Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3457/02.1TDLSB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: DEBATE INSTRUTÓRIO
DILIGÊNCIAS DE INSTRUÇÃO
RECURSO
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE AVEIRO (JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 291º, N.º 2 E 302º, N.º 2, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A regra da irrecorribilidade do despacho de indeferimento da realização de diligências instrutórias, prevista no art.º 291º, n.º 2, do C. Proc. Penal, estende-se ao despacho de indeferimento do requerimento de produção de provas indiciárias suplementares apresentado durante o debate instrutório, nos termos do art.º 302º, n.º 2, do mesmo Código, uma vez que se trata, também aí, de um requerimento de diligências instrutórias.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

            1. No processo n.º 3457/02.1TDLSB.C2 do Juízo de Instrução Criminal de Z..., recorre o arguido AT... de dois tipos de despachos exarados pela Mª JIC:

1º RECURSO - o primeiro, datado de 16/6/2010 (cfr. fls 1627-1629) e

2º RECURSO - o segundo (despacho de pronúncia), exarado em 29/6/2010 (cfr. fls 1633-1642).

Recorda-se que o Ministério Público arquivou o inquérito, tendo a assistente IFP & C III.... LTD requerido a abertura da fase instrutória (artigo 287º, n.º 1, alínea b) do CPP), a qual vem a culminar na prolação de um despacho de pronúncia.

            2. SOBRE O 1º RECURSO

2.1. O arguido, motivando o seu 1º recurso, apresenta as seguintes CONCLUSÕES (em transcrição):

                «I- Em 16/06/2010, data da realização de debate instrutório no presente processo, o recorrente, ao abrigo do disposto no art. 302°, no 2, do CPP, requereu a produção de provas indiciárias suplementares a propósito da questão controversa de a assistente ter fundado a sua tese de ter sido praticado o ilícito participado nos autos, sobretudo,
na quase coincidência entre as quantidades de pescado alegadamente capturadas durante a campanha da pesca, nos termos inscritos pelo recorrente nos respectivos diários de pesca, por um lado, e, por outro lado, as quantidades que a IGP alega terem sido descarregadas, quer no porto de Agadir, Marrocos, quer no porto de Z..., e de, no entender da assistente, essa aludida coincidência não permitir explicar que tivessem sido efectivamente deitadas ao mar as quantidades de pescado constantes dos protestos de mar cujas cópias constam dos autos, requereu, ao abrigo do disposto no art. 302°, n°2, do CPP:

- se procedesse à inquirição de duas testemunhas, que exercem ou exerceram funções inspectivas na Inspecção Geral das Pescas (IGP) / Direcção-Geral das Pescas e Aquicultura (DGPA);

- fosse oficiada a DGPA para juntar aos autos os relatórios finais dos processos inspectivos efectuados nas descargas dos navios de pesca de arrasto do largo no período compreendido entre 2001 e 2005;

- fosse oficiada a DGPA para informar se, com referência à viagem do navio VX... iniciada em 26/10/2000 e terminada em 06/02/2001, levou em consideração as quantidades de pescado descarregado pelo navio VX... no porto de Agadir e que foi remetido para Portugal por via terrestre através de contentores transportados via rodoviária, e, em caso afirmativo, quem foram os inspectores que fizeram esse controlo para o efeito de os mesmos serem inquiridos nos presentes autos acerca da matéria acima referenciada.

II- Relativamente a esse requerimento, foi proferido nesse mesmo dia 16/06/2010 o
douto despacho de fls. 1624-25, no qual foi a Mm.a Juiz a
quo decidiu indeferir a
produção de prova suplementar requerida pelo recorrente.

III- Proferido o referido despacho, de imediato o recorrente arguiu a irregularidade do mesmo, alegando que ao ter sido indeferida a produção das provas indiciárias suplementares requerida pelo arguido/recorrente, foram em concreto, e mais uma
vez, violados os direitos de defesa deste, que mais não pretendeu do que contribuir para a descoberta da verdade. Ademais, o arguido, sendo um mero trabalhador marítimo, não tem acesso directo às provas que demonstram que as quantidades de pescado descarregado e mencionadas no relatório de inspecção da TGP foram muito inferiores às quantidades efectivamente capturadas, pelo que não tem possibilidades de carrear tais elementos probatórios para os autos a não ser que a sua produção seja ordenada por este Tribunal - sendo certo que tem vindo a ser ordenada a produção de prova sucessivamente requerida pela Assistente, e aquela era a primeira oportunidade de que o arguido dispunha para requerer a produção de prova no sentido da não pronúncia, conforme prevê o art. 286°, n° 1, do CPP. Uma vez que assim não sucedeu, e veio a ser indeferida a requerida produção de provas indiciárias suplementares, foi cometida uma irregularidade que expressamente aqui se deixou arguida, nos termos previstos no art. 123° do CPP.”

IV- Sobre essa arguição de nulidade veio a ser proferido o douto despacho de fls. 1627-1629, no qual a Mm.a Juiz a quo considerou não haver “qualquer irregularidade processual a reparar” e indeferiu o requerido.

V- O presente recurso vai interposto da douta decisão mencionada no parágrafo anterior, proferida em 16/06/2010, a fls. 1627-1629, que indeferiu o requerimento de arguição de irregularidade formulado pelo arguido/recorrente;

VI- O recorrente é oficial da marinha mercante, ausentando-se do país em campanhas de pesca longínqua que chegam a durar 150 dias, sendo frequente passar em terra cerca de apenas 3 ou 4 semanas em cada ano civil;

VII- Os presentes autos haviam sido arquivados pelo M°P°, tendo o recorrente sido notificado desse arquivamento, tendo a assistente requerido abertura de instrução;

VIII- No seu requerimento de abertura de instrução, a assistente requereu abundante produção de prova, que veio a ser deferida;

IX- Foram designadas as datas de 09/07/2008 e 16/07.72008 para realização do debate instrutório;

X - Todavia, o arguido não foi notificado destes despachos nem convocado para o mencionado debate instrutório;

XI- Não obstante, veio a ser realizado o debate instrutório, e proferida decisão que pronunciou o recorrente e outros arguidos;

XII- Foi assim praticada uma nulidade insanável que, tendo sido arguida pelo recorrente em 04/01/2010, perante o Mm.° Juiz do Juízo de Média Instância Criminal de Z... da Comarca do Baixo Vouga (Juiz 2), arguição que mereceu o douto despacho de 17/02/2010, a fls. , no qual foi declarada a “nulidade do debate instrutório e, consequentemente, da decisão instrutória e de todos os actos subsequentes, devendo repetir-se o debate instrutório, notificando-se para o mesmo todos os arguidos” e determinada a remessa dos autos ao Juízo de Instrução Criminal de Z...;

XIII- Regressados os autos ao Juízo de Instrução Criminal de Z..., veio a ser marcada data para realização do debate instrutório para o dia 16/06/2010, durante o qual, a propósito da questão controversa referida em 1 destas conclusões o recorrente requereu a produção de prova suplementar aí mencionada, ao abrigo do disposto no art. 302°, n°2, do CPP;

XIV- Como é evidente, a prova em questão não podia ser produzida pelo arguido/recorrente;

XV- Na verdade, na parte em que o recorrente requereu fosse oficiada a DGPA para juntar aos autos e prestar as informações acima referidas, só através de requisição feita pelo Tribunal a quo (cfr. art. 535° do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi do art. 40º do CPP) poderia essa prova ser trazida para os autos;

XVI- Também a inquirição das testemunhas só poderia efectuar-se caso as mesmas
fossem
convocadas para o efeito pelo Tribunal a quo, uma vez que se trata de funcionários ou ex-funcionários da Inspecção Geral das Pescas / DGPA que o recorrente não tem possibilidades de fazer comparecer em juízo com o fim de aí prestarem depoimento;

XVII — Ora, as provas suplementares requeridas pelo recorrente eram essenciais para a demonstração de que tinha sido bem fundada a decisão, tomada pelo M° P°, de arquivamento do inquérito.

XVIII - Todavia, o requerimento de produção de provas indiciárias suplementares formulado pelo recorrente no debate instrutório veio a ser indeferido pela Mm.a Juiz a quo através do douto despacho de fls. 1624-25, do qual logo foi dado conhecimento aos presentes e do qual, de imediato, o recorrente arguiu a irregularidade.

XIX — Por douto despacho de fls. 1627-29, a Mm.a Juiz do Tribunal a quo conheceu do requerimento desta arguição formulada pelo recorrente, tendo decidido não existir qualquer irregularidade processual a reparar, indeferindo o requerido.

XX — Preceituando a lei adjectiva que a finalidade da instrução é a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (vd. art. 286°, no i, do CPP), e estando o processo penal vinculado ao respeito pelo princípio do contraditório (do qual são concretizações os direitos consagrados nas normas dos arts. 61°, n° 1, al. g) e 302°, no 2, do CPP), sempre deveria ter sido admitida a produção da prova indiciária suplementar requerida pelo recorrente.

XXI — O recorrente não desconhece o preceituado no art. 289°, n° 1, 1’ parte, e no art. 291°, no i, 2a parte, do CPP, mas, em concreto, considera que foram violados os seus direitos de defesa e cometida a irregularidade por si arguida;

XXII- Preceituando a lei que a instrução tem por finalidade a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito”, sempre deveria ser admitida, não apenas a prova requerida pela assistente, com o objectivo da prolação de despacho de pronúncia, mas também a prova requerida pelos arguidos ou pelo M° P°, com o objectivo da prolação de despacho de não pronúncia.

XXIII — Com efeito, através da produção da prova indiciária suplementar requerida pelo recorrente, ficaria demonstrado nos autos que os documentos que a IGP o facto de não constarem dos Diários de Pesca as quantidades de pescado cuja deterioração levou a que as mesmas tivessem sido deitadas ao mar - desde logo por razões de salubridade e de preservação do restante pescado que se encontrava a bordo do navio VX... - não significa que as mesmas não tivessem sido efectivamente capturadas.

XXIV — Defendendo a assistente que não se verificou a deterioração do pescado, e sustentando ela a sua argumentação no sentido da pronúncia na alegada quase coincidência entre as quantidades de pescado constantes dos Diários de Pesca e as quantidades de pescado constantes do relatório final de descarga da IGP/ DGPA - o que alegadamente significaria que não teriam sido deitados ao mar as quantidades de pescado referidas no Protesto Contra Incêndio e respectiva Adenda —, era importante, para esclarecimento da verdade, a produção da prova requerida pelo arguido/recorrente.

XXV- Veja-se que os Senhores Inspectores da IGP/DGPA que estiveram presentes no acto inspectivo levado a cabo aquando da descarga do navio VX... em Z..., ainda encontraram, inclusive nessa altura, pescado completamente deteriorado nos porões daquele navio.

XXVI- O recorrente pretendia fosse feita prova indiciária de que, em inúmeras campanhas de pesca de vários navios da frota nacional, se verificaram divergências entre os Diários de Pesca e os valores de descarga da IGP em quantidades semelhantes e até superiores às quantidades de pescado referidas no Protesto Contra Incêndio e respectiva Adenda.

XXVII — Pela aludida razão, ainda que sejam semelhantes os valores constantes dos Diários de Pesca e os valores de descarga, tal não prova, ainda que indiciariamente, que não tenham sido capturadas - e, na sequência do incêndio que ocorreu a bordo do VX..., deterioradas e deitadas ao mar - as quantidades de pescado mencionadas no Protesto Contra Incêndio e respectiva Adenda.

XXVIII — É que, conforme o recorrente também referiu, o próprio legislador, tendo consciência das especificidades da pesca marítima, refere-se aos dados que devem ser manifestados pelo capitão nos seus diários de pesca como meras estimativas das capturas efectuadas diariamente, e, assim, as próprias variações, por excesso ou por defeito, que não sejam superiores a 20%, entre as quantidades estimadas nos diários de pesca e as quantidades apuradas à descarga, não são sequer tipificadas como contra-ordenações, não estando, pois, sujeitas a qualquer tipo de punição, em termos de ilícito de mera ordenação social — cfr. art. 21°-A, n° 3, al. r), do DL 278/87 de 7 de Julho na redacção que lhe foi dada pelo DL 383/ 98, de 27 de Novembro.

XXIX — Ora, caso viesse a ser ordenada a junção aos autos dos documentos cuja requisição foi requerida pelo recorrente, demonstrativos das frequentes e significativas divergências (da ordem de mais de 300%), quer por excesso, quer por defeito, entre as quantidades de pescado constantes dos registos obrigatórios e as apuradas à descarga pelas autoridades inspectivas, então ficaria evidenciado que, ao contrário do que defende a assistente, não resulta indiciada a prática pelos arguidos dos factos que aquele lhes imputa.

XXX — Assim, através da produção da prova indiciária suplementar requerida pelo recorrente, ficaria demonstrado que dos documentos que a IGP/ DGPA juntou aos autos na sequência de requerimento da assistente não pode concluir-se, como
concluiu a assistente, pela existência de indícios para a pronúncia dos arguidos.

XXXI — Os elementos de prova indiciária requeridos pelo recorrente interessavam, pois, à instrução — e muito —, não servindo, de forma alguma, para protelar o andamento do processo, tendo ido neste sentido, aliás, o entendimento do Digm.° Senhor Procurador. (cfr. fls 1622).

XXXII -Também os demais arguidos, para além de não se oporem à produção das provas indiciárias requeridas pelo recorrente, consideraram a produção das mesmas útil para o esclarecimento da matéria dos autos e para o cumprimento das finalidades da instrução (cfr. fls. 1623-24).

XXXIII — Ora, o recorrente, que já tinha visto gravemente postergados os seus direitos de defesa nos presentes autos — no que veio até a ser considerado como a prática de uma nulidade insanável, no acima identificado despacho de 17/02/2010 do Mm.° Juiz do Juízo de Média Instância Criminal de Z... da Comarca do Baixo Vouga (Juiz 2) - não pode conformar-se com decisões, como a recorrida, que mais não significam que uma nova violação dos seus direitos de defesa, bem como do princípio do contraditório.

