Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1648/21.5T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: SERVIDÕES PREDIAIS
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
UTILIDADE PARA O PRÉDIO DOMINANTE
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1543.º, 2; 1547.º; 1550.º A 1560.º; 1563.º E 1569.º, 2 A 4, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I -  A desnecessidade é uma causa de extinção das servidões prediais adquiridas por usucapião e das servidões legais, neste caso, qualquer que seja o seu titulo de aquisição.

2- Há-de configurar-se como superveniente, decorrendo de alterações no prédio dominante que se devam ter como juridicamente relevantes.

3- O conceito de desnecessidade, como causa de extinção da servidão predial, é  paralelo ao interesse que justifica a constituição dessa servidão, que é o da utilidade para o prédio dominante.

4 – Essa utilidade, assim como a correspondente não utilidade, é avaliada em função do prédio dominante, abstraindo sempre da situação pessoal do proprietário do mesmo.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            I -  AA e BB,  por si e na qualidade de únicos e universais herdeiros de CC, instauraram a presente acção declarativa comum, contra DD e EE, pedindo que lhes seja reconhecido o seu direito de propriedade e determinada a inexistência de qualquer servidão de passagem dos Réus pelos seus prédios, ainda que pelo não uso ou desnecessidade, e sejam os mesmos condenados a repor a delimitação dos prédios, com a edificação de muro divisório, e ainda  no pagamento de uma indemnização aos Autores, no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) pela privação do exercício pleno do direito de propriedade.

            Alegaram, para o efeito e, em suma, que são proprietários de um prédio urbano, com o artigo matricial ...71, e de um prédio rústico, com o artigo matricial ...07, ambos na Freguesia ..., e que os Réus são proprietários de um prédio rústico, com o artigo matricial ...06, e de um prédio urbano, com o artigo matricial ...09, da mesma Freguesia, sendo que este último prédio tem acesso ao caminho, a sul. Mais alegaram que osR éus  depois de adquirem o prédio ...06 passaram a aceder a esse prédio, pelo mesmo acesso do prédio com o artigo ...09, não existindo muro ou vedação que impeça o pleno acesso entre esses prédios dos Réus. Desde o mês de Outubro de 2021 passaram a exigir aos Autores a passagem pelos prédios deles para acederem aos seus, fechando com rede o acesso que possuem ao caminho no prédio ...09. Na mesma altura abriram um acesso ao seu prédio ...06, que até aí estava vedado com um amontoado de terra, pedras e giestal, sendo que os  Autores, para defesa da sua propriedade,  tentaram vedar tal acesso, com recurso a umas vigas, que os Réus retiraram, à sua revelia, tendo  posteriormente deslocado uma pedra de grande porte que os Autores ali tinham colocado.

            Os Réus contestaram, afirmando que os prédios dos Autores são servientes, para além do prédio ...06, de outras propriedades rústicas, sendo falso que não tenham passado nos últimos 20/30 anos, por tais prédios, nunca tendo sido colocado em causa tal direito. Defendem ainda que o prédio ...09 corresponde ao anterior 2705, rústico, não existindo qualquer problema quanto à entrada deste, que existe a poente, com o caminho público. Referem ainda que, há cerca de 30 anos, os prédios dos Autores e de outros três vizinhos eram um prédio rústico único, o ...07, tendo sido dividido por lotes, sendo que, nesse momento, ficaram os prédios dos Autores com os ónus e encargos que existiam, mormente a servidão de passagem para o prédio ...06 e para outro ou outros prédios. A servidão de passagem, nasce no caminho na Rua ... e dirige-se em direcção a Norte, tem cerca de quatro metros de largura e sessenta metros de cumprimento, composto por terra batida, com trilhos de carros, tractores e máquinas que os Réus e ante possuidores utilizaram e utilizam, estando todo o terreno de servidão livre e limpo desde sempre.

            Concluem, a título reconvencional, que lhes seja reconhecido o seu direito de propriedade, que seja declarada a existência de servidão de passagem, nos termos alegados e que sejam os Autores condenados como litigantes de má fé.

            Na réplica, os Autores pugnaram pela improcedência da reconvenção, por manifestamente contrária à posição assumida na petição inicial, reiterando que, até à aquisição, pelos Réus, do prédio ...06, este era inculto e inutilizado, pelo que nada justificaria a constituição de uma servidão, por inexistir interesse económico a servir.

             Admitida a reconvenção, fixou-se o valor da causa em €27.100,59 (vinte e sete mil e cem euros e cinquenta e nove cêntimos), proferiu-se despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e enumeraram-se os temas da prova.

            Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção e a reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência:

            a) reconheceu o direito de propriedade dos Autores, AA e BB, por si e na qualidade de únicos e universais herdeiros de CC:

            a) sobre o prédio urbano com o artigo matricial ...71, Freguesia ..., concelho ..., sito no Rua ..., ..., composto de casa de r/C e 1.º andar destinado a palheiro, com a área total de terreno de 160m2, e de implantação de 120 m2, inscrito matricialmente a favor da herança de CC, não descrito na Conservatória do Registo Predial  e o sobre prédio rústico com o artigo matricial ...07, Freguesia ..., concelho ..., sito nas ..., com a área total de 280m2, destinado a cultura de sequeiro, inscrito matricialmente a favor da herança de CC, não descrito na Conservatória do Registo Predial;

             b) reconheceu o direito de propriedade dos Réus/Reconvintes, DD e EE, sobre o prédio rústico com o artigo matricial ...06, Freguesia ..., concelho ..., sito no ..., com 1.000,00m2, com destino a cultura de sequeiro, descrito no Conservatória do Registo Predial com a descrição ...90; e  o prédio urbano com o artigo matricial ...09, Freguesia ..., concelho ..., proveniente do anterior artigo matricial rústico ...05 da mesma freguesia, sito na Rua ... (...), destinado a arrecadações e arrumos, com a área total de 3.404,90m2, e de implantação 93,65m2, descrito no Conservatória do Registo Predial com a descrição ...34;

             c) reconheceu o direito de servidão de passagem, em benefício do prédio rústico com o artigo matricial ...06, sobre os prédios dos Autores, identificados em a);

            d) declarou extinto o direito de servidão de passagem reconhecido em c), por desnecessidade;

            e) absolveu os Réus do demais peticionado pelos Autores;

            f) absolveu os Autores/Reconvindos do demais peticionado pelos Réus/Reconvintes;

             g)  e absolveu os Autores do pedido de condenação como litigantes de má fé, deduzido pelos Réus.

            II – Do assim decidido, apelaram os Réus, tendo concluído as respectivas alegações, com as seguintes conclusões:

            1ª Os AA. não alegaram factos nem provaram factos tendentes à extinção da servidão de passagem sobre os seus prédios a favor do prédio dos RR..

            2ª Os factos dados por provados de 7), 8), 9), 11) in fine e 12) da sentença, deverão ser dados por não provados.

            3ª Tal decorre dos depoimentos de:

            1 - Testemunha - FF – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 12:04:16 a 12:57:37 – nada diz sobre os factos impugnados;

            2 - Testemunha - GG – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 14:22:54 a 14:43:58 - nada diz sobre os factos impugnados;

             3 - Testemunha - HH – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 14:45:02 a 15:15:30 - nada diz sobre os factos impugnados;

             4 - Testemunha - II – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 15:16:32 a 15:26:48 (dos 04m e 02s a 04m e 36s do seu depoimento);

            5 - Testemunha - JJ – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 15:27:49 a 16:14:28 (dos 05m e 08s a 06m e 01s; dos 13m e 37s a 14m e 25s e dos 40m e 32s a 42m e 02s do seu depoimento);

            6 - Testemunha - KK – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 16:15:43 a 16:36:55 - nada diz sobre os factos impugnados;

            7 - Testemunha - LL – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 16:37:40 a 16:55:33 (dos 13m e 20s a 14m e 21s do seu depoimento);

