Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2912/13.2TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
ESCRITURA PÚBLICA
CONFISSÃO DE DÍVIDA
REQUERIMENTO EXECUTIVO
INDEFERIMENTO LIMINAR
INEPTIDÃO
CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.724 Nº1 E) CPC, 458 CC
Sumário: 1 - Deve ser liminarmente indeferido – por vício de ineptidão, decorrente da falta de alegação da causa de pedir – o requerimento executivo em que, sendo o título executivo uma escritura de confissão de dívida, o exequente não alegue (no respectivo campo do requerimento executivo) a causa jurídica da obrigação exequenda (os factos constitutivos da relação material subjacente à emissão da declaração em causa).

2 - O art. 458.º C. Civil (que não vale como fonte autónoma de obrigações, nem constitui uma excepção ao chamado “princípio do contrato”) apenas estabelece um regime de “abstracção processual”: dispensa o A. da prova da relação fundamental, consagrando uma regra de inversão do ónus da prova (competindo ao devedor ilidir a presunção que o mesmo consagra), mas não dispensa o A. de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir da acção.

2 – E as coisas não mudam de figura por se estar numa execução, uma vez que nas acções executivas a causa de pedir do pedido executivo é o facto aquisitivo do respectivo direito à prestação e não o próprio título executivo, que só incorpora e demonstra o facto aquisitivo.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

T (…), SA, identificada nos autos, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe moveu (a si e à C (…) SA) A (…) e M (…) ambos com os sinais dos autos, para haver dela (e da C (…)) – invocando-se como título executivo uma escritura pública de confissão de divida e de hipoteca – a quantia de € 133.470,91 (sendo 131.000,00 de capital) e juros vincendos até efectivo e integral pagamento, veio deduzir oposição, por embargos, a tal execução.

Alegou, de mais relevante para a apreciação do recurso:

Que é invocada uma confissão de dívida da C (…) e a constituição duma hipoteca sobre um imóvel, por parte da embargante, para garantir o bom pagamento da dívida confessada pela C (…)

Confissão de dívida e hipoteca que, segundo a embargante, são simuladas, bem sabendo os exequentes que a executada C (…)não lhes devia tal quantia, “uma vez que os verdadeiros devedores são, a título pessoal, L (…), A (…) e S(…)[1]; e tanto assim é “(…) que no título dado à execução nem sequer figura a origem ou relação subjacente da alegada dívida que os exequentes alegam ser da responsabilidade da executada C (…)[2].

Ademais, a constituição da hipoteca é, como os exequentes bem sabiam, “uma liberalidade contrária ao interesse da sociedade [embargante], ao seu objecto social e ao seu pacto social”[3]; e a confissão de dívida da C (…) “é estranha aos negócios da sociedade [4].

Tudo razões que, segundo a embargante, conduzem à nulidade da confissão de dívida e da hipoteca, pelo que o “título executivo oferecido pelos exequentes (…) tem-se por inexistente e inexequível, nos termos do art. 729.º/a) do CPC

Os exequentes/embargados contestaram, dizendo:

Que “é a sociedade executada C (…) que deve aos exequentes o montante constante do título executivo”[5];

Que “os administradores da executada assumiram também pagar pessoalmente o referido valor aos exequentes, sucede que nunca cumpriram o mesmo;[6]

Que “a negociação que envolveu o pagamento aos exequentes, o modo como iria ser efectuada e como iria ser garantida, foi discutida e assente com os respectivos advogados;[7]

Que “a garantia a prestar foi devidamente deliberada pela AG da T (…);[8]

Que “o que consta da escritura pública foi um acordo firmado entre as partes intervenientes, todas elas sem excepção e corresponde à verdade[9]

Que “Não se trata, nem nunca se tratou dum acto simulado e este argumento só poderá conduzir à condenação das executadas como litigantes de má-fé.[10].

Concluíram por isso pela total improcedência dos embargos.



Realizada audiência prévia, entendendo a Exma. Juíza que estava em condições de conhecer do mérito, proferiu de imediato sentença, em que julgou improcedentes os embargos, determinando-se o prosseguimento da execução quanto à executada/embargante.


Inconformada com tal decisão, interpõe a executada/embargante o presente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “declare a extinção da execução contra a aqui embargante ou, sem prescindir, que ordene o prosseguimento dos autos com a realização das diligências de prova requeridas, tudo com as legais consequências (…)”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

Os exequentes não apresentaram qualquer resposta.

Obtidos os vistos, mantendo-se a regularidade da instância, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II – Fundamentação

II - A Em termos factuais:

1 - No campo do requerimento executivo respeitante aos factos, os exequentes alegaram o seguinte:

“O título executivo é uma escritura pública de confissão de divida e hipoteca, outorgada no passado dia 20 de julho de 2012, na qual a executada reconheceu dever aos Exequentes a quantia de € 136 500,00 (cento e trinta e seis mil e quinhentos euros). A mencionada quantia seria paga em noventa e uma prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor individual de mil e quinhentos euros, vencendo-se a primeira no dia 15 de agosto de 2012 e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes. O não pagamento de quatro prestações seguidas, implica o vencimento de todas as prestações em falta. A Executada apenas pagou integralmente a primeira prestação. Em janeiro não pagou qualquer quantia e desde março que deixou de cumprir com o pagamento. Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 46 do Código de processo Civil a sentença constitui título executivo bastante para dar causa à presente execução”

2 - Na execução, de que os presentes autos são apenso, foi dado à execução uma escritura pública de confissão de divida e hipoteca, outorgada no dia 20 de julho de 2012, na qual a sociedade Executada “C (…)” (representada pelos seus administradores L (…), A (…), S (…)) reconheceu dever aos Exequentes a quantia de € 136.500,00; comprometendo-se a pagar a sobredita quantia em 91 prestações mensais no valor individual de € 1.500,00 com inicio no dia 15 de agosto de 2012; e, para garantia do pagamento do referido montante, em nome da sua representada “ T(...) ”, constituíram hipoteca a favor dos exequentes sobre o prédio urbano melhor id. a fls 11.


*

II – Quanto ao Direito

Desprezando os lapsos do campo acabado de transcrever do requerimento executivo (designadamente, o dizer-se que o título executivo é uma “sentença”[11]), sobra e subsiste – sem que tal possa ser irrelevado ou corrigido – a ausência de qualquer alusão, no campo do requerimento executivo respeitante aos factos, à causa de pedir (à causa jurídica da obrigação exequenda), ou seja, os exequentes não expuseram minimamente os factos que fundamentam o pedido (não cumpriram devidamente o art. 724.º/1/e) do CPC) e, por conseguinte, o requerimento executivo – por vício de ineptidão, decorrente da falta de alegação da causa petendi – devia ter sido liminarmente indeferido (nos termos do art. 726.º/2/c) do CPC)[12].

Caso a causa jurídica da obrigação exequenda tivesse sido invocada, seria completamente diferente a discussão que a seguir haveria nos embargos (mudaria por certo a própria configuração jurídica da matéria factual que os embargantes invocaram), razão pela qual os presentes autos/embargos, sem o “quid” cuja inexistência ou invalidade visam provar, se encontram desenhados de modo “imprestável”.

Expliquemo-nos:

Temos como base da pretensão dos exequentes/embargados uma confissão/reconhecimento de dívida de € 136.500,00.

O que nos remete, é certo, para a temática dos negócios unilaterais – que é o que uma confissão/reconhecimento de dívida é – o que não apaga a regra/princípio de, quem se dirige ao tribunal, invocando um direito de crédito e exigindo o cumprimento da correlativa obrigação, ter que expor a fonte de tal crédito/obrigação; não podendo limitar-se a dizer, em termos abstractos, genéricos e indefinidos, que é credor do R./executado num concreto montante e pedir que o R./executado seja condenado a pagar-lhe tal concreto montante.

Regra/princípio este que que não se vê devidamente ponderado e reflectido, como já referimos, na alegação do requerimento executivo; e que também não foi cumprido, como resulta das transcrições efectuadas no relatório inicial, na contestação aos embargos, em que em momento algum se diz qual é a fonte do crédito/obrigação “incorporada” no documento exarado pelo notário e que serve de título à execução[13].

É preciso nunca perder de vista que o que se alega tem que encerrar a exposição/alegação factual de algo que permita afirmar, aplicando-se o direito (qualificando-se juridicamente a fonte da obrigação, via de regra, o contrato), ser o A./exequente titular dum direito de crédito sobre o R./executado no montante que peticiona.

Sendo que estamos, repete-se, no domínio do princípio/regra, supra referido, segundo o qual, quem se dirige ao tribunal, a exigir o cumprimento dum direito de crédito, tem que expor a fonte/causa de tal crédito, ou seja, a confissão de dívida exarada pelo notário não dispensava os exequentes/embargados de tal alegação.

De acordo com o disposto no artigo 458º/1 do Código Civil, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário; e constando tal declaração, como é o caso, duma escritura pública constitui esta título executivo.

Mas não constando a causa de pedir (relação jurídica subjacente à declaração de dívida) da declaração/confissão de dívida, o título dado à execução só ficará completo com a sua alegação no requerimento executivo.

Já se sustentou, em face do disposto no artigo 458.º do Código Civil, que o mesmo consagra a presunção de que a relação fundamental que subjaz à declaração unilateral de dívida existe e é válida, pelo que o credor/exequente se encontraria dispensado de alegar no requerimento executivo a causa de pedir ou a causa da obrigação.

Mas hoje não é esta a posição dominante.

Considera-se que o art. 458.º do C. Civil consagra apenas uma regra de inversão do ónus da prova (competindo ao devedor ilidir a presunção que o mesmo consagra), que não exime o credor do ónus de alegação da causa debendi.

Entendemos que não pode deixar de ser assim.

Não consagrando o artigo 458º do C. Civil “um desvio ao princípio do contrato, nenhum dos actos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida) constitui, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação; criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação[14].

E as coisas não mudam de figura por se estar numa execução, uma vez que nas acções executivas a causa de pedir não é constituída pelo título executivo, mas pelo “facto jurídico nuclear de determinada obrigação”: é a factualidade obrigacional e não o título executivo, “embora reflectida indispensavelmente neste”, que constitui a causa de pedir neste tipo de acções.

Por outro lado, cabendo o ónus da prova da inexistência ou da invalidade da relação jurídica subjacente ao devedor e competindo à causa de pedir, na acção executiva, a individualização da obrigação, não se mostrando esta alegada, “impossível” se torna ao devedor cumprir tal ónus adequadamente[15].

A não se entender assim, impondo-se ao devedor/executado o ónus de alegação e prova da inexistência de uma qualquer causa geradora de obrigações e da ocorrência de quaisquer vícios que a afectassem, prejudicado ficará até o exercício cabal do seu direito ao contraditório.

Efectivamente, o art. 458.º C. Civil apenas estabelece um regime de “abstracção processual”, ou seja, dispensa o A./exequente da prova da relação fundamental, mas não o dispensa de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir da acção/execução (não a dispensa, no caso, de alegar a causa/fonte da obrigação de entrega do montante de € 136.500,00).

Como já se referiu, quem se dirige ao tribunal (a exigir o cumprimento dum direito de crédito) tem que expor a fonte/causa de tal crédito e os negócios unilaterais – que é o que a referida declaração é – não valem como fonte autónoma de obrigações, ou melhor, a declaração/negócio unilateral só é reconhecida como fonte autónoma de obrigações nos casos especialmente previstos na lei, como é o caso do testamento, dos títulos de crédito, da procuração e da promessa pública do art. 459.º do C. Civil[16].

Como regra, para que haja o dever de prestar e o correlativo poder de exigir a prestação, fora dos casos em que a obrigação nasce directamente da lei (gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, etc.), é necessário o acordo (contrato) entre o devedor e o credor; é o chamado “princípio do contrato”, que significa que só a convenção bilateral, no domínio das obrigações assentes sobre a vontade das pessoas, pode (em regra e fora das situações excepcionais referidas) criar o vínculo obrigacional.