XXXIV- É na fase de instrução que deve ser admitida e ordenada a produção de prova indiciária, quer no sentido da demonstração que a decisão de arquivamento do inquérito carecia de fundamento, devendo ser proferido despacho de pronúncia (como defende a assistente); quer no sentido da demonstração de que essa mesma decisão de arquivamento do inquérito não era merecedora de censura, devendo, pois, ser proferido despacho de não pronúncia (como defendem o recorrente, o M° P° e os demais arguidos).

XXXV- Por essa razão, e com os fundamentos supra reproduzidos (cfr. fls. 1625), o recorrente arguiu a irregularidade do despacho que indeferiu a produção das provas indiciárias suplementares por si requeridas, tendo o Digm.° Senhor Procurador
entendido, mais uma vez, que assistia razão ao arguido na arguição da verificação de irregularidade, tendo considerado que a irregularidade tinha sido tempestivamente arguida e promovido fosse dada sem efeito a decisão relativamente à qual havia sido suscitada a irregularidade e fosse designada data para realização das diligências requeridas.

XXXVI- A decisão recorrida é merecedora de censura.

XXXVII- Verifica-se, com efeito, ter sido cometida a irregularidade arguida pelo recorrente, porquanto, ao não ter sido admitida a produção de prova indiciária suplementar por si requerida, foram violados os direitos de defesa daquele, bem como o princípio do contraditório (cfr. art. 61°, n° 1, al. g) e art. 32°, n° 5 da CRP), o princípio da investigação ou da verdade material e o princípio da igualdade de oportunidades.

XXXVIII- Não foi este o entendimento seguido pela Mm.’ Juiz a quo, a qual, em violação dos direitos de defesa do recorrente e do princípio do contraditório, não obstante ter em instrução sido admitida e ordenada a produção da prova requerida pela assistente, decidiu, relativamente ao requerido pelo recorrente, que essa prova configurava “urna “especial” defesa antecipada a urna decisão de pronúncia que ainda não logrou ser proferida” mais tendo decidido “que as diligências de prova que requer não são fundamentais para a análise e da decisão a proferir” (cfr. fls. 1625).

XXXIX- Não se pode aceitar que tenha sido usado como argumento, na fundamentação da decisão recorrida, o lapso de tempo decorrido desde o início do processo.

XL- O despacho de arquivamento do inquérito foi notificado aos sujeitos processuais por Ofícios datados de Maio de 2007, pelo que, salvo o devido respeito, não vislumbra o recorrente a relevância do argumento vertido no despacho recorrido, na parte em que nele se refere que o mesmo, tendo sido constituído arguido em 12/03/2004, poderia ter prestado declarações e não o fez (cfr. fls 1628 in fine e 1629), uma vez que, não tendo ele prestado declarações no âmbito do inquérito, mesmo assim veio o inquérito a ser arquivado.

XLI- Além de a faculdade de não prestar declarações constituir um direito do arguido em processo penal (cfr. art. 61°, n° 1, ai. d) do CPP), ao recorrente afigura-se absolutamente irrelevante a referida menção, relativa a um comportamento seu ocorrido mais de três anos antes de ter sido proferido despacho de arquivamento do inquérito...

XLII- Ademais, se os autos decorrem já há oito anos, esse facto certamente não
poderá ser imputado ao recorrente, mas sim, em boa parte, ao próprio Tribunal de
Instrução, que, designadamente, não observou o preceituado no art. 297°, n° 3, do
CPP, com o que foi praticada a nulidade insanável declarada no douto despacho de 17/02/2010 do Mm.° Juiz do Juízo de Média Instância Criminal de Z... da Comarca do Baixo Vouga (Juiz 2).

XLIII — Em obediência ao princípio da investigação ou da verdade material (cfr. arts. 340º, n° 1 e 323°, n°s a) e b)), a Mm.’ Juiz a quo deveria ter ordenado a produção dos meios de prova cujo conhecimento fosse necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

XLIV - O princípio da igualdade de oportunidades, previsto no art. 32°, n° 1, da CRP, preceitua que “a tramitação processual deve estar estruturada de modo a garantir que a acusação e a defesa disponham dos mesmos direitos e deveres no âmbito da intervenção judicial” (PAULA MARQUES CARVALHO, ob. cit., pág. 21).

XLV — No caso vertente, como supra se percutiu, não foi respeitada essa equidade ou igualdade de oportunidades.

XLVI — Por todo o exposto, verifica-se ter sido cometida a irregularidade que, tendo
26 sido tempestivamente arguida pelo recorrente, veio a ser indeferida pela Mm.a Juiz do Tribunal a
quo através da decisão que é objecto do presente recurso, porquanto, na realidade, foram efectivamente violados os direitos de defesa do arguido/recorrente e os princípios do contraditório, da investigação ou da verdade material, e da equidade ou igualdade de oportunidades.

XLVII — Termos nos quais deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare verificada a irregularidade arguida pelo recorrente e ordene a produção da prova indiciária suplementar por ele requerida, com os efeitos legais.

Nestes termos e melhores de Direito, cujo douto suprimento se invoca, deverão V. Exas conceder provimento ao presente recurso e em consequência revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que declare a irregularidade arguida pelo recorrente e ordene a produção da prova indiciária suplementar requerida pelo recorrente, com os demais efeitos legais».

            2.2. O Ministério Público da 1ª instância RESPONDEU da seguinte forma, em conclusão:

«I- Não pode o juiz de instrução criminal formular qualquer juízo antecipado e apriorístico sobre a utilidade — negativa - da produção de meios de prova requeridos pelo arguido em sede de debate instrutório, salvo se for evidente e claro que estes são manifestamente dilatórios, de obtenção impossível, muito duvidosa ou difícil.

II — Ao formular esse juízo e não se afigurando as diligências requeridas como objectivamente inúteis ou de relevância diminuta, o despacho recorrido comprimiu excessivamente e para além do admissível, o direito de defesa do arguido em infirmar os fundamentos e pressupostos de facto subjacentes ao despacho de acusação contra si proferido.

III — Assim, na declaração da irregularidade tempestivamente arguida, deverá julgar-se procedente o recurso interposto pelo recorrente e determinar-se a anulação de todos os actos posteriores e que dela dependam ou possa afectar, incluindo o despacho de pronúncia, com a consequente realização das diligências requeridas e ulterior designação de novo debate instrutório».

            4. A assistente RESPONDEU ao recurso, adiantando, em tom de conclusões, que:

            «I- Em 20 de Julho de 2007 foi proferido despacho de abertura de instrução, tendo o mesmo sido notificado ao Arguido Recorrente (cfr. artigo 287° n° 5 do CPP).

            II- O Arguido Recorrente foi notificado para interrogatório para os dias 4 de Outubro de 2007, 4 de Dezembro de 2007, 18 de Dezembro de 2007 e 26 de Fevereiro de 2008,

            III- Em nenhuma destas datas agendadas, embora tenha sido regularmente notificado, o Arguido Recorrente esteve presente nem justificou, em termos pessoais, a sua ausência, não obstante ter estado sempre representado por Advogado.

IV — O Tribunal decidiu, numa última tentativa para ouvir o Arguido Recorrente, notificá-lo para a sua morada profissional da marcação do seu interrogatório para o dia 30 de Abril de 2008, não tendo este uma vez mais comparecido (cfr. fls 1031 dos autos), nem apresentado pessoalmente qualquer justificação, embora tenha sido junta aos autos a declaração da sua entidade patronal de fls. 1039 dos autos.

V — As notificações seguintes feitas ao Recorrente Arguido, designadamente, o agendamento do debate instrutório para o dia 9 de Julho de 2008 e o seu adiamento para o dia 16 de Julho de 2008, foram feitas para a morada profissional deste,

VI — Em face deste facto, o Arguido Recorrente veio invocar, através do requerimento de fls. 1522-1534, a nulidade do debate instrutório e actos subsequentes, por não ter sido notificado para a morada constante do T.I.R.,

VII — O que levou o Tribunal de Julgamento, mediante Despacho datado de 17 de Fevereiro de 2010, a declarar a nulidade do debate instrutório e da posterior decisão instrutória, ordenando a repetição do debate instrutório.

VIII - Tendo regressado o presente processo ao Tribunal de Instrução foi, então, marcado o segundo debate instrutório para o dia 24 de Maio de 2010, o qual veio, também, a ser adiado para o dia 16 de Junho de 2010.

IX — Só no dia de realização do debate instrutório (16 de Junho de 2010) o Arguido Recorrente entendeu por bem requerer, ao abrigo do artigo 302° n° 2 do Código de Processo Penal (adiante CPP), a produção prova indiciária suplementar constante do requerimento de fls 1619-162 1 dos autos.

X — O Arguido Recorrente veio suscitar a irregularidade do despacho de indeferimento da prova indiciária suplementar a fls. 1625 dos autos sobre o qual veio a ser proferido o Despacho recorrido de fls. 1627-1629.

XI - A arguição de irregularidade e posterior interposição do recurso do despacho que a indeferiu constitui, de forma encapotada, uma tentativa de ver apreciada uma decisão sobre o indeferimento da produção de provas requerida, que cabe na livre resolução do Juiz, relativamente à qual a lei processual penal não admite recurso (cfr. artigo 291° n° , 2a parte e n°2 do CPP), o que aqui se invoca para os devidos efeitos, nomeadamente, a rejeição liminar do recurso por inadmissibilidade legal (cfr. artigos 399° e 401° n° 1, alínea b), ambos do CPP),

XII - O Diário de Pesca (fls. PRT n°s 1443949 a 1443964), bem como a Declaração de Descarga em Agadir (fl. PRT n° 3044254) e Declaração de Descarga em Z... (fI. PRT n° 3044255) que se encontram juntas ao relatório de inspecção da IGP tratam-se de elementos fornecidos pelo Arguido Recorrente às autoridades, na qualidade de mestre da embarcação e encontram-se assinados pelo próprio (cfr. fls. 1046 a 1074 dos autos), pelo que o mesmo sempre teria acesso a esses documentos.

XIII - Desde a notificação do douto Despacho de abertura de instrução (cfr. artigo 287° n° 5 do CPP) proferido em 20 de Julho de 2007, ou, pelo menos, a partir da notificação dos documentos que foram juntos aos autos pela DGPAIIGP, em 21 de
Maio de 2008, que o Recorrente podia ter requerido a produção de prova que considerasse útil à defesa da sua posição.

XIV — A produção de prova requerida pelo Arguido durante o debate instrutório sempre seria legalmente inadmissível, pois o artigo 302° n° 2 do CPP dispõe expressamente que no decurso do debate instrutório os sujeitos processuais nele referidos podem requerer “a produção de provas indiciárias suplementares que se proponham apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas.

XV — O deferimento ou indeferimento dos actos de instrução, quer requeridos pelo Arguido, pelo Ministério Público ou pelo Assistente, atenta a própria finalidade da fase instrutória, estão no âmbito da livre resolução do juiz (cfr. artigos 289° n° 1 e 291° n° 1 do CPP).

XVI — A decisão sobre a requerida produção de prova indiciária suplementar no decurso do debate instrutório também se encontra abrangida pela livre resolução do Tribunal.

XVII — Resulta do requerimento de produção de prova apresentado pelo Arguido Recorrente, mediante confronto com os termos do processo, a total inutilidade da prova requerida.

XVIII — O Arguido Recorrente poderia ter requerido a requisição dos documentos e informações e a inquirição das testemunhas em qualquer fase do processo e não apenas no decurso do debate instrutório, bem como solicitado directamente junto da DGPAIIGP a emissão de certidão.

XIX — Só poderia ter havido violação do princípio do contraditório se o Arguido Recorrente não se tivesse podido pronunciar sobre todas as provas existentes nos autos aquando da realização do debate instrutório ou se, no decorrer deste tivesse sido produzida uma qualquer prova por um dos outros sujeitos processuais e não lhe tivesse sido assegurada a contraditoriedade na produção da prova, mas nenhuma destas situações sucedeu no caso concreto.

XX — Não se verificou qualquer violação do princípio da investigação ou verdade material pois este - como todas as normas da vida humana em sociedade - não tem carácter absoluto, devendo conformar-se com outros princípios igualmente válidos e presentes no processo penal, como sejam os princípios relativos à conformação processual e à necessidade de produção das provas.

XXI — O Arguido Recorrente teve oportunidade de requerer a realização de todas as provas que considerava essenciais para a descoberta da verdade em observância dos trâmites processuais legalmente estabelecidos antes do debate instrutório (artigo 291° do CPP) e durante o mesmo (artigo 302° n° 2 do CPP), pelo que nunca se poderia considerar violado o princípio da investigação ou da verdade material,

XXII — O Arguido Recorrente dispôs, pelo menos, de toda a fase da instrução e até ao debate instrutório, à semelhança do que aconteceu com a Assistente, para requerer a produção da prova que entendesse conveniente à sua defesa, estando a mesma, tal como também sucedeu em relação à Assistente, sujeita ao crivo do artigo 291° n°1 do Código de Processo Penal (utilidade das provas requeridas), o que aquele optou por não fazer,

XXIII — Posteriormente, no decurso do debate instrutório, o Arguido Recorrente requereu a produção de prova indiciária suplementar sem que se propusesse apresentar a mesma durante o debate, conforme é exigido pelo artigo 302° n° 2 do CPP,

XXIV — Nenhum outro sujeito processual requereu a produção de prova indiciária suplementar (que não se propunha apresentar) no decurso do debate instrutório, pelo que também aqui não se vislumbra como poderia ter sido violado o princípio da igualdade de oportunidades ou de armas,

XXV — A exigência prevista no artigo 302° no 2 do CPP relativa à apresentação das provas durante o debate não é “infundamentada, desrazoável ou arbitrária” mas antes tem em vista a função típica da instrução (aferição de um mero juízo indiciário) e as exigências de celeridade e eficácia do processo penal, e a necessidade de respeitar o prazo máximo de duração de tal fase processual.