             8 - Testemunha - MM – depoimento prestado no dia 06.05.2022, das 16:56:24 a 17:13:41 - nada diz sobre os factos impugnados;

            9 - Testemunha - NN – depoimento prestado no dia 16.05.2022, das 14:17:39 a 14:41:45 - nada diz sobre os factos impugnados;

             10 - Testemunha - OO – depoimento prestado no dia 16.05.2022, das 14:43:35 a 15:19:38 (dos 07m e 12s a 09m e 00s e dos 15m e 40s a 16m e 15s);         11 - Réu - DD – declarações prestadas no dia 16.05.2022, das 15:40:17 a 16:57:07 (dos 36m e 28seg a 40m e 05s; da 01h, 14m e 45s a 01h, 16m e 11s)

            4ª Decorre também das fotos juntas aos autos, donde resulta que o “caminho” da servidão sempre teve a mesma largura e trilho.

             5ª Até porque tal “passagem” serve também o barracão dos AA. e outros prédios, incluindo o da família “PP”.

             6ª A passagem sobre o prédio dos AA. para o prédio dos RR. – servidão para efeitos agrícolas – era utilizada mesmo nos melhores tempos apenas uma dúzia de vezes por ano.

            7ª Lavragens, podas, tratamento da vinha, vindimas, e novas lavragens, antes e, 8ª Quando matos, menos vezes ainda.

             9ª Porém, lá está como sempre a servidão com a mesma largura, comprimento e leito.

            10ª Esta servidão continua a ser útil e necessária ao prédio rústico dos RR., nenhuma prova se tendo feito do contrário.

            DE DIREITO

            NULIDADE DA SENTENÇA – 615º/1, B) CPC 11ª Os factos 7), 8), 9), 11) in fine e 12) da sentença, dados por provados não têm qualquer suporte, justificação ou fundamentação, nem sequer foram alegados pelos AA..

            12ª Não foram objecto de prova oferecida pelos AA., sendo que nenhuma testemunha ou documento tal refere.

            13ª A falta de fundamentação leva à nulidade da sentença – 615º, nº 1, alínea b) do C.P.C..

             DE DIREITO DA DESNECESSIDADE DA SERVIDÃO

            14ª A ser procedente a presente acção nos termos da sentença recorrida, o prédio rústico com o artigo ...06 dos RR. ficaria encravado e sem acesso à via pública.

            15ª Transaccionado, teriam os novos donos que dar entrada a uma acção contra os aqui AA. para reconstituir nova servidão pelo leito da velha servidão e acabada de extinguir e que serve outros vizinhos – incluindo um conhecido por PP.

            16ª Com a decisão recorrida, o prédio serviente dos AA. não fica livre de servidões para terceiros, e quer o prédio dominante, quer o prédio urbano dos RR. – ...09 – ficariam gravemente desvalorizados.

            17ª E o prédio dos AA. teria apenas menos um prédio dominante sobre ele – o dos RR. – mantendo-se as outras servidões pelo mesmo leito de passagem.

            18ª Ou seja: - nenhum lucro para os AA.; - só prejuízo para os RR..

             19ª Só pode ser declarada extinta por desnecessidade a servidão que deixou de ter qualquer utilidade, tornando-se por isso inútil.

            20ª Não é preciso ser indispensável, mas sim útil.

            21ª A sentença recorrida perdeu de vista os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

            22ª O prédio dos AA. manter-se-ia serviente para outros prédios pelo mesmo leito da passagem.

             23ª O prédio dos RR. dominante perderia valor considerável – ficaria encravado.

            24ª O prédio dos RR. por onde o Tribunal quer que passem a passar perderia um valor brutal, por ver impedida construção e poder ter que dar passagem a outro prédio nunca dominante.

            25ª Daí que a servidão de passagem é muito útil ao prédio dominante, e

            26ª Seria muito oneroso para os RR. a sua extinção.