Princípio/regra este de que o art. 458.º não se desvia, isto é, a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida previstos no art. 458.º não constituem a fonte autónoma duma obrigação.

Criam, insiste-se, tão só a presunção de existência duma relação negocial/fundamental (a que o art. 458.º se refere explicitamente), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação, razão por que se inverte o ónus da prova, mas apenas o ónus da prova, ou seja, o art. 458º do C. Civil apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto, mas já não do ónus de alegar tal relação.

“Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus de alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, n.º 2, do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo o devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor[17].

Significa isto[18] que, quem, como os exequentes/embargados, demanda quem lhe prometeu unilateralmente uma prestação sem indicação da causa, não pode limitar-se a juntar aos autos o documento que corporiza a promessa de cumprimento, devendo também identificar a respectiva relação causal, alegando os seus factos essenciais e constitutivos; embora, por via da dispensa de prova, contida no art. 458º do CC, esteja dispensado de provar tal factualidade, cumprindo ao demandado demonstrar que essa concreta causa constitutiva, invocada pelo credor, afinal não existe em termos juridicamente válidos (se o demandado/declarante provar que tal relação não existe, a obrigação “dissipa-se”, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida)[19].

Significa isto, como já referimos, que o cumprimento adequado do ónus de alegação dos exequentes/embargados não se basta com a mera junção/invocação da escritura pública de confissão de dívida; pelo contrário, estavam onerados com a alegação minimamente circunstanciada dos factos constitutivos da relação material subjacente à emissão da declaração em causa.

Ora, como também já se referiu, tal alegação não se vê verdadeiramente pensada/assumida/reflectida no requerimento executivo e na contestação de embargos: os exequentes/embargados não alegaram nada quanto à relação causal, anteriormente existente entre as partes e subjacente à emissão da confissão de dívida em causa[20].

Enfim, decorre do preceito que prevê o reconhecimento de dívida (art. 458.º/1 do C. Civil) – que é, repete-se, o que o título dado à execução é em termos substantivos – que o credor fica dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, porém, não se está perante um negócio abstracto, mas apenas perante uma inversão do ónus da prova, o que significa que cabe ao devedor provar a falta de causa para tal reconhecimento de dívida.

E como discorre Rui Pinto, in Manual da Execução, pág. 196/7:

“Mas terá a causa essa estrita relevância negativa, enquanto objecto de fundamento de oposição, ou deve, antes de mais, ser sempre alegada pelo exequente no requerimento executivo, tendo uma relevância positiva?

Parece-nos que a imposição feita pelo art. 810.º/1/e)=art. 724./1/e) do NCPC de indicação de causa de pedir – mas não a sua prova – quando não conste do título vale mesmo para o reconhecimento de dívida. Neste sentido, Castro Mendes defendia precisamente que o credor que disponha de uma confissão de dívida não pode remeter apenas para esse título, no requerimento executivo, mas deve indicar a causa concreta”.

Efectivamente, sendo a causa de pedir do pedido executivo o facto aquisitivo do respectivo direito à prestação[21] – não se confundindo com o título que só o incorpora e demonstra – faz todo o sentido que a sua causa ou fundamento, não constando do título, sejam alegados no requerimento executivo

É isto, repete-se mais uma vez, que nunca foi alegado pelos exequentes/embargados.

E não o tendo sido (e não constando a causa ou fundamento da obrigação exequenda confessada na própria escritura de confissão), há ineptidão do requerimento executivo, ou seja, como se começou por referir, o requerimento executivo devia, de acordo com o art. 726.º/2/c) do CPC, ter sido liminarmente indeferido[22].

Vício que nesta fase dos autos se mantém – por não ter sido sequer alegada, continua a ser manifesta a inexistência dos factos constitutivos da obrigação exequenda – e que conduz à procedência dos embargos.

Vício que, embora de modo pouco explícito, está invocado no art. 18.º da PI de embargos, em que se diz “(…) que no título dado à execução nem sequer figura a origem ou relação subjacente da alegada dívida que os exequentes alegam ser da responsabilidade da executada C (…)”.

