Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/18.2GAPNL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: ARGUIDO;
OBRIGATORIEDADE DE ASSISTÊNCIA DE DEFENSOR;
DESCONHECIMENTO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Data do Acordão: 11/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CONDEIXA-A-NOVA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 64.º, N.º 1, AL. D), DO CPP
Sumário:
O artigo 64º, n.º 1, alínea d), do CPP, com excepção da constituição do arguido nesta qualidade, impõe que o mesmo seja assistido por defensor em qualquer acto processual apenas quando o mesmo desconheça a língua portuguesa e não também quando a não domine.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. A sentença proferida em 5 de Março de 2018 condenou o arguido A., como autor material de um crime de desobediência previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152º, nº3, do Código de Estrada e 348º, nº1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 5 €.

2. Inconformado recorre o arguido, formulando as conclusões que a seguir se sintetizam:

1. Antes do início da audiência, o ora recorrente invocou as nulidades processuais de falta de nomeação de intérprete e de defensor, por se tratar de um cidadão de nacionalidade inglesa que, apesar de residir em Portugal, desconhece a língua portuguesa.

2. O arguido tinha direito à nomeação de um intérprete, não podendo este ser substituído pelas traduções elaboradas pelos agentes policiais, nos termos do artigo 6º, nº 3, alínea e), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

3. A falta de nomeação de intérprete ao arguido é sancionada com a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, nulidade essa arguida e desconsiderada pelo tribunal recorrido.

4. Por outro lado, é obrigatória a assistência de defensor ao arguido em qualquer acto processual sempre que este seja desconhecedor da língua portuguesa, o que no caso não foi cumprido.

5. A ausência do defensor constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal, que afecta todos os actos posteriormente praticados, o que se requer.

6. Acresce que a sentença não realizou um adequado e imprescindível exame crítico da prova, existindo erro na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

7. Nunca poderá o tribunal dar como provado que o arguido apresentou uma TAS de 2,18 g/l, uma vez que a prova realizada em audiência de discussão e julgamento, apenas ficou provado que o arguido foi submetido a despistagem de álcool no sangue, através do analisador qualitativo e não quantitativo.

8. O arguido negou que se tenha recusado a soprar e ainda que tivesse entendido as consequências de não efectuar o sopro por não dominar a língua portuguesa.

9. A explicação que possa ser feita por um agente da autoridade cujo nível de inglês não ficou provado, dos documentos assinados pelo arguido não é legalmente admissível nos termos do artigo 92º, nº 7, do CPP.

10. Daí que o arguido não tenha compreendido a extensão, conteúdo e consequência da ordem supostamente transmitida, não se podendo considerar provado que ele se tenha recusado a soprar ou sequer que tenha soprada de forma insuficiente.

11. O depoimento da testemunha da acusação não poderá ser valorado atendendo às contradições presentes no mesmo e por referência aos factos por ele participados no auto de notícia.

12. Estamos assim perante uma dúvida insanável e intransponível quanto a essa matéria, tendo a sentença recorrida violado o principio in dubio pro reo.

3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu à motivação do Recorrente, concluindo pela improcedência do recurso.

4. O Digno Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.

II – A decisão recorrida

O tribunal recorrido julgou provados os seguintes factos:

No dia 16 de Fevereiro de 2018, cerca das 19,40Mn, o arguido conduzia o veículo com a matrícula … no IC em …, área do concelho de Penela e deste juízo de competência genérica de Condeixa-a-Nova.

O arguido foi fiscalizado por uma patrulha da GNR de Penela e submetido ao teste de despistagem do estado de influência pelo álcool e apresentou uma taxa de álcool no sangue de 2,28 g/l pelo que foi conduzido ao posto da GNR a fim de ser feito o teste no aparelho Drager.

Após algumas tentativas em que o sopro foi insuficiente e de o arguido ter sido informado da forma correcta de o efectuar recusou-se a efectuá-lo mesmo depois de ter sido advertido que incorria na prática do crime de desobediência se mantivesse a recusa.

Porém o arguido manteve a decisão de não efectuar o teste para determinação da taxa de alcoolemia quer através do ar expirado quer através de qualquer outro.

O arguido sabia que a ordem para se submeter à realização do teste para determinação da taxa de alcoolemia era legítima, emanada de autoridade competente e foi-lhe transmitido pessoalmente após tradução que assinou quatro folhas dos presentes autos pro agentes devidamente uniformizados.

Agiu livre deliberada e conscientemente com o propósito de desrespeitar a ordem dada em virtude da imposição legal bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.

O arguido é decorador-pintor de profissão, estando actualmente desempregado.

Vive com uma companheira a qual recebe um subsidio da Segurança Social a titulo de pensão de cerca de 600€ sendo este o rendimento com que o agregado familiar vive o qual é composto ainda pelo arguido, pela sua companheira, por duas filhas e ainda por dois netos.