XXVI — Na fase da instrução a igualdade de oportunidades foi inteiramente assegurada, uma vez que todos os sujeitos processuais e, particularmente, o Arguido Recorrente, tiveram as mesmas possibilidades de requerer a produção de prova e de apresentar os seus pontos de vista e a pertinente argumentação em defesa das posições respectivas.

XXVII — Não corresponde à verdade que o Tribunal de Instrução tenha indeferido a produção de prova requerida pelo Arguido Recorrente, e admitido a produção de todos os elementos probatórios requeridos pela Assistente, ora Alegante.

XXVIII — Em qualquer caso, as situações não seriam comparáveis, pois a prova requerida pela Assistente teve lugar no Requerimento de abertura de instrução, enquanto o Arguido Recorrente requereu a produção de prova indiciária suplementar no decurso do debate instrutório sem observar o disposto no artigo 302° n° 2 do CPP,

XXIX - A prova requerida pelo Arguido Recorrente, quanto às alegadas inúmeras situações de divergência significativa entre as quantidades de pescado capturado e as apuradas à descarga pelas autoridades, a existir, seria absolutamente inútil, por irrelevante, pois não diria respeito ao navio em questão nos autos mas a outros navios, quando é sabido que cada embarcação tem condições de funcionamento diferentes, designadamente, utilizando processos de transformação ou processamento do pescado diversos (e, por consequência utilizando factores de conversão também eles desiguais).

XXX - Os valores que devem ser indicados no Diário de Pesca (pescado capturado e mantido a bordo) não são meras estimativas, pois existe um dever de exactidão na inscrição dos referidos valores por parte do Capitão da embarcação (cfr. Anexo IV do Regulamento (CEE) n° 2807/83, da Comissão, de 22 de Setembro),

XXXI — A situação da lei apenas cominar como contra-ordenação a verificação de um erro no valor das inscrições apostas no diário de bordo superior a 20% não exclui o aludido dever de exactidão por parte do Capitão do navio.

XXXII — E, um Capitão medianamente diligente terá o cuidado devido na inscrição dos valores das capturas, pois uma desconformidade à descarga superior a 20%
acarreta pesadas sanções, quer ao nível das coimas (cfr. artigo 21-A, n° 3, alínea r) do Decreto-Lei n° 278/87, de 7 de Julho, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n° 383/98, de 27 de Novembro), quer das sanções acessórias aplicáveis (artigo 22° do mesmo diploma legal).

XXXIII - O douto Despacho recorrido fez uma correcta aplicação dos princípios e das normas legais aplicáveis, não merecendo qualquer censura.

Nestes termos e nos demais que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser confirmado o douto Despacho recorrido e assim se fará
JUSTIÇA».

                                   *******************************

3. SOBRE O 2º RECURSO

3.1. O arguido, motivando o seu 2º recurso, apresenta as seguintes CONCLUSÕES (em transcrição):

«I- O despacho do M.° P.° que ordenou o arquivamento dos autos não é
merecedor de censura;

II- Os elementos de prova indiciária requeridos pelo recorrente interessavam
à instrução, tendo sido também este o entendimento do Digm.° Senhor
Procurador (cfr.
fls. 1622);

III- É na fase de instrução que deve ser admitida e ordenada a produção de prova indiciária, quer no sentido da demonstração que a decisão de arquivamento do inquérito carecia de fundamento, devendo ser proferido despacho de pronúncia (como defende a assistente); quer no sentido da demonstração de que essa mesma decisão de arquivamento do inquérito não era merecedora de censura, devendo, pois, ser proferido despacho de não pronúncia (como defendem o recorrente, o M° P° e os demais arguidos;

IV - Ao não ter sido admitida a produção de prova indiciária suplementar requerida, foram violados os direitos de defesa do recorrente, bem como o princípio do contraditório (cfr. art. 61°, n° 1, al. g) e art. 32°, n° 5 da CRP), o princípio da investigação ou da verdade material, o princípio da igualdade de oportunidades e o princípio da investigação ou da verdade material (cfr. arts. 340º, n° 1 e 323°, n°s a) e b));

V- Esta recusa originou a respectiva arguição de irregularidade por parte do recorrente e a interposição do respectivo recurso ora pendente no Tribunal da Relação;

VI -As diligências probatórias, requeridas pela assistente, entretanto levadas a cabo não lograram trazer aos autos quaisquer novos indícios, designadamente quaisquer indícios que permitissem fundamentar uma decisão de pronúncia;

VII — Dos fundamentos da douta decisão recorrida resulta claramente que a Mmª Juiz de Instrução fez uma errada apreciação da prova trazida aos autos;

VIII- De toda a prova até ao momento produzida, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, resulta que não foram recolhidos indícios suficientes de que o recorrente e os demais arguidos terão praticado os factos que lhes foram imputados;

IX- A decisão recorrida ao pronunciar pela prática de um crime de burla qualificada o recorrente e demais arguidos, fez uma incorrecta aplicação do direito aos factos e, dessa forma, violando o disposto nos arts. 308°-1-2 e 283°- 2, do CPP.

Nestes termos e nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.as, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, deverá ser revogada a decisão recorrida e ordenada a sua substituição por outra que determine a não pronúncia dos arguidos e o arquivamento dos autos».

            3.2. O Ministério Público da 1ª instância RESPONDEU da seguinte forma, em conclusão:

«I- Nos termos do art° 286° do Código de Processo Penal, a instrução tem por finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, devem ser necessariamente produzidas ou examinadas as provas, nos termos do disposto no art° 355° do mesmo diploma legal.

II- Os indícios são suficientes quando, permitam efectuar um juízo de prognose de uma muito provável futura condenação do arguido ou de que esta seja mais provável que a sua absolvição - art.° 283°, n.° 1 e art° 308°, n.° 2 do Código de Processo Penal.

III- Os documentos recolhidos e a peRR...gem efectuada, congruentes com os depoimentos das testemunhas, não permitem outra conclusão lógica a não ser que não foi descarregada e/ou baldeada qualquer carga do navio “VX...” para o mar, não tendo existido a perda de pescado cuja indemnização veio a ser reclamada pela AC... & C., LDA, e paga pela assistente

IV- O despacho de pronúncia recorrido fez, assim, correcta apreciação dos factos e interpretação do direito,

V- Pelo que deve ser mantido»

 

            3.3. A assistente RESPONDEU ao recurso, adiantando, em tom de conclusões, que:

            «I- O Arguido Recorrente vem invocar a questão da violação dos seus direitos de defesa por referência ao facto de ter sido julgada improcedente a irregularidade por si suscitada após o indeferimento do requerimento de produção de prova indiciária suplementar apresentado no decurso do debate instrutório realizado no dia 16 de Junho de 2010, matéria relativamente à qual interpôs um recurso para este Tribunal em 12 de Julho de 2010.

II — A questão da irregularidade do Despacho que decidiu indeferir a produção de prova indiciária suplementar requerida pelo Arguido ora Recorrente, salvo melhor opinião, não poderá ser apreciada no âmbito do presente recurso, pois tal matéria já foi objecto de um outro recurso (interposto em 12 de Julho de 2010), pelo que deverão improceder, liminarmente, as motivações do recurso e conclusões que aludem a esta matéria (Conclusões II a V).

III — Para o caso de assim não se entender, a ora Alegante, por razões de economia processual, dá aqui como reproduzido, para todos os efeitos legais, as contra-alegações que apresentou em Resposta ao recurso apresentado pelo Arguido Recorrente em 12 de Julho de 2010.

IV — O Meritíssimo Juiz de Instrução não valorou negativamente, ou de qualquer outra forma, a decisão do Arguido Recorrente não prestar declarações na fase de Inquérito,

V — O Arguido Recorrente foi notificado várias vezes para vir prestar declarações durante a fase de Instrução, mas nunca compareceu, nem apresentou a competente
justificação e quando, finalmente, esteve presente no Debate Instrutório realizado no dia 16 de Junho de 2010, entendeu não prestar quaisquer declarações.

VI — O facto do Despacho de Pronúncia não ter considerado suficientemente relevantes as declarações prestadas pelas testemunhas AQ…, MM... e PM… e pelo Arguido Recorrente junto da Polícia Marítima, em face do teor dos depoimentos das testemunhas prestados em sede de Inquérito e Instrução, não merece qualquer censura, pois aquelas primeiras declarações limitaram-se a dar por reproduzido o exposto no Relatório de Mar (composto pelo Protesto contra incêndio e Adenda ao Protesto) de fls. 17-18 e 19 dos autos,

VII — Este Relatório de Mar não foi confirmado pela Polícia Marítima “em virtude de se verificarem divergências entre os depoimentos prestados pelas testemunhas e os registos dos Diários de Bordo” (cfr. páginas 5 e ss. do próprio Despacho de arquivamento).

VIII — Das pessoas que assinaram o Relatório de Mar e que foi possível ouvir em sede de Inquérito ou Instrução, temos a testemunha AQ..., que referiu expressamente que não estava a bordo da embarcação à data do sinistro (cfr. fls. 562 dos autos) e a testemunha PM... que afirmou que o Relatório de Mar lhe foi apresentado, para assinatura, sem que tivesse oportunidade de verificar o teor do mesmo.

IX — Também o Relatório da empresa de pe RR...gem NV... (Doc. 10 da Queixa) põe em evidência as diversas incoerências e incongruências do Relatório de Mar.

X — Carece totalmente de fundamento a alegação do Arguido Recorrente de que a decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz de Instrução incorreu em erro sobre a apreciação da prova em relação às declarações da testemunha JC....

XI — Da documentação recebida da Inspecção-Geral das Pescas (Doc. 1, do Anexo II do Relatório da empresa de peRR...gem NV... — Doc. 10 da Queixa e documentos juntos aos autos a fls. 1046 a 1074 dos autos) resulta que o peso líquido do pescado que foi descarregado do navio “VX...”, após a aplicação dos factores de correcção relativos ao processamento efectuado (evisceração, descabeçamento, corte de cauda ou filetagem) corresponde aos valores de peixe vivo capturado declarado no Diário de pesca do navio, não excedendo em nenhum dos casos a margem dos 20% consentidos.

XIII — Relativamente à espécie Palmeta (GHL) em causa nos autos, o peso do pescado processado descarregado (170.590,00 Kg), aplicado o Factor de Conversão (170.590,00 kg x 1,4) apresenta uma quantidade (238.820,00 Kg) e percentagem superior (÷ 6,76%) ao valor do pescado declarado no Diário de pesca (222.677,00 Kg),

XIV — O perito que elaborou o Relatório de peRR...gem concluiu que não foi possível ter-se baldeado para o mar qualquer quantidade de carga e muito menos os
alegados 61.992,00 kg de Palmeta (cfr. Relatório da empresa de peRR...gem NV..., ponto 2.1., páginas 6 e 7).

XV — Para que se pudesse ter verificado a baldeação de peixe (Palmeta) deteriorado para o mar, o total de peixe processado (232.578,00 Kg), aplicado o factor de conversão indicado pelo Capitão do navio (1,4) levaria a um valor total de peixe vivo capturado estimado de 325.609,00 Kg (232.578 Kg x 1,4),

XVI — O que, tendo em conta o valor do pescado vivo efectivamente declarado no Diário de pesca do navio (222.677,00 Kg) significaria uma diferença de — 102.932,00 Kg (325.609,00 Kg — 222.677,00 Kg) e, em termos percentuais, de — 31,6 %, portanto, de um valor muito superior à margem de 20% legalmente permitida.

XVII — A tese sustentada pelo Arguido Recorrente levaria ao absurdo, por impossibilidade, de o peso total do peixe vivo capturado declarado no Diário de pesca (222.677,00 Kg), após transformação ou processamento, ser inferior ao peso total do peixe processado (232.578,00 Kg).

XVIII — As quantidades de pescado capturado e mantido a bordo do navio não são assim tão “estimativas”, pois exige-se do Capitão do navio uma certificação da boa qualidade das inscrições apostas no Diário de bordo ou pesca (cfr. Reg. (CEE) n° 2807/83, da Comissão, de 22 de Setembro), e um erro superior a 20% acarreta pesadas sanções, quer ao nível de coimas (cfr. Artigo 21°-A, n° 3, alínea r) do DL n° 278/87, de 07 de Julho, na redacção introduzida pelo DL n° 383/98, de 27 de Novembro), quer das sanções acessórias aplicáveis (cfr. artigo 22° do mesmo diploma legal,

XIX — O Capitão do navio é o responsável pela contabilização e processamento do pescado, bem como pela exactidão das declarações que presta junto das Autoridades competentes, sendo ele o único que assina o Diário de pesca certificando a boa qualidade das inscrições relativas às quantidades capturadas e mantidas a bordo.

XX — O Capitão do navio desloca-se frequentemente à zona de recepção e de processamento do pescado para avaliar da quantidade, qualidade e legalidade do peixe que anda a capturar, sendo o único e principal responsável pela expedição marítima e pela realização dos registos legalmente obrigatórios (cfr. artigos 5° e 6°, alíneas a), g) e 1) do DL n° 384/99, de 23 de Setembro).

XXI — O douto Despacho de pronúncia ao decidir que a documentação recebida da Inspecção-Geral das Pescas e a peRR...gem efectuada pela empresa NV... demonstram que não foi baldeada qualquer carga do navio “VX...” para o mar e que, portanto, não se verificou a perda de pescado cuja indemnização veio a ser reclamada pela AC... & C., LDA, e paga pela Assistente, ora Alegante, IF P & C III... LTD., não incorreu em qualquer erro de apreciação da prova indiciária, pelo que não merece qualquer reparo, quer de facto quer de direito.

Nestes termos e nos demais que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser confirmado a douta Decisão de Pronúncia recorrida e assim se fará JUSTIÇA»

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto limitou-se a um «visto».

