Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1485/15.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO ( PER)
PLANO DE RECUPERAÇÃO
QUÓRUM
MODIFICAÇÃO DO CRÉDITO
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 17-F, 17-G, 91, 212 Nº2 A) CIRE
Sumário: I - A modificação a que alude o artº 212º nº2 a) do CIRE não se reporta, «stricto sensu», ao quantum do crédito, mas à situação creditícia do credor, e emergindo aquela quando esta situação for regulada no plano de recuperação em termos distintos daqueles que derivariam das regras comuns e das da insolvência, seja quanto ao montante, condições de pagamento, garantias, ou outros aspetos.
II – A não exigência imediata das prestações vencidas de um mútuo, antes se concedendo o pagamento em 120 prestações, e o indiciado alargamento do prazo das prestações vincendas, acarretam aquela modificação, a qual assim permite que o credor possa votar, em sede de PER, o respetivo plano de recuperação – artº 17º-F nº3 do CIRE.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

C (…) e F (…) instauraram Processo Especial de Revitalização a si respeitante.

Manifestaram a sua intenção de dar início às negociações com vista à aprovação de um plano de pagamentos.

No processo, a credora C (…) reclamou o seu crédito que foi  reconhecido como crédito comum .

Na sequência das negociações entre devedores e credores foi apresentado plano de pagamentos com vista à revitalização.

O referido plano foi votado desfavoravelmente pela C (…) e pelos Credores B(…) S.A, B (…) e C (…) cujos créditos, em conjunto representavam 19,75%.

Tendo  sido votado favoravelmente pelo Credor Hipotecário, B (…) S.A. cujo voto representava 78,888% dos créditos e pela AT - Autoridade Tributária e aduaneira, S.A, cujos votos representavam 0,018% dos créditos.

Assim:

Foi proferida sentença homologatória do plano de pagamentos aprovado com vista à revitalização dos devedores, a qual foi notificada aos interessados.

2.

Com a mesma inconformada, recorreu a credora C (…).

Rematando as suas alegações com as seguintes, essenciais, conclusões:

A. a J. – meramente descritivas.

K. Salvo o devido respeito, não poderá a Credora C (…) concordar com o teor da douta sentença proferida.

Senão vejamos,

L. O Plano de pagamentos apresentado pelos Devedores apenas salvaguardava a posição do Credor Hipotecário – B (…), S.A. – prevendo:

· Manutenção dos atuais contratos de mútuo nas linhas gerais e em termos semelhantes, com os seguintes pressuposto específicos propostos pelo BPI:

 ü serão devidos os juros de mora e respectivo imposto de selo até à data de trânsito em julgado da sentença de homologação do PER em 120 prestações mensais;

ü serão devidos os juros de mora, compensatórios ou outros vencidos, decorrentes de atrasos no pagamento dos créditos do PER, à taxa de juro aprovada no âmbito do PER; ü em caso de incumprimento da sentença de homologação do PER, o banco poderá intentar acção judicial, para recuperação das dívidas vencidas, reclamados no PER.

 M. No que concerne aos Credores comuns, a proposta apresentada implicava o perdão integral da dívida;

 N. Nos termos do artigo 212.º, n.º2, alínea a) do CIRE não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano.

 O. No caso em apreço o crédito do Credor Banco (…) S.A., credor hipotecário, mantinha, nos termos do plano de pagamentos apresentado, exatamente as mesmas condições que tinha antes da apresentação do Processo Especial de Revitalização por parte dos Devedores.

P. Inexistindo qualquer perdão de juros ou capital, ou qualquer carência de capital ou alteração de taxa de juro.

 Q. Pois, embora o plano preveja pressupostos específicos em relação ao credor hipotecário, exigência desse mesmo credor, os mesmos respeitam somente aos valores em mora.

R. Não implicando qualquer alteração às condições gerais do contrato inicialmente celebrado entre o credor hipotecário e os devedores.

S. Pelo que, e salvo o devido respeito, não poderia o Credor Banco (…)S.A. ter tido expressão no mapa de votação do plano – cfr. artigo 212.º, n.º2, alínea a) do CIRE.

T. O que, considerando que o plano de pagamento dos Devedores foi aprovado com o voto do Credor Baco BPI, S.A., implicaria que o mesmo tivesse sido recusado, por não se verificar existência de quorum necessário à sua aprovação.

