Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/07.8TACNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: DEBATE INSTRUTÓRIO
ENCERRAMENTO
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
Data do Acordão: 05/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 302º, 2,308º CPP
Sumário: 1. O encerramento do debate instrutório não constitui limite temporal inultrapassável da junção de todo e qualquer documento (que constitua elemento de prova), ainda que superveniente.
2. O artigo 308.º, n.º 1, do CPP, deve ser interpretado no sentido de que, até à decisão final da instrução, é admissível a junção de meios de prova documental que o interessado não teve possibilidade de fazer uso durante o debate instrutório e que não eram do seu conhecimento.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
1. Nos Autos de Inquérito n.º 32/07.8TACNT (Serviços do Ministério Público de Cantanhede – Unidade de Apoio), o Ministério Público, em 30/4/2008, deduziu acusação, em processo comum e com a intervenção de tribunal singular, contra A..., imputando-lhe a prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do Código Penal.
2. O arguido, em 3/6/2008, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, al. a), do CPP, veio requerer a abertura de instrução, defendendo que o conteúdo da acusação carece de fundamento, devendo, por isso, serem os autos arquivados.
3. A instrução foi declarada aberta, por despacho de 13/6/2008. Encerrada a instrução, foi o arguido, em 20/2/2009, pronunciado, enquanto autor material de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do Código Penal, nos seguintes termos:
“(…)
V
Decisão
Para ser julgado em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular pronuncio:
A..., casado, engenheiro civil, residente na Rua …., Coimbra,
Pelos factos a seguir descritos:
O arguido, desde … que exerce funções na Câmara Municipal de Cantanhede e, desde …, as funções de Director…, funções essas que consistem em dirigir, planear, apreciar e emitir informações e pareceres sobre licenciamentos de obras particulares, para posteriormente serem submetidos a aprovação por parte da Câmara Municipal de Cantanhede.
Em 1971, a Câmara Municipal de Cantanhede aprovou um alvará de loteamento com o número 2/71, o qual se mantém válido, conforme informação de fls. 190, onde a área de construção resultava livre depois de aplicados os afastamentos laterais de 3,0 metros, afastamento posterior de 5,0m e afastamento frontal à berma de 10m, o que na realidade traduz um índice de ocupação da ordem dos 65%.
Em 10 de Maio de 2004, deu entrada na Câmara Municipal de Cantanhede um pedido de licenciamento em nome de M..., para construção de uma moradia num lote que confronta a sul com J..., tendo dado origem ao processo de obras n.º 1427/04.
Tal construção foi autorizada, em 30 de Junho de 2004, devidamente enquadrada no loteamento com o n.º 2/71, mas em divergência com o mesmo no que concerne aos afastamentos laterais.
Tendo o arguido justificado o desrespeito pelo alvará n.º 2/71 com as “inúmeras alterações que o mesmo sofreu”, cfr. Fls. 161.
Com tal justificação, o arguido violou os deveres de isenção e imparcialidade que estão subjacentes ao cargo que exerce em benefício de M..., permitiu que fosse autorizada a construção da referida habitação, com desrespeito pelas regras impostas pelo referido alvará, as quais estava obrigado a respeitar e que tinha contribuído para tal, apesar de ter sido alertado para tal facto pelo munícipe J…, justificou a sua decisão com base numa informação técnica do processo.
Agiu o arguido de forma livre e consciente bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punida pela lei penal.
Pelo exposto, incorreu o arguido na prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do Código penal.
Prova:
(…)
4. Na sequência do alegado despacho de pronúncia, o arguido, em 3/3/2009, veio, nos termos do artigo 669.º, n.º 1, al. a), do CPC, aplicável por força do artigo 4.º, do CPP, formular o seguinte pedido de esclarecimento:
Por que razão não valorou a decisão instrutória o acórdão do TAF de Coimbra que, apreciando a questão administrativa que subjaz à decisão de pronúncia do ora requerente, considerou válido e legal o acto que determinou a pronúncia do ora requerente, no pressuposto de que o mesmo era ilegal, nem sequer mencionando esse acórdão nas diligências realizadas em sede de instrução?