            27ª Deem-se como não provados os factos 7), 8), 9), 11) in fine e 12) dos factos dados como provados na sentença ou não, a solução jurídica encontrada não pode ser mantida.

            DA MÁ-FÉ

            28ª Os AA. têm a casa colada à servidão e, sabiam bem e sabem da servidão de passagem sobre os seus prédios.

            29ª Negaram-no e era do seu conhecimento pessoal.

            30ª Sabiam do uso da passagem – conhecimento pessoal.

            31ª E negaram-no.

            32ª Obrigaram os RR. a articular e provar os factos constitutivos da servidão e o espírito do exercício da mesma.

            33ª Obrigaram o Tribunal a perder 99% do tempo para saber da servidão que negaram – mentindo descaradamente.

             34ª A má-fé é patente, clara e límpida e merece condenação e indemnização a favor dos RR.,

            35ª De acordo com a equidade.

            Os AA. ofereceram contra-alegações, que concluíram nos seguintes termos:

            A. Os Recorridos alegaram factos e demonstraram a desnecessidade da servidão.

            B. Inexiste prova que ponha em crise os factos dados por provados de 7), 8), 9), 11) in fine e 12).

             C. A passagem de servidão não foi sempre da mesma largura e trilho.

             D. A servidão é desnecessária.

             E. A decisão está devidamente fundamentada, e a prova sujeita a douta apreciação crítica convincente.

             F. O prédio dos RR não é encravado, porque neste momento, já não existe de forma autónoma (!); o mesmo compõe a unidade agrícola composta pelos 2 arts matriciais dos RR, ocorrendo assim um emparcelamento de facto (art. 1382.º CC).

            G. Os destinos futuros e eventuais não são argumento a considerar na desnecessidade actual, já que a decisão deve ter em atenção a situação existente à data da proposição da acção, configurando aquela situação um abuso de direito.

             H. Transacionar, no futuro, os prédios emparcelados pelos RR implicará actos de fracionamento (art. 1376.º do CC), que não poderão onerar os Recorridos.

            I. Não existe servidão de passagem pelo prédio dos Recorridos para o prédio PP, por inutilizada há dezenas de anos, sendo incorrecto afirmar que a mesma passagem beneficia e existe como servidão de outros prédios.

             J. Os Recorridos não litigaram de má-fé.

            III – O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

             1) Os Autores são os únicos e universais herdeiros de CC, falecido .../.../2019.

            2) Integram a herança de CC os seguintes prédios contíguos: - prédio urbano com o artigo matricial ...71, Freguesia ..., concelho ..., sito no Rua ..., ..., composto de casa de r/C e 1.º andar destinado a palheiro, com a área total de terreno de 160m2, e de implantação de 120m2, inscrito matricialmente a favor da herança de CC, não descrito na Conservatória do Registo Predial; - prédio rústico com o artigo matricial ...07, Freguesia ..., concelho ..., sito nas ..., com a área total de 280m2, destinado a cultura de sequeiro, inscrito matricialmente a favor da herança de CC, não descrito na Conservatória do Registo Predial.

            3) Os autores e o falecido CC, e seus antecessores na posse, adquiriram tais prédios por compra a um tio do falecido, Sr. QQ, há cerca de 35 anos, e desde aí os usam como seus, tendo edificado uma casa que serve de palheiro há cerca de 34 anos, mais edificando um barracão há 30 anos, servindo-se do edificado para armazenamento (peles, feno, tractor e alfaias agrícolas), cedendo a sua utilização, e no demais, fazendo limpezas, plantando 2 castanheiros, e colhendo o rendimento e frutos de tais prédios, pagando as contribuições fiscais.

             4) O alegado ocorre há (bem) mais de 20 anos, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na intenção e convicção de que o mesmo lhes pertence, agindo com tal convicção desde que foram investidos na posse plena do prédio, passando a agir tal qual detentores de um verdadeiro direito de propriedade.