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (Cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as duas questões a resolver consistem no seguinte:

1ª- Foi cometida alguma IRREGULARIDADE pelo tribunal recorrido, ao não se admitir a produção de prova indiciária suplementar requerida pelo arguido recorrente no próprio dia do debate instrutório?

2º- Há indícios de que o arguido praticou o crime de burla qualificada?

           

2. Os despachos recorridos têm o seguinte teor:

1º DESPACHO RECORRIDO[2]
«Não alcança o Tribunal o concreto normativo violado ou disposição legal em que
escora o arguido AT...a irregularidade que supra arguiu.

Trazendo à colação aquilo que define o que são irregularidades processuais, o estabelecido no art.° 11 8.°, n.° 1 e 2 do C. P. Penal, não invoca o arguido a concreta violação de um normativo que imponha a prática dos actos que requereu.
Vejamos:
Estabelece o art.° 286.° do C. P. Penal, no seu n.° 1, cuja redacção aqui se convoca, para relembrar que estamos em fase de instrução e não em sede de inquérito, e que a instrução tem por finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Neste caso, e mais uma vez o referimos, a decisão proferida pelo M.° P.° em 1 1/04//2007, foi a de de arquivamento do processo.
Estabelece também o art.° 288.°, n.° 1, que a direcção da instrução compete a um Juiz de Instrução que em obediência ao poder conferido pelo art.° 29l.°, do mesmo corpo de normas, efectua, isto é, autoriza a realização de todos os actos de instrução que reputar com interesse para o apuramento da verdade, indeferindo aqueles outros que na perspectiva da realização desta fase judicial, (que sublinhamos, não visa realização de um julgamento antecipado dos factos e a prolação da decisão absolutória ou condenatória), entender justificados, designadamentc por obstaculizarem o andamento do processo.
Este poder de conformar a prática de todos os actos à finalidade da instrução, é nos termos do estatuído no art.° 291 .°, n.° 2, insusceptível de recurso.
Ora, o que supra se decidiu, mais não consubstancia que a prática de um acto legalmente posto sob a disponibilidade do Juiz de Instrução, cujo fundamento se nos afigura suficientemente explícito e em conformidade com o espírito da lei ,nos termos do art.° 302.°,n.° 2 do C. P. Penal.
Ainda assim e à margem disto, sempre se dirá que o arguido AT..., foi constituído nessa qualidade em 12/03/2004, há portanto seis anos, comunicados que lhe foram os factos denunciados pela assistente, declarou, no exercício de um direito que lhe é constitucionalmente consagrado e encontra expressão no art.° 61º do C.P.Penal, não pretender prestar declarações, limitando-se a dizer, sobre a matéria dos autos “nada” (cfr. fls. 507 do autos).
Todavia, na mesma data teve o arguido também conhecimento, em estrito cumprimento
do estabelecido no art.° 61º, n.° 1, al.g) do mesmo diploma legal - conforme se vê pela notificação por si assinada e que consta a fls. 506 dos autos - que outro dos direitos processuais que lhe eram  conferidos em decorrência natural da sua qualidade de arguido, era o direito de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurassem necessárias,
arguido teve defensor constituído nos autos que o assistiu ao longo dos seis anos do processo contados desde o momento em que foi constituído arguido e foi sendo por diversas vezes chamado a intervir no processo;

Não pode, portanto, com justiça afirmar que lhe foram ou lhe estão a ser coarctados quaisquer direitos processuais, especialmente o de defesa.
Posto isto e na conformidade com o que primeiramente se disse, não há qualquer irregularidade processual a reparar pelo que se indefere ao requerido.
Notifique».

            2º DESPACHO RECORRIDO

           

            «Declaro encerrada a instrução.

O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.

Não há nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer.


*

Reagindo ao despacho de arquivamento formulado pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, veio a assistente IFP & C III..., LTD requerer a abertura da presente instrução defendendo, em suma, a existência de indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes de burla qualificada e de burla relativa a seguros, p. e p. pelos arts. 217°, 218°, n. 2 al.a) e 219° do Código Penal.

Os actos de instrução:

Por despacho de fls. 846 foi declarada aberta a instrução.

Foram inquiridas as testemunhas indicadas e procedeu-se à audição dos arguidos e à junção aos autos de diversos documentos com relevância probatória.

Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo Ministério Público, assistente e arguidos.

Vejamos.

A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art.°. 308°, n.°. 1 do Cód. Proc. Penal).

Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art.°. 283°, n.° 1 ex vi do art. 308°, n.°. 2, ambos do Cód. Proc. Penal).

A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado.

Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: ‘A prova judiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”.

A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art.° 308° do Cód. Proc. Penal.

Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar “alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se
verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva,

“As provas recolhidas nas frises preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento.

Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de “julgamento antecipado” nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público/assistente de acusar.

Nessa verificação deverá no entanto o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.

Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica a apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, mas apenas se julga da verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.


*

Da decisão de Pronunciar: a existência ou não de indícios suficientes

Importa agora aquilatar da existência de indícios que suportem a narrativa de uma acusação/pronúncia, assim se fazendo o controlo jurisdicional da decisão de acusar ou arquivar e que é pressuposto e fim da instrução.

Temos pois, in casu, que analisar a prova produzida em sede de inquérito e instrução e proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.

Vejamos então, o que se extrai dos presentes autos com relevo para a presente decisão:

Compulsados os autos, verifica-se a existência de incoerências, contradições e
inverosimilhanças entre os depoimentos das testemunhas e arguidos já que:

- Os arguidos OL…, L... e CC... não revelaram qualquer conhecimento directo sobre a forma como ocorreu o sinistro dado que só tiveram conhecimento do mesmo posteriormente (fls 91, 64 e 353/354).

Destes arguidos, TT... e OL… assinaram os documentos de fls. 21, 25, tendo intervenção directa no processo de reclamação de sinistro à sociedade queixosa, não se verificando nos autos qualquer intervenção no mesmo processo de CC..., não podendo pois ser responsabilizado criminalmente apenas por ser gerente da sociedade AC... & C., LDA à data dos factos.

- O arguido AT..., não pretendeu prestar quaisquer declarações (fls. 508);

- O Arguido TM..., apesar de não ter presenciado o sinistro e de afirmar ser apenas funcionário da AC... & C., LDA, depôs de forma detalhada sobre as consequências do mesmo nos termos constantes de fls 422 a 426 e 947 a 949.

Apesar das suas declarações regista-se que este assumiu a qualidade de gerente da AC... & Cª, LDA no fax que dirigiu à TF III... (constante nos autos a fls. 79), sendo também que os restantes arguidos afirmam peremptoriamente que é este que assume a gerência de facto da empresa, dado este que é também do conhecimento oficioso.

Ora, ocupando este arguido a posição que lhe é reconhecida na empresa e não tendo conhecimento directo sobre os factos, não se pode ter o seu depoimento como isento e imparcial, pelo que não pode o Tribunal conferir-lhe relevância probatória, ainda que indiciária;

- A testemunha AQ..., ouvida a fls 562, nenhum conhecimento revelou sobre os factos aqui em apreço, dizendo mesmo que na data em que o sinistro ocorreu não se encontrava no interior do VX..., mas sim em terra, o que contraria frontalmente as indicações apostas no protesto contra incêndio e adenda ao protesto contra incêndio, onde aquele figura como Chefe de Máquinas, bem como as declarações que prestou quando inquirido na Polícia Marítima (fls. 698).

- A testemunha MM…, ouvida a fls. 563, confirmou a existência de um incêndio a bordo e a existência a bordo de danos materiais muito avultados, ficando destruído parte do parque de pesca, bem como o porão e respectiva carga, ficando o navio impossibilitado de processar o respectivo pescado. Disse ainda que tal incêndio obrigou o navio a regressar ao Porto de Z.... Não se referiu a qualquer pescado que fosse atirado borda fora.

- A testemunha PM..., ouvida a fls 589, confirmou a existência de um incêndio a bordo e a existência a bordo de danos materiais muito avultados, ficando destruído totalmente o parque de pesca, bem como a maioria do pescado que se encontrava no porão da proa do navio. Disse ainda que atiraram vários cartões para o mar não indicando a quantidade.

- A testemunha JC..., tripulante do navio, referiu que “foram colocados ao mar cerca de uma tonelada de pescado” e, quando ouvido novamente em sede de instrução, afirmou não ter visto o pescado a ser atirado ao mar nem a sua quantidade;

- A testemunha OJ..., tripulante do navio, veio dizer que “não se recorda” “se houve danos no pescado, nem se terá sido colocado algum borda fora”.

Por seu lado, o procedimento instaurado pela Polícia Marítima de Z... ao incêndio ocorrido a bordo do navio “VX...” teve como conclusão a existência de divergências significativas entre os depoimentos prestados pelas testemunhas e em contradição com os registos nos diários de bordo — de navegação e de máquinas —  não sendo possível ou admissível poder-se confirmar o relatório de mar, o que motivou o despacho final ali exarado pelo Capitão do Porto: “Não confirmo o protesto de mar uma vez que não existe unanimidade nos depoimentos verificando-se existir contradição com o registado no diário náutico e diário de máquinas”.

Acresce que, dos documentos recebidos da Inspecção-Geral das Pescas que foram
juntos aos autos como Anexo II, Doc. 1 e do Relatório da empresa NV... - PeRR...gens e Consultadoria Naval, Lda. Doc. 10 da Participação Inicial) que o peso líquido do pescado que foi descarregado do navio “VX...”, após aplicação dos factores de correcção relativos ao processamento efectuado (evisceração, descabeçamento, corte de cauda ou filetagem) corresponde aos valores de peixe vivo capturado, conforme declarado rio Diário de pesca do navio, o que, levou à conclusão do Perito que elaborou o Relatório referido: “Não foi portanto possível ter-se baldeado para o mar qualquer quantidade de carga, muito menos os
alegados 61 992 kg” (Relatório da empresa NV..., ponto 2.1., páginas 6 e 7).

Assim, da documentação existente nos autos e da peritagem efectuada, verifica-se, a título indiciário, que não foi descarregada e/ou baldeada qualquer carga do navio “VX...” para o mar, não tendo existido a perda de pescado cuja indemnização veio a ser reclamada pela AC... & Cª., LDA, e paga pela sociedade assistente.


*

Do crime de burla:

Dispõe o artigo 217.°, n.° 1 do Código Penal: “quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

O crime de burla traduz-se assim numa actuação pela qual o agente, mediante artifícios enganosos e sem o propósito de proceder a uma restituição ou de cumprir uma adequada contra-prestação, consegue que outrem lhe entregue bens ou valores, pelo que tal crime tem como elementos a conduta enganosa do agente, o propósito de obtenção de um proveito ilegítimo, a produção, no ofendido, de um falso convencimento da obtenção de futuras vantagens e a entrega dos bens ou valores.

Por outro lado, no crime de burla é necessário que o elemento “agir astuciosamente” se junte o limitativamente ao dolo específico, de tal forma que, mesmo havendo a intenção de enriquecimento ilegítimo, o modo pelo qual se realiza essa intenção se revele engenhoso, enganoso, criando a aparência de realidades que não existem, ou falseando directamente a realidade.

In casu, verificam-se todos os elementos constitutivos deste tipo legal de ilícito criminal.

Pelo exposto, não pronuncio para julgamento o arguido CC… e

pronuncio para julgamento perante Tribunal Colectivo:

· AT..., id a fls 508;

· L…  id a fls 644 e

· TM..., id a fls 427,
porquanto:

       A IF P & III..., LTD, sedeada em ... - Estocolmo — Suécia, é uma empresa que se dedica à actividade seguradora.

A AC... & C.a, LDA é urna empresa de pesca que opera vários navios de pesca, entre os quais o navio “VX...”, do qual é proprietária.

No exercício da sua normal actividade, a A IF P & III..., LTD celebrou com a AC... & C.”, LDA um contrato de seguro de pescado, através da apólice n.° NS ... pelo período compreendido entre 27/04/00 e 26/04/01.

Tinha este seguro como objecto a cobertura dos riscos inerentes ao pescado capturado por diversos navios de pesca, entre os quais o navio “VX...”, no período compreendido entre o momento de embalagem e arrumação a bordo do navio até ao momento em que o segurado deixasse de ter sobre o mesmo pescado qualquer interesse
segurável.

No dia 22 de Janeiro de 2001, encontrando-se o navio “VX...” na faina da pesca, ocorreu a bordo um incêndio.

Alegadamente, uma parte da água usada no ataque ao incêndio, teria entrado no porão onde o peixe estava armazenado, e teria alegadamente também provocado a perda total de 2.902 cartões (62 toneladas) de pescado, conforme Adenda ao Protesto contra incêndio, cuja cópia se junta, cartões estes que acabaram por ser lançados ao mar.

Com este fundamento, a AC... & C.”. LDA reclamou da Queixosa a perda total dos aludidos 2.902 cartões de pescado, ao qual, segundo aquela, correspondia o valor de USD 186.000 (cento e oitenta e seis mil dólares), valor que a ofendida indemnizou à AC... & Cª, LDA.

Contudo, na sequência do dito incêndio não se verificou a perda de qualquer pescado capturado pelo navio “VX...”, já que o peso líquido do pescado que foi descarregado do navio “VX...’, após aplicação dos factores de correcção relativos ao processamento efectuado (evisceração, descabeçamento, corte de cauda ou filetagem) corresponde aos valores de peixe vivo capturado, conforme declarado no Diário de pesca do navio.

Os arguidos, ao relatar da forma descrita à assistente a perda de pescado mencionada bem sabiam que a mesma não tinha ocorrido, pretendendo que a assistente efectuasse um pagamento indevido e que a AC... & C.”, LDA. obtivesse ilegitimamente a indemnização de USD 186.000,00 (cento e oitenta e seis mil dólares), o que vieram a conseguir.

Causaram os arguidos, com a descrita conduta, um prejuízo à assistente no valor de USD 186.000,00 (cento e oitenta e seis mil dólares).

Agiram os arguidos, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Cometeram assim os arguidos, em co-autoria material, um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217°, 218°, n.° 2, alínea a) e 202°, alínea b), todos do Código Penal.


*

Prova:
Testemunhal:

- ABC..., id. a fls. 198;

- JR..., perito, id. a fls. 469;

- OJ..., id. a fls. 794;

- JC..., id. a fls. 793.

Documental:

- Documentos de fls 13 a 79, 436 a 446, 614 a 634, 661 a 669, 677 a 772, 7’4 a 779;

- Relatório da Direcção-Geral das Pescas e Aquicultura de fls 1046 a 1074;

Medida de coacção:

Considerando os elementos constantes dos autos, não se verifica, por ora, nenhuma das circunstâncias previstas no art. 204° do Código de Processo Penal.

Nesta conformidade, os arguidos aguardarão os ulteriores termos do processo sujeitos a Termo de Identidade e Residência, de acordo com o disposto no n.° 3, do art. 196°, daquele diploma, por a mesma se afigurar suficiente e adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade da infracção, tudo de harmonia com o disposto nos arts. 191°, 193°, 196° e 204° a contrario, todos do Código de Processo Penal.

Sem custas.

Notifique.

Oportunamente, remeta os autos para julgamento».

 

            3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

3.1. 1º RECURSO

O 1º recurso do arguido AT… reporta-se ao despacho exarado na acta de debate instrutório datada de 16/6/2010 (fls fls 1627 e 1629), o qual veio a indeferir a irregularidade suscitada pelo recorrente em anterior requerimento, no qual este se insurge contra o indeferimento da produção de prova indiciária suplementar por si requerida nessa acta.

De facto, no início do debate instrutório, e quando é dada a palavra à Exmª mandatária do recorrente para os efeitos do artigo 302º/2 do CPP (para, querendo, requerer a produção de provas indiciárias suplementares que se proponha apresentar durante o debate, sobre questões concretas controversas), ESTA resolve fazer um requerimento de prova suplementar, a saber:
«1- A inquirição das seguintes testemunhas que exercem ou exerceram funções inspectivas na Inspecção Geral das Pescas/DGPA:
a) Inspector AJC..., com domicílio profissional  …Lisboa;
b) Dr. CAL..., residente na rua …, em Lisboa;
2- Seja oficiada a DGPA para, no prazo que lhe for fixado, apresentar nos autos os relatórios finais dos processos inspectivos efectuados nas descargas dos navios de pesca de arrasto do largo no período compreendido entre 2001 e 2005;
3- Seja oficiada a DGP A para informar se, com referência à viagem do navio VX... iniciada em 26.10.2000 e terminada em 06.02.2001, levou em consideração as quantidades de pescado que foi descarregado pelo navio VX... no porto de Agadir e que foi remetido para Portugal por via terrestre através de contentores transportados via rodoviária, e, em caso afirmativo, quem foram os inspectores que fizeram esse controlo para o efeito de os mesmos serem inquiridos nos presentes autos acerca da matéria acima referenciada».

Sobre este requerimento versou o despacho do tribunal recorrido constante de fls 1624-1625, o qual veio a indeferi-lo.

Nessa sequência, o recorrente invocou a existência de uma irregularidade, nos termos do artigo 123º do CPP, após o que veio a ser proferido o 1º despacho recorrido que decidiu:
«Posto isto e na conformidade com o que primeiramente se disse, não há qualquer irregularidade processual a reparar pelo que se indefere ao requerido».

É deste despacho que vem o arguido primeiramente a recorrer.

Aqui chegados, somos de parecer que este despacho, ao contrário do que se sustentou a fls 1826, não é recorrível.

Vejamos.

Estatui o artigo 291º, n.º 1 do CPP que:

«Os actos de instrução efectuam-se pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. O juiz indefere os actos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis».

Adianta depois o seu n.º 2 que:

«Do despacho previsto no número anterior cabe apenas reclamação, sendo irrecorrível o despacho que a decidir».

A Lei n.º 59/98 de 25/8 estabeleceu esta regra da irrecorribilidade do despacho de indeferimento da realização de diligências instrutórias, já se tendo amiudamente pronunciado o Tribunal Constitucional pela não inconstitucionalidade desta irrecorribilidade (v.g. Acórdãos do TC n.º 371/00 [Acórdão n.º 371/2000, do Tribunal Constitucional, DR, II Série de 5.12.2000, pág. 19578], n.º 375/00 [Acórdão n.º 375/2000 do Tribunal Constitucional, DR, II Série de 16.11.2000, pág. 18607] e n.º 459/00).

Este indeferimento apenas dá direito a uma reclamação, não sendo também recorrível o despacho que a decidir.

Vislumbra-se à evidência que o propósito do legislador foi precisamente o de limitar ao JIC a decisão sobre as diligências instrutórias.

Se assim é, ter-se-á de entender que também são irrecorríveis os despachos de indeferimento da produção de prova suplementar apresentado durante um debate instrutório (artigo 302º/2 do CPP), uma vez que se trata, também aí, de um requerimento de diligências instrutórias[3].

O recurso constitui um meio de impugnação de decisão judicial.

Procura-se, através dele, eliminar os defeitos de que eventualmente aquela padeça, submetendo-a a nova apreciação por tribunal superior.

No âmbito do Processo Penal está consagrado o princípio da recorribilidade (art.º 399º), mas isso não significa que todas as decisões são recorríveis, existindo limites.

A garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, não implica, como se sabe, a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos.

O que significa que o que o legislador não pode é abolir in totum o sistema de recursos, mas pode impor limites razoáveis à sua admissibilidade.

É isso que sucede, por exemplo, relativamente aos casos indicados no art.º 400º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal em que a faculdade de recurso está excluída por lei.

Mas em disposições dispersas pelo Cód. Proc. Penal, existem, além desses, outros casos em que o recurso não é admissível. O legislador ordinário, ponderando os interesses em jogo e a necessária celeridade do processo, terá optado, de caso pensado, em limitar o recurso em relação a decisões proferidas em determinadas fases processuais.

É o que sucede na instrução, na medida em que se tem entendido que a realização dos actos da mesma depende da livre resolução do juiz, apoiado este num juízo prudencial, não arbitrário ou totalmente discricionário (tanto que não pode prescindir do interrogatório do arguido e do debate instrutório, diligências obrigatórias em sede de instrução).

Em suma:

O princípio constitucional das garantias de defesa do arguido não implica a plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo penal, nem outorga ao arguido um autêntico direito a não ser julgado donde derivaria a recorribilidade de todas as decisões desfavoráveis.

A Constituição não impõe, como já reconheceu o Tribunal Constitucional, uma exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a presumível condenação do arguido, como decorrente de um hipotético direito deste de não ser submetido a julgamento.

Ou seja, a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação [Acórdão n.º 31/87, publicado no Diário da República, II série, de 1 de Abril de 1987] - acontece que este risco se afigura como inerente à própria ponderação da exigência de celeridade processual, que é, também, importa realçar, um valor constitucional, sendo direito do arguido o de ser julgado "no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa" n.º 2 do artigo 32º da Constituição.

Na realidade, um alargamento das situações de recurso com subida imediata terá sempre como efeito a diminuição da celeridade processual.

E também não é arbitrário ou totalmente discricionário o juízo prudencial do juiz de instrução acerca da necessidade de realizar diligências probatórias requeridas pelo arguido, adequando-se à função típica de tal fase processual – que visa um mero juízo indiciário sobre a responsabilidade imputada ao arguido na acusação – e às exigências de celeridade e eficácia do processo penal.

Neste caso, não é uma nulidade de instrução que se veio arguir mas apenas uma irregularidade, reconduzível ao indeferimento de diligências instrutórias, coberto ele pela irrecorribilidade da decisão do juiz de 1ª instância.

Não faria sentido pensar-se o contrário. Ou seja, não admitir o recurso do despacho que indeferir as diligências instrutórias e depois admitir o recurso do despacho que conhece da irregularidade denunciada – e aí a lei tornou-se clara: pode ser deduzida reclamação do despacho de indeferimento, sendo depois irrecorrível também o despacho que decidir tal reclamação!

Ora, o que o arguido fez, a fls 1625, foi uma «reclamação» contra o despacho judicial que lhe indeferiu a produção de prova suplementar.

Se assim é, ao decidir a fls 1627-1629 sobre tal reclamação, deu a última palavra o juiz de 1ª instância, sendo insindicável essa sua resolução.

De facto, segue-se aqui a máxima de Manuel Andrade: das sentenças e despachos recorre-se, das nulidades e irregularidades reclama-se.

A lei processual penal, in casu, optou por considerar irrecorrível:

- o despacho judicial que indeferir as diligências instrutórias suplementares requeridas em debate instrutório (por aplicação da regra do artigo 291º/2 do CPP);

- o despacho judicial que indeferir a reclamação de irregularidade que se lhe siga.

Recorramos ao douto Acórdão da Relação do Porto de 24/9/2008 (R. n.º JTRP00041652):

«Chegados aqui convém recordar que a lei coloca ao critério do juiz de instrução (e não ao critério dos sujeitos processuais, v.g. dos que requerem a abertura de instrução), que é quem dirige esta fase preliminar, a liberdade de apreciação e decisão quanto aos actos requeridos que interessem à instrução, incumbindo ao referido magistrado judicial recusar qualquer requerimento ou diligência de prova que ultrapasse a natureza indiciária para aquela exigida nesta fase (art. 301 nº 3 do CPP).

Assim, é ao juiz de instrução que incumbe (através de um juízo prudencial) aferir da essencialidade ou não da produção de qualquer prova que seja requerida ou que pretenda autonomamente realizar.

É que a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286 nº1 CPP).  

Enquanto fase jurisdicional, a instrução compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

Por isso “o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução” (art. 288 nº 4 do CPP) de modo a fundar a sua convicção para pronunciar ou não pronunciar o arguido.

Ocorrendo a situação prevista no art. 287 nº 1-a) do CPP, o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme a sua convicção no sentido de que há uma possibilidade razoável de que o arguido cometeu o crime objecto da acusação, a qual, em sede de instrução, neste caso, é sujeita a comprovação judicial (arts. 286 nº 1 e 308 nº 1 do CPP).

Claro que, havendo acusação, os actos de instrução podem de alguma forma enfraquecer ou infirmar os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito.

Mas, a não realização de todos os actos de instrução não colide com a Constituição, designadamente, com o seu art. 32 nº 1 da CRP, na medida em que não há norma que estabeleça “qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação.”.

Por isso, não obstante os actos de instrução requeridos por arguido (que não por assistente), constituírem uma garantia de defesa (na medida em que possam levar à não submissão da causa a julgamento), tal direito de defesa não é preterido, ainda que o arguido seja submetido a julgamento, uma vez que, nessa fase (a do julgamento), é plenamente assegurado tal direito, podendo então recorrer de eventual decisão final que lhe seja desfavorável.

Em conformidade com esse entendimento decorre do art. 291 nº 2 do CPP na versão actual (tal como já sucedia na versão anterior, de acordo com o estatuído no nº 1 do mesmo artigo) que do despacho do juiz que indefere “os actos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo” (…) “cabe apenas reclamação, sendo irrecorrível o despacho que a decidir.”

A consagração da irrecorribilidade do despacho proferido ao abrigo do art. 291 nº 1 do CPP na versão anterior à actual (sendo que a actual, nesse aspecto, não é inovadora) não mereceu até agora qualquer censura do Tribunal Constitucional, por ser entendimento dominante, por um lado, que a CRP não prevê qualquer norma que garanta “a existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos” para todas as decisões proferidas em processo penal e, por outro, atenta a própria natureza preliminar ou preparatória da fase da instrução que, não é um complemento da investigação feita em inquérito, nem uma “antecipação do julgamento”, apenas visa (em casos como o dos autos) “a comprovação pelo juiz do acto acusatório em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

Ou seja: sendo os despachos (inclusive o que foi objecto de recurso) de indeferimento de acesso à facturação detalhada proferidos também ao abrigo do disposto no art. 291 nº 1 do CPP (embora tal dispositivo não tivesse sido expressamente invocado) e, portanto sendo o despacho em crise irrecorrível, deveria, em devido tempo, o Ilustre Advogado do recorrente ter apresentado a respectiva reclamação.

A reclamação é a única forma prevista na lei (art. 291 nº 2 do CPP na versão actual, correspondente ao anterior nº1 do mesmo artigo) para “provocar” uma nova reflexão sobre tal despacho anteriormente proferido pelo juiz, despacho esse que é irrecorrível.

Só através de reclamação atempada daquele despacho que era irrecorrível, apresentando argumentos válidos, poderia o arguido B suscitar “a reconsideração” da dita decisão tomada pelo Sr. JIC.

Porém, não o fez ao menos de forma expressa, sendo certo que, mesmo que apresentasse tempestivamente a respectiva reclamação, era inadmissível recurso da decisão que sobre ela se pronunciasse».

Como tal, e sem necessidade de ulteriores considerações, só há que não admitir o recurso intentado – não o conhecendo, pois então.

Nos termos do artigo 420º do CPP, o recurso deve ser rejeitado se se verificar causa que devia determinar a sua não admissão, nos termos do art. 414º, n.º 2 do mesmo Código.

 Ora, o art. 414º, n.º 2 estipula que o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, não obstando à sua rejeição, nos termos do disposto nos artigos 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP, o despacho de admissão que no tribunal a quo foi proferido, uma vez que o tribunal superior – este - a ele não está vinculado (cfr. art. 414.º, n.º 3 do mesmo diploma).

3.2. 2º RECURSO

Debrucemo-nos, então, sobre a pronúncia dos autos, recorrida pelo mesmo arguido.

3.2.1. A fase da instrução, em processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento - art. 286º, n.º1 do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente - artigos 283º e 308º, n.º 1 do CPP.

Já na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento, por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais.

Adianta o art. 308º, n.º 1 do CPP:

“Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Por seu lado, o artigo 283º, n.º2 do mesmo diploma - aplicável por força do disposto no n.º 2 do art. 308º - estipula que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.

Ora, o que se entende, nesta sede, por “indícios suficientes”?

Tem-se tal entendido como a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar - com um juízo de certeza e não de mera probabilidade - os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder – Acórdão do STJ de 10/12/1992 (pr. n.º 427747, consultado em http://www.dgsi.pt).

O Professor Figueiredo Dias doutrina que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que absolvição. (…) (…) na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” (Direito Processual Penal, pág. 133-134).

Indícios, no sentido da expressão contida no artigo 308º do CPP, são, assim, vestígios, presunções, suspeitas, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e que o responsável pela sua prática é o arguido, não sendo necessário para a pronúncia uma certeza da existência da infracção, juízo que se guarda como imprescindível para a convicção do juiz do julgamento – basta-se a lei e a doutrina dominante com um grau de suficiência e quantidade de indícios, de forma a que, todos relacionados e conjugados entre si, constituam um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é criminalmente imputado.

De facto, para a pronúncia ou para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.

Sem esquecer que no juízo de quem pronuncia, tem de estar presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade da sua protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, aqui se invocando preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, com incidência constitucional entre nós, tem sido entendido que esta possibilidade razoável de condenação é um possibilidade mais positiva do que negativa - o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.

Ou seja, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta.

O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim de uma fase preparatória como é a INSTRUÇÃO.

Tal significa que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento.

Veja-se, no entanto, que se logo a este nível do juízo, no plano dos factos, se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não devem ser considerados suficientes, não havendo prova bastante para a pronúncia.

Tal juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (incontornável) de discricionariedade.

A opção por um despacho de pronúncia depende, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos.

Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é necessário, não obstante, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.

A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária.

Como explica Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios "enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime".

É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no artigo 308º do CPP.

Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar "alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva, "as provas recolhidas nas fases preliminares o processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de era decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento".

Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de "julgamento antecipado" nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público ou do Assistente de acusar.

Nessa verificação deverá, contudo, o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.

Em qualquer dos casos, essa verificação da suficiência de indícios não implica apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, apenas se julgando a verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.

Importa agora aquilatar da existência de indícios que suportem a existente pronúncia, assim se fazendo o seu controlo jurisdicional.

No nosso caso, o MP arquiva, o assistente requer a abertura de instrução [ARTIGO 287º/1 b) do CPP] e o JIC pronuncia.

3.2.2. A INSTRUÇÃO é, de facto, uma fase processual jurisdicional e facultativa que compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

O JIC não tem intrínsecas funções investigatórias em sentido técnico-jurídico, sendo antes o seu mister o de comprovar de forma chancelar – porque jurisdicional - uma investigação que foi feita previamente por quem é titular da acção penal.

Deste modo, o artigo 288.º, n.º 4 estipula que: «O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior

Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), que é reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º, não é absoluta, estando limitada pelo objecto da acusação.

Vários doutrinadores já se têm pronunciado sobre esta «investigação» levada a cabo na fase instrutória de um processo penal.

Germano Marques da Silva opina que (Curso de Processo Penal, 2.ª edição, 2000, p. 132): «Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limitam a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.»

            Anabela Miranda Rodrigues (“O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77) salienta, no mesmo sentido, «que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo».

A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289.º, n.º 1, do C.P.P., na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32.º n.º 1 e 5 da C.R.P.).

Num caso como o dos autos, em que o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, contra o qual o assistente reagiu mediante a apresentação de requerimento de abertura da instrução, tal peça assume uma função decisiva na delimitação do objecto – precisamente porque não existe acusação pública no que ao crime de natureza pública diz respeito (crime de burla qualificada).

3.2.3. O artigo 217º do CP estabelece que comete tal delito quem “com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.

A BURLA é um delito de acção complexa, já que é composta pelos seguintes elementos:

a)- o processo enganatório astucioso

b)- a manipulação psíquica do intelecto da vítima (erro ou engano sobre factos);

c)- a manipulação subsequente da vontade da vítima, afectando a sua capacidade de auto-            determinação, determinando-a a praticar actos que de outro modo não praticaria;

d)- os actos da vítima (aqueles que o agente nela determinou)

e)- prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro;
Há, assim, um enlace entre uma conduta do agente e uma conduta da vítima – aquela gera o processo enganatório e esta pratica os actos para os quais é determinada.

A astúcia equipara-se à noção de “habilidade para o mal”, “manha”, “sagacidade, “habilidade para enganar”, “subtileza para defraudar, “ardil”, “estratagema”, “embuste”, “maquinação”, estando para além do processo enganatório civil (vide José António Barreiros, Crimes contra o património”, página 157).

Em termos penais, não basta a mera mentira, a mera declaração desconforme com a verdade – no fundo, exige-se uma actuação engenhosa por parte do agente do crime, algo ao nível do estratagema ardiloso, da encenação orientada para ludibriar.

O resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivo, sendo esse o momento em que consuma o crime, tratando-se, assim, de um crime material para cuja realização a ocorrência deste evento é essencial (note-se que é um crime de resultado parcial ou cortado já que não há correspondência entre o tipo objectivo e o subjectivo, pois para a realização típica basta tal empobrecimento – decorrente do prejuízo que sofre com a acção que o agente nele determina – e não o enriquecimento do agente, elemento este que pertence ao nível do dolo, que, de facto, o exige em termos específicos (o chamado “dolo específico”).

A nível de nexos causais, a burla exige um quádruplo nexo causal:

a)- entre a astúcia e o processo enganatório, pois este tem de ser causado por aquele meio;

b)- entre o estado mental de erro ou engano em que se encontre a vítima e a alteração da sua capacidade volitiva;

c)- entre esse querer adulterado da vítima e os actos que pratica;

d)- entre tais actos e o prejuízo patrimonial sofrido.

O pano de fundo incriminatório é este, qualificando-se esta burla por força do valor do prejuízo (artigos 202º, b) e 218º/2 a) do CP).

3.2.4. Vejamos as vicissitudes dos já 7 volumes destes autos.

A queixa criminal feita pela assistente data de 20/3/2002, tendo o MP proferido despacho de arquivamento em 9/5/2007.

Imediatamente, em 8/6/2007, tal assistente vem requerer a abertura de instrução, a qual culmina na prolação de um despacho de pronúncia, datado de 28/7/2008.

Dele recorre o arguido TM... em 23/9/2008, a que se segue um acórdão desta Relação, datado de 13/5/2009, o qual confirma a pronúncia.

Os autos vão para a fase de julgamento em 15/7/2009, tendo o arguido recorrente AT... arguido nulidades e irregularidades, culminando na anulação, pelo tribunal a quo, do debate instrutório efectuado em 16/7/2008, bem como de todos os trâmites subsequentes ao mesmo.

Ordena-se, então, a repetição do debate instrutório, o que é feito em 16/6/2010, dia em que se profere o 1º despacho recorrido.

Desta forma, há que analisar tudo o que consta do processo desde a data de abertura da instrução requerida, já o sabemos, pela assistente, ou seja, desde 20/7/2007 (fls 846).

O que foi feito em sede de instrução?

Foram interrogados os arguidos CC..., TM... e TT... e foram inquiridas as testemunhas OJ…, RR..., PM….

Foram juntos ainda vários documentos.

Pergunta-se: aqui chegados, o juízo de valor indiciário foi adequado? Ou seja, assente que já antes um acórdão desta Relação se pronunciou sobre os indícios dos autos, carreou-se prova bastante, entretanto, para infirmar o juízo indiciário então gizado pelos Colegas em 13 de Maio de 2009?

Entendeu-se nesse aresto – profusamente fundamentado e sagaz - que o que o então recorrente pretendia era pôr em crise a valoração da prova indiciária existente no inquérito e na instrução, que o julgador considerou suficiente para a prolação de um despacho de pronúncia pelo crime de burla qualificada, contrariamente ao entendimento propugnado pelo recorrente.

Recorramos a tal aresto, e já que nada mais temos após a prolação deste acórdão (a sistematização a bold é da nossa autoria):

«(…) A fls. 91 procedeu-se à constituição e interrogatório como arguido de OL…, administrador da «AC... & Companhia Lda.», o qual referiu, quanto ao incêndio a bordo do «VX...», desconhecer as respectivas causas.

               

A fls. 198 dos autos prestou declarações ABC..., capitão da Marinha Mercante, o qual referiu ter-lhe sido solicitado pela queixosa a investigação ao caso do navio «VX...», relacionado com um incêndio a bordo e uma alegada baldeação de carga avariada para o mar, como consequência do combate ao incêndio, tendo produzido o respectivo relatório que se encontra junto aos autos. 

O relatório em questão, da «NV... – Peritagens e Consultoria Naval, Lda.», encontra-se a fls. 121 e seguintes, tendo concluído, além do mais:

«1. Da análise dos documentos recebidos da Direcção-Geral das Pescas é imediato concluir-se que não foi possível ter sido baldeada qualquer quantidade de carga para o mar.

2. Independentemente da conclusão anteriormente aduzida e por si só definitiva, a análise dos restantes documentos, com especial relevo para o Protesto contra incêndio, permite, através das suas incoerências e incongruências de natureza técnica, levar à mesma conclusão.

(…)»

                A fls. 48 a 51 foram juntas fotografias do interior de um navio com as características do «VX...».

A fls. fls 70 e seguintes foi junto aos autos um esquema respeitante à dimensão e estrutura do navio referido nos mesmos.

                A fls. 353 e seguintes foi interrogado CC…, que declarou não saber se na altura dos factos seria representante legal da «AC... & C.ª Lda.», nem quem seriam os seus legais representantes. Teve conhecimento do incêndio ocorrido no «VX...» e do pagamento de uma indemnização pela seguradora.

                A fls. 422 e seguintes, no inquérito, e bem assim a fls. 947 e seguintes, na instrução, foi interrogado TM... (o agora recorrente), que, como se diz no despacho recorrido, «apesar de não ter presenciado o sinistro e de afirmar ser apenas funcionário da AC... & C.ª, LDA, depôs de forma detalhada sobre as consequências do mesmo nos termos constantes de fls. 422 a 426 e 947 a 949.»

Diz-se na decisão recorrida:

«Apesar das suas declarações regista-se que este assumiu a qualidade de gerente da AC... & C.ª LDA no fax que dirigiu à IF III... (constante nos autos a fls. 79), sendo também que os restantes arguidos afirmam peremptoriamente que é este que assume a gerência de facto da empresa, dado este que é também do conhecimento oficioso.

Ora, ocupando este arguido a posição que lhe é reconhecida na empresa e não tendo conhecimento directo sobre os factos, não se pode ter o seu depoimento como isento e imparcial, pelo que não pode o Tribunal conferir-lhe relevância probatória, ainda que indiciária; (…)»

A fls. 507 procedeu-se ao interrogatório de AT..., o qual não quis prestar declarações sobre os factos imputados.

A este propósito, alega o recorrente que o tribunal recorrido efectuou uma indevida valoração negativa do facto deste arguido não ter querido prestar declarações, como era seu direito.

Tal alegação, a nosso ver, carece de razão de ser: o despacho recorrido, ao enunciar, em síntese, o sentido das declarações dos diversos arguidos, limitou-se a assinalar que o arguido AT... não quis prestar declarações sobre os factos imputados.

Não se vislumbra, por conseguinte, que tenha havido qualquer valoração negativa do silêncio daquele arguido.

Saliente-se que o C.P.P. vigente, entre os direitos processuais do arguido, consagra, expressamente, no artigo 61.º, n.º1, alínea d), o direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar. Este direito ao silêncio, referido também no artigo 343.º, n.º1, é uma expressão importante do direito de defesa, no quadro do princípio segundo o qual ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).

                 Percebe-se, pois, a partir do carácter complexo de que se revestem as declarações do arguido, que este goze do direito ao silêncio e que seja inexigível o cumprimento do dever de verdade em relação aos factos que lhe são imputados, dever que, a existir, poderia inibir o arguido na estruturação da sua defesa.

                Porém, sendo certo que qualquer arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito a não responder a perguntas sobre os factos imputados – de que não é legítimo extrair qualquer consequência jurídica desfavorável –, não é menos verdade que quando é do interesse do arguido invocar um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer –, a manutenção do silêncio poderá privar o tribunal do conhecimento dessa versão dos factos.

                Certo é que nada inculca que o tribunal recorrido tenha valorado negativamente a conduta processual do arguido em questão.

                Este era, note-se, o capitão do navio "VX..." à data dos factos em causa nos presentes autos, tendo sido subscritor do Protesto contra incêndio e Adenda ao Protesto (docs. de fls. 17-18 e 19 dos autos).

                Atente-se, ainda, que não foi possível interrogar o referido arguido no decurso da fase de instrução, por razões estranhas ao tribunal.

                Importa fazer notar que o mesmo AT... havia prestado anteriormente declarações perante a Polícia Marítima, em 20 de Fevereiro de 2001, que se encontram nos autos a fls. 689-690, essencialmente no sentido de confirmar integralmente o teor do Relatório de Mar.

                Ora, da certidão do processo organizado na Polícia Marítima (Capitania do Porto de Z...), referente ao incêndio ocorrido no «VX...», junta de fls. 677 a 722, faz parte o respectivo relatório que concluiu, além do mais, que «face aos elementos disponíveis e constantes do processo, verifica-se existirem divergências significativas entre os depoimentos prestados pelas testemunhas e em contradição com os registos nos diários de bordo – navegação e de máquinas – não sendo assim possível ou admissível poder-se confirmar o presente relatório de mar, ao nível da certeza, pelo que se afigura, salvo melhor opinião, não ser de confirmar».

                Na sequência, o Capitão do Porto não confirmou o protesto de mar em causa.

                A fls. 563 e 589 foram inquiridos MM... e PM.... O primeiro confirmou a verificação de um incêndio a bordo e a existência de danos materiais muito avultados, ficando destruído parte do parque de pesca, bem como o porão e respectiva carga, ficando o navio impossibilitado de processar o respectivo pescado. Disse ainda que tal incêndio obrigou o navio a regressar ao Porto de Z.... Nada se diz quanto a qualquer pescado que fosse atirado borda fora. O segundo igualmente confirmou a ocorrência de um incêndio a bordo e a existência a bordo de danos avultados, ficando destruído totalmente o parque de pesca, bem como a maioria do pescado que se encontrava no porão da proa do navio. Referiu ainda que atiraram vários cartões para o mar, não indicando a quantidade.

                A este propósito, alega o recorrente que o tribunal recorrido não atendeu à circunstância destas testemunhas terem sido ouvidas no decurso do processo organizado na Policia Marítima referente ao incêndio ocorrido no «VX...».

                Nessas inquirições na Polícia Marítima, MM... (fls. 697) e PM... (fls. 726) confirmam o conteúdo do relatório de mar elaborado pelo comandante.

                A testemunha PM..., já em sede de instrução, veio dizer que assinou o protesto e a adenda «não se lembrando que o tenha feito, qual o seu teor concreto e quem lhos deu para assinar» (cfr. fls. 959). Referiu ter sido deitado ao mar pescado que representaria «uma boa parte do que estava armazenado no porão n.º1», sem especificação de quantidades.

                 Quanto à testemunha MM..., verifica-se que nas declarações prestadas perante a Polícia Marítima referira, efectivamente, a existência de pescado deitado ao mar – cerca de sessenta toneladas, à base de palmeta –, em termos que corroboram o que consta da adenda ao protesto contra incêndio.

                 A este propósito, importa realçar que a avaliação dos elementos de prova atende ao seu conjunto: não é a circunstância da testemunha em causa ter mencionado a existência de pescado deitado ao mar, aquando da sua inquirição no âmbito do processo organizado pela Polícia Marítima, que determina que tal facto se tenha por demonstrado, sem que se atenda aos restantes elementos probatórios, em que se inclui o seu depoimento prestado no inquérito. Não se trata aqui de valorar «silêncios» de testemunhas, mas de examinar as provas no seu conjunto.

                No âmbito de inquérito procedeu-se ao interrogatório como arguido de L..., o qual, quanto ao incêndio no «VX...», nada adiantou.

 JC..., tripulante do navio, foi inquirido no decurso do inquérito, tendo então dito que, por motivo do incêndio, «o navio ficou bastante danificado naquela zona e foram colocados no mar cerca de uma tonelada de pescado (…)» (cfr. fls. 793 e verso). Na mesma inquirição, disse desconhecer as circunstâncias em que deflagrou o incêndio, supondo que se possa ter dado devido a uns cabos eléctricos que passavam junto ao papelão. O incêndio ocorreu no convés e foi ali dominado, não se tendo propagado a outras partes do navio. O incêndio durou cerca de 45minutos. No que se refere à tripulação, uns estariam nas camaratas e os outros estariam nos seus postos de trabalho.

A mesma testemunha, no âmbito do processo organizado na Polícia Marítima, havia dito, além do mais, «que após o acidente, não viu que fosse retirado qualquer pescado do porão» e apenas ter ouvido «alguns rumores de que iriam deitar algum pescado ao mar por se encontrar deteriorado, mas que tal como afirmou não sabe se foi ou não verdade (…)» (cfr. auto de fls. 715 e verso).

Já na fase de instrução, a testemunha veio dizer que não viu o pescado estragado nem viu a água entrar para o porão (cfr. fls. 891 e 892).

A contradição existe, efectivamente, como assinala o despacho recorrido ao dizer «A testemunha JC..., tripulante do navio, referiu que "foram colocados ao mar cerca de uma tonelada de pescado" e, quando ouvido novamente em sede de instrução, afirmou não ter visto o pescado a ser atirado ao mar nem a sua quantidade».

Não se vislumbra, por conseguinte, a que «erro na apreciação da prova» se reporta o recorrente, ao afirmar que a testemunha não disse em inquérito o que efectivamente disse.

A testemunha OJ..., tripulante do navio, inquirida no âmbito do inquérito a fls. 794, disse não saber em que circunstâncias ocorreu o incêndio. Deu conta do mesmo após se ter apercebido do fumo vindo da casa das máquinas, não se recordando da hora em que ocorreu aconteceu. Disse também que o incêndio iniciou-se no convés e foi ali dado como extinto, não se tendo propagado a outras zonas, não se recordando da duração do mesmo. A tripulação, os que não se encontravam de serviço, provavelmente estariam a dormir, os outros estariam nos seus postos de trabalho, pois na altura estavam na faina da pesca. Já não se recorda dos danos causados pelo incêndio, nem se houve danos no pescado, nem se terá sido colocado algum borda fora.

O recorrente parece ignorar este depoimento, e bem assim o que a mesma testemunha prestara perante a Polícia Marítima sendo que, neste último, a testemunha referiu que nenhum pescado foi deitado ao mar por se ter danificado pela acção da água entrada no porão e que o pescado capturado durante essa viagem foi todo descarregado no porto de Z... (cfr. fls. 710 e verso).

Ou seja: antes da instrução, em que efectivamente afirmou a existência de pescado deitado ao mar (cfr. fls. 891), já a testemunha, em datas mais próximas dos acontecimentos, havia afirmado precisamente o contrário: que nenhum pescado foi deitado ao mar por se ter danificado pela acção da água entrada no porão.

Quanto à testemunha AQ..., inquirida no âmbito do inquérito a fls. 562, no dia 26 de Outubro de 2004, nenhum conhecimento revelou sobre os factos aqui em apreço, dizendo mesmo que na data em que o sinistro ocorreu não se encontrava no interior do «VX...», mas sim em terra.

Porém, no processo organizado pela Polícia Marítima, a mesma testemunha em 21 de Fevereiro de 2001, confirmou o conteúdo do Relatório de mar elaborado pelo comandante do «VX...», colocando-se a si própria no navio e a presenciar os acontecimentos.

Sem que se ignore que a testemunha em causa consta da lista de tripulação do «VX...» (cfr. fls. 683), não se afigura razoável dizer-se, sem mais, que a assinalada divergência deriva do esquecimento, como se acontecimentos como os que estão em causa nos autos fossem tão comuns e vulgares que se olvidassem facilmente, ou como se tivessem passado muitos anos sobre a sua ocorrência, quando é certo que, entre os dois depoimentos divergentes passaram três anos e oito meses. O que ocorreu entretanto para justificar tal falta de memória?

Tem razão, pois, o M.mo Juiz ao assinalar, no despacho recorrido: «A testemunha AQ..., ouvida a fls. 562, nenhum conhecimento revelou sobre os factos aqui em apreço, dizendo mesmo que na data em que o sinistro ocorreu não se encontrava no interior do VX..., mas sim em terra, o que contraria frontalmente as indicações apostas no protesto contra incêndio e adenda ao protesto contra incêndio, onde aquele figura como Chefe de Máquinas, bem como as declarações que prestou quando inquirido na Polícia Marítima (fls. 698).»

Regressando, agora, à mencionada certidão do processo organizado na Polícia Marítima (Capitania do Porto de Z...) referente ao incêndio ocorrido «VX...», já acima se referiu que o Relatório do mar não foi confirmado em virtude de se verificarem divergências entre os depoimentos prestados pelas testemunhas e os registos dos Diários de Bordo – de Navegação e de Máquinas (cfr. relatório de fls. 771 a 772).

No Diário de Navegação do navio foi mencionado ter ocorrido um incêndio a bordo, o qual deflagrou às 03h00, tendo sido dado como extinto às 8h50m. Devido ao facto dos cabos eléctricos terem ardido era impossível continuar a faina da pesca.

Por sua vez, de acordo com os registos efectuados no Diário de Navegação, o navio às 04.00h encontrava-se em faina de pesca, navegando às 06h00, 08h00 e 12h00, com o mesmo rumo - 095 e com a mesma rotação -780.

De acordo com os registos efectuados no Diário de Máquinas o navio às 05h00 do dia 22 de Janeiro de 2001, dia da ocorrência, navegava a toda a força.

As assinaladas divergências entre os registos dos Diários de Bordo e alguns depoimentos – e o próprio Relatório de mar –, são patentes.

Não podemos esquecer a documentação que o M.mo Juiz a quo também valorou.

Assim, o Relatório da «NV... – Peritagens e Consultadoria Naval, Lda.» indica que, com base nos documentos recebidos da Inspecção-Geral das Pescas, o peso líquido do pescado que foi descarregado do navio "VX...", após aplicação dos factores de correcção relativos ao processamento efectuado (evisceração, descabeçamento, corte de cauda ou filetagem), corresponde aos valores de peixe vivo capturado, conforme declarado no Diário de pesca do navio, o que, levou à conclusão do Perito que elaborou o Relatório referido: «Não foi portanto possível ter-se baldeado para o mar qualquer quantidade de carga, muito menos os alegados 61 992 kg" (Relatório, páginas 6 e 7, correspondentes a fls. 34 e 35 dos autos).

Quer isto dizer que existem elementos documentais que contrariam, claramente, a tese da baldeação de pescado ao mar – e que têm corroboração naqueles depoimentos que negam ou dizem desconhecer que tal lançamento tenha ocorrido.

Atente-se no seguinte:

O Relatório do Departamento de Inspecção e Controlo das Pescas, que se encontra nos autos a fls. 1047 e seguintes, dá conta de que, aquando da descarga, «foi efectuada a verificação das espécies nas suas diversas apresentações, tendo sido desembarcadas as quantidades que constam do quadro 1 deste relatório.»

No ponto 5.4 – do mencionado Relatório assinala-se: «Foram utilizados os factores de conversão fornecidos pelo capitão (quadro 1) com a finalidade de obter o peso das capturas à saída da água. No mesmo quadro também se encontra o peso estimado das capturas, as desembarcadas e a percentagem de erro verificado.»

No que toca concerne à espécie Palmeta (GHL), as indicações “peso vivo”, “peso processado”, “peso desembarcado”, “factor de conversão”, “diferença” e “percentagem” constam dos autos, designadamente, do Quadro 1 anexo ao Relatório do Departamento de Inspecção e Controlo das Pescas, e bem assim do Relatório de Inspecção em Porto (NAFO), constante de fls. 1051 e seguintes, em termos coincidentes.

Os valores aí indicados quanto à Palmeta capturada (peso vivo) mostram-se conformes aos registos do Diário de Pesca das Comunidades Europeias (cfr. fls. 1057 e seguintes).

E também se mostram conformes às Declarações de Descarga/Transbordo, de que consta cópia a fls. 1073 e 1074, onde se alcança a quantidade total de 170. 589 Kg para a Palmeta – peso processado descarregado.

Mesmo admitindo que as pesagens a bordo e os consequentes registos possam enfermar de alguns erros, desde logo em função da movimentação da embarcação e do estado do mar, a verdade é que os registos nos Diários de Bordo são fundamentais, designadamente tendo em vista o controlo efectivo das capturas efectuadas.

Para esse efeito, a confirmação dos valores registados como peso vivo do pescado opera-se através da multiplicação do peso do pescado depois de processado (quer dizer, depois das operações de evisceração, descabeçamento, corte da cauda ou filetagem) por um factor de conversão (tendo em vista a perda de peso ocorrida por via das operações de processamento do pescado), conforme decorre de legislação comunitária.

No caso em apreço, como já se assinalava no Relatório da «NV... – Peritagens e Consultadoria Naval, Lda.», os valores registados quanto à embarcação em causa, no que toca ao pescado, mais concretamente quanto à espécie Palmeta, não indicam que tenha ocorrido qualquer baldeação para o mar, já que, diversamente do que seria expectável acontecer, nesse circunstancialismo, o peso do pescado descarregado, multiplicado pelo factor de conversão (1,4), conduz a uma quantidade de pescado que até é superior (+ 6,76%) ao valor do pescado (peso vivo) declarado no Diário.

Ora, o peixe processado e descarregado não pode ter um peso superior ao peixe vivo capturado e muito menos se ocorreu, entretanto, a baldeação para o mar de importantes quantidades de pescado.

E as diferenças são suficientemente significativas para que não se aceite, nesta sede indiciária, que decorrerão de meros erros de contabilização».

E a conclusão é óbvia:

«A nosso ver, constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado.

                No caso em apreço, afigura-se-nos que os elementos colhidos nos autos, globalmente considerados, de prova pessoal e documental, aquela denotando diversas inconsistências no que toca à alegada afirmação da existência de baldeação de pescado para o mar, sendo reforçados os depoimentos divergentes em função da relevante prova documental junta, indiciam, como se concluiu na decisão recorrida, que a perda de pescado invocada para exigir da assistente o pagamento de indemnização pelos danos alegadamente sofridos, efectivamente não ocorreu.

                Do que resulta que, a nosso ver, o despacho recorrido não enferma de qualquer erro na apreciação da prova, seja da que consiste em declarações e depoimentos, seja da documental, existindo indícios (com o grau de indiciação exigido) de que os arguidos incorreram na prática do ilícito criminal apontado».

É aqui que estamos.

E só podemos dizer, aqui ancorados, que a leitura dos indícios probatórios feita pelos anteriores Colegas desta Relação só pode ser a nossa, nada existindo nos autos que possa infirmar o juízo de 13 de Maio de 2009.

Nada mais foi produzido em sede de instrução, não podendo nós corroborar a tese do recorrente de que foram violados os seus direitos de defesa, assente que o arguido em causa foi ouvido no vetusto ano de 2004, tendo declarado não querer prestar declarações, recorde-se numa fase em que faria todo o sentido trazer aos autos tudo aquilo que agora vem requerer, assente que estávamos perante uma queixa criminal contra si deduzida, da qual compreendeu os contornos e as implicações.

