Foi proferido despacho de saneamento, relegando-se a apreciação das excepções de prescrição para a sentença final, e de condensação do processo com selecção da matéria assente e da base instrutória, o qual sofreu reclamações, tendo, após decisão das mesmas, sido nele introduzidas as alterações ordenadas.

I.4- Realizado o julgamento em 9 sessões, com gravação da prova, e respondida a matéria da base instrutória sem reparos das pares, proferiu-se sentença datada de 15.3.2011, com o seguinte dispositivo:

“A) – Julgar procedente, por provada, a excepção de prescrição invocada pelo réu «Banco C (...), S.A.» e, consequentemente, absolvê-lo do pedido contra si formulado.

B) – Julgar a acção improcedente, por não provada, relativamente aos réus «Banco D (...), S. A.», «Banco E..., S.A.», « Banco F (...) , S.A.», e « Banco G (...) , S.A.», absolvendo-os dos pedidos”.

I.5- Inconformadas, apelaram as autoras.

[…]

I.6- Os RR. apresentaram contra-alegações em curtos textos mas suficientemente entendíveis, pronunciando-se no sentido da manutenção do julgado.

I.7- Nada havendo a obstar ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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II - FUNDAMENTOS

II.1 - de facto

Vêm dados como provados os seguintes factos:

[…]

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            II.2 - de direito

            Achando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da peça alegatória, percorrendo as supra transcritas conclusões, resulta serem estas as questões colocadas a este tribunal:

1- Impugnação da matéria de facto (alteração das respostas aos pontos 17º, 42 a 44ºº, 58º, 107º, 115º e 116º da base instrutória);

2-  Erro na subsunção jurídica dos factos e que determinaram a improcedência da acção.

II.2.1 - Passamos desde já a apreciar o pedido de modificação das respostas aos quesitos assinalados por supostamente ter havido erro de julgamento.  

[…]

II.2.2- Estabilizada a matéria factual avancemos, então, para o enquadramento jurídico dado na sentença do qual divergem também as recorrentes.  

2.2.1- Começando pela excepção da prescrição.

Mantendo-se inalterada a decisão fáctica relativamente aos pontos 114 e 116 que incidiam sobre a matéria da arguida excepção (item II.1-59), não vemos motivo para discordarmos do entendimento seguido na sentença, de julgar prescrito o direito de indemnização que as AA. vêm exercer contra o R. « C (...)».

Na verdade, estando-se no domínio da responsabilidade extra-contratual, rege para efeitos da obrigação de indemnizar o disposto no art.498º/1, C.C., segundo o qual o direito de indemnização prescreve no prazo de três a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.

Logo, tendo tido as AA. conhecimento em Janeiro de 2004 da intervenção de instituições bancárias como depositárias e cobradoras do cheques ajuizados, e ainda que desconhecessem em concreto que instituições eram essas, o prazo começou a correr nessa altura, pois foi então que tiveram conhecimentoda existência do direito de indemnização. E assim, à data da entrada da acção (Abril de 2008), já havido decorrido o prazo de três inscrito nesse art.498º, não se podendo falar em prazo mais alargado uma vez que os factos imputados ao « C (...)» são independentes dos ilícitos penais praticados pelo T.O.C., H (...), pelos quais foi julgado e condenado.

            Objectam as recorrentes que em 1.8.05 deduziram pedido de indemnização contra o « C (...)» no processo-crime e no prazo previsto no art.71º/C.P.P., e embora tal pedido não tenha sido admitido no âmbito desse processo, o prazo de prescrição foi interrompido nos termos do art.323º do C.C..

Não é de admitir, que esse pedido de indemnização cível deduzido em processo penal, que veio a ser indeferido por ser legalmente inadmissível nesse processo, tenha aptidão interruptiva. É que tal pedido não vem fundado na prática de um crime nem em outro acto com ele conexionado. A pendência de processo-crime interrompe o prazo de prescrição do direito de indemnização quando o pedido se funde em acto danoso que constitua crime. Tal não é o caso, uma vez que, como se disse, ao « C (...)» não foram imputados pelas AA. actos passíveis de constituir ilícito criminal.

Deste modo, não podendo o R. « C (...)» ser demandado no processo penal, o pedido cível contra ele deduzido e não admitido, não tem eficácia interruptiva nos termos estabelecidos no art.323º citado, contrariamente ao pretendido pelas recorrentes.

Daí que tenha sido correcta a decisão que, na procedência da excepção, considerou prescrito o direito a indemnização que, contra esse R., pretendem as AA. fazer valer nesta acção.  

Improcede, portanto, e nesta parte, o recurso.

2.2.2 – da questão de fundo

As AA. insistem na responsabilização dos bancos recorridos por actuação culposa no pagamento dos aludidos cheques, pretensão que, conforme dito, foi recusada.

Os cheques - cruzados e por endosso em branco - foram foram recebidos pelo « C (...)» que os depositou na conta de H (...), cobrando aos outros bancos demandados as quantias neles apostas, através de compensação, por conta do cliente (as AA.).

Na perspectiva das recorrentes, as recorridas omitiram os deveres de diligência impostos pela actividade bancária de verificar cuidadosamente a regularidade dos elementos dos cheques que lhes foram apresentados, pois que, se tivessem usado das cautelas que lhes são próprias, teriam constatado que o nome do destinatário estava alterado, alteração essa que era manifesta e perceptível.

Contudo, os factos apurados retiram-lhe razão.

            O pedido de indemnização vem assente na responsabilidade civil contratual e extra-contratual. A A. « A (...)» tinha contas bancárias domiciliadas nos RR. « D (...)», « Banco F (...)», « Banco E (...)» e « Banco G (...)», e a A. « B (...)», nos RR., « Banco E (...)» e « Banco F (...)».

            Estamos perante contratos de depósito bancário, de que resulta para os depositários (os bancos recorridos), a obrigação de restituição aos depositantes (as AA. clientes ora recorrentes), os montantes depositados, de acordo com as condições convencionadas.

            Subjacente a esse contrato de depósito que por sua vez está associado a uma abertura de conta, está o contrato ou convenção de cheque, como forma de mobilização dos fundos depositados.  E na base da emissão de um cheque sobre uma conta à ordem, estão duas relações jurídicas: a relação de provisão que pode consistir num depósito bancário, e a convenção de cheque, pela qual o banco acede a que o cliente mobilize fundos à sua disposição por meio de emissão de cheques. É só pela celebração de tal contrato ou convenção de cheque que o banco fica obrigado a pagar aos eventuais beneficiários os cheques que por aquele venha a ser emitidos, até ao limite da provisão.[1]

            A convenção de cheque adstringe as partes – necessariamente o banqueiro e o seu cliente – a uma pluralidade de deveres, alguns ainda que puramente acessórios.

            Assim, a par do dever principal que para o banco decorre de pagar o cheque que seja sacado sobre a conta e à custa de fundos que nela se encontrem disponíveis, é possível recortar diversos deveres acessórios, entre os quais se contam o dever de fiscalização e o dever de competência técnica.[2]

            O dever de fiscalização ou de verificação significa controlar a autenticidade e regularidade do cheque, mediante exame do impresso e todos os requisitos do cheque – saque, confirmação da assinatura do cliente por semelhança com aquela que o cliente lhe confiou, e a averificação da regular sucessão de endossos (não sendo obrigado a verificar a assinatura dos endossantes – art.35º da L.U.C..

            O dever accessório de competência técnica – transversal a toda a actividade bancári – projecta-se nos cuidados e cautelas que o banquesiro deve observar no pagamento do cheque e no processo da respectiva compensação.

            O banqueiro deve, pois, actuar com diligência e profissionalismo nos diversos aspectos atinentes ao manuseio dos cheques: deve verificar com cuidado, por exemplo, a assinatura do cliente, e deve, na dúvida, ser cauteloso, recusando o pagamento dos cheques menos claros ou relativamente aos quais exista um qualquer motivo de suspeita.[3]

            Mas é claro que da convenção ou do contrato de cheque também emergem deveres para o cliente, entre os quais avultam os deveres de adequada guarda e conservação dos módulos de cheques e o cuidado no preenchimento e na entrega do cheque aos tomadores ou beneficiários, de modo a obstar ou, ao menos, a não facilitar a adulteração por terceiro dos elementos inscritos no cheque ou descaminhos que comprometam a sua normal utilização. Está ainda vinculado a um outro dever: o de verificar os extractos bancários para aferir a sua regularidade e, em especial, os débitos dos cheques emitidos, pelo seu valor.[4]

            A diligência exigível ao cliente no cumprimento destes deveres é aferida pelo critério geral: o do bonus pater familias.

            Descendo ao caso em análise, está provado que os cheques em causa foram entregues nos balcões do banco « C (...)» onde o T.O.C., H (...), os depositou, sendo depois cobrados dos outros bancos as quantias a eles relativas. Durante pelo menos oito anos, o H (...) recebia das AA., através da sócia-gerente, as declarações de IVA/IRS/IRC que preenchia, recebendo depois os cheques para proceder ao respectivo pagamento, cheques emitidos pelas AA. com a importância por ele indicada, constando no lugar do destinatário as letras “CTT”. Em vez de efectuar os pagamentos, o referido T.O.C. alterava a identificação do beneficiário, aproveitando as letras “CTT” que transformava em letras diversas, também em maiúsculas, para formar os nomes de pessoas inexistentes, tais como “Carlos Costa”, “Cátia Costa”, “Carlos Correia”, “Cátia Sousa”, letras normalmente mais marcadas, sendo que, em alguns cheques, era perceptível que algumas das letras que compunham o nome do beneficiário o tinham traço mais carregado que as restantes. Depois, endossava os cheques a si próprio depositando-os em contas bancárias, forjando as assinaturas correspondentes aos nomes apostos no local do beneficiário - item II.1-10 a 16.

            Dúvidas não restam, pois, que o R. « C (...)» recebeu para cobrança, e os demais bancos RR. procederam ao pagamento, cheques cruzados por endosso falsos, falsificação leva a cabo pelo referido H (...) por emenda no nome do beneficiário originariamente escrito.  

            Importa então averiguar se os RR. através dos seus funcionários, procederam de acordo com aquele dever acessório de verificação antes do recebimento e pagamento dos cheques. Ou, dito de outro modo, se agiram com culpa, violando as obrigações constantes do contrato ou convenção de cheque, exclusiva ou repartida com as AA./sacadoras, que os torne responsáveis pelos prejuízos para elas advintos.

            Previamente impõe-se saber a quem deve ser imputado o dano resultante do pagamento pelo banco sacado de um cheque falso, designadamente no seu conteúdo, por não serem verdadeiros, em consequência de actos materiais, os factos nele representados. Isto é, se esse prejuízo deve ser assacado ao banco ou ao sacador, ou antes repatido por um e por outro.

            Transcrevemos aqui as considerações tecidas a propósito da responsabilidade do banqueiro pelos danos decorrentes da cheques falsificados, na apelação nº46/10, de 11.10.2011 (disponível em www.dgsi.pt), em que foram adjuntos a aqui relatora e o aqui primeiro adjunto.

“Uma primeira proposta de solução, propõe-se resolver o problema a partir da natureza jurídica do depósito bancário na qual o valor inscrito no cheque foi descontado: assentando na natureza irregular desse depósito, conclui, por aplicação do princípio res suo domino perit, que a responsabilidade pelas vicissitudes que o dinheiro depositado sofra correm por conta do depositário, sendo irrelevante a culpa deste. Ergo, o banco é responsável pelo pagamento do cheque falsificado, com inteira independência da culpa, tanto do sacador como do sacado[5].

            Para uma segunda, a responsabilidade pelo pagamento do cheque falsificado deve determinar-se por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil: o banqueiro só é responsável pelo pagamento do cheque no caso de culpa sua, mesmo que o cliente a não tenha[6].

            Diferentemente, uma terceira, assentando no carácter irregular do depósito bancário, na natureza contratual da responsabilidade do banqueiro – e na correspondente presunção de culpa que o vulnera - sugere que o banco e, em princípio, responsável pelo pagamento do cheque falsificado, a não ser que prove a culpa do sacador (art.799º/1 do C.C.) [7].

            Finalmente, outra doutrina, partindo da nulidade do cumprimento do cheque falsificado, por ter sido feito a credor aparente, remete para o sacador a prova de que o incumprimento ou cumprimento defeituoso não lhe é imputável; caso não a faça, o banco terá direito ao ressarcimento pelo dano da prestação realizada a terceiro (art.799º/1) [8].

            Já a jurisprudência orienta-se nítida e maioritariamente, para a determinação da imputação do dano decorrente do pagamento cheque falsificado, pelos princípios da responsabilidade ex-contractu, assacando-a ora ao banco ora ao cliente, de harmonia com a sua culpa[9]. E é esta resposta que se tem por exacta.

            O dano decorrente do pagamento do cheque adulterado deve ser imputada em função da culpa que possa ser assacado ao banqueiro ou ao sacador, assente na violação dos deveres contratuais que para um e para outro emergem da convenção de cheque que reciprocamente os vincula. Demonstrando-se a contribuição de ambos para produção do facto danoso, a responsabilidade deverá ser repartida proporcionalmente às respectivas culpas (art.570º/C.C.) [10].

            Por força da presunção de culpa que vulnera o banco, a este cabe, por aplicação dos princípios gerais, a prova de que cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (art.799º/1). Nestas condições, para se exonerar da sua responsabilidade, o banqueiro deve fazer a prova de que a falsificação do cheque é imputável a uma culpa do cliente ou que, no caso, cumpriu deveres de diligência e cuidado cuja observância lhe era exigível e, correspondentemente, que a sua conduta não concita um juízo de censurabilidade.

            As dificuldades sobem, porém, de tom no caso de não se provar a culpa nem do sacador nem do banco. Nesta conjuntura, alguma jurisprudência sustenta a divisão proporcional do risco entre o sacador e o sacado, com a correspondente repartição da responsabilidade pelo dano[11].

            A doutrina sugere, porém, a resolução do problema a partir da responsabilidade objectiva do banqueiro[12], sugestão a que a jurisprudência se tem mostrado sensível sublinhando, que a jurisprudência (do STJ) tem hesitado, parecendo tender para a responsabilidade objectiva dos bancos (caso se não prove a culpa do titular da conta)[13].”

            A regra será, pois, a de que, em princípio, devem ser os bancos depositários a arcar com os prejuízos decorrentes do pagamento de cheques falsificados, podendo, porém, aqueles subatrir-se a tal responsabilidade se conseguirem provar que agiram sem culpa e que foi a conduta negligente do depositante que contribuiu decisivamente para o irregular pagamento verificado.[14]

A sentença recorrida não se afastou deste entendimento, salvo quanto ao R. « C (...)» cuja conduta imputada pelas AA. enquadrou no domínio da responsabilidade extra-contratual, aferindo a culpa pelo critério estabelecido no art.483º/C.C. .

No entanto, prescrito quanto a esse R. o direito de indemnização das lesadas, centremo-nos na responsabilidade dos bancos recorridos sacados, a quem incumbia, nos termos do art.799º/C.C., “provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”.

Ora, da factualidade dada como provada, claramente resulta que os recorridos lograram demonstrar que não só agiram sem culpa, mas também que o evento danoso se deu por causa imputável ás recorrentes/clientes.

Na verdade, não oferece dúvida a vinculação recíproca das recorrentes e dos recorridos, designadamente pela convenção de cheque e a emissão, por aquelas, nos anos de 1996 a Janeiro de 2004, de cheques sacados sobre contas bancárias à ordem detidas pelos últimos, que sofreram, nas menções relativas ao destinatário, uma adulteração ou viciação material: onde constava “CTT”, fez-se constar nomes que não existem.

De facto, os cheques eram emitidos pelas AA. a favor dos CTT e entregues ao T.O.C., H..., com as importâncias por ele indicadas, após o que aquele emendava o original nome do destinatário aproveitando a sigla CTT, sendo perceptível que algumas letras que compunham o nome alterado tinham o traço mais carregado.

Não ficou provado que essa alteração do beneficiário do cheque era manifesta e perceptível, designadamente para um funcionário bancário.

A circunstância de algumas letras referentes ao beneficiário se apresentarem mais marcadas do que as que aquelas que compunham as restantes menções dos cheques, ou de estarem em maiúsculas, não era motivo para criar no espírito das dezenas de funcionários que os visualizaram a ideia de que ali constava um beneficiário diferente do que agora consta.