 U. Pelo exposto – e porque o plano de recuperação apresentado pelos Devedores não deveria ter sido alvo de homologação pelo douto Tribunal a quo – deverá tal decisão ser revogada.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e  639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Inadmissibilidade do credor (…)poder votar o pano de recuperação/pagamentos – artº 212º nº2 al. a) do CIRE.

4.

Apreciando.

4.1.

O processo  especial de revitalização  é um processo voluntário,  essencialmente  extrajudicial  e de cariz negocial entre o devedor e os credores, com a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório e do Juiz.

O  seu objetivo principal é a obtenção de um acordo entre o devedor e uma maioria de credores com vista à recuperação e viabilização económica daquele e, nessa medida, a satisfação, também, na medida do possível, dos interesses destes.

Quanto à aprovação do plano estatui o artº 17º-F do CIRE.

17º- F

3 - Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o plano de recuperação que:

a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 17.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou

b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.

A presente redação foi introduzida pelo DL n.º 26/2015, de 06/02.

Anteriormente este nº3 tinha o seguinte teor.

3 - Considera-se aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos prevista no n.º 1 do artigo 212.º, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 17.º-D, podendo o juiz computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que há probabilidade séria de tais créditos deverem ser reconhecidos, caso a questão ainda não se encontre decidida.

Apesar da atual redação que deixou de fazer referência ao artº 212º, continua a entender-se que o cômputo dos votos deve ser aferido em função dos critérios fixados neste preceito.

Na verdade, nenhuma razão sobreveio para afastar a sua aplicação e outro inexiste no CIRE, máxime nas disposições atinentes ao PER que sirvam de critérios orientadores de tal cômputo –cfr. neste sentido, o Ac. da RC de 16.02.2016, p. 923/15.2T8ACB.C1 in dgsi.pt.

Ademais, a atual redação esclareceu uma dúvida que na anterior se colocava, qual seja, se apesar de então se remeter apenas para o nº1 do artº 212º, também era aplicável o nº 2 e as suas concretas limitações ao direito de voto.

Já então se entendia, maioritariamente, no sentido afirmativo.

Lógica e naturalmente, diremos nós, pois que, os votos do nº1 apenas poderiam ser os permitidos pelas restrições do nº2. Estes segmentos normativos não poderiam ser perspetivados e aplicados isolada e tabicadamente, mas antes interligada e concatenadamente.

Na verdade: «o que são considerados créditos com direito de voto está explicado nos nºs 2 a 4 do citado preceito legal» - Luís M. Martins, in Recuperação de Pessoas Singulares 2012, 2.ª ed., ps. 62/63, apud Ac. da RL de 16.04.2015, p. 1979-14.0TBSXL.L1-6 in dgsi.pt.

Mas, se dúvidas haviam, a atual redação do nº3 do artº 17º-F, ao mencionar os créditos «com direito de voto», desfê-las.

Temos assim que o artº 212º prescreve:

1 - A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se, estando presentes ou representados na reunião credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.

2 - Não conferem direito de voto:

a) Os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano;

b) Os créditos subordinados de determinado grau, se o plano decretar o perdão integral de todos os créditos de graus hierarquicamente inferiores e não atribuir qualquer valor económico ao devedor ou aos respectivos sócios, associados ou membros, consoante o caso.

A proibição da al. a) é logica e intuitiva: não faz sentido que os credores cujos créditos não sejam modificados pelo plano o possam condicionar com o seu voto.

O que, a ser permitido, até poderia acarretar mancomunações entre credores, ou entre estes e o devedor, no sentido de afetar/prejudicar outros credores, e em benefício do credor não afetado, o qual manteria o seu crédito integralmente e sem qualquer modificação.

4.2.

Posto isto, e indo ao cerne da questão, cumpre dizer, em primeiro lugar, que a modificação dos créditos pelo plano de insolvência verifica-se quando nele, eles «venham a ser considerados em termos distintos daqueles que revestiam à data da declaração da insolvência, seja pelo montante, condições de pagamento, garantias, ou outros aspetos» - Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, 2006, II, p.112.

Mas mais do que o crédito em si mesmo e no seu estrito montante, releva a situação creditícia do credor, pois que é esta que, globalmente, o adstringe e afeta na sua relação com o devedor e os demais credores.

 Ora a conclusão pela modificação do crédito e/ou da situação creditícia tem de advir da comparação entre os direitos que assistiam ao credor pela aplicação das normas  comuns ou das supletivas do CIRE bem como dos concretos contornos do crédito se defendido por estas normas, por um lado, e os direitos e os concretos contornos fixados pelo plano de recuperação, por outro lado.