5. Em 1/4/2009, foi proferido, a fls. 378, como resposta ao dito requerimento, o seguinte despacho:
Esclarece-se que o documento não foi valorado porque não se encontrava junto aos autos.
De qualquer modo, ainda que o estivesse, como bem sublinha o Digno Magistrado do Ministério Público, o facto é que o debate instrutório teve lugar em 14 de Janeiro e o arguido não requereu a realização de qualquer diligência de prova complementar, ficando-lhe, assim, vedado o direito de, na fase de instrução, apresentar outras provas em momento posterior.
Notifique, sendo o arguido com cópia da informação de fls. 376 para integral esclarecimento.
6. Inconformado com o citado despacho e a decisão final da instrução, veio o arguido, em 19/5/2009, recorrer dos mesmos, apresentando as seguintes conclusões:
A) No caso objecto dos presentes autos, o requerente declarou, em sede de debate instrutório, que não tinha outras diligências a requerer, pois, nesse momento, não tinha conhecimento da decisão proferida pelo TAF de Coimbra sobre o caso concreto, objecto dos presentes autos, dado que, por causa do deferimento do pedido de licenciamento entrado em nome de M..., para construção de uma moradia num lote que confronta a sul com J... e que deu origem ao processo de obras n.º 1427/04, este J... apresentou simultaneamente uma queixa-crime no Ministério Público de Cantanhede e uma acção administrativa especial contra o Município de Cantanhede, a que foi dado o n.º 198/05.1BECBR, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
B) Essa acção foi decidida por acórdão de 13 de Janeiro de 2009, mas que só foi notificado ao mandatário do município de Cantanhede em 19 de Janeiro seguinte, ou seja, para além da data em que se realizou o debate instrutório.
C) O Mº. Juiz, usando da faculdade conferida pelo artigo 307.º, n.º 3, do CPP, adiou a leitura da decisão instrutória para mais tarde, ou seja, para o dia 28 de Janeiro e depois para o dia 22 de Fevereiro, mas, nesse intervalo, foi junta cópia do acórdão, embora com alguma dificuldade, originada pela recepção via internet no Tribunal de Cantanhede, que não é muito compreensível.
D) O M.º Juiz declarou expressamente que “ o documento não foi valorado porque não se encontrava junto aos autos. De qualquer modo, ainda que o estivesse, como bem sublinha o Digno Magistrado do Ministério Público, o facto é que o debate instrutório teve lugar em 14 de Janeiro e o arguido não requereu a realização de qualquer diligência de prova complementar, ficando-lhe assim vedado o direito de, na fase de instrução, apresentar outras provas em momento posterior.”
E) Aparentemente, não regula a lei a possibilidade de alegar factos novos e juntar novas provas entre o encerramento do debate instrutório e o momento em que é proferida a decisão instrutória.
F) No caso presente, trata-se da junção de uma decisão judicial que, para além de confirmar a legalidade do acto praticado com fundamento no parecer do ora recorrente, retira um dos pressupostos do crime que lhe é imputado, ou seja, que tenha havido para o requerente do licenciamento um benefício ilegítimo.
G) Convém ter presente que a pronúncia se propõe dar consistência a uma decisão meramente processual de fazer ou não prosseguir um processo até julgamento, decisão essa que se basta com prova meramente indiciária (artigos 301.º, n.º 3, 302.º, n.º 4, 308.º, n.º 1, do CPP).
H) Deve ter-se presente que “A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não, em certas circunstâncias, mesmo, um vexame” e que “no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (artigo 3.º daquela Declaração e 27.º, da constituição da República)”.
I) “Quer a doutrina quer a jurisprudência vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação uma possibilidade mais positiva que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”
J) Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado: são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.
K) Por força do princípio constitucional do in dubio pro reo, entende o Tribunal Constitucional que, apesar de não ter concluído pela inconstitucionalidade da irrecorribilidade do despacho de pronúncia, nos casos do artigo 310.º, do CPP, não deixa de reconhecer um direito do arguido de não ser submetido a julgamento no caso de não existirem indícios suficientes, como manifestação da presunção de inocência (cf. Acórdão n.º 226/97, em BMJ n.º 465, páginas 140 e seguintes).
