Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5986/14.5T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ENRIQUECIMENTO POR INTERVENÇÃO
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.473, 474, 1305 CC, 3 , Nº3 CPC
Sumário: 1 – O interventor por ingerência ou intromissão em bens alheios está obrigado a restituir ao respectivo proprietário aquilo com se enriqueceu à custa do valor de uso desses bens.

2 – Sendo que as regras aplicáveis serão então as constantes do artigo 473º e seguintes do Código Civil relativas ao enriquecimento sem causa.

3 – No plano das questões de direito, se é expressamente proibida a “decisão-surpresa”, ex vi do art. 3º, nº3 do n.C.P.Civil, tal tem o sentido de proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

4. – Não merece procedência a invocação de que a decisão recorrida – enquanto assente no enriquecimento sem causa – constituiu uma “decisão-surpresa”, quando a linha de argumentação apresentada pelos AA. na p.i., com referência ao aspeto da intromissão na utilização do seu imóvel/locado, foi claramente no sentido de que a privação do uso do locado dos AA. pela Ré gerava o dever, por parte desta, de pagar a indemnização correspondente àqueles, isto é, foi muito claramente alegado na p.i. que estava em causa uma ingerência da Ré na propriedade dos AA., sendo por via disso que a Ré estava obrigada a indemnizar os danos resultantes da violação, alegação esta feita em termos que não consentiam outra qualificação jurídica.

Decisão Texto Integral:   






          Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

A (…) e M (…) residentes na (...) , em Coimbra, instauraram contra “O (…) LDA.”, com sede em Rua (...) , em Coimbra, acção declarativa, com processo comum, pedindo a respectiva condenação no pagamento de € 15.223,85.

Invocaram, para o efeito, que são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano, por si identificado; por contrato de arrendamento celebrado em 01 de Agosto de 2012, deram de arrendamento à “L (…), S.A.”, o supra citado prédio, mediante o pagamento da renda mensal de € 1.500,00; as rendas respeitantes aos meses de Fevereiro e seguintes de 2014 e que se computam no montante de € 13.500,00 não foram pagas; em 14 de Janeiro de 2014, foi constituída a sociedade ora Ré, tendo como gerente a mesma pessoa com que os ora Autores haviam celebrado o contrato de arrendamento supra referido na qualidade de legal representante da “L (…) S.A.”, tendo como sede social o locado; os Autores ficaram convencidos de que o estabelecimento explorado no locado por aquela sociedade fora transmitido à ora Ré, incluindo a posição contratual no contrato de arrendamento, tanto mais que os produtos comercializados no estabelecimento eram os mesmos e o objecto do estabelecimento permanecia inalterado, assim como permaneceu inalterada a sua designação comercial “ K (...) ”; em 28 de Agosto de 2014, os Autores depararam-se com o encerramento do estabelecimento comercial que laborava no locado e a indicação de que o mesmo se havia deslocado para outra morada e com outra designação; na nova morada labora um estabelecimento comercial com os mesmos produtos e objecto da ora Ré, embora com a designação de “R (...) ’’ e por ela explorado; entre Fevereiro a Agosto de 2014, foi a Ré que no locado explorou o seu estabelecimento; com a limpeza do armazém e substituição de mosaicos danificados, os AA. despenderam o valor de € 1.216,88; com a substituição das fechaduras do locado, os AA. despenderam o valor de € 222,25, porquanto o locado foi alvo de arrombamento, por desconhecidos, enquanto ainda se encontrava em posse dos arrendatários.

                                                           *

Regularmente citada, a R. contestou, por impugnação, pugnando pela improcedência da acção e pedindo a condenação dos AA. como litigantes de má-fé.

Invocou, em suma, que os Autores bem sabem que a arrendatária era a Massa Insolvente da B (…) representada pelo Administrador de Insolvência Dr. (…); os AA., em Notificação Judicial Avulsa (NJA), vieram requerer as rendas à insolvente, requereram a resolução do contrato e reclamaram créditos; na NJA, os Autores pedem as rendas de Fevereiro, Março e Abril de 2014, mais as de Maio, Junho e Julho de 2014, posteriores à declaração de insolvência (11.03.2014); os AA. omitiram que a arrendatária foi declarada insolvente e que pediram as rendas à insolvente, através de reclamação de créditos no processo de insolvência; omitem que resolveram o contrato com a insolvente e alegam agora um pretenso trespasse em contradição com o que anteriormente, judicialmente requereram, nomeadamente quanto a rendas e resolução do contrato totalmente incompatível com o que agora requerem; por outro lado, procederam ao arresto de bens da Ré no montante de € 15.000,00, tendo logo sido advertidos de que bem sabiam que quem devia era a massa insolvente da B (…)

*

Teve lugar audiência prévia, na qual se frustrou a tentativa de conciliação, se proferiu despacho saneador, se fixou o objecto do litígio, seleccionaram os temas da prova e admitiram os meios de prova (fls. 94 e ss.).

Teve por fim lugar a realização da audiência, com observância do legal formalismo, como se alcança da respectiva ata.