Pode pois dizer-se que a falsificação era perfeita, e por isso não era possível aos funcionários bancários detectá-la ao ponto de levantar suspeitas. Caso contrário, se adulteração material dos cheques fosse notória, decerto que levantaria suspeitas fundadas, o que impunha aos funcionários dos recorridos, para as dissipar, a obrigação de contactar as AA./clientes antes de procederem ao pagamento, ou então simplesmentenão não os aceitar.

Por conseguinte, não sendo manifesta nem perceptível a alteração dos cheques, se não era evidente a modificação verificada, então nada de anormal fazia suspeitar em ordem a não pagar os cheques, como insistem as recorrentes. Aos bancos não podia ser exigido mais cuidados perante cheques que lhes pareciam verdadeiros, cujo preenchimento estava correcto, não suscitando suspeitas as assinaturas neles constantes. De contrário, confrontada diariamente a actividade bancária com centenas de cheques, um exame mais aprofundado levaria decerto à sua paralização.

Nem se diga agora que a inexistência de um sistema de compensação que com eficiência controlasse as emendas no beneficiário desencadeou a responsabilização das recorridas. Querem as recorrentes dizer que se os bancos sacados estivessem apetrechados com os meios legais que lhes permitiam cumprir os deveres legais, teriam detectado as falsificações. Trata-se de argumentação nova mas sem justificação alguma. É que, se na verdade pelo art.73º do DL 298/92, de 31.12, as instituições de crédito devem assegurar aos clientes elevados níveis de competência técnica, tal não significa que tenham de dispor de meios altamente eficazes para detectar falsificações mesmos as mais perfeitas. O que releva é que o banco sacado verifique cuidadosamente a regularidade do cheque mediante o exame do impresso e todos os requisitos do mesmo, com especial ênfase para a regular sucessão de endossos (não sendo obrigado a verificar a assinatura dos endossantes), e para a conferência da assinatura do sacador. Estes são os deveres essenciais a observar. Se o funcionário do banco se convenceu que o cheque, pela sua aparência exterior, dá impressão de ser verdadeiro, está cumprido o dever de fiscalização.

Acresce que, conforme salientado por uma testemunha, na época dos factos, falsificações como as que foram detectadas eram raras, sendo comum, sim, a falsificação de assinaturas, muitas delas grosseiras. Na situação em análise, o que houve foram alterações na identificação do beneficiário, por sobreposição na sigla CTT de letras, umas vezes mais carregadas, formando nomes de pessoas individuais.

As recorrentes pretendem agora responsabilizar os recorridos pela má qualidade das cópias dos cheques, dizendo que o ónus da prova pertence-lhes e daí que lhes cabia provar que os cheques estavam em perfeitas condições.

Francamente temos alguma dificuldade em compreender esta nova argumentação. De todo o modo sempre se dirá que analisando as dezenas de cópias juntas aos autos, pode concluir-se que, salvo uma ou outra, todas elas têm qualidade legível. Tanto assim que as AA. sempre foram peremptórias em afirmar que a falsificação era manifesta e perceptível, e nessa asserção assentam o invocado incumprimento culposo dos bancos.

Conforme atrás foi salientado, não só sobre o sacado/depositário são impostos deveres de diligência. Também sobre o cliente/sacador/depositante impendem tais deveres.

Ora, atenta a matéria factual fixada, há que concluir que as recorrentes não cumpriram esses deveres dando assim azo à falsificação dos cheques e causa exclusiva e adequada ao seu pagamento.

Com efeito, resulta do que se encontra provado que durante cerca de 8 anos, as AA. entregravam cheques que preenchiam ao H (...), fazendo menção no lugar destinado ao destinatário da singela sigla, “CTT”, ao invés de escreverem por extenso “CTT-Correios de Portugal” e um traço a seguir, e/ou “CTT – pagamento de impostos”, o que dificilmente obstaria à alteração do beneficiário original. A simples referência áquelas três siglas sem um traço à frente, facilitou, sem dúvida, a emenda do destinatário.

Por outro lado, é estranho que ao longo de tanto tempo, as AA. não se tenham apercebido que os valores dos cheques não coincidiam com os valores efectivamente pagos, o que revela total descontrolo de escrituração. Aliás, tal como vem provado, nunca promoveram uma auditoria externa aos documentos da sua contabilidade e não fiscalizavam a actuação do H (...).

