Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1969/13.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: PLANO DE RECUPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CREDORES. CRÉDITOS DA FAZENDA NACIONAL
Data do Acordão: 06/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 194º DO CIRE; 30º, Nº 3 DA LGT.
Sumário: I – O normativo do artº 194º do CIRE consagra de forma mitigada a igualdade dos credores da empresa em estado de insolvência do ponto em que, implicitamente, ressalva excepções assentes em “diferenciações justificadas por razões objectivas”.

II - O princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, antes impõe que situações diferentes sejam tratadas de modo diferente.

III - O plano deve tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, o que supõe uma comparação de situações a realizar a partir de determinado ponto de vista.

IV - A justificação para o tratamento desigual não pode ser arbitrária, antes tem de se poder considerar razoável e relevante: perante o espaço de conformação do plano, o tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.

V - Pela nova redacção dada ao nº 3 do art. 30º da LGT que blindou os créditos fiscais, já não é possível, contra a vontade do Estado, reduzir ou extinguir créditos tributários e/ou conceder moratória, pois foi vontade do legislador afastar, de forma expressa, qualquer interpretação no sentido de que o regime especial do CIRE derroga o regime geral da LGT.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            I- RELATÓRIO

            I.1- A sociedade «E…, S.A.» instaurou, em 19.6.13, processo especial de revitalização, o qual, por despacho de 20.6.13, foi liminarmente admitido por se considerarem verificadas as formalidades exigidas pelo art.17º/C do C.I.R.E. (como os demais que sem origem se referirão).

            Na lista de créditos reclamados apresentada pelo administrador judicial provisório foram reconhecidos, entre muitos outros, os créditos da «Autoridade Tributária Aduaneira – Serviço de Finanças de Aveiro» («AT»), e de «I…, Ldª», nos valores respectivos de 45.126,48 € e 55.996,98 €, correspondentes a 1,17 % e 1,45 %, respectivamente.

            O plano de recuperação conducente à revitalização da sociedade devedora propôs “a reestruturação de todas as dívidas que compõem o passivo, através da prorrogação dos prazos de pagamento, com o estabelecimento de planos de pagamento em prestações mensais e/ou anuais até ao limite de 96 meses (8 anos), com carências na maior parte dos montantes, de 24 meses”.

Assim, quanto àqueles créditos propôs: a redução para 31.460,56 € do montante da dívida à «AT» e um acordo prestacional durante 96 meses; relativamente ao credor «I…, Ldª», a dívida foi reduzida para o valor de 52.292,18 € a pagar em 96 prestações mensais, com 24 meses de carência, tal como todos os restantes créditos comuns não inferiores a 2.000,00 €.

O plano de recuperação propôs para as instituições de crédito: ”Para os diferentes contratos e para os efeitos havidos como necessários, as garantias existentes para os mesmos mantêm-se”, seguindo-se, quanto a cada instituição credora, a menção do período de carência, prazo de liquidação, e juros “conforme acordado” e respectiva taxa.

Quer o credor «AT», quer o credor «I…» apresentaram declaração de voto, rejeitando o plano apresentado.

Sujeito a votação, veio o plano a ser aprovado por 74,55 %, sendo depois homologado por sentença datada de 2.4.14, nos termos do nº 5 do art.17º-F.

I.2- Apelaram os credores acima referidos.

2.1- O credor «I…, Ldª» terminou a alegação recursiva com estas conclusões:

2.2- Por seu turno, a «AT», alegando, conclui nestes termos:

I.3- Contra-alegou a sociedade devedora em defesa do julgado.

Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTOS

Em termos factuais, o quadro relevante para a decisão é o acima relatado.

II.1- Tendo em conta o conteúdo das conclusões extraídas da alegação do recorrente «I…, Ldª», a questão que o mesmo coloca é a de saber se a decisão que homologou o plano de recuperação viola o princípio da igualdade dos credores.

No ver do recorrente, a homologação deve ser recusada por violação de tal princípio que decorre da circunstância de o plano prever diferentes planos de pagamento aos diversos credores comuns.

Na realidade, como acima se relatou, o plano propôs, relativamente às instituições de crédito, um tratamento diferente no confronto com os demais credores comuns, ao prever o pagamento dos juros acordados. Mas a diferença esgota-se aqui, pois no mais, como seja o prazo de liquidação e carência, a proposta é idêntica para todos os credores – liquidação até ao limite de 96 meses, com carência entre 12 a 24 meses. Já no que toca aos credores com menos de 2.000,00 €, propôs o plano o pagamento em 48 prestações mensais, com 12 meses de carência.

De acordo com o plano, a devedora propôs-se regularizar o crédito da recorrente em 96 prestações mensais, com 24 meses de carência.

Depois da reforma de 2012 (Leis nº16/2012, de 20.4, e 66-B/2012, de 31.12) o CIRE mudou de paradigma, tendo agora, como desiderato principal, a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano o que antes era o objectivo precípuo do diploma – a liquidação como meio de sanear a economia de empresas que não geravam riqueza.

Com o advento de nova realidade económica, em tempo de crise global e por imposição da troika, assumida pelo Estado Português – o CIRE – a lei insolvencial vigente, coloca a tónica na recuperação sendo essa a ratio do diploma.

O princípio da igualdade de tratamento dos credores encontra-se acolhido no art.194º. Pelo nº 1, “o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.”.

Este princípio que o plano deve acatar, logo admite a lei que o proclama a sua restrição – desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas.

O normativo consagra de forma mitigada a igualdade dos credores da empresa em estado de insolvência do ponto em que, implicitamente, ressalva excepções assentes em “diferenciações justificadas por razões objectivas”.

O princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, antes impõe que situações diferentes sejam tratadas de modo diferente.[1]

E, destarte, tanto o "perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros” como “a modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juro dos créditos, sejam créditos comuns, garantidos ou privilegiados", podem ser aprovadas no âmbito de um plano de insolvência.

Com efeito, o art.196º, versando sobre providências com incidência no passivo do devedor, estabelece: “1 - O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor: a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula “salvo regresso de melhor fortuna”; b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor; c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos; d) A constituição de garantias; e) Cessão de bens aos credores.”.

O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, o que supõe uma comparação de situações a realizar a partir de determinado ponto de vista. A justificação para o tratamento desigual não pode ser arbitrária, antes tem de se poder considerar razoável e relevante: perante o espaço de conformação do plano, o tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.

 Um fundamento objectivo, razoável, susceptível de justificar diferença de tratamento, é, por exemplo, a fonte de diversos créditos ou a finalidade visada com a contracção de um e de outros. Realmente, parece razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo.[2]

Descendo à situação ajuizada, o plano previu o pagamento em 48 prestações mensais com 12 meses de carência, para os credores com menos de 2.000,00 €, o que nos parece razoável e compreensível, face justamente a esse reduzido montante.

Como tal, tem justificação objectiva e racional que na regulação do plano quanto ao crédito do recorrente no valor de 53.292,18 € se tenha estabelecido um plano de amortização fixado no dobro (96 prestações), com 24 meses de carência.

Situação diferente também ocorre no confronto com os créditos das instituições bancárias. Há, de facto, uma diferenciação na origem dos créditos: estes, de elevados valores, provêm de contratos de locação financeira, com juros já acordados e a manterem-se, estabelecendo-se quanto aos créditos prazos de liquidação de 96 meses, como mostra o plano de recuperação. Quanto à proveniência do crédito do recorrente, nada se sabe, designadamente que tipo de contrato lhe subjaz, condições e juros.

Conforme atrás se disse, o princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, antes impõe que situações diferentes sejam tratadas de modo diferente. Portanto, esse princípio não vincula a que o plano trate tudo e todos da mesma forma, antes se limita a proibir diferenciações arbitrárias. O que aqui não se verifica, dado que é possível encontrar, para a diferenciação acusada, um fundamento razoável, objectivo e racional.

Como bem se fez notar no Ac. STJ de 18.2.14, “(…) numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, seria desproporcional que o processo especial de revitalização fosse inviabilizado pelo facto de um dos credores, por não ter visto contemplado o seu crédito na plenitude das garantias que o exornam, pudesse conduzir à não homologação do plano de recuperação de uma empresa,…”.[3]

O recorrente não tem, efectivamente, razão, pois o plano de recuperação não viola, quanto à satisfação do seu crédito, o princípio da igualdade dos credores.

Improcede o recurso, com custas a satisfazer pelo recorrente que nele sucumbe.

II.2 -  Apelação do MºPº, em representação do Estado («AT»):

Da leitura das conclusões vê-se que o recurso está centrado numa única questão: a de saber se é de considerar ineficaz, em relação à Fazenda Nacional («AT»),o plano que foi homologado.

            Conforme relatado, relativamente aos créditos fiscais o plano de recuperação aprovado prevê a redução para 31.460,56 €, a pagar em 96 meses. Também aqui houve diferença de tratamento entre o crédito do Estado e os créditos das instituições bancárias.

Na apreciação do antecedente recurso referimos que pelo art.196º o plano pode conter, entre outras providências, “o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula “salvo regresso de melhor fortuna.”.

E também assinalámos que a parte final do nº 1 do art.194º contém uma atenuação do princípio da igualdade dos credores da insolvência, consentindo que possa ser atenuado ou derrogado desde que objectivamente se justifique diferenciação.

Todavia, e como se observou no Ac. STJ de 15.12.11,[4] o princípio da igualmente de tratamento dos credores acolhido no contexto do processo de insolvência está agora ensombrado pela disciplina jurídico-positiva trazida ao regime legal da insolvência fundado no CIRE pela Lei nº 55-A/2010, de 31.12, a qual, aprovando o Orçamento do Estado para 2011, veio dar nova redacção ao art.30º da Lei Geral Tributária (LGT), pela seguinte forma:

1 - Integram a relação jurídica tributária: a) O crédito e a dívida tributários; b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; d) O direito a juros compensatórios; e) O direito a juros indemnizatórios.

 2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.

A referida norma é aplicável ao caso em análise, tendo em consideração que entrou em vigor em 1.1.11, e o presente processo deu entrada em juízo em 19.6.13.

Por conseguinte, pela nova redacção dada ao nº 3 do art.30º da LGT que blindou os créditos fiscais, já não é possível, contra a vontade do Estado, reduzir ou extinguir créditos tributários e/ou conceder moratória, pois foi vontade do legislador afastar, de forma expressa, qualquer interpretação no sentido de que o regime especial do CIRE derroga o regime geral da LGT.

Antes das alterações da LGT, operadas pela referida Lei, a jurisprudência maioritária seguia o entendimento que o pagamento das dívidas fiscais do insolvente ficava sujeito ao regime especial do CIRE, não tendo aplicação o disposto nos arts. 30º/2 e 36º/3 da LGT[5] e, por isso, ao considerar que o Estado, no contexto do processo de insolvência poderia ver os seus créditos afectados por decisão dos credores, não constituía fundamento para recusar a homologação do plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores, o facto de nele se prever a redução do crédito de que seja titular a Fazenda Nacional, bem como o diferimento do seu pagamento em prestações.

Observou-se, lapidarmente, no citado Ac. STJ de 18.2.14: “Se a isto juntarmos que a LGT, com as alterações introduzidas pela Lei nº55-A/2010, de 31.12, aniquilou o entendimento jurisprudencial antes referido, contrariando de modo inquestionável o Compromisso assumido pelo Estado Português em relação à proclamada intenção de flexibilizar a sua actuação quanto aos créditos fiscais e seu tratamento no contexto da insolvência, temos que concluir que da conjugada interpretação do regime que encerram, difícil é aceitar que a presunção do art. 9º, nº 3, do Código Civil sai ilesa.”. (….) Hoje, também na conjugação dos preceitos legais do PER, integrados no CIRE e no Memorandum da troika e das suas “imposições” que o Estado Português se comprometeu a adoptar no que respeita a actuação mais conforme à recuperação das empresas, as alterações introduzidas na LGT, pela Lei Orçamental de 2010, em vigor desde 1.1.2011, interpretadas literalmente, não são compatíveis com a perspectiva do direito insolvencial actual que coloca a tónica na recuperação da empresa e não na sua liquidação.”.

Ora, o plano de recuperação homologado foi aprovado pela assembleia de credores com o voto contra do Estado relativamente ao crédito tributário, o que não significa que houvesse impossibilidade da sua redução ou extinção. O que não houve foi autorização competente para a sua redução, pagamento em prestações e não pagamento de juros.

Logo, não podem restar dúvidas de que, quanto a ele, o plano não produz efeitos. O negócio só é ineficaz em face do terceiro, mas não o é entre as partes ou em face de outras pessoas. 

“O plano de insolvência, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia, por isso o Plano de Recuperação da empresa que for aprovado não é oponível ao credor que não anuiu à redução ou alteração lato sensu dos seus créditos”.[6]

A pretensão recursiva da recorrente é, justamente, que se recuse a homologação do plano de recuperação no que concerne aos créditos da Fazenda Nacional. Ou seja, que não produza quaisquer efeitos relativamente a tal credor, por não respeitar quanto a ele o regime previsto na LGT relativamente aos créditos tributários.

Posto isto, procedem as conclusões da alegação do recorrente MºPº.

III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto:

- Em julgar improcedente a apelação interposta pelo credor «I…, Ldª», com custas a seu cargo;

- Em julgar procedente a apelação do Mº Pº e, em consequência, recusa-se a homologação do plano de recuperação da devedora «E…» no que concerne ao crédito tributário reclamado pela «Autoridade Tributária».

Custas deste último recurso pela devedora apelada.

COIMBRA, 24.06.2014


  M. Regina Rosa (Relatora)
  Artur Dias
 Jaime Carlos Ferreira


[1]  Cfr. Ac.STJ de 25-03-2014 (proc.6148/12.1TBBRG.G1)
[2]  Cfr. Ac.R.C. de 01-04-2014 (proc.nº 3330/13.8TBLRA), em que a aqui relatora foi adjunta, e que de perto seguimos.
[3]   Proc. nº 1786/12.5TBTNV.C2
[4]   Proc.nº 467/09.1TYVNG-Q.P1
[5]   “o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária” (art.30º/2); “a administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei” (art.36º/3).
[6]  Ac. citado de 18.2.14