Mais casuisticamente, importa atentar na definição dos específicos contornos da situação creditícia estabelecidos pelo devedor, pelo credor e pelo administrador provisório na respetiva lista provisória de créditos, comparando-os com os fixados no plano.

4.3.

No caso vertente.

Tanto quanto se alcança, o valor do crédito do credor B (…) não foi reduzido.

Mas estabeleceu-se, para além do mais, no plano:

«Regularização das prestações vencidas e juros não pagos, desde 28.09.2014 até à prestação vencida ao dia 28 do mês da data de homologação do presente PER, através do plano de pagamento de 120 prestações.

Manutenção do plano de prestações do empréstimo pelo prazo em vigor, 543 meses, contados a partir de 07.11.2003»

(sublinhado nosso)

 Ora, em termos  gerais de direito, o incumprimento definitivo ou a mora do devedor transformada neste incumprimento, atribui ao credor o direito de impetrar o imediato e total cumprimento.

Em sede insolvencial tal dimana do disposto no artº  91º nº1 do CIRE, a saber:

«A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.»

Ora se no plano se consagrou que as prestações já vencidas e não pagas não seriam satisfeitas imediatamente ou num curto lapso de tempo, mas apenas em 120 prestações mensais, tal configura uma modificação, rectius uma afetação negativa, do direito e do crédito do banco.

Por outro lado, e no que tange às prestações vincendas, consagrou-se no plano o seu pagamento «pelo prazo em vigor», depreendendo-se desta expressão que tal prazo foi o fixado no contrato de mutuo.

Mas mais se plasma que os 543 meses em que se traduz tal prazo são contados a partir de uma determinada data: 07.11.2003.

Ora não se alcançam no processo elementos que nos permitam saber se aquela data é a que corresponde ao início do prazo de pagamento  fixado no contrato de mútuo.

Mas numa adequada interpretação, e por apelo ao elemento lógico da hermenêutica jurídica, indicia-se que não corresponde, pois que se correspondesse bastaria fazer referência ao prazo que constava no contrato ou apenas remeter para este,  não sendo necessário mencionar, adrede, aquela concreta data.

E se a data não for a que consta no contrato ela apenas poderá ser posterior, pelo que, assim, o próprio prazo para o pagamento do empréstimo queda dilatado e, destarte, sendo afetado/modificado, porventura negativamente, o panorama  jurídico-creditício do Banco.

Em todo o caso, sempre restará uma dúvida quanto à coincidência, ou não, do prazo de pagamento  fixado no plano com o constante no mútuo.

Pelo que, alcandorando a recorrente a sua pretensão nesta concreta causa de pedir – não modificação do crédito do BPI pelo plano –, sobre ele impendia o ónus de convencer, para além da dúvida razoável, sobre a verificação de tal argumentação alicerçante neste específico conspeto da não dilatação  do prazo de pagamento do empréstimo – artº 342º nº1 do CC.

Existindo, no mínimo, tal dúvida, consistente e inultrapassável, ela resolve-se contra si, pois que este concreto facto probando a ela aproveitaria – artº 414º do CPC.

Em resumo, o crédito do B(…), lato sensu considerado, que é o que releva, ou seja, o seu direito creditício, consistente  não apenas no valor matricial do mútuo, como também no pagamento do mesmo quer quanto às prestações vencidas, quer vincendas,  foi modificado desde logo quanto aquelas.

E indicia-se que, outrossim, o foi quanto a estas, sendo que, como se disse, impendia sobre a recorrente provar o contrário.

Pelo exposto, a conclusão final a retirar é que o recurso não merece provimento.

5.

Sumariando:

I - A modificação a que alude o artº 212º nº2 a) do CIRE não se reporta, «stricto sensu», ao  quantum do crédito, mas à situação creditícia do credor, e emergindo aquela quando esta situação  for regulada no plano de recuperação  em termos distintos daqueles que derivariam das regras comuns e das da insolvência, seja quanto ao montante, condições de pagamento, garantias, ou outros aspetos.

II – A não exigência imediata das prestações vencidas de um mútuo, antes se concedendo o pagamento em 120 prestações, e o indiciado alargamento do prazo das prestações vincendas, acarretam aquela modificação, a qual assim permite que o credor possa votar, em sede de PER, o respetivo plano de recuperação – artº 17º-F nº3 do CIRE.

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2016.06.07.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos