Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
692/21.7JGLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PROVA PROIBIDA
CONFISSÃO
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 344.º E 379.º, N.º 1, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – A omissão de pronúncia, cominada com nulidade no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do C.P.P. significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias que a lei impõe que o juiz tome posição expressa, incide sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos e refere-se ao concreto objecto submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegados.

II – Mesmo alegando, ao longo do processo, a nulidade de alguns meios de prova obtidos no decurso da investigação levada a cabo nos autos, se o arguido, em julgamento, confessa, de forma integral e sem reservas, os factos imputados aquela nulidade perdeu relevância face à confissão posterior, já que esta determinou a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e a sua consideração como provados.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Processo Nº 692/21.... … foi proferido acórdão … do qual consta:

«… B) Condena-se o arguido AA da prática de 1 (um) crime de Pornografia de Menores agravado “prolongado ou de trato sucessivo”, previsto e punível pelos artigos 176º, n.º 1, alínea d) e 177º, n.º 7, do Código Penal …

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2. Inconformado com o decidido veio o arguido AA interpor recurso do acórdão, extraindo da respectiva motivação as conclusões que se transcrevem:

«… B - Alegou o recorrente, em sede de contestação, a inconstitucionalidade da prova carreada para os autos e que diz respeito aos metadados … utilizada nos presentes autos, por mor do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, proferido no âmbito do processo n.º 828/2019, com força obrigatória geral.

C - O Acórdão recorrido enferma de nulidade, por omissão de pronúncia sobre a suscitada questão da inconstitucionalidade …

D - Viola, assim, o Acórdão recorrido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 e o art. 379.º do CPP.

…».

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3. A Exma. Procuradora da República na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo … que o recurso do arguido não merece provimento …

4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer … Concluindo que o Acórdão impugnado, deverá ser mantido na íntegra.

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II - Fundamentação

A) Delimitação do objecto do recurso

- A nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a aplicação ao caso do acórdão do Tribunal Constitucional N.º 268/2022 e suas consequências

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B) Da decisão recorrida

«… Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos constantes da acusação ou alegados em audiência:

4. O arguido AA é um consumidor de conteúdos de pornografia infantil, desde data não concretamente determinada.

5. O arguido, pelo menos desde o dia .../.../2021, utilizando o endereço de IP ..., instalado na Rua ..., ..., com serviço de internet fornecido pela A.../... acedeu a sítios na internet de pornografia de menores, recorrendo à rede P2P, funcionado como cliente/utilizador (fazendo downloads) e disponibilizando de imediato ficheiros do mesmo tipo a terceiros (fazendo uploads).

7. O arguido, pelo menos desde aquela data – 26 de junho de 2021, tem vindo a fazer inúmeros downloads de imagens de cariz sexual de menores de 14 anos, desnudados e em poses de natureza sexual e muitas vezes a serem vítimas de práticas sexuais onde se inclui a penetração levada a cabo por adultos.

8. O arguido, para além de armazenar e guardar no computador por si utilizado e também em vários suportes externos tais tipos de imagens, vídeos e outros documentos todos de teor pornográfico, também partilhou tais tipos de ficheiros informáticos por via da internet, fazendo uploads, através de específicos canais de troca de ficheiros.

10. Realizada perícia forense, aos equipamentos informáticos detidos pelo arguido, apurou-se que o mesmo detinha armazenados 61 imagens, 1146 vídeos e 109 documentos, todos de teor pornográfico, onde são visualizadas crianças pré-púberes desnudadas, todas menores de 14 anos de idade …

11. Para além daqueles ficheiros, verificou-se que na aplicação Emule, instalada no computador do arguido, foram identificados 797 (setecentos e noventa e sete) ficheiros de conteúdo semelhante àqueles, com nomenclatura de pornografia de menores, em lista de partilha/transferência.

12. O arguido tinha perfeito conhecimento do teor das fotografias, vídeos e outros documentos que obteve em meio informático e que partilhou com terceiras pessoas nesse meio …

13. Mais sabia, o arguido, que toda a atividade relacionada com tais ficheiros de pornografia de menores, designadamente a respetiva utilização, detenção, divulgação, exportação, distribuição ou cedência, se lhe encontrava vedada.

14. Não obstante, e agindo deliberada, voluntária e conscientemente, o arguido, para sua satisfação libidinosa, e bem assim das pessoas com quem partilhava as fotografias, vídeos e demais documentos de teor pornográfico, decidiu, deter, armazenar, divulgar, partilhar e ceder a terceiros os referidos vídeos, fotografias e demais documentos, ignorando e desprezando a liberdade e a autodeterminação sexual das crianças nestes retratadas.

15. Bem sabia, o arguido, que as condutas que assumiu eram proibidas e punidas pela lei penal.

III – Fundamentação de facto

Os factos descritos, que coincidem com os da acusação, foram considerados provados com base nas declarações do arguido, que confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação, conjugadas com demais elementos de prova …

IV – Fundamentação de direito

… Antes de nos analisarmos se se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime imputados ao arguido, há que referir que o mesmo, na contestação, defende verificar-se uma nulidade - que toda a investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP do arguido que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir método de prova e implica a nulidade de todo o processado daí em diante.

Considerando que o arguido espontaneamente, em audiência de julgamento, confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, encontra-se prejudicado o conhecimento da alegada nulidade …».

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C) Apreciação do recurso

- Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a aplicação ao caso do acórdão do Tribunal Constitucional N.º 268/2022 e suas consequências.

Pretende o arguido e ora recorrente que tendo o mesmo alegado, em sede de contestação, a inconstitucionalidade da prova carreada para os autos e que diz respeito aos metadados … por força do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 … com força obrigatória geral, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre a suscitada questão da inconstitucionalidade, pelo que enferma de nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, já que o conhecimento da inconstitucionalidade suscitada não pode sair prejudicado em face da confissão integral e sem reservas do recorrente em sede de audiência de discussão e julgamento.

Terminando, pedindo, que seja declarada a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia … e que o mesmo seja mandado substituir por outro que considere a aplicação ao caso vertente do regime consagrado no citado acórdão do TC 268/2022 e declare a inconstitucionalidade da prova carreada para os autos respeitante à utilização dos metadados, com a consequente absolvição do arguido aqui recorrente.

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… na contestação por si apresentada … o arguido … alega – no ponto 2. da mesma - que «Toda a investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP do arguido que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir método de prova e implica a nulidade de todo o processado daí em diante» …

Sobre a nulidade da prova assim invocada pelo arguido, pronunciou-se nos autos a Digna Magistrada do MºPº … Terminando por promover que fosse indeferido o requerido pelo arguido no que concerne à validade da prova obtida.

Deste entendimento do MºPº foi dado conhecimento ao arguido … para além disso, o Mmo. juiz titular do processo, exarou, ainda, que «Oportunamente o tribunal se pronunciará sobre a nulidade suscitada pelo arguido».

E, no acórdão que veio a ser proferido nos autos, logo no respectivo Relatório, o Tribunal a quo fez constar, quer a posição do arguido … a respeito de tal questão, quer a posição que sobre a mesma assumiu MºPº, e, já em sede de enquadramento jurídico-penal dos factos que considerou provados, e antes ainda da ponderação deste, exarou no mesmo o seguinte: «… Considerando que o arguido espontaneamente, em audiência de julgamento, confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, encontra-se prejudicado o conhecimento da alegada nulidade».

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Preceitua o art. 379º nº1, alínea c) do CPP que é nula a sentença «quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

A densificação normativa que tal preceito legal comporta abrange duas diferentes situações: a omissão de pronúncia e o excesso de pronúncia.

In casu, a que vem invocada é a da omissão de pronúncia.

Segundo defende Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal, 3ª Edição Revista, pag. 1157, «A nulidade resultante da omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar - artigo 608º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado nº2 do artigo 608º do Código de Processo Civil».

E, conforme esclarece o mesmo autor, in ob. e pág. citada, «A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrina expendidos pela parte em defesa da sua pretensão».

Como vem sendo entendido jurisprudencialmente a omissão de pronúncia cominada com a nulidade elencada no art. 379º, nº1 c) do CPP, significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa e deve incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos e é referida ao concreto objecto que é submetido a cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegados.

… o tribunal recorrido tomou posição no acórdão recorrido sobre a nulidade da prova invocada pelo arguido na sua contestação, aduzindo que tendo o mesmo espontaneamente, em audiência de julgamento, confessado integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, se encontrava prejudicado o conhecimento da alegada nulidade.

Entende, porém, o recorrente que o conhecimento da questão por si suscitada não poderia resultar prejudicado pela confissão integral e sem reservas por si assumida na audiência de julgamento.

Todavia, não só o recorrente não adianta qualquer razão para que não pudesse ter sido considerado prejudicado o conhecimento da questão por si invocada, como também nós não logramos alcançar o interesse que nesse conhecimento possa ter o mesmo, visto que se conformou com a decisão da matéria de facto decidida pelo tribunal recorrido – a qual não veio impugnar – que sustenta a condenação que lhe foi imposta nos autos.

E, tal condenação sustenta-se, entre o mais, na confissão integral e sem reservas feita pelo arguido na audiência de julgamento, cuja validade, para esse efeito, também igualmente o recorrente não questiona.

Sendo, pois, de difícil alcance a pretensão do recorrente em ser absolvido – como adianta no pedido do recurso por si interposto - ancorado unicamente na aplicação do regime consagrado no Ac. 268/2022, porquanto, a decisão de inconstitucionalidade que deste emana apenas poderia colocar em causa a validade de alguns meios de prova carreados para os autos, mas não já, seguramente, a confissão integral e em reservas produzida na audiência de julgamento pelo mesmo.

O que é certo é que o tribunal recorrido, considerando que o conhecimento da questão por si suscitada – relacionada com a validade de alguns meios de prova obtidos no decurso da investigação levada a cabo nos autos durante a fase de inquérito – perdeu relevância em face da confissão integral e sem reservas feita pelo arguido na audiência de julgamento, entendeu, por isso, mostrar-se prejudicado o conhecimento da nulidade por si invocada em sede de contestação

com base em tal argumentação.

Daqui se vendo, pois, que não deixou o tribunal recorrido de se pronunciar sobre a questão da nulidade da prova suscitada pelo arguido na sua contestação, considerando prejudicado o conhecimento da mesma em virtude da confissão integral e sem reservas feita pelo próprio na audiência de julgamento, nos termos da qual assumiu a autoria dos factos que lhe vinham imputados.

… não vemos porque deveria o tribunal recorrido debruçar-se sobre a validade dos meios de prova trazidos para os autos na fase preliminar do processo (inquérito), quando, na fase de julgamento, tendo-se esta iniciado com as declarações do arguido … este produziu uma confissão integral e sem reservas que implicou a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e à consequente consideração destes como provados, nos termos do art. 344º do CPP.

Explicando.

Como é consabido, a contestação e o rol de testemunhas constituem os meios processuais através dos quais o arguido exerce, em primeira linha, o seu direito de defesa perante a acusação contra si deduzida ou o despacho de pronúncia, tendo em vista a audiência, sendo, pois, estes os instrumentos adequados, nessa fase do processo, que a lei coloca à disposição do mesmo, para que intervenha e participe na criação da decisão.

Depois de conhecer a acusação que contra si foi deduzida nos autos e de ter sido notificado da data para a realização da audiência de julgamento, o arguido … veio indicar provas e alegar que «Toda a investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP do arguido que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir método de prova e implica a nulidade de todo o processado daí em diante» …

E, se é certo que anteriormente à realização dessa audiência de julgamento o arguido veio na aludida contestação por si apresentada pôr em causa toda a investigação que culminou com a dedução da acusação … com o argumento de que essa investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir meio de prova, a verdade é que na audiência de julgamento … o mesmo arguido, tendo prestado declarações, declarou pretender confessar integralmente e sem reservas os factos que lhe vinham imputados na acusação, o que fez, conforme se mostra exarado na respectiva acta, confissão essa que o tribunal colectivo considerou ter sido feita de livre vontade e fora de qualquer coação, implicando a mesma os efeitos previstos no art. 344º, nºs 1, 2 e 4 do CPP, pelo que prescindiu da produção da demais prova indicada.

E, foi por causa dessa confissão integral e sem reservas feita pelo arguido na audiência de julgamento que o tribunal a quo ponderou no acórdão recorrido que o conhecimento da nulidade da prova invocada pelo arguido na contestação, pelos fundamentos nela adiantados, se mostrava prejudicado, por entender que a mesma afastava quaisquer questões que se pudessem suscitar a respeito da validade da prova questionada pelo arguido na sua contestação – ainda que, em nosso entender, essa ponderação se impusesse ser feita no acórdão recorrido aquando da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, já que era esse o momento próprio em que a questão da validade da prova suscitada pelo arguido na contestação assumia cabal pertinência.

Daqui resultando, pois, que o tribunal recorrido ao considerar prejudicado o conhecimento da nulidade invocada pelo arguido em sede de contestação relacionada com a validade da prova recolhida em sede de inquérito, não deixou de se pronunciar no acórdão recorrido sobre tal questão, pelo que, não padece o mesmo da nulidade que lhe vem assacada em sede recursiva.

III- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto …

2. Custas relativas ao recurso a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 22 de fevereiro de 2023

Maria José Guerra – relatora

Helena Bolieiro – 1ª adjunta

Rosa Pinto – 2ª adjunta