Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1778/11.1TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
Data do Acordão: 06/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 1142º CC
Sumário: I – São elementos constitutivos do contrato de mútuo: a) – A entrega a outrem de dinheiro ou outra coisa fungível; b) – A obrigação, por parte do mutuário, de restituição do dinheiro ou da coisa (art.º 1142.º do CC);

II- Nesse contrato é ao autor a quem compete a prova não só da entrega do dinheiro ou da coisa, como também da respectiva obrigação de restituição (art.º 342.º, n.º 1, do CC);

III – Ainda que provada a entrega do dinheiro mediante transferência bancária da autora para a conta do réu, a acção em que se peticiona a restituição do dinheiro improcede se aquela não demonstrar a causa da entrega.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

           A... , com benefício de apoio judiciário, propos, no 1.º Juízo do TJ de Ourém, acção com forma de processo sumário contra B... , pedindo a nulidade de um empréstimo que efectuou a este, por inobservância da respectiva forma legal e consequente restituição da quantia mutuada, de € 24.000,00, acrescida dos juros de mora vencidos até 4.5.11, no valor de € 480,00 e dos vincendos até integral pagamento.

            Alegou, para tanto, em resumo, ter emprestado verbalmente ao R. essa quantia, sem estipulação de prazo, que transferiu da sua conta bancária para uma conta do R., por duas vezes, € 2.400,00 em 9.1.04 e € 21.600,00 em 12.1.04 (e não Fevereiro como, face ao documentos juntos, por lapso indica), o qual, interpelado para a devolver, a última vez em 4.5.11, não o fez.

            Citado, contestou o R. negando ter contraído com a A. qualquer empréstimo, sendo que a quantia em causa foi efectivamente depositada na sua conta bancária, mas correspondeu ao pagamento de uma dívida que uma sua irmã tinha para consigo, dinheiro por ela obtido da A. como contrapartida da hospedagem, até à morte de qualquer uma delas, na casa (religiosa) de acolhimento que aquela mantinha em Fátima.

            Deduziu reconvenção, fundamentalmente pedindo fosse declarado válido o contrato de prestação de serviços de hospedagem e extintas, pelo cumprimento, as correspondentes obrigações e extinção pelo pagamento por terceiro do crédito que dispunha sobre a irmã.

            Houve lugar a resposta, onde fundamentalmente a A. concluiu pela improcedência das excepções que teve por deduzidas, bem como da reconvenção, concluindo como na petição inicial.

            Realizada audiência preliminar e rejeitada a reconvenção, foi proferido despacho saneador com selecção da matéria de facto assente e da base instrutória (b. i.), que se fixaram sem reclamação.

            Na sequência da audiência de discussão e julgamento foi publicitada a decisão sobre a matéria de facto que, igualmente, não sofreu reclamação.

            Proferida sentença, foi a acção julgada improcedente e o R. absolvido do respectivo pedido.

            Inconformada, apelou a A. apresentando alegações que rematou com as seguintes conclusões:

1- A sentença em crise não procedeu a uma correcta apreciação da prova produzida;

2- Nem o parentesco nem as razões de experiência invocadas na motivação da decisão de facto da sentença forçam a exclusão da natureza de empréstimo operado através da transferência do dinheiro;

3- Os depoimentos da testemunha C... e da Autora são credíveis e suficientes para provar o empréstimo em causa e provam que a Autora emprestou € 24.000,00 ao Réu e que o mesmo nunca devolveu;

4-A Autora justifica o facto de ter emprestado dinheiro ao Réu afirmando: “vivia lá em casa, porque eu estava lá em casa, eu naquela altura não tinha casa, e em casa dos meus irmãos não estava não é… e então pensei assim quem sou eu para não emprestar”;

5- O quesito 3º da base instrutória – “O Réu B... solicitou, em Fevereiro de 2004, à Autora A... que lhe facultasse a quantia de € 24.000,00?” - deve ser dado como provado;

6- Também o quesito 5º da base instrutória – “A transferência descrita na alínea a) dos factos assentes foi concretizada pela Autora A... em acedência ao pedido do Réu B... descrito no quesito 3º?” - deve ser dado como provado;

7- Conforme o artigo 712º do CPC a reapreciação da matéria de facto deve ser alterada no sentido das conclusões antecedentes 5 e 6.

O Réu respondeu para sustentar a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – A impugnação da matéria de facto:

            b) – A reapreciação do mérito da causa, que passa por apreciar a configuração, ou não, de um contrato de mútuo.


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            2.2. Fundamentação

            2.1. De facto

            Foi simplesmente esta a matéria de facto que o tribunal a quo deu como provada:

1. A Autora A... operou transferência bancária da importância de € 24.000,00 para a conta bancária com o n.º (...) titulada pelo Réu B...;

2. A Autora A... remeteu ao Réu B..., em 5 de Maio de 2011 e por intermédio da sua mandatária, a missiva constante de fls. 11 e da qual consta, designadamente, que

Exmo. Senhor

Fui designada oficiosamente para patrocinar a Sra. A... com vista à resolução da questão do empréstimo, no valor de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros) cujo pagamento já por diversas vezes lhe foi solicitado.

Todavia, por ser prática deste gabinete, decidi que antes de instaurar a referida acção judicial vos deveria comunicar a fim de proceder ao pagamento voluntário e, assim, evitar mais despesas e contratempos.

(…)

De resto, informo que, findo o prazo de 15 dias sem que o Sr. B... entre em contacto comigo para proceder ao pagamento da dívida ou acordo de pagamento, procederei judicialmente.


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2. 2. De direito

2.2.1. Quanto à questão da impugnação da matéria de facto, limitada à resposta negativa aos art.ºs 3.º e 5.º da base instrutória, ora se pretendendo uma resposta positiva, vejamos:

Perguntava-se naquele:

- “O R. B... solicitou, em Fevereiro de 2004, à A. A... que lhe facultasse a quantia de € 24.000,00?”

E neste:

- “A transferência descrita na alín. a) dos factos assentes foi concretizada pela A. A... em acedência ao pedido do R. B... descrito no quesito 3.º?”.

Na fundamentação da matéria de facto a Ex.ma Juíza sustentou não ter sido possível resposta diversa (a esses dois artigos da b. i. e aos demais, no total de cinco) porque nenhuma das testemunhas inquiridas teve conhecimento directo sobre o empréstimo, mormente nenhuma tendo assistido a qualquer conversa entre a A. e o R. a propósito da transferência do dinheiro.

Somente a testemunha C... declarou ter falado (ao telefone) com o R., a pedido da A., pedindo-lhe devolvesse o dinheiro emprestado, ao que este lhe respondeu estar à espera de vender uma propriedade para poder proceder ao pagamento.

Não teve como credível esse depoimento, dada a sua parcialidade em razão do parentesco com a A. (irmão) e por não ter esclarecido a razão por que a irmã lhe pediu, a si, para ser ele a telefonar.

O depoimento de parte da A., oficiosamente determinado, igualmente não foi credível, desde logo porque não apresentou qualquer razão convincente justificadora do empréstimo, mormente confiança ou proximidade com o R., não se afigurando razoável ter a mesma concedido o empréstimo da quantia em causa no próprio dia ou no dia a seguir a ser pedido, sendo que na versão da A. o dinheiro se destinou a ajudar um filho do R. quando antes a mesma negara emprestá-lo a uma sobrinha!

Ouvida a prova produzida (toda ela e não apenas os depoimentos das testemunhas C... e da A., com que a recorrente fundamenta a impugnação), as dúvidas e incertezas e a falta de convencimento que levaram às respostas negativas ora impugnadas assolaram igualmente o julgamento desta instância recursiva, sendo que o non liquet sempre se resolverá num liquet contra a parte a quem incumbe o ónus da prova dos factos.

Antes de passarmos aos depoimentos, duas observações apenas:

- Como é sabido, a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal (art.º 396.º do CC).

Trata-se de um meio de prova particularmente falível e precário, na sua subjectividade, seja em geral, pelo perigo de erro de percepção e desgaste na memória da própria testemunha, seja pelo risco da sua parcialidade.[1]

Este risco está naturalmente associado ao parentesco com qualquer dos litigantes na causa, por isso que, aquando da sua prestação, a lei obrigue à respectiva indicação (art.º 635.º, n.º 1, do CPC).

Quanto ao depoimento de parte em geral, desde que não reduzido a escrito, ainda que gravado, não confere força probatória plena contra o confitente, ficando sujeito à livre apreciação do tribunal.[2]

De acordo com o princípio da livre apreciação da prova e na lição sempre recordada de Manuel de Andrade[3], o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo e de acordo com a sua experiência da vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal.

            Ora bem.

            Animados por estes princípios gerais, valorando os depoimentos em causa, a testemunha C..., irmão da A., o que soube do empréstimo foi o que, pura e simplesmente, a irmã lhe relatou. Não conhecendo o R., sustentou que foi a pedido da irmã que contactou com este para lhe pedir a restituição do dinheiro que aquela disse ter-lhe emprestado.

            Se atenta a sua qualidade de irmão e pessoa (mais) experiente da vida (como flui do seu depoimento, embora não presencial também para a 1.ª instância, já que depos por videoconferência) não causa admiração que a A., tudo o indica, com menos experiência, e com uma vida toda ela dedicada à religião (foi freira e continua, no seu dizer, animada de fé) tivesse pedido ao irmão para lhe resolver o problema do dinheiro (esse terreno vil metal) que tinha com o R.

            Contudo, o seu relato, de ter estado “praticamente semanalmente em contacto com o Sr. B... durante um ano…” já custa a crer, desde logo por “provar demais”. Como, à falta de outros elementos sindicantes, a crer custe na resposta que o R. lhe terá dado, via telefone, de que “pagaria a dívida quando realizasse dinheiro com a venda de uma propriedade…”

            Por outro lado, o depoimento da própria A. foi naturalmente no sentido expresso nos articulados por si apresentados, não passando despercebido uma ou outra contradição, como a alegação na petição inicial (art.ºs 6.º e 2.º) de que o R. pretendeu o empréstimo para fazer face às dificuldades do seu negócio de reparação de electrodomésticos e distribuição de gás e, agora, depos que era para “fazer um hotel, arranjar um hotel ou restaurante, a um filho”.

            Fez, claramente, um depoimento parcial, emotivo, apaixonado, comprometido, a deixar transparecer, até, incrédula ingenuidade, como quando relatou o pedido do alegado empréstimo pelo R: ”olhe, podia emprestar-se o seu dinheiro. É para fazer um hotel, arranjar um hotel ou restaurante, a um filho meu. E eu, na minha inocência, disse assim: quem sou eu para não emprestar o dinheiro” (!) (…). E ele disse assim: quando precisar peça-me que eu dou-lhe o dinheiro”.

            E que fez a transferência no mesmo dia ou dia a seguir. Foi lá duas vezes.

            Para quem, alegadamente antes, havia recusado o empréstimo do dinheiro a um sobrinho, custa a crer que tão irreflectidamente emprestasse quantia significativa a um estranho! E sem que ficasse munida de qualquer comprovativo!..

            Sendo que o empréstimo se concretiza não só pela entrega do dinheiro (ou outra coisa fungível), como pela obrigação de o restituir, o que passa pela averiguação das razões determinantes da transferência do dinheiro, porque estas não resultaram apuradas, v. g., a partir dos depoimentos ora invocados pela recorrente, outra resposta não poderia, nem poderá, dar-se aos art.ºs da base instrutórias impugnados.

De resto, a prova simplesmente positiva ao art.º 3.º da b. i., que se pretende, esbarraria, ainda assim, no carácter ambíguo da expressão “facultasse”.

            Improcede, portanto, a impugnação, mantendo-se a factualidade provada nos termos em que o fez a 1.ª instância.


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            2.2.2. Olhando agora à vertente mais jurídica da questão, a causa de pedir da acção consiste num contrato de mútuo (empréstimo de dinheiro), nulo por falta de forma.

            Na definição do art.º 1142.º do CC trata-se de um contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.

            Trata-se de um contrato formal, sujeito hoje e desde 1.1.09 (art.º 4.º do DL n.º 116/08, de 4.7) a escritura pública se o mútuo for superior a € 25.000,00 e a documento particular se superior a € 2.500,00, valores que à data a que a A. reporta os factos (2004) eram, respectivamente, de € 20.000,00 e € 2.000,00 (art.º 1143.º do CC).

            Por força de tal contrato a coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega (art.º 1144.º do CC).

            São, pois, elementos constitutivos do contrato de mútuo:

a) – Entrega a outrem de dinheiro, ou outra coisa fungível;

b) – Obrigação, por parte do mutuário, de restituição do dinheiro, ou da coisa.

De acordo com as regras de distribuição do ónus da prova (art.º 342.º, n.º 1, do CC) é ao autor que compete a prova desse elementos, não só da entrega do dinheiro, como também da obrigação de restituição.

Havendo entrega, esta obrigação passa por demonstrar a que título se procedeu à transferência da coisa, no caso, do dinheiro.

No caso de se não demonstrar a causa dessa transferência, não se pode concluir pela existência do mútuo, ainda que nulo, por falta de forma, nem, sequer, lançar-se mão do enriquecimento sem causa se não for (subsidiariamente) invocada tal causa de pedir (art.º 264.º, n.º 1, do CPC).

Voltando ao caso dos autos, embora assente que a A. operou a transferência bancária da importância da importância de € 24.000,00 para a conta bancária do R., este impugnou a justificação apresentada pela A. (empréstimo), para essa utilização invocando uma versão incompatível com a existência de qualquer empréstimo.

Porque essa versão não se assume como excepção (peremptória), cuja prova ao R. competisse (uma vez que negou o empréstimo) e porque a entrega do dinheiro não faz presumir a obrigação de restituição, nem outra situação de inversão do ónus da prova se vislumbra (art.º 344.º do CC), era à A. a quem cabia provar aqueles dois elementos integrantes do contrato de mútuo, constitutivo da causa de pedir.

Assim, ficou sem se saber o que justificou a permissão de utilização do dinheiro da A. ao R.

Em situações similares à presente o STJ tem reafirmado que é ao autor a quem compete o ónus da prova da celebração do contrato de mútuo invocado de restituição do capital.

Para provar tal celebração não basta estar assente o recebimento da quantia peticionada.

Exige-se a demonstração da causa dessa transferência patrimonial para que a sua restituição opere, nunca como consequência de eventual nulidade por falta de forma.

Por outro lado, à falta de invocação de enriquecimento sem causa, a restituição não pode operar com base nesta (outra) causa de pedir.[4]

Em suma, porque os factos provados não revelam a celebração de contrato de mútuo, nem de qualquer outro que determine a obrigação de restituição por falta de prova da causa ou fim que envolveu a transferência bancária da A. para o R., prova que à A. incumbia, há que manter a decisão recorrida, com o que soçobram as conclusões recursivas.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

I – São elementos constitutivos do contrato de mútuo:

a) – A entrega a outrem de dinheiro ou outra coisa fungível;

            b) – A obrigação, por parte do mutuário, de restituição do dinheiro ou da coisa (art.º 1142.º do CC);

II- Nesse contrato é ao autor a quem compete a prova não só da entrega do dinheiro ou da coisa, como também da respectiva obrigação de restituição (art.º 342.º, n.º 1, do CC);

III – Ainda que provada a entrega do dinheiro mediante transferência bancária da autora para a conta do réu, a acção em que se peticiona a restituição do dinheiro improcede se aquela não demonstrar a causa da entrega.


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4. Decisão

Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Francisco Caetano (Relator)
António Magalhães
 Ferreira Lopes


[1] V. A. Varela, et al., “Manual de Proc. Civil”, 2.ª ed., 614.
[2] A. Varela, ob. cit. 573 e Ac. STJ de 30.5.13, Proc. 2531/05.7TBBRG-G1.S1., in www.dgsi.pt.
[3] “Noções Elementares de Processo Civil”, 382.
[4] Acs. STJ de 7.4.05, Proc. 05B612, 13.3.08, Proc. 07A4139, 16.9.08, Proc. 08A2005, 25.11.08, Proc. 07B3546 e 19.2.09, Proc. 07B4794, in www.dgsi.pt