Vício e respectivo sancionamento – ineptidão do requerimento executivo e, agora, procedência dos embargos – que não são sequer excessivos, uma vez que é suposto a defesa por embargos ser a oposição à invocada (pelo exequente) causa jurídica da obrigação exequenda e não, como foi o caso dos presentes e concretos embargos, a oposição a possíveis/hipotéticas/conjecturáveis causas jurídicas.

Veja-se, por ex., o caso da simulação invocada, que os executados/embargantes situam na confissão de dívida: se os exequentes tivessem, como deviam, invocado a causa ou fundamento da obrigação exequenda confessada, a alegação/discussão seria certamente outra, uma vez que o que, no fundo, os executados/embargantes querem dizer (com a globalidade da sua defesa) é que não havia causa jurídica para tal confissão de dívida (e isto não é certamente configurável juridicamente como uma simulação da confissão da dívida).

Enfim, os embargos são (devem ser) uma defesa em relação ao que se invocou no requerimento executivo, pelo que, se nada neste se invocou, não sabem sequer os embargantes do que verdadeiramente se devem defender[23].


*

Em conclusão, a apelação procede; mostrando-se prejudicado o conhecimento/apreciação das demais questões suscitadas na apelação[24].

*

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida que se substitui por decisão a julgar procedente a oposição por embargos e a determinar a extinção da execução em relação à embargante.

Custas, em ambas as instâncias, pelos exequentes.


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Coimbra, 20/02/2019

Barateiro Martins ( Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Art. 17.º da Pi.
[2] Art. 18.º da Pi.
[3] Art. 22.º da Pi.
[4] Art. 37.º da Pi.
[5] Art. 3.º da Contestação.
[6] Art. 4.º da Contestação.
[7] Art. 8.º da Contestação.
[8] Art. 9.º da Contestação.
[9] Art. 12.º da Contestação.
[10] Arts. 13.º e 14.º da Contestação.
[11] A invocação do art. 46.º do CPC não é lapso, uma vez que a execução entrou em 17/06/2013.
[12] Neste sentido, Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pág. 69, e Lebre de Freitas, Acção Executiva, pág. 62 e 156, que sancionam com o vício da ineptidão a falta da alegação da causa no requerimento executivo.
[13] Os exequentes/embargados limitam-se a dizer que os executados devem, mas nunca referem, sequer ao de leve, a causa jurídica de tal débito (dizem inclusivamente que a dívida “foi discutida e assente com os respectivos advogados”, porém, isto não é uma causa jurídica).
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, Coimbra Editora, 1987, p. 440.

[15] Nos termos do artigo 458º do C. Civil, “presume-se, simplesmente, que houve um facto jurídico idóneo”, que originou a emissão da declaração recognitiva da dívida (“ninguém se obriga por nada e sem causa”); todavia, não estando esse facto jurídico concretizado, impedido fica o devedor de alegar e provar a sua inexistência ou a sua invalidade.

[16] Atendendo à publicidade que a declaração reveste, às justificadas expectativas que a prestação publicamente prometida cria em torno dela, aos fins de interesse social que frequentes vezes estão na base de semelhantes iniciativas, ao caracter vinculativo que as leis tendem a atribuir a este tipo de declarações, compreende-se e justifica-se a excepção aberta ao princípio do contrato.
[17] Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pág. 390.

[18] Defendido, entre outros nos seguintes Acórdãos do STJ: de 07/07/2010, proferido pelo STJ no P. 373/08.7TBOAZ-A.P1.S1; de 15/09/2011 (relator Granja da Fonseca); e de 07/05/2014 (Relator Lopes do Rego)

[19] Orientação esta que parece a mais proporcional e equilibrada; uma vez que admitir que o credor nada precisa de alegar como modo de identificar a relação causal subjacente é fazer impender sobre os ombros do demandado um ónus desproporcionado, traduzido em ter de ser ele a afastar a relevância de qualquer possível facto constitutivo dessa relação, ou seja, teria que ser ele a ter de identificar qual era, afinal, essa relação subjacente ao acto unilateral de reconhecimento, indicando a causa concreta dessa obrigação e questionando a sua existência ou validade jurídica, bastando ao A. (o que também seria desproporcionado) impugnar a individualização da causa pelo devedor para que pudesse subsistir a eficácia da declaração recognitiva.

[20] Quando se fala em “causa jurídica”, fala-se e alude-se à relação fundamental, ao concreto contrato (ou outra qualquer fonte obrigacional, como é o caso da responsabilidade civil), donde procede o reconhecimento da dívida, pelo que invocar “negociações” como causa dum reconhecimento de dívida é o mesmo que nada.
[21] Rui Pinto, in Manual da Execução, pág. 62.
[22] Neste sentido, Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pág. 69, e Lebre de Freitas, Acção Executiva, pág. 62 e 156, que sancionam com o vício da ineptidão a falta da alegação da causa no requerimento executivo; e também Rui Pinto, in Manual da Execução, pág. 195.

[23] É, como supra se referiu, o seu cabal direito ao contraditório que fica prejudicado.

[24] Na sentença recorrida são discutidas e apreciadas duas questões:

Uma primeira, em que se fala de cessão de créditos e de assunção de dívida, temas cujo racional da convocação não conseguimos perceber.

Uma segunda, em que se termina a dizer que “a embargante para impugnar os factos praticados perante oficial, teria que arguir a sua falsidade”; esta percebemos, mas não estará bem.

Quando um negócio jurídico, que está na origem dum processo/litígio, tenha sido formalizado num documento autêntico, de imediato surge a questão de estabelecer o alcance e a medida em que os actos referidos em tal documento autêntico e os factos neles mencionados se devem considerar como correspondendo à realidade e cobertos pela força probatória plena.

É que os documentos autênticos, de acordo com o art. 371.º, n.º 1, do CC “fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora”.

O que significa que ficam cobertos pela força probatória plena:

1.º - Os factos praticados pela entidade documentadora; ou seja, a parte em que numa escritura se menciona que o notário a leu e explicou.

2.º - Os factos atestados pelo documentador com base nas suas percepções; ou seja, a parte em que na escritura uns outorgantes declararam perante o notário confessar uma dívida e em que os outros outorgantes declaram aceitar a confissão de dívida.

Porém, acentua-se, quanto a esta segunda espécie de factos, a força probatória plena só vai até onde alcançam as percepções do notário; ou seja, apenas fica plenamente provado que os outorgantes declararam o que do documento consta, mas já não se tem como plenamente provado que uns outorgantes quiseram realmente confessar a dívida.

O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas” (cfr. Antunes Varela, Manual de Processo, pág. 506).

O que significa que nem mesmo as declarações negociais – de confissão de dívida – constantes da escritura, na sua sinceridade e veracidade, ficaram, com a mera apresentação da escritura, “automaticamente” plenamente provadas.

Mas que também não significa que todo e qualquer facto atestado pelo documentador, com base nas suas percepções, possa ser “destruído/alterado” por qualquer meio de prova.

Embora a lei admita a prova testemunhal “em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada” (art. 392.º do CC), logo estabelece, reconhecendo os perigos especiais que a prova testemunhal comporta, limitações à sua admissibilidade.

Uma de tais limitações, traduz-se justamente em, de acordo com o art. 394.º/1 do CC, ser inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto “convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou autenticados”.
Porém, chama-se a atenção, tal limitação é apenas em relação à parte que está coberta pela força probatória plena, o que significa – acrescenta-se e esclarece-se – que tal proibição da prova testemunhal contra ou praeter scriptum não impede o recurso a testemunhas para prova quer dos vícios da vontade (erro, dolo, coacção) quer das divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, etc [com uma única excepção, respeitante à prova da simulação entre os próprios simuladores, cfr. art. 394.º, n.º 2, do CC]), assim como não obsta à prova por testemunhas do sentido e alcance atribuídos ao texto do documento (prova juxta scripturum).

Ou seja – é onde se pretende chegar – para invocar a simulação a embargante não tinha que invocar a falsidade da escritura.