Vivem em casa que outrora foi pertença do arguido e que entretanto foi vendida, os novos compradores autorizaram a sua cedência gratuita ao próprio arguido sem que para a qual preste qualquer tipo de compensação ou renda ficando apenas na obrigação de manter a casa e ainda prover ao pagamento das respectivas despesas domésticas, como água, luz, vestuário e alimentação.

Não tem outros bens ou rendimentos conhecidos, possui o bacharelato em arte por parte de uma universidade de Inglaterra e não tem antecedentes criminais.

III. DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade por omissão de nomeação de intérprete

Defende o recorrente que deveria ter sido nomeado intérprete ao arguido, no acto da fiscalização, sendo insuficientes os documentos traduzidos que lhe foram entregues pelos agentes da autoridade.

Vejamos:

A falta de nomeação de intérprete quando a lei a considerar obrigatória constitui nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, dependente de arguição nos termos do nº 3 do mesmo preceito, devendo ser arguida:

a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;

b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;

c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;

d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.

Daqui resulta que, mesmo que se entenda, como o recorrente, que a nomeação de intérprete era obrigatória, antes do momento em que lhe foi nomeado nos presentes autos, aquela teria de ser arguida, no próprio acto pelo arguido ou, quando muito, até ao início da audiência, já que estamos perante um processo, com forma sumária, processo especial, nos termos dos artigos 381º e seguintes do Código de Processo Penal.

Compulsada a acta de audiência de discussão e julgamento, constata-se que a audiência foi declarada aberta em 19 de Fevereiro de 2018 (fls. 25 verso), com nomeação de intérprete e defensor (fls. 25).

Nessa data – início da audiência – nem o arguido, nem a sua ilustre defensora, invocaram perante o Tribunal recorrido a nulidade decorrente da falta de nomeação de intérprete. Tal omissão até ao início da audiência tem como consequência a normalização dos efeitos originariamente precários da nulidade, a qual, no caso de ter ocorrido, ficou sanada, sendo, por isso, irrelevante a arguição da mesma apresentada no dia 2 de Março de 2018.

Esta interpretação não viola o artigo 6º, nº 3, alínea e), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Sem censura, pois, o despacho recorrido que indeferiu a nulidade por omissão de intérprete.

2. Falta de assistência de defensor

Defende o recorrente que a ausência de defensor em todos os actos processuais em que o arguido interveio, constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Não se questionando a regra da obrigatoriedade de assistência de defensor em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for desconhecedor da língua portuguesa, nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, importa decidir se, no caso, o arguido desconhecia a língua portuguesa.

Para o efeito, há que considerar os seguintes factos:

O arguido tem nacionalidade inglesa e reside na (…), desde, pelo menos, 22 de Julho de 2014, sendo titular do cartão de residência permanente emitido, ao abrigo da Lei nº 37/2006, de 09 de Agosto (fls. 11).

É decorador de profissão, estando actualmente desempregado.

Reside com uma companheira, a qual recebe um subsídio da Segurança Social, a título de pensão, no valor de 600€, duas filhas adultas e dois netos.

A casa onde residem pertenceu ao arguido, tendo-a entretanto vendido, ocupando-a, actualmente, mediante o dever de a conservar e prover ao pagamento das despesas de água e luz.

Daqui resulta, que, residindo o arguido, há pelo menos 4 anos em Portugal, país adquiriu a casa de habitação, onde mora, desde então, com a família, beneficiando a companheira de um subsídio da Segurança Social, pode concluir-se, à luz das regras da experiência comum, que já possui conhecimentos básicos de português.

E, tanto assim é, que, em 19 de Fevereiro, o recorrente, perante a Técnica de Justiça (…), não declarou que desconhecia a língua portuguesa, mas antes que não a dominava sendo, por isso, nomeado interprete (fls. 13).

Acresce que, o cartão de autorização de residência permanente foi emitido em Português, não contendo qualquer tradução para inglês, o que que pressupõe que o arguido – titular do mesmo – tenha compreendido na integra o seu teor, não obstante se encontrar em língua portuguesa.

O recorrente, muito embora não domine a língua portuguesa, certo é que não a desconhece.

Salvo o devido respeito e melhor opinião, o artigo 64º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal impõe a obrigação de assistência a defensor ao arguido apenas quando desconheça a língua portuguesa e não também quando a não domine.

Se assim não fosse, o legislador teria, também exigido a obrigação de assistência a defensor quando não dominasse o português, à semelhança, do que da previsão inserta no artigo 92º, do Código de Processo Penal, onde se lê:

«1 - Nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.

2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada».

Donde, no caso, não havia lugar à obrigação de nomeação de defensor nos actos de fiscalização da pesquisa de álcool no sangue quando o arguido conduzia o veículo.

Improcede, assim, este segmento do recurso.

3. Nulidade da sentença

(…).

4. Erro notório na apreciação da prova

(…).

5. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

(…).

IV. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, em negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCS.

Notifique.

Coimbra, 7 de Novembro de 2018

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Fernanda Ventura (adjunta)