L) Assim, a exacta interpretação do conceito de indícios suficientes e das exigências normativas quanto à fundamentação em que se apoia o despacho de pronúncia é de essencial relevância para a orientação seguida pelo Tribunal Constitucional.
M) A ulterior possibilidade de, no julgamento, se infirmar a acusação e a garantia de respeito pela presunção de inocência nessa última fase do processo não são suficientes para dar conteúdo à garantia de não ser submetido a julgamento em face de uma acusação que provavelmente não conduzirá a uma condenação. É a expressão concreta, nessa fase, da presunção de inocência que impõe uma tal conclusão.
N) É aqui que entra a interpretação a dar ao n.º 1, do artigo 308.º, do CPP, ou seja, que o encerramento da instrução só ocorre com a decisão de pronúncia ou não pronúncia e até este momento é lícito ao requerente da instrução juntar documentos, sobretudo um documento que é claramente DECISIVO sobre um dos pressupostos do crime de abuso de poder pelo qual vem acusado.
O) A presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, tem como manifestação, nos termos referidos pelo Tribunal Constitucional, o reconhecimento do direito do arguido de não ser submetido a julgamento no caso de não existirem indícios suficientes ou como é o caso de se reconhecer que falta claramente um dos pressupostos.
P) A sentença do Tribunal Administrativo de Coimbra reconhece que o acto administrativo de licenciamento da construção de uma moradia num lote que confronta a sul com J..., licenciamento esse requerido por M... e que deu origem ao processo de obras n.º 1427/04, é um licenciamento legal, pelo que desaparece o acto ilegítimo que é pressuposto do crime de abuso de poder.
Q) Porque a decisão provém do órgão que, no sistema jurídico português, tem competência para declarar a legalidade dos actos administrativos, sem que aos tribunais de outra espécie seja conferida a possibilidade de, mesmo como questão incidental, pôr em causa essa declaração de legalidade, não se coloca a questão prejudicial e consequentemente a questão da suficiência do processo penal.
R) Deve, por isso, o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, ser interpretado no sentido de que, até à decisão final da instrução, são admissíveis, pelo menos, os meios de prova documental que a parte não teve possibilidade de fazer uso durante o debate instrutório e que não eram do seu conhecimento.
S) A decisão recorrida é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, nos termos enunciados pelo Tribunal Constitucional.
T) Consequentemente, deve ser revogada a decisão recorrida e ordenado ao tribunal recorrido que profira nova decisão, tendo em conta o documento que foi junto pelo arguido.
U) A presente decisão é recorrível, apesar do disposto na parte final do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, por esta norma constituir uma violação do direito de defesa legalmente atribuído ao cidadão e que está garantido constitucionalmente – o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) – e, ainda, nos termos do n.º 2, do artigo 20.º, da nossa Lei Fundamental, “a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos”.
V) A negação do direito de recorrer da decisão que lhe é desfavorável quanto à admissão dos meios de prova é inconstitucional, pois não se pode privar o ora requerente, dado que se situa para além das restrições admissíveis, como resulta dos acórdãos do Tribunal Constitucional, pelo que deve ser admitido o presente recurso.
X) Pelo exposto e porque a decisão recorrida não considerou o acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que considerou legal o acto administrativo, cuja ilegitimidade é fundamento da acusação do ora requerente/recorrente, violou essa decisão o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, devidamente interpretado em conformidade com o princípio constitucional da presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, da Constituição da República, pelo que deve ser anulada e ordenado que o tribunal recorrido profira nova decisão, tendo em conta esse concreto meio de prova, pois só assim se cumprirá e fará JUSTIÇA.
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7. O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou, em 29/6/2009, a seguinte resposta:

Vem o arguido recorrer da decisão proferida a fls. 378, onde se refere que o arguido no decurso do debate instrutório não requereu a realização de qualquer diligência suplementar de prova, ficando-lhe assim vedado o direito de, na fase de instrução, apresentar outras provas em momento posterior.

Para tanto, alega, em síntese, que:

(…)

Dispõe o artigo 307.º, do CPP, no seu n.º 1, que “Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificados aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento da abertura da instrução.” E continua no seu n.º 3, “Quando a complexidade da causa em instrução o aconselhar, o juiz, no acto de encerramento do debate instrutório, ordena que os autos lhe sejam conclusos a fim de proferir, no prazo máximo de 10 dias, o despacho de pronúncia ou não pronúncia. Nesta caso, o juiz comunica de imediato aos presentes a data em que o despacho será lido, sendo correspondentemente aplicável o disposto na segunda parte do n.º 1.”

Pelo que constitui limite temporal inultrapassável da junção de todo e qualquer documento (que constitua elemento de prova) o encerramento do debate instrutório – v. Artigo 302.º, n.º 2, do CPP.

Por outro lado, também não se poderá dizer que a decisão recorrida é inconstitucional porque viola o princípio da presunção de inocência e lhe veda o direito à sua defesa.

Dispõe o artigo 315.º, do CPP, que o arguido apresenta, querendo, a contestação, o rol de testemunhas e com ela a lista das demais provas, isto é, os meios de prova e de obtenção de prova cuja produção ou exame são requeridos e os factos que através deles se espera provar.

Por último, quanto à alegada inconstitucionalidade da negação do direito de recorrer, diremos que o tribunal constitucional já se pronunciou sob tal questão e não considerou o artigo 310.º, do CPP, inconstitucional, já que tal preceito não viola a Constituição.

Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso interposto pelo arguido não merece provimento pelos motivos invocados.

V. Exªs, porém, e como sempre, decidirão como for de Justiça.

8. O recurso foi, em 9/9/2009, admitido. 9. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 9/12/2009, emitiu douto parecer no qual defendeu que o recurso deve ser rejeitado, quanto ao despacho de pronúncia, e que, quanto ao despacho intercalar de fls. 378, o mesmo apenas deverá subir a final, ou, caso assim se não entenda, que devem ambos ser julgados improcedentes.
10. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido, em 6/1/2010, exercido o direito de resposta, reiterando a posição anteriormente expressa por si nos autos, sublinhando que “(…) Pelo exposto e por que a decisão recorrida não considerou o acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que considerou legal o acto administrativo, cuja ilegalidade é fundamento da acusação do ora requerente/recorrente, violou essa decisão, pelo menos, o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, devidamente interpretado em conformidade com o princípio constitucional da presunção de inocência e da garantia dos meios de defesa, consagrada no artigo 32.º da constituição da República, pelo que deve ser anulada e ordenado que o tribunal recorrido profira nova decisão tendo em conta esse concreto meio de prova. 11. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
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B - Cumpre apreciar e decidir:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A questão a apreciar é a seguinte:
- Saber se o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, deve ser interpretado no sentido de que, até à decisão final da instrução, são admissíveis, pelo menos, os meios de prova documental que a parte não teve possibilidade de fazer uso durante o debate instrutório e que não eram do seu conhecimento.
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Enquanto fase jurisdicional, como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 128, citando Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 16: «A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”.
Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º, do C.P.P. (ver artigo 288.º, n.º 4, do mesmo código).
O artigo 286.º, n.º1, do C.P.P., indica expressamente como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução culmina com o debate instrutório o qual visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento. De acordo com o artigo 298.º, do C.P.P.
Após o debate instrutório será proferido despacho de pronúncia ou de não pronúncia consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento.
Um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P.).
Em resumo, a instrução visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pelos factos e ilícito que lhe são imputados, in casu, pela assistente no requerimento de abertura de instrução.
Dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do C.P.P., que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.
Resulta, por sua vez, do artigo 283.º, n.º 2, do C.P.P., para onde remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.
O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.
Por indiciação suficiente, entende-se “a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança”. Trata-se da “…probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal…” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª edição, Verbo 1999, páginas 99 e 100).
Como ensina Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, 1974, pág. 133, “…os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”, acrescentando que “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.”
Podemos, então, concluir que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado. - Sobre este conceito, ver, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 388/99 (DR, II, 8-11-1999, páginas 16.764 e ss.) e n.º 583/99 (DR, II, 22-2-2000, páginas 3.599 e ss.); e o Acórdão do TRE, de 1-3-2005, in www.dgsi.pt.
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Só da apreciação crítica de todas as provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas.
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No caso dos autos, devemos ter em conta os seguintes elementos:
1. No dia 14/1/2009, foi realizado o debate instrutório, tendo sido designado o dia 28/1/2009, para a leitura da Decisão Instrutória, sendo certo que nada, então, foi solicitado, em termos de produção de provas indiciárias suplementares (acta de fls. 329/331).
2. No dia 28/1/2009, foi proferido, a fls. 332, o seguinte despacho:
“Atenta a complexidade das questões suscitadas, dou sem efeito a data agendada para leitura da decisão instrutória e designo, em sua substituição, o dia 20 de Fevereiro de 2009, pelas 14h00.
Notifique, pela via mais expedita.”
3. No dia 20/2/2009, foi efectuada a leitura da decisão instrutória junta aos autos (acta de fls. 342).
4. No dia 3/3/2009, o ora recorrente formulou um pedido de esclarecimento ao Tribunal a quo, conforme segue:
“1. No dia 26 de Janeiro de 2009, juntou o ora requerente aos autos uma cópia do acórdão que decidiu a Acção Administrativa Especial instaurada por J... e esposa, também queixosos nos presentes autos – Cfr. doc. De fls. 2. Nos termos do referido acórdão, o acto administrativo de licenciamento da obra de M... é considerado LEGAL e VÁLIDO, sendo um dos pressupostos da acusação crime contra o ora requerente a sua invalidade. (…)
Por que razão não valorou a decisão instrutória o acórdão do TAF de Coimbra, que apreciando a questão administrativa que subjaz à decisão de pronúncia do ora requerente, considerou válido e legal o acto que determinou a pronúncia do ora requerente, no pressuposto de que o mesmo era ilegal, nem sequer mencionando esse acórdão nas diligências realizadas em sede de instrução?”.
5. No dia 4/3/2009, o ora recorrente, a fls. 346, veio, ainda, expor ao Tribunal a quo que, em complemento do pedido formulado em 3/3/2009, “…por consulta no balcão do 1.º Juízo de Cantanhede ao Habilus do referido processo, não consta do mesmo que tal requerimento e os documentos que o acompanhavam tenham sido juntos aos autos”.
6. No dia 10/3/2009, foi proferido, a fls. 374, o seguinte despacho:
“Antes de mais, informe a secção central se é possível confirmar o alegado a fls. 346.
Após, continue o processo com vista ao MP”.
7. No dia 11/3/2009, o senhor Escrivão-Auxiliar lavrou, a fls. 376, a seguinte cota:
“Com referência ao E-mail, de que se encontra comprovativo de envio a fls. 347, somos a informar que se encontra, na pasta do Outlook deste Tribunal, um E-Mail, enviado em 26/1/2009, pelas 13:19 horas, enviado por José Sampaio, e com o tamanho de 4 MB, o qual não se consegue abrir, dado como mensagem “não é possível abrir este item”, presumindo-se que seja o referido a fls. 346.
Mais se informa que, já em 13/1/2009, foi por mim comunicado ao Sr. Secretário que, aquando da abertura de determinados E-Mail, existia problema na abertura dos mesmos, desconhecendo-se o motivo de tais factos.
Foi, ainda, comunicado, o facto do técnico de informativa afecto a este Tribunal, o qual não deu solução para tal problema, referindo que deveria ser devido à memória disponível no computador”.
8. No dia 1/4/2008, foi, então, proferido o despacho já acima transcrito, de onde há a realçar que “…ficando-lhe assim vedado o direito de, na fase de instrução, apresentar outras provas em momento posterior”.
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Feita esta descrição cronológica, avancemos um pouco mais.
Salvo o devido respeito por posição contrária, no presente recurso, não está impugnada a decisão instrutória, na sua essência, nem a apreciação de nulidades e outras questões prévias ou incidentais, pelo que não há que apelar ao artigo 310.º, n.º 1, do CPP, onde se consagra o seguinte:
1 – A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”.
O que está aqui em causa é o não conhecimento de um documento que foi junto aos autos após o encerramento do debate instrutório e antes da leitura da decisão instrutória.
Diga-se, desde já, que não há dúvidas de que o documento foi enviado aos autos, no dia 26/1/2009 (os princípios gerais da colaboração entre os intervenientes processuais e da boa-fé impõem tal conclusão). Simplesmente, por razões de ordem técnica, conforme cota supra mencionada, o mesmo não chegou ao processo antes de ser proferido o despacho de pronúncia.
Ultrapassado esse aspecto, que acaba, até, por ser irrelevante, tendo em conta a posição assumida pelo tribunal recorrido, a fls. 378, concentremo-nos na verdadeira questão colocada no recurso.
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É inquestionável para nós que uma decisão instrutória deve tomar em consideração todos os elementos importantes que existam no processo, à data da sua leitura, na medida em que isso possa influenciar a situação processual do arguido.
A instrução acaba por ser, na prática, uma triagem relativamente aos indícios existentes nos autos, só se justificando avançar para o despacho de pronúncia quandose, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” (artigo 308., n.º 1, do CPP).
Pode, então, afirmar-se, peremptoriamente, que o encerramento do debate instrutório constitui limite temporal inultrapassável da junção de todo e qualquer documento (que constitua elemento de prova), ainda que superveniente, face ao disposto no artigo 302.º, n.º 2, do CPP?
A nossa lei processual é bem sucinta, no que diz respeito à junção de documentos.
Dispõe o artigo 165.º, do CPP:
1 – O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 – Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade do contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3 – o disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsulto ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência.
O legislador quis, certamente, estabelecer uma certa disciplina processual, por forma a habilitar a entidade que dirige o inquérito ou preside à instrução com todos os elementos de prova para decidir sobre o destino do processo. Daí, a regra prescrita quanto à oportunidade de junção de documentos.
Em bom rigor, a lei não regula a possibilidade de alegar factos novos e juntar novas provas entre o encerramento do debate instrutório e o momento em que é proferida a decisão instrutória.
Todavia, não pode ser esquecido, neste domínio, o princípio constitucional de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP).
E, entre estas, tem que estar a de não ser levado a julgamento, sempre que haja elementos nos autos que tal justifiquem.
Como todos sabem, apenas com a acusação, o arguido passa a saber, rigorosamente, dos factos pertinentes á sua defesa e qual o crime que lhe é imputado.
Portanto, só a partir daí ficará habilitado plenamente a organizar a sua defesa, alegando os factos que tiver por convenientes que, necessariamente, procurará demonstrar com os meios de prova que tiver ao seu alcance, nomeadamente documentos, sendo indiferente que já anteriormente os possuísse ou que só supervenientemente tivesse acesso aos mesmos.
Em qualquer dos casos, podemos dizer que só, então, surgiu a oportunidade processual para a sua junção.
Seguramente que não foi intenção do legislador, ao prescrever que o documento deve ser junto no decurso da instrução, impedir o arguido de juntar aos autos, depois do debate instrutório e antes da leitura da decisão instrutória, um documento fundamental para evitar que o processo avance para a fase do julgamento, quando o mesmo se reveste de natureza superveniente.
Se não fosse permitido ao arguido a junção de documentos, nesse período, bem se poderia dizer que afinal o processo criminal não asseguraria, em tempo útil, todas as garantias de defesa.
No caso sub judice, o recorrente só teve acesso ao documento que veio juntar ao processo, após o debate instrutório.
Ora, de acordo com o arguido, “trata-se da junção de uma decisão judicial que, para além de confirmar a legalidade do acto praticado com fundamento no parecer do ora recorrente, retira um dos pressupostos do crime que lhe é imputado, ou seja, que tenha havido para o requerente do licenciamento um benefício ilegítimo”.
Dito isto, é manifesto que o Tribunal a quo tem que se debruçar sobre a relevância da decisão judicial em causa, tendo em vista as implicações que a mesma aparenta ter quanto a fazer ou não prosseguir o processo para julgamento, não competindo a este tribunal de recurso, agora, tomar posição quanto a tal objecto.
E não se diga que o arguido sempre se poderá defender em julgamento, com base no referido documento.
Qual o sentido de avançar para um julgamento, perante uma acusação que, pelo menos, e para já, para o recorrente, não conduzirá a uma condenação, a partir do momento em que não se conhece de um documento essencial para saber se o crime em causa nos autos existe?
Nenhum…
Por conseguinte, o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, deve ser interpretado no sentido de que, até à decisão final da instrução, é admissível a junção de meios de prova documental que o interessado não teve possibilidade de fazer uso durante o debate instrutório e que não eram do seu conhecimento. ****
C - Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, determinando-se a revogação da decisão instrutória e a sua substituição por outra que aprecie a implicação do documento junto aos autos pelo recorrente (decisão judicial do TAF de Coimbra), no prosseguimento ou não do processo para julgamento.
Sem custas.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.


Coimbra, 12 de Maio de 2010,

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(José Eduardo Martins)

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(Isabel Valongo)