                                                           *

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir no sentido de que foi a Ré (e não a primitiva locatária) que entre Fevereiro e Agosto de 2014 explorou o estabelecimento comercial sito no locado, pelo que, ainda que não se tivesse apurado a que título é que tal ocorreu, na linha do melhor entendimento doutrinal e jurisprudencial, têm os AA., enquanto proprietários de tal locado, direito a ser indemnizados por essa Ré que se intrometeu na utilização dos seus bens, o que configura um enriquecimento por intervenção da dita Ré, sendo as regras aplicáveis as do enriquecimento sem causa, donde se ter reconhecido que esta tinha que pagar aos AA. o valor correspondente à renda em causa pelos ditos 6 meses de utilização do imóvel, o que ascende a € 9.000,00, mas já improcediam os demais valores indemnizatórios peticionados, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«Face ao exposto julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada, e consequentemente, condeno a Ré O (…), LDA a pagar aos Autores a quantia de € 9.000,00 (nove mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.

Custas por A e R., na proporção do decaimento.

Registe e notifique.»

                                                           *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a Ré recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

                                                                       *

            Contra-alegaram os AA., relativamente ao que formularam as seguintes conclusões:

(….)

                                                                      *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Ré nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- erro na decisão da matéria de facto, por contradição e falta de prova relativamente à factualidade constante dos factos “provados” sob os pontos “5.”, “6.” e “8.”, os quais deviam figurar entre os factos “não provados”;

- incorreto julgamento de direito no que respeita à condenação com base no instituto do enriquecimento sem causa, nomeadamente (mas não só) por “violação dos princípios orientadores da Causa de Pedir, do Pedido e do contraditório”.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

«São os seguintes os factos provados com relevância para a decisão da causa:

1- A propriedade do prédio urbano composto de edifício de um piso destinado a comércio sito na Rua (...) , Coimbra, união das freguesias de Eiras e São Paulo de Frades, concelho de Coimbra, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º x(...) /19980716 e inscrito no Serviço de Finanças Coimbra 2 com o artigo matricial n.º y(...) (ex- yy(...) ), encontra-se registada a favor do A., casado com a A. sob o regime da comunhão geral, por apresentação de 22-02-1993 – vd. certidão de teor matricial de fls. 87 e de registo predial de fls. 164 (1º da p.i.).

2- Por contrato de arrendamento celebrado em 01 de Agosto de 2012, os Autores deram de arrendamento à sociedade L (…) S.A., representada por (…) o prédio referido em 1), contra o pagamento da renda mensal de € 1.500,00 – vd. contrato de arrendamento e seu aditamento de fls. 18 a 23 (2º e 3º da p.i.).

3- Deixaram de ser pagas as rendas respeitantes aos meses de Fevereiro de 2014 e seguintes (4º da p.i.).

4- Em 14 de Janeiro de 2014, foi constituída a sociedade Ré, tendo como gerente (…) e como sede social o locado – vd. documento de fls. 24 (5º, 6º, 27º e 29º da p.i.).

5- A partir da data referida em 4), os produtos comercializados no estabelecimento comercial a funcionar no locado permaneceram os mesmos, o objecto e a sua designação comercial “ K (...) ” permaneceram inalterados e o atendimento continuou a ser prestado pelo mesmo funcionário (8º, 9º e 31º da p.i.).

6- Em data não concretamente apurada, mas anterior a 28 de Agosto de 2014, o estabelecimento comercial que laborava no locado encerrou e deslocou-se para outra morada e com outra designação (14º da p.i.).

7- Na nova morada labora um estabelecimento comercial com os mesmos produtos e objecto da Ré, com a designação de ‘’R (...) ’’ e por ela explorado (15º da p.i.).

8- Desde Fevereiro a Agosto de 2014, foi a Ré que explorou o estabelecimento comercial sito no locado (16º da p.i.).

9- Em 26 de Setembro de 2014, o portão do armazém do locado estava aberto e com a fechadura forçada (22º da p.i.).

10- Os AA. substituíram as fechaduras do locado, com o que despenderam o valor de € 222,25 (21º e 24º da p.i.).

11- Por apresentação de 27-11-2012, foi registada a alteração da denominação da sociedade L (…), S.A. para B (…), S.A. – vd. relatório de fls. 69 e ss. e consulta à certidão de matrícula constante dos autos de Insolvência n.º 531/14.5TJCBR (7º da contestação).

12- Por sentença de 11-03-2014, proferida nos autos de Insolvência n.º 531/14.5TJCBR, que correu termos no 5º Juízo Cível da Comarca de Coimbra, a B (…), S.A. foi declarada insolvente – vd. relatório de fls. 69 e ss. e consulta à certidão de matrícula constante dos autos de Insolvência n.º 531/14.5TJCBR (7º da contestação).

13- Em 26-06-2014, os AA. requereram a Notificação Judicial Avulsa da Massa Insolvente da B (…), S.A. da resolução do contrato e da obrigação de entrega do locado, sob pena de execução, a qual foi realizada em 15-07-2014 – vd. fls. 49 a 55 e cota que antecede (8º e 10º da contestação).

14- Na NJA os AA. acusaram a falta de pagamento das rendas de Fevereiro, Março e Abril de 2014 e o vencimento das de Maio, Junho e Julho de 2014, posteriores à declaração de insolvência – vd. fls. 49 a 55 (9º da contestação).

15- Os AA. reclamaram créditos no montante de € 9.000,00, que foram elencados pelo Administrador da Insolvência na lista de créditos reconhecidos no apenso de verificação de créditos (apenso A) dos autos de Insolvência referidos em 11) – docs. de fls. 136 a 152 e consulta aos autos de Insolvência n.º 531/14.5TJCBR (8º e 14º da contestação).

16- Por decisão de 12-11-2014, nos autos de Insolvência referidos em 11) foi proferido despacho a declarar “o encerramento do processo de insolvência por insuficiência de bens apreensíveis para a massa insolvente”, de acordo com o disposto nos artigos 230º, nº 1, e 232º, do CIRE – consulta aos autos de Insolvência n.º 531/14.5TJCBR.

17- Por decisão de 6-02-2015, ao abrigo do disposto no artigo 233º, nº 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, foi declarada extinta a instância, no apenso A dos autos de Insolvência referidos em 11) – consulta aos autos de Insolvência n.º 531/14.5TJCBR.

                                                                       ¨¨

Factos não provados:

- a concessão pela Câmara Municipal de Coimbra do Alvará de Autorização de Utilização com o n.º 5/2012 emitido em 11 de Janeiro de 2012 (1º da p.i.).

- que no convencimento da transmissão do estabelecimento comercial entre a L (…), S.A. e a ora Ré, os AA. não tenham tido a intenção de colocar qualquer objecção à transmissão da posição do locatário (7º e 10º da p.i.).

- que com a limpeza do armazém e substituição de mosaicos danificados, os AA. tenham tido despesas no valor de € 1.216,88 (20º da p.i.).

- a existência do processo NPP: 420829/2014 junto do DIAP de Coimbra (23º da p.i.).

- que tenha ou não tenha existido trespasse de estabelecimento comercial entre a Larga Missão, S.A. e a ora Ré (44º da p.i. e 1º da contestação).»

                                                                       *

            3.2 – A Ré/recorrente invoca o erro na decisão da matéria de facto, por contradição e falta de prova relativamente à factualidade constante dos factos “provados” sob os pontos “5.”, “6.” e “8.”, os quais deviam figurar entre os factos “não provados”:

Vejamos, antes de mais, o concreto relevante teor literal constante desses ditos pontos de facto:

«5- A partir da data referida em 4), os produtos comercializados no estabelecimento comercial a funcionar no locado permaneceram os mesmos, o objecto e a sua designação comercial “ K (...) ” permaneceram inalterados e o atendimento continuou a ser prestado pelo mesmo funcionário (8º, 9º e 31º da p.i.).

6- Em data não concretamente apurada, mas anterior a 28 de Agosto de 2014, o estabelecimento comercial que laborava no locado encerrou e deslocou-se para outra morada e com outra designação (14º da p.i.).

8- Desde Fevereiro a Agosto de 2014, foi a Ré que explorou o estabelecimento comercial sito no locado (16º da p.i.).».

Mais concretamente, sustenta a Ré/recorrente “contradições” e “ambiguidades”, na medida em que no dito ponto “6.” se expressa que em data não apurada, mas anterior a 28 de Agosto de 2014 o locado foi abandonado, todavia não se refere se foi em Junho, Julho ou em que dia de Agosto, mas, depois, conclui-se (no subsequente ponto “8.”) que de Fevereiro de 2014 a Agosto de 2014 foi a Ré que explorou o estabelecimento comercial sito no locado…

Paralelamente, sustenta que nenhuma das testemunhas ouvidas referiu que a Ré ocupou as instalações desde a sua constituição (Janeiro de 2014), mas o factualismo positivo de sinal inverso encontra-se consignado no dito ponto “5.”, acrescendo que, e pelo contrário, resultou do depoimento da testemunha L... (o Sr. Administrador de Insolvência) que o estabelecimento estava encerrado pelo menos desde 20 de Fevereiro de 2014, o que teria sido corroborado pelos autores num seu requerimento…

Nesta linha, prossegue com a argumentação “Pelo que, pelo menos em Fevereiro o estabelecimento não foi ocupado por ninguém”, termos em que os ditos artigos deviam ser dados como “não provados”.

Que dizer?

Desde logo, que invocam um único depoimento em abono desta sua última versão – o encerramento do estabelecimento pelo mesmo desde 20 de Fevereiro de 2014 – mas, salvo o devido respeito, não é isso que se retira do dito depoimento, devidamente interpretado.

De referir que apesar de ser muito questionável o cumprimento do ónus constante do art. 640º do n.C.P.Civil quanto a este particular (indicação do início e do termo da passagem ou das passagens, desse depoimento, em que se funda o seu recurso)[2], pois que apenas transcrevem uns pequenos excertos sincopados do depoimento dessa testemunha, e unicamente referindo quanto à sua localização “5:00m”, o que é certo é nem sequer resulta de todo desse depoimento o que a Ré dele afirma constar.

Na verdade, ouvindo-se na íntegra esse depoimento, o que se retira é que o dito Sr. Administrador de Insolvência nem sequer nunca conheceu o locado (nunca o visitou), apenas se tendo “servido” de informações que lhe foram prestadas por um Sr. de uma Leiloeira (seu colaborador ao tempo), que este sim lá se teria deslocado; sucede que ao “aprofundar” esse conhecimento da situação, o mesmo não deu de todo a localização real do locado, pelo que fica a dúvida legítima se a indicação dada ao Sr. da leiloeira foi a correta, e consequentemente, se este “visitou” o locado que devia visitar…

Tendo presente este ponto de ordem, o que se retira de seguro do dito depoimento do Sr. Administrador de Insolvência é que – também assim no seu “Relatório” do art. 155º do CIRE junto aos autos a fls. 116-130 – na medida em que não era conhecido o paradeiro dos elementos de contabilidade, nem o TOC da Insolvente, sendo que apenas acedeu aos dois últimos exercícios entregues fiscalmente em declaração anual de IRC nos anos de 2009/2010, é que ele basicamente partiu dos dados que resultavam das reclamações de crédito[3] sobre a Insolvente em causa (“B (…), S.A.”), como flui do que consignou a fls. 9 do Relatório já aludido, a saber, “A empresa encontra-se encerrada desde Março de 2014, com base nas reclamações de crédito” (sublinhado nosso).

Isto tanto mais que ao tempo da sua entrada em funções, a Insolvente se apresentava como tendo a sua sede em distinto lugar – na “Rua João de Ruão nº 12, 3000-229”…

Assim, porque a Insolvência em causa foi requerida pela própria Insolvente,  quando o mesmo Sr. Administrador de Insolvência, no dito “Relatório” do art. 155º do CIRE, consignou que “a Insolvente se encontrava encerrada e sem trabalhadores”, naturalmente que se deve interpretar o “encerramento do estabelecimento em 20.02.2014”, mais propriamente como significando o encerramento da actividade da empresa em si.

Dito de outra forma: não se consegue retirar do constante do já aludido “Relatório” do art. 155º do CIRE, na sua conjugação com os esclarecimentos prestados em audiência pelo seu subscritor, o dito Sr. Administrador de Insolvência, que este tivesse um conhecimento real e seguro sobre a situação do locado ajuizado nos autos, mormente que o mesmo se encontrasse encerrado como decorrência e consequência do encerramento da actividade pela Insolvente.

Ademais, os AA. não “corroboraram” que o estabelecimento tivesse encerrado em 20-02-2014, antes e apenas, com e no seu requerimento de fls. 106-107, invocaram/remeteram para o que tinha sido dito pelo Sr. Administrador de Insolvência no “Relatório” do art. 155º do CIRE (a cuja junção aos autos então procederam), o que se mostra unicamente e sempre reportado à Insolvente!  

Ora se assim é, será legítimo falar de “erro de julgamento” relativamente ao que figura como sendo a convicção alcançada pelo Tribunal a quo?

Cremos bem que não, como se vai cuidar de evidenciar de seguida.

Sendo certo que na medida em que se encontra sindicada a convicção alcançada pela Exma. Julgadora de 1ª instância, se impõe perscrutar a “motivação” expressa pela mesma na decisão recorrida.

Na verdade, perfilhamos o entendimento de que quando há impugnação da matéria de facto e ao tribunal de recurso é impetrada uma decisão à luz do disposto no art. 662º do n.C.P.Civil, a “Fundamentação”/“Motivação” do tribunal a quo vai ser o objeto precípuo da atenção do tribunal de recurso, pois que o labor deste se orienta para a deteção de qualquer “erro de julgamento” naquela decisão da matéria de facto, em termos da apreciação e valoração da prova produzida (não podendo obviamente limitar-se à análise da coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto operada pelo tribunal a quo).

Sem embargo, “não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento”.[4]

E assim o é em atenção ao entendimento de que a efetiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 662º do n.C.P.Civil), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo tribunal recorrido.

É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento fixado no dito art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil, o qual vale com idêntica amplitude na 2ª instância.

Vejamos então a “motivação” do Tribunal de 1ª instância, no que a este particular diz respeito:

«(…)

Para prova da substituição da L (…) pela Ré, a partir da data referida em 4), embora não tenha sido feita prova do título a que ocorreu tal alteração subjectiva, atendeu-se, por um lado, à circunstância de a Ré ter sido constituída nessa data, tendo como sede social o locado, conjugada com o depoimento das testemunhas (…)

Efectivamente, a testemunha (…) referiu que na data mencionada em 6), viu na vitrine do estabelecimento sito no locado as folhas de papel constantes das fotografias de fls. 66 a 68, com o seguinte conteúdo “NOVA LOJA – Vamos abrir a loja ao lado da M (...) na Ponte de Eiras com a R (...) . Abre dia 14-06-2014”. Mais referiu que o estabelecimento sempre ostentou o painel publicitário visível na fotografia de fls. 86, com o nome “ K (...) ”.

A testemunha (…) afirmou que tomou conhecimento de que a Ré estava no locado em Abril de 2014. De acordo com a testemunha, como as cartas que os AA. remetiam para o locado vinham devolvidas, a testemunha (…) deslocou-se ao locado, tendo sido informado de que a arrendatária já não existia e no seu lugar estava a ora R. Mais referiu a testemunha que o contacto era o mesmo (o Sr. (…), que sempre afirmou que a renda ia ser paga), os produtos vendidos eram os mesmos e o aspecto interior e exterior da loja eram também os mesmos (tendo-se mantido o painel publicitário, com o nome “ K (...) ”).

A testemunha (…) deslocou-se ao locado, no dia 3 ou 4 de Abril de 2014, a pedido dos AA., atenta a devolução das cartas dirigidas à arrendatária, tendo sido informado pelo funcionário da loja que a arrendatária já não existia, e no seu lugar estava a ora R.

A testemunha (…), assistente administrativa da F (...) , referiu que era cliente da loja K (...) instalada no locado, tendo-lhe sido enviada uma mensagem em 2-09-2014, nessa qualidade, a informá-la da mudança de instalações. Mais confirmou a testemunha que a factura cuja cópia está junta a fls. 63 foi emitida na sequência de uma compra por si realizada e que ao longo dos anos, não notou qualquer diferença no aspecto da loja ou nos funcionários que lá trabalhavam (que identificou como sendo a D. W (...) , o Sr. S (...) e o Sr. T (...) ).

(…)»

Daqui resulta, em nosso entender, uma prova positiva suficientemente consistente e concludente em termos de permitir a resposta de “provado” aos 3 factos em análise.

Atente-se que ao resultar como incontroverso que em 14 de Janeiro de 2014 foi constituída a sociedade Ré, tendo como gerente (…), que era precisamente a mesma pessoa que interveio em representação da primitiva arrendatária (“L (…)”) aquando da celebração do contrato de arrendamento ajuizado, naturalmente que surge como evidente ser linear e simples a “estratégia” que se adivinha, da parte deste, de face à Insolvência da primitiva arrendatária, continuar a atividade comercial naquele locado através de uma nova entidade jurídica, pelo menos enquanto tal lhe fosse facilitado ou não lhe fosse juridicamente obstaculizado.

Sendo certo que outra explicação não se encontra para ter sido sedeada a Ré no locado, que não a de esta aí centrar a sua atividade, atividade esta que a partir de Fevereiro de 2014 manifestamente teve lugar, como resulta inegável dos depoimentos em referência, devidamente conjugados, importando somente sublinhar que o atesta inequivocamente o recibo/“Factura Simplificada” datado de 28 de Junho de 2014, correspondente a uma aquisição de um produto comercial no estabelecimento em funcionamento no locado, por parte da testemunha D (…).

Bem como atestam o funcionamento do estabelecimento no locado, no mesmo período em referência, insofismavelmente, os documentos de suporte fotográfico que constituem fls. 66 a 68, no confronto dos quais tiveram lugar os depoimentos das testemunhas em referência.

O que tudo serve para dizer que resulta com a suficiente e necessária consistência dos meios de prova invocados – documentos e testemunhas – a convicção probatória positiva afirmada na sentença recorrida, sem prejuízo de ela sempre ter que ser de conteúdo restritivo em função do que estava alegado (encerramento em Agosto de 2014).

Naturalmente que é por assim ser que não nos merece em nenhuma medida acolhimento a crítica feita quanto ao particular da consistência e suficiência da prova feita.

Isso também porque o controlo da matéria de facto tem por objeto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa perceção própria do material que lhe serve de base (arts. 604º, nº 3 e 607º, nº 5 do n.C.P.Civil).

Sem embargo de que a liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, naturalmente que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objetivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjetiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros.

De qualquer forma, não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente: na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também fatores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição; na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reações imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.  

Daí que – conforme orientação jurisprudencial prevalecente – «o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição[5]

Dito de outra forma, «só perante tal situação [de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão] é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, [que não compete a este tribunal ad quem sindicar (artº 655-1 do CPC), e pelas razões já supra] expandidas.»[6]

Em conclusão, mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelos apelantes ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade, pois que, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou, apontando-se como casos excecionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas – v.g. por distração – determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

Nesta linha de entendimento, já doutamente se concluiu que «A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.»[7]

Assim, se o julgador de 1ª instância entendeu valorar diferentemente da ora Recorrente tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa, de ânimo leve, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém aqui (v.g. a inquirição presencial das testemunhas – os princípios da imediação e oralidade).

Aliás, em consonância com este entendimento se mostra a circunstância de se manter no atual art. 640º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil o dever (melhor, ónus) para o recorrente de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, donde ter ele que ser conjugado com o artº 607, nº5 do mesmo n.C.P.Civil – que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – pelo que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa, sendo por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”.

Pelo que tendo sido o já apontado e enunciado o sentido útil e decisivo do depoimento das testemunhas, como sustentar que com base neles outra deveria ter sido a convicção do Tribunal a quo?

Pois que não nos merece de todo concordância o sustentado pela Ré no sentido de que “ninguém provou que a Ré estivesse ocupar o local”, antes se deteta um avolumar de prova conducente à convicção de sentido contrário – que foi a expressa no que foi consignado na resposta aos pontos de facto em análise.

Sem embargo do vindo de dizer, concorda-se que as respostas dadas a dois dos pontos de facto em referência envolvem alguma ambiguidade, admitindo-se mesmo serem elas equívocas quanto à definição do momento temporal das mesmas constante.

Com efeito, enquanto o ponto de facto “6.” apontava para uma incerteza de latitude quase total (encerramento a ter lugar “em data não apurada”, apenas com a baliza final de ser “anterior a 28 de Agosto de 2014”), já no ponto de facto “8.” se afirmava uma relativa certeza, qual seja, a de que o estabelecimento fora explorado pela Ré “de …a Agosto de 2014”.

Mas como e porque surge aquela 1ª data, de 28 de Agosto de 2014?

Tanto quanto nos é dado perceber, porque os AA. haviam afirmado na p.i. que fora nessa data que se haviam deparado com o encerramento do estabelecimento comercial que laborava no locado.

Sucede que não se deteta prova insofismável de que o estabelecimento efectivamente foi explorado pela Ré até essa data – isto na medida em que nenhuma testemunha o logrou confirmar, nem se vislumbra outro qualquer meio de prova concludente.

Assim sendo, quanto a nós, face à prova feita, logra-se apenas convicção positiva no sentido de que o estabelecimento funcionava no locado à data de 28 de Junho de 2014 (por ser esta a data em que a testemunha (…) aí adquiriu um artigo comercial, comprovando-o com o recibo/“Factura Simplificada” junto aos autos), face ao que, em nosso entender, a resposta a ambos estes pontos de facto, sendo de conteúdo restritivo, deve reflectir esta concreta e limitada certeza.

Donde, operando a revaloração da prova feita, e tendo em vista superar o carácter ambíguo, senão equívoco, que encerra a redacção dos pontos de facto em referência, opta-se por conferir uma redacção liberta dessa deficiência, mais concretamente passando a ser a seguinte a nova e retificada redacção para esses dois pontos de facto “provados”:

«6- Em data não concretamente apurada, mas posterior a 28 de Junho de 2014, o estabelecimento comercial que laborava no locado encerrou e deslocou-se para outra morada e com outra designação (nova resposta ao que constava do art. 14º da p.i.).»

«8- Desde Fevereiro a, pelo menos, 28 de Junho de 2014, foi a Ré que explorou o estabelecimento comercial sito no locado (nova resposta ao que constava do art. 16º da p.i.)».

Nestes precisos e limitados termos procedendo a impugnação da matéria de facto.

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito no que respeita à condenação com base no instituto do enriquecimento sem causa, nomeadamente (mas não só) por “violação dos princípios orientadores da Causa de Pedir, do Pedido e do contraditório

Será assim?

Começaremos por dizer que, em nosso entender, a sentença recorrida ao condenar com base no instituto do enriquecimento sem causa, independentemente do acerto em si desta condenação (que se apreciará e decidirá num segundo momento!) não violou qualquer dos invocados princípios processuais.

Senão vejamos.

Sustenta a Ré/recorrente que “o despacho saneador estabeleceu como objecto do litígio o de saber da responsabilidade da Ré no pagamento de 13.550,00 a título de rendas” não tendo sido “alegado nem formulado qualquer pedido de verificação do enriquecimento sem causa”, e bem assim que “Igualmente, no Despacho saneador quer no que se refere ao objecto do litígio quer aos temas de prova nada se refere à figura do enriquecimento sem causa tendo sido em função destes realizados os requerimentos de prova e produzida prova.”.

Sucede que – como igualmente sustentado pela Ré/recorrente – “Todavia, numa clara e manifesta violação dos arts. 3º, 260º, 264º e 265º do CPC o tribunal a quo condenou a Ré ao pagamento de 9.000, 00 € a título de enriquecimento sem causa, apesar de este nem sequer ter sido alegado ou pedido a título subsidiário, tal como era necessário”.

Será assim?

Entende-se por causa de pedir, é pacífico, “o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido[8], querendo-se com isto dizer que o A. deve fazer a indicação dos factos concretos constitutivos do direito invocado, não bastando a indicação da relação jurídica abstracta.

Confrontando a p.i., não pode deixar de se concluir que os AA. aí indicaram expressamente que o seu direito a receber da Ré o montante peticionado derivava ou era consequente, em 1ª linha (a título “principal”) da intervenção ou intromissão desta na sua propriedade, citando para tanto o art. 1305º do C.Civil.

Ora se assim é, não vemos como afirmar que a condenação operada na sentença teve lugar fundada em causa de pedir diversa/distinta, isto porquanto a sentença recorrida mui clara e inequivocamente se baseou – citando-o – em aresto jurisprudencial que assenta no seguinte entendimento:

«Tem vindo a ser entendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que o proprietário tem direito a ser indemnizado por quem se intromete na utilização dos seus bens, auferindo os réditos que a ele, proprietário, em exclusivo pertencem, por força do disposto no artigo 1305º do Código Civil.

E isto, mesmo quando não se tenham provado todos os pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no artigo 483º do Código Civil, designadamente a verificação do dano.

Efectivamente, «sempre que o interventor tenha tirado da coisa, objecto do direito real, certas vantagens, pode dizer-se que obteve um enriquecimento à custa do titular desse direito, na medida em que se apropriou de utilidades que a ordem jurídica, segundo o direito da ordenação dos bens, reservava exclusivamente a este último» - acórdão do STJ, de 23/3/99, CJSTJ, ano VII, tomo I, páginas 172-174, citando Pires de Lima e Antunes Varela, CCivil Anotado, 4ª ed., I-457, Henrique Mesquita, RLJ, 125º-158 e Menezes Leitão, «O Enriquecimento sem causa no Direito Civil», páginas 718, 895, 984 e 909/911.

Nesta hipótese, tem-se entendido que se verificará sempre o chamado enriquecimento por intervenção, cujo elemento central é o enriquecimento à custa de outrem (o proprietário), ainda que se prove que este não estaria disposto a realizar os actos de onde procede tal vantagem.

As regras aplicáveis serão as constantes do artigo 473º e seguintes do Código Civil relativas ao enriquecimento sem causa (…)»[9]

Constata-se, assim, o apelo, na sentença recorrida, à mesma causa de pedir, a saber, a intervenção ou intromissão na propriedade alheia, violando-se o disposto no art. 1305º do C.Civil…

Dito de outro modo: Estando em causa saber se a sentença recorrida podia reconhecer, como reconheceu, aos AA. o direito a haver da Ré, a título de enriquecimento sem causa, o valor das rendas do locado pelos meses em dívida, é sabido que o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (cf. art. 5.º do n.C.P.Civil), posto que tal é uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão.[10]

Por isso, devendo o juiz conhecer de todos os pedidos, causas de pedir e excepções (arguidas pelas partes ou oficiosamente identificadas), mas só dessas questões, não infringe nenhum destes deveres se seguir apenas linhas de argumentação jurídica diversas.

Foi o que se passou no caso presente: a Exma. Juíza a quo limitou-se a enquadrar juridicamente a pretensão dos AA. de receberem os valor correspondente às rendas do locado pelos meses em dívida.

Dito isto, será que se pode e deve concluir pela violação do princípio da identidade do pedido como invocado pela Ré/Recorrente, tendo por referência que as alterações ao pedido (e à causa de pedir) “apenas se podem verificar nos termos do art. 264 e 265º do CPC”?

A nossa resposta é igualmente de sentido negativo, aliás, nem se compreendendo verdadeiramente a invocação deste concreto fundamento.

Vejamos.

Consabidamente, o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo A.[11], sendo que in casu tal se reconduzia ao pedido de condenação da Ré na prestação de certo montante.

Acontece que foi isso precisamente que veio a ter lugar a final.

Pelo que nos dispensamos de maiores considerações.

Resta então apreciar a última linha de argumentação neste particular, a saber, a fundada na violação do princípio do contraditório.

Neste particular invoca a Ré/recorrente a vertente proibitiva da decisão-surpresa, isto é, que é expressamente proibida a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

Atendendo aos termos como a Ré/recorrente coloca a questão, desde logo se pode concluir que ela não questiona que a decisão com base no enriquecimento sem causa podia ter lugar oficiosamente.

E efectivamente assim se deve entender na medida em que a questão aparece configurada como um “enriquecimento por intervenção”.[12] 

Isto mesmo foi sublinhado no acórdão do STJ já antes citado, em assentou a sentença recorrida, no qual igualmente se deixou bem sublinhado que  «Tem vindo a ser entendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que o proprietário tem direito a ser indemnizado por quem se intromete na utilização dos seus bens, auferindo os réditos que a ele, proprietário, em exclusivo pertencem, por força do disposto no artigo 1305º do Código Civil» e bem assim que «Nesta hipótese, tem-se entendido que se verificará sempre o chamado enriquecimento por intervenção, cujo elemento central é o enriquecimento à custa de outrem (o proprietário) (…)»

Ora se assim é, não merece de todo acolhimento a invocação de que a decisão recorrida – enquanto assente no enriquecimento sem causa – constituiu uma “decisão-surpresa”.

Temos presente que no plano das questões de direito é expressamente proibida a decisão-surpresa, ex vi do art. 3º, nº3 do n.C.P.Civil, mas tal tem o sentido de proibição de “decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes[13].  

O que não foi seguramente o caso, atento o sustentado expressamente pelos AA./recorridos na p.i., nos termos já supra aludidos, mais concretamente constantes dos arts. 25º e 26º desta.

Na verdade, a linha de argumentação aí apresentada com referência a este aspeto, foi claramente no sentido de que a privação do uso do locado dos AA. pela Ré gerava o dever, por parte desta, de pagar a indemnização correspondente àqueles.

Dito de outra forma: foi muito claramente alegado na p.i. que estava em causa uma ingerência da Ré na propriedade dos AA., sendo por via disso que a Ré estava obrigada a indemnizar os danos resultantes da violação, alegação esta feita em termos que não consentiam outra qualificação jurídica.

O que tudo serve para dizer que, tendo em atenção essa causa de pedir enunciada, na sua conjugação com os elementos constantes dos autos, designadamente a insolvência da arrendatária primitiva e o encerramento desse processo de insolvência por insuficiência de bens apreensíveis para a massa insolvente, de acordo com o disposto nos artigos 230º, nº 1, e 232º, do CIRE (cf. facto “provado” sob o ponto “16.”), o que já estava definido à data da entrada da p.i. (esta entrou em 25.11.2014, conforme carimbo aposto a fls. 2, e o encerramento do processo de insolvência resultou de despacho proferido em 12.11.2014, como consta do citado facto “provado” sob “16.”),  em nosso entender, agindo com a diligência devida, a Ré/recorrente não podia ter deixado de “considerar” o fundamento em que assentou a decisão recorrida.

Assim, se não o intuiu então por deficiência ou desatenção, ou se optou por nada lhe objetar oportunamente, em qualquer dos casos “sibi imputet” …

Termos em que improcede esta terceira vertente do argumento recursivo.

Faltando apenas apreciar e decidir se a decisão baseada no enriquecimento sem causa, em si mesma considerada, se mostra bem fundada e acertada.

Cremos que a resposta ao primeiro aspeto desta última interrogação já inteiramente se adivinha.

Na verdade, aqui entronca a verificação do requisito da subsidiariedade deste instituto jurídico, o que já foi supra em alguma medida aflorado.

Senão vejamos.

Dispõe o art. 474º do C.Civil que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

Resulta, pois, de tal normativo que a acção baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza “subsidiária”, só podendo a recorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção (o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à acção de restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa).

Com referência a este particular já foi doutamente ensinado o seguinte: a subsidiariedade da acção de enriquecimento tem, no entanto, de ser entendida em termos hábeis. Pode originariamente a lei não permitir o exercício da acção de enriquecimento, em virtude de o interessado dispor de outro direito e, posteriormente, facultar o recurso àquela acção, em consequência da caducidade desse direito”.[14]

Aplica-se de pleno esta asserção no caso vertente: os AA./recorrentes, à data da propositura da ação ajuizada, não tinham nem têm efetivamente outro meio de ser ressarcidos do seu dano (rendas em dívida do locado), na medida em que teve lugar a insolvência da arrendatária primitiva e o encerramento desse processo de insolvência por insuficiência de bens apreensíveis para a massa insolvente!

E que dizer do argumento derradeiramente apresentado pela Ré/recorrente no sentido de que, se existiu enriquecimento, foi à custa do arrendatário (leia-se da primitiva arrendatária, a sociedade “L (…), S.A.”, rectius, a “B (…) S.A.” – cf. facto provado sob o ponto “11.”), e não dos AA.?

Salvo o devido respeito, também não assiste qualquer razão à Ré/recorrente neste particular: é que o argumento só procederia se se pudesse concluir que era a dita primitiva arrendatária que tinha a posse e fruição do locado e dele fora desapossado ilicitamente pela Ré, quando o que resulta da factualidade apurada é que houve uma cedência da primeira à segunda, em nada a primeira se encontrando prejudicada, pois que não pagou as rendas em causa nem as pode pagar em definitivo.

Vejamos então, para finalizar a questão, do acerto da decisão recorrida, em si mesmo considerada.

Já neste último particular não podemos deixar de conferir alguma razão à Ré/recorrente.

É que, por força da retificação dada à redacção dos pontos de facto “6.” e “8.” a que se procedeu supra, resulta agora que a responsabilização da Ré/recorrente pelas rendas do locado apenas se pode fazer quanto a 5 meses (a saber, os meses de Fevereiro a Junho de 2014) e não já pelos 6 meses (Fevereiro a Julho de 2014) conforme fora peticionado na p.i. e veio a ser acolhido na decisão do Tribunal a quo.

Donde, em vez do montante de € 9.000,00 ( = € 1.500,00 x 6), passa a ser de € 7.500,00 ( = € 1.500,00 x 5) a condenação da Ré/recorrente.

Nestes termos procedendo parcialmente o recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O interventor por ingerência ou intromissão em bens alheios está obrigado a restituir ao respectivo proprietário aquilo com se enriqueceu à custa do valor de uso desses bens.

II – Sendo que as regras aplicáveis serão então as constantes do artigo 473º e seguintes do Código Civil relativas ao enriquecimento sem causa.

III – No plano das questões de direito, se é expressamente proibida a “decisão-surpresa”, ex vi do art. 3º, nº3 do n.C.P.Civil, tal tem o sentido de proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.  

IV – Não merece procedência a invocação de que a decisão recorrida – enquanto assente no enriquecimento sem causa – constituiu uma “decisão-surpresa”, quando a linha de argumentação apresentada pelos AA. na p.i., com referência ao aspeto da intromissão na utilização do seu imóvel/locado, foi claramente no sentido de que a privação do uso do locado dos AA. pela Ré gerava o dever, por parte desta, de pagar a indemnização correspondente àqueles, isto é, foi muito claramente alegado na p.i. que estava em causa uma ingerência da Ré na propriedade dos AA., sendo por via disso que a Ré estava obrigada a indemnizar os danos resultantes da violação, alegação esta feita em termos que não consentiam outra qualificação jurídica.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, julgar a apelação da Ré parcialmente procedente, em consequência do que se altera a sentença recorrida, sendo agora a Ré O (…), LDA condenada a pagar aos Autores a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.  

            Custas em ambas as instâncias por AA. e Ré na proporção do respetivo decaimento.

                                                                       *

Coimbra, 24 de Janeiro de 2017

 

Luís Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2]  No sentido de que «Sempre que o recorrente impugne a decisão sobre a matéria de facto, deve observar o ónus de impugnação previsto no artº 640º do nCPC, nomeadamente deve indicar as exatas passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que se baseia para discordar do decidido, sob pena de rejeição do recurso quanto à reapreciação da prova», vide o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 16-03-2016, no proc. nº 1598/14.1T8LRA.C1, e,  no mesmo sentido, inter alia, o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 17-12-2014, no proc. nº 6213/08.0TBLRA.C1, ambos eles acessíveis em www.dgsi.pt/jtrc.
[3] Por parte da Segurança Social e pelos trabalhadores (cf. minuto 17:37 da gravação áudio).
[4] Citámos o Ac. do T.R de Coimbra de 17-04-2012, proc. nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, que embora tendo sido prolatado na vigência do C.P.Civil, perfilha um entendimento perfeitamente transponível para o atual n.C.P.Civil; no mesmo sentido, veja-se A. ABRANTES GERALDES in “Julgar”, nº 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, páginas 74 a 76 e o Ac. do S.T.J. de 15-09-2010, proferido no proc. nº 241/05.4TTSNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj, relativamente ao qual também se invoca a atualidade do entendimento nele perfilhado.
[5] Cf. o acórdão do T.R. de Coimbra de 25/5/2004, proferido no proc. nº 17/04, cujo texto integral está acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[6] Cf. acórdão do T.R. de Coimbra de 25/11/2003, proferido no proc. nº 3858/03, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[7] Assim no acórdão do S.T.J. de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, cujo texto integral pode ser acedido em www.dgsi.pt/jstj.
[8] cf. ANTUNES VARELA / J. MIGUEL BEZERRA / SAMPAIO E NORA, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, a págs. 245.
[9] Trata-se do acórdão do STJ de 30.10.2013, no proc. nº 03B2593, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[10] Neste sentido, vide JOSÉ LEBRE DE FREITAS / A. MONTALVÃO MACHADO / RUI PINTO, in “Código de Processo Civil Anotado”,  Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, a págs. 692.
[11] Assim os mesmos autores na obra e local citados na antecedente nota (9).
[12] Podendo fazer-se aqui o contraponto com as situações de “enriquecimento por prestação” do empobrecido, relativamente às quais o melhor entendimento vai no sentido de que  «o enriquecimento sem causa não traduz uma regra “residual” de decisão (não traduz sequer uma regra de decisão), que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial, cuja invocação se dirigia a outro efeito (como seja a restituição de uma quantia mutuada)» - assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra de 17.09.2013, no proc. nº64/09.1TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.

[13] Neste sentido, JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. Iº, 3ª ed., Coimbra Editora, a págs. 9.
[14] Citámos agora PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., a págs. 433.