Ascresce que, recebendo certamente as AA. os extractos bancários, nunca notaram qualquer anomalia na cobrança dos cheques nomeadamente ao nível do beneficiário. Pelos vistos não conferiam os extractos, pelo que não fiscalizavam os movimentos de conta, nem controlavam as saídas de numerário.

Enfim, toda esta conduta omissiva e até permissiva, tal era a confiança que tinham no referido H (...), determinou decisivamente para a falsificação dos cheques.

O apurado comportamento das AA./recorrentes desconforme com os deveres de cuidado a que estavam adstritas, é passível de um juízo de censurabilidade.

Neste quadro, a responsabilidade pelo dano a elas é de imputar.

Conclui-se, pois, que os bancos recorridos lograram afastar a presunção legal de culpa que sobre eles recaía (art.799º/1, C.C.), e demonstraram que os danos ocorreram por actuação culposa das AA..

Foi esta a solução adoptada na muito bem fundamentada sentença recorrida, alicerçada em valiosos elementos doutrinais e jurisprudenciais, com correcta e criteriosa aplicação das pertinentes normais legais à matéria fixada, e cuja confirmação necessariamente se impõe.

Dito isto, há que concluir pela improcedência das conclusões das recorrentes, soçobrando, assim, o recurso.

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III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se na íntegra a sentença apelada.

Custas pelas AA./apelantes.

Dada a complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a taxa de justiça devida será fixada nos termos da tabela I-C que integra o R.C.J., de acordo com o respectivo art.6º/5.

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Regina Rosa (Relatora)

Artur Dias

Jaime Carlos Ferreira


[1]   Cfr. Paula Ponces Camanho, «Do Contrato de Depósito Bancário», pág.231 e 232
[2]   Cfr. Paulo Olavo Cunha, «Cheque e Convenção de Cheque», pá.461-462
[3]   Cfr. Ac. STJ de 10.11.94, CJstj I/94-130, e Sofia Galvão, «O Contrato de Cheque», pág.66
[4]   Cfr. Paulo Olavo Cunha, ob. cit., pág.463
[5]  Ac. do STJ de 21.05.96, BMJ nº 457, pág. 343.
[6]  Fuzeta da Ponte, «Da problemática da responsabilidade civil dos bancos decorrente do pagamento de cheques com assinaturas falsificadas, Revista da Banca», separata, 1994, pág. 81, Fernando J. Correia Gomes, «A Responsabilidade civil dos bancos pelo pagamento de cheques falsificados», Vislis, Lisboa, 2004, pág. 40 e Ac. do STJ de 03.10.95, BMJ nº 485, pág. 117.
[7]  L. P. Moitinho de Almeida, «Responsabilidade Civil dos Bancos pelo Pagamento de Cheques Falsificados», Coimbra, 1982, pág. 76.
[8] José Maria Pires, «O Cheque», Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pág. 111.
[9] Acs. do STJ de 16.05.69, BMJ nº 187, pág. 156, de 18.03.75, BMJ nº 245, pág. 505, de 22.05.80, BMJ nº 297, pág. 368, de 16.06.81, BMJ nº 308, pág. 255, de 10.11.93, CJ, STJ, I, III, pág. 130 e de 06.09.11, www.dgsi.pt e da RC de 26.04.89, CJ, XIV, II, pág. 72.
[10] Ac. do STJ de 17.10.02, www.dgsi.pt.
[11] Ac. da RE de 13.12.90, CJ, XV, V, pág. 265.
[12] Paulo Olavo Cunha, «Cheque e Convenção de Cheque», cit., págs 667 e 668, Manuel Gonçalves, «Responsabilidade civil dos bancos pelo pagamento de cheques falsos ou falsificados», RMP, Ano 10º, nº 39, Lisboa, 1989, pág. 71 e Oliveira Ascensão,  «Direito Comercial», vol. III, Títulos de Crédito, cit. pág. 256.
[13] Ac. do STJ de 03.03.98, BMJ nº 475, pág. 714.
[14] Cfr. Ac.STJ de 3.10.95, BMJ450 (416-423), Ac.STJ de 2.3.99 (Cjstj I/133-135) e Ac.STJ de 9.11.2000 (CJstj III/108-113)