E diga-se mais: após ter visto anulado o 1º debate instrutório por falta da sua notificação, este arguido nada veio dizer ao processo, a não ser informar da sua «saída para o mar», podendo ter requerido, antes da data do debate instrutório, tudo aquilo a que lançou mão, não se pode ter medo das palavras, para protelar ainda mais o processo…

A produção de prova suplementar indicada no artigo 302º/2 do CPP refere-se a prova a produzir no próprio debate (sem prejuízo do disposto no artigo 304º/2 do mesmo diploma), assente que os actos de instrução ocorrem antes do mesmo.

Ou seja – para as concretas finalidades desta instrução (comprovação judicial da decisão de arquivar um inquérito), o que consta dos autos é suficiente para uma decisão consciente e fundamentada, não visando esta fase instrutória a realização de um julgamento antecipado da causa e a prolação de uma sentença final condenatória ou absolutória.

O JIC, no uso dos seus poderes de conformação dos actos da instrução, entendeu que aquelas diligências, face ao momento processual que se vivia – em pleno 2º debate instrutório -, não eram fundamentais para a análise e para a decisão a proferir.

E nós só podemos estar de acordo com essa posição, juízo que já sabemos inatacável em termos de recurso.

Note-se que o recorrente, na acta de 16/6/2010, mais não quis senão defender-se antecipadamente de uma eventual decisão de pronúncia – quem requereu, recorde-se,  a abertura da instrução foi a assistente, a fim de reagir contra uma decisão de arquivamento de inquérito. E assim competiria à assistente provar a não justeza do arquivamento do MP, e não propriamente ao arguido provar a provável injustiça numa pronúncia que nem anunciada estava ainda (a 1ª foi anulada e o julgador nem sequer era o mesmo).

Por isso, bem andou a Mª juíza em indeferir a realização de tais diligências de prova, por não as considerar fundamentais para a fisionomia da causa, tal como ela foi delineada pela iniciativa do assistente em contradizer a tese do arquivamento.

Agora competirá a todos os arguidos e à assistente, em sede de julgamento, palco de todas as guerras, provar a justeza das suas teses…

O jogo está lançado para o julgamento que se avizinha e onde, aí sim, devem ser lançadas todas as armas ao alcance dos 3 arguidos pronunciados para conseguirem um juízo absolutório em sede de sentença final.

 Em conclusão – na fase em que nos encontramos, ou seja, na estação dos indícios considerados suficientes[4] (e são-no, já o sabemos, quando permitem efectuar um juízo de prognose de uma muito provável futura condenação do arguido ou de que esta seja mais provável que a sua absolvição), os documentos recolhidos e a peRR...gem efectuada, congruentes com os depoimentos das testemunhas ouvidas, não permitem outra conclusão lógica a não ser que:

· não foi descarregada e/ou baldeada qualquer carga do navio “VX...” para o mar, não tendo existido a perda de pescado cuja indemnização veio a ser reclamada pela AC... & C., LDA, e paga pela assistente

Isso basta-nos para validar a decisão de pronúncia pela prática dolosa de um crime de burla qualificada pelo valor do prejuízo causado à assistente.

3.2.5. Acabemos da mesma forma como iniciámos esta fundamentação.

Pelos indícios suficientes.

Não ignoramos que no juízo indiciário há que levar em linha de conta o seguinte:

“I - A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame;

II - Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.º daquela Declaração e 27.º da CRP);

III- Nestes termos, vem-se entendendo que a «possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa» - o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, sendo suficientes os indícios quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição».

IV - [o ambiente do processo penal] é dominado por uma atmosfera densificada de emotividade e conflitualidade. O que deve valer como um estímulo ao exercício quotidiano da tolerância e da disponibilidade para aceitar limiares particularmente qualificados de risco permitido e de sacrifício socialmente adequado do bem jurídico mais intensamente coenvolvido, a saber, a honra.

V - De outra forma, abrir-se-ia a porta a limitações tão drásticas como intoleráveis da liberdade de expressão e actuação dos diferentes sujeitos processuais. Estes não podem viver sob a ameaça constante da invocação das reacções criminais em nome da tutela da honra, uma espada de Dâmocles que só poderia redundar em manifestações perversas de auto-censura» (cf. sumário aposto no Acórdão do STJ de 28/6/2006, visionado em www.dgsi.pt).

De facto, a nosso ver, e atenta a fase processual em que nos encontramos, opinamos no sentido de que existem no processo – mais do que - elementos suficientes para levar o arguido a julgamento – tal como os outros 2 -, pelo que o recurso interposto deverá improceder.

            III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:

· Não admitir o 1º recurso interposto pelo arguido AT... a fls 1685-1712, por inadmissibilidade legal do mesmo;

· negar provimento ao 2º recurso interposto pelo arguido AT... a fls 1739-1748, e, em consequência, manter a douta decisão instrutória (despacho de pronúncia) quanto aos três arguidos[5] (quer de facto, quer de direito).

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.

            Chama-se a atenção da Exmª Juíza do tribunal recorrido para o teor do ponto 1 do nosso despacho de fls 1845.


Paulo Guerra (Relator)
Cacilda Sena


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.
[2] São estes os antecedentes deste despacho recorrido, aqui se transcrevendo a acta de debate instrutório de 16/6/2010:
«De seguida, a Mma Juiz de Direito concedeu, sucessivamente, a palavra ao Digno Magistrado do Ministério Publico e aos ilustres mandatários presentes, para que estes requeiram, querendo, a produção de provas indiciárias suplementares que se proponham apresentar durante o debate, sobre questões concretas controversas, nos termos do disposto no n° 2, do art° 302°, do citado diploma legal, tendo a Ilustre mandatária do arguido AT... requerido a seguinte prova indiciária suplementar:
“O arguido AT..., ao abrigo do disposto no art. 302°, n.° 2, do CPP, vem requerer a V. Ex”, a propósito da seguinte questão controversa, a produção de provas indiciárias suplementares nos seguintes termos:
A Assistente fundou a sua tese de ter sido praticado o ilícito participado nos autos, sobretudo, na quase coincidência entre as quantidades de pescado alegadamente capturadas durante a campanha da pesca, nos termos inscritos pelo arguido aqui requerente nos respectivos diários de pesca, por um lado, e, por outro lado, as quantidades que a IGP alega terem sido descarregadas, quer no porto de Agadir, Marrocos, quer no porto de Z...;
Sendo que, no entender da assistente, essa aludida coincidência não permitiria explicar que tivessem sido efectivamente deitadas ao mar as quantidades de pescado constantes dos protestos de mar cujas cópias constam a fls. — dos autos.
Todos quantos contactam com a actividade económica de pesca industrial do largo, no âmbito da União Europeia, e especificamente no âmbito da NAFO (Northwest Atlantic Fisheries Organisation), sabem que nunca coincidem as quantidades de pescado mencionadas nos diários de pesca pelo capitão do navio e as quantidades apuradas à descarga pelas autoridades inspectivas.
O próprio legislador, tendo consciência das especificidades em causa, refere-se aos dados que devem ser manifestados pelo capitão nos seus diários de pesca como meras estimativas das capturas efectuadas diariamente.
Por assim ser, as próprias variações, por excesso ou por defeito, que não sejam superiores a 20%, entre as quantidades estimadas nos diários de pesca e as quantidades apuradas à descarga, não são sequer tipificadas como contra-ordenações, não estando, pois, sujeitas a qualquer tipo de punição, em termos de ilícito de mera ordenação social - cfr. art. 21°-A, n” 3, al. r), do DL 278/87 de 7 de Julho na redacção que lhe foi dada pelo DL 383/98, de 27-Novembro.
Ora, ao contrário do que vem sendo defendido pela Assistente, a quase coincidência entre as estimativas constantes dos diários de pesca e os valores referidos pela IGP não demonstram, ainda que indiciariamente, que não tenham efectivamente sido capturadas e deitadas ao mar - como efectivamente foram as quantidades de pescado referidas nos protestos de Mar.
Com efeito, é extremamente frequente acontecerem divergências muito significativas, quer por excesso, quer por defeito, entre as quantidades de pescado constantes dos registos obrigatórios e as apuradas á descarga pelas autoridades inspectivas.
Tendo em consideração o disposto nos art.°s 302.°, n.° 2, 290.°, n.° 1 é assim de capital importância que nos autos seja admitida ao arguido a produção de prova indiciária no sentido da demonstração que o facto de não constarem dos Diários de Pesca as cerca de 62 toneladas de pescado cuja deterioração levou a que as mesmas tivessem sido deitadas ao mar -  desde logo por razões de salubridade e de preservação do restante pescado que se encontrava a bordo do navio VX... - não significa que as mesmas não tivessem sido efectivamente capturadas.
O arguido tem conhecimento, pelo seu longo percurso profissional enquanto oficial da Pesca do Largo, que em inúmeras campanhas de pesca de vários navios da frota nacional, verificaram-se divergências entre os Diários de Pesca e os valores de descarga da IGP em quantidades semelhantes e até superiores às que são discutidas nos presentes autos; e que, mesmo aquando da descarga do pescado remanescente no porto de Z..., ainda foi apurada a existência a bordo de pescado completamente deteriorado.
Assim, para prova dos factos alegados no parágrafo que antecede requer, a produção da seguinte prova suplementar indiciária:
1- A inquirição das seguintes testemunhas que exercem ou exerceram funções inspectivas na Inspecção Geral das Pescas/DGPA:
a) Inspector AJC..., com domicílio profissional … Lisboa;
b) Dr. CAL..., residente …, em Lisboa;
2- Seja oficiada a DGPA para, no prazo que lhe for fixado, apresentar nos autos os relatórios finais dos processos inspectivos efectuados nas descargas dos navios de pesca de arrasto do largo no período compreendido entre 2001 e 2005;
3- Seja oficiada a DGP A para informar se, com referência à viagem do navio VX... iniciada em 26.10.2000 e terminada em 06.02.2001, levou em consideração as quantidades de pescado que foi descarregado pelo navio VX... no porto de Agadir e que foi remetido para Portugal por via terrestre através de contentores transportados via rodoviária, e, em caso afirmativo, quem foram os inspectores que fizeram esse controlo para o efeito de os mesmos serem inquiridos nos presentes autos acerca da matéria acima referenciada”.
(…)
Seguidamente pela M Juiz foi proferido o seguinte DESPACHO:
“Os presentes autos tiveram o seu inicio em 20/03/2002, através de denúncia apresentada pela assistente.
Em 11/04/2007, decorridos que foram cinco anos o Ministério Publico, por entender inexistirem indícios suficientes para a prática dos arguidos elencados pelo assistente decidiu arquivar o processo.
Em 08-06-207,veio a assistente requerer a abertura de Instrução por forma a reagir a tal arquivamento. Instrução essa em cujo âmbito nos situamos e que uma das diligências de prova requerida foi precisamente a audição do arguido AT..., pelos factos.
Realizadas as diligências probatórias tidas por pertinentes, às finalidades da Instrução estabelecidas no art° 286° n°1 do C PP, foi designada a realização de Debate Instrutório e proferida decisão Instrutória pronunciando os arguidos, designadamente o ora requerente em 28-07-2008.
Decisão esta que veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra depois de ter sido interposto recurso em 13-05-2009, seguindo os autos para julgamento, com a tramitação normal, regressaram á instrução em virtude de invalidação do Debate Instrutório e toda a tramitação subsequente por falta de notificação de um dos arguidos para comparecer no mesmo.
Posto isto, dúvidas não temos, que pretendendo o Tribunal aquilatar da sustentabilidade ou não do despacho de arquivamento do Ministério Público e afigurando-se-nos que aquilo que ora requer o arguido é uma “especial “defesa antecipada a uma decisão de pronúncia que ainda não logrou ser proferida, afigura-se-nos que as diligências de prova que requer não são fundamentais para a análise e da decisão a proferir.
Até porque encontrando-nos em pleno Debate Instrutório e tendo já decorrido 8 (oito) anos sobre o início dos presentes autos, em consequência das vicissitudes processuais supra assinaladas, impunha-se em conformidade com o legalmente estatuído, a proposta de produção das referidas provas, não se vislumbrando possível fazê-lo no dia de hoje de forma antecipada a este.
Nestes termos não se verificando cabalmente cumprido o pressuposto estabelecido para a para a produção de prova suplementar no referido art° 302° n° 2° e 3° do CPP , e não se nos afigurando pertinentes os meios de prova referidos, decide-se ao abrigo da faculdade de conferir ao abrigo do art° 291º n° 1 do mesmo corpo de normas, indeferir ao requerido”.

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Nesta altura foi pedida a palavra pela ilustre mandatária do arguido AT... e tendo sido concedida, pela mesma foi dito:
“Ao ter sido indeferida a produção das provas indiciárias suplementares requerida pelo arguido, foram em concreto} e mais uma vez, violados os direitos de defesa deste, que mais não pretendeu do que contribuir para a descoberta da verdade.
Com efeito, o arguido sendo um mero trabalhador marítimo, não tem acesso directo às provas que demonstram que as quantidades de pescado descarregado e mencionadas no relatório de inspecção da IGP foram muito inferiores às quantidades efectivamente capturadas, pelo que não tem possibilidades de carrear tais elementos probatórios para os autos a não ser que a sua produção seja ordenada por este Tribunal - sendo certo que tem vindo a ser ordenada a produção de prova sucessivamente requerida pela Assistente, e esta é a primeira oportunidade de que o arguido dispõe para requerer a produção de prova no sentido da não pronúncia, conforme prevê o art. 286°, n° 1, do CPP.
Uma vez que assim não sucedeu, e veio a ser indeferida a requerida produção de provas indiciárias suplementares, foi cometida uma irregularidade que expressamente aqui se deixa arguida, nos termos previstos no art.° 123.° do CPP”.
Foi na sequência desta arguição de irregularidade que foi proferido o 1º despacho recorrido.
[3] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 3ª edição, Universidade Católica Editora, página 760.
[4] E estamos cientes de que a eventual prova a produzir em instrução – se tivesse sido admitida – não lançaria dúvida bastante sobre o juízo já então formulado, face ao teor da prova já carreada para os autos.
[5] Assente o falecimento superveniente do arguido OL… (cfr. fls 1553).