            5) Integram o património comum dos Réus, casados que são no regime da comunhão de adquiridos, os prédios contíguos: - prédio rústico com o artigo matricial ...06, Freguesia ..., concelho ..., sito no ..., com 1.000,00m2, destino a cultura de sequeiro, descrito no Conservatória do Registo Predial com a descrição ...90; e - prédio urbano com o artigo matricial ...09, Freguesia ..., concelho ..., proveniente do anterior artigo matricial rústico ...05 da mesma freguesia, sito na Rua ... (...), destinado a arrecadações e arrumos, com a área total de 3.404,90m2, e de implantação 93,65m2, descrito no Conservatória do Registo Predial com a descrição ...34.

            6) O prédio com o artigo ...09 tem acesso ao caminho a Sul, o prédio com o artigo ...06 não bate com caminho público.

             7) Com a aquisição do prédio com o artigo ...06, os RR passam a aí aceder pelo mesmo acesso do prédio com o art. ...09.

             8) Não existe muro ou vedação que impeça o acesso entre os prédios dos RR, desde a entrada do ...09, com 4 metros de largura até ao ...06.

             9) Os prédios dos RR são tratados e utilizados em conjunto, estando a parcela correspondente ao prédio ...09 sita a nascente dos prédios dos AA, e a correspondente ao prédio ...06, a norte dos prédios dos AA.

            10) O prédio ...06 esteve, mais de 28 anos, coberto de um giestal, salvo nos momentos em que foram cortadas parte das giestas, por, três vezes (tendo sido a última por volta do ano de 2008), foram as mesmas consumidas pelo fogo, antes de 2012 e realizada uma limpeza total, em 2014.

            11) Já após adquirirem o prédio com o art. matricial ...06, os Réus passaram a reivindicar o acesso ao respectivo prédio através dos prédios dos AA, com o alargamento do acesso, há cerca de dois anos.

            12) Acesso que até aí era composto por um amontoado de terra e pedras.

             13) Para defesa da sua propriedade, os AA tentaram vedar tal acesso, em primeiro, cerca de 4 ou 5 dias após a abertura, com recurso a umas vigas, de forma a impedir o acesso dos RR; vigas que os RR retiraram à revelia dos AA, em poucos dias; e posteriormente, convencidos de não existir direito dos RR de passar pelo que lhes pertence, com a colocação de uma pedra de grande porte, cerca de uma semana depois de retiradas as vigas.

            14) Tal pedra foi depois deslocada pelos RR.

            15) Na semana de 22 a 28 de Novembro de 2021 os AA tentaram, novamente, vedar o acesso aberto pelos RR, contratando empreiteiro a quem pediram para depositar um amontoado de pedras no acesso aberto pelos RR.

            16) O que só não foi possível porque o Réu marido apareceu no local naquele momento, e impediu tal depósito, ficando a Autora com receio da existência de confrontos físicos com ela e com o empreiteiro.

            17) As desavenças entre AA e RR derivadas da divergência em relação à passagem reivindicada já motivaram a necessidade de presença das autoridades policiais.

             18) A delimitação a norte dos prédios dos AA com o dos RR (art. ...06) foi destruída por estes, com recurso a máquinas pesadas; iniciaram por destruir o morro que servia de vedação, e por ali depositar algumas pedras tipo gravilha, e posteriormente colocaram terra por cima e alisaram o solo.

            19) A Ré comprou o prédio rústico com o artigo ...05 de ... há cerca de 9 anos.

            20) Este prédio rústico – 2705 – passou a urbano em 2019 obtendo o artigo ...09 – Edifício com 93,65m2, mas com a área total de 3.404,90m2.

            21) A entrada do ...09 foi alterada há 7/8 anos pelos RR e passou da ponta Nascente para a ponta Poente na sua confrontação com o caminho público – caminho do ... hoje Rua ....

            22) O Réu comprou o prédio rústico com o artigo matricial ...06 no ano de 2018, pese embora o possuísse desde 2014, por comodato verbal.

             23) Há cerca de 30 anos os prédios dos AA e de outros 3 vizinhos eram um prédio único – o urbano não existia.

            24) AA e outros lotearam ou destacaram parcelas para edificarem casas – 4 vivendas, apenas 3 estão construídas.

            25) Uma é dos AA.

             26) Uma é dos herdeiros de um homem apelidado de “PP”.

            27) Dois lotes do Sr. RR e SS.

            28) Cada um ficou com uma parte urbana e uma parte rústica.

            29) A parte que ficou para os AA é hoje definida como um urbano – ...27[1] – e um rústico – ...07.

            30) O ...07 será o prédio mãe de todos, que ficou com 280m2.

            31) E o urbano – ...17 ficou com 160m2 – casa, mais logradouro.

             32) Existe, há mais de 60 anos, uma passagem do caminho público para o prédio com o artigo matricial ...06, que nasce no caminho do ... – hoje Rua ... – e dirige-se em direcção a Norte.

             33) Tem cerca de 2,8 metros de largura e 64 metros de cumprimento.

             34) É de terra batida, com trilhos de carros de vacas e tractores que os ante possuidores do prédio utilizaram, continuamente, até 1986 e, por três vezes, até 2014, para cortar as giestas.

            35) Junto ao caminho a Sul nota-se bem a entrada, pois uma parede define-a do lado Nascente do início da passagem.

            36) Na entrada do prédio dos RR – reconvintes há pedras altas de ambos os lados e uma cancela, hoje uma rede com portão, que está aberto.

            37) E toda a passagem está livre e limpa, desde sempre.

            38) Nunca os AA ou antepossuidores a taparam ou perturbaram a entrada dos antepossuidores do prédio.

            39) Esta passagem dá para o prédio dos RR, para o barracão dos AA e, pelo menos, para o prédio rústico do Sr. PP.

            40) Os antepossuidores do ...06 passaram ali com carros de vacas, animais e a pé, sem oposição de ninguém, à vista dos AA e do povo todo de ..., para tratarem da vinha, até 1986 e, desde essa data, por três vezes, com tractor, para cortar giestas, com a convicção do exercício do direito de passar.

            III – B- O Tribunal da 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:

             A) A partir de 1986, os antepossuidores do terreno e os Réus passaram no caminho, com máquinas agrícolas.

            B) A partir de 1986, os Réus e antepossuidores passaram ali com carros de vacas, animais, a pé, de tractor e máquinas agrícolas, de forma contínua, para tratarem do centeio e, hoje, castanheiros.

            C) Os Réus têm o prédio urbano à venda.

            D) O Autor da Herança, CC, falecido há menos de 3 anos, acompanhou as aquisições de Ré e Réu.

            E) TT com estes aquando das compras e obras que fizeram nos seus prédios.

             F) Viu passar pelo seu prédio os RR e reconvintes para o prédio ...06, durante pelo menos 8/10 anos, nunca se opôs – pelo contrário.

            IV – Do confronto da sentença com as conclusões da apelação resultam para apreciação as seguintes questões, que correspondem ao objecto do recurso:

            - se a sentença é nula, nos termos da al b) do nº 1 do art 615º CPC, por falta de fundamentação relativamente aos factos provados 7), 8), 9), 11 in fine, e 12);

            - se em consequência da impugnação referente a esses factos, devem os mesmos ser julgados não provados;

            - se, de todo o modo, os factos provados, em função da razoabilidade e proporcionalidade, impedem que se conclua pela desnecessidade da servidão;

            - se os Autores litigaram de má fé.

           

            Uma das situações, das taxativamente enumeradas no art 615º do CPC, que implica a nulidade da sentença, é, nos termos da al b) do seu nº 1, a referente à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

            Bem se justifica esta nulidade porque, verificando-se, impede ou prejudica a compreensão pelos interessados relativamente ao conteúdo da sentença, o mesmo sucedendo relativamente ao tribunal superior quando esteja em causa sentença recorrível, constituindo, aliás, o dever de fundamentar a decisão, a que se reporta especificamente o art 154º CPC, um imperativo constitucional.

            Sucede que os recorrentes confundem a nulidade da sentença por falta de fundamentação, com a falta de prova relativamente a factos que entendem relevantes para a decisão da acção.

             Claramente, ao dizerem que «os factos 7, 8, 9, 11 in fine e 12 da sentença, dados por provados, não têm qualquer suporte, justificação ou fundamentação, nem sequer foram alegados pelos Autores; não foram objecto de prova oferecida pelos Autores, sendo que nenhuma testemunha ou documento tal refere», estão a reportar-se a uma realidade processual atacável pela impugnação da decisão da matéria de facto e não através da nulidade da sentença a que deitaram mão.

            Na verdade, a sentença mostra-se estrutural e amplamente fundamentada, de facto e de direito, não podendo, sequer, assarcar-se deficiência, de um ponto de vista lógico, à motivação da matéria de facto.

            Efectivamente, o que os apelantes pretendem com a invocação da nulidade -  que já se excluiu -  é evidenciar, do seu ponto de vista, a insuficiência da prova produzida nos autos relativamente aos referidos factos 7, 8, 9, 11 in fine e 12 da sentença.

            Esses factos apresentam o seguinte conteúdo:

             7) Com a aquisição do prédio com o artigo ...06, os RR passam a aí aceder pelo mesmo acesso do prédio com o art. ...09.

             8) Não existe muro ou vedação que impeça o acesso entre os prédios dos RR, desde a entrada do ...09, com 4 metros de largura até ao ...06.

             9) Os prédios dos RR são tratados e utilizados em conjunto, estando a parcela correspondente ao prédio ...09 sita a nascente dos prédios dos AA, e a correspondente ao prédio ...06, a norte dos prédios dos AA.

            11) Já após adquirirem o prédio com o art. matricial ...06, os Réus passaram a reivindicar o acesso ao respectivo prédio através dos prédios dos AA, com o alargamento do acesso, há cerca de dois anos.

            12) Acesso que até aí era composto por um amontoado de terra e pedras.

            Cabe, em primeiro lugar, chamar a atenção para a circunstância de que os factos em apreço foram alegados - ao contrário do que o referem os apelantes em sede da já apreciada nulidade da sentença  - tendo-o sido,  respectivamente, nos arts 13, 14,  17,  20, 25 e 26 da petição.

            Por outro lado, e com relevância para a prova dos factos em causa, é bom não esquecer que Autores e Réus, antes do encerramento da inspecção judicial que teve lugar em 6/05/2022, reconheceram, por acordo, que a entrada para o prédio ...09 tem mais de 4 metros de largura e permite uma passagem sem obstáculos físicos que diminuam essa largura até chegar ao ...06.

            Dito isto, há que salientar que relativamente ao ponto 7, a respectiva prova foi abundante, tendo várias testemunhas referido que os Réus acedem ao ...06 pelo seu prédio ...09.

            Assim, GG, que referiu que os Réus «entravam pela passagem principal,  não pelo prédio da D. AA», assegurando «nunca ter visto ninguém passar pelo prédio da D. AA desde há mais de 8/9 anos»; também a testemunha HH, cônjuge  de FF, casal que dispõe de um barracão na Rua ..., antigo caminho do ..., referiu que ali passam, um ou outro, diariamente, para tratar dos animais que estão no referido barracão, e explicou que «vai sempre pelo caminho principal, que é o que bate ao caminho que tem uma rede a fechar e uma cancela  com um pau», «nunca entrou pelo prédio da D. AA  e que nunca viu os Réus a entrarem por lá, sempre pelo principal».

            Também II disse nunca ter entrado, «senão pelo prédio dos Réus», esclarecendo que foi lá para construir um barracão e fazer um furo, além de ter feito um desaterro, «e que dava mais jeito entrar por ali», não desconhecendo, no entanto, que «há uma entrada pela D. AA».

            O próprio R., nas declarações que prestou, reconheceu que quando se encontra no ...09 acede directamente ao ...06 pela abertura existente entre os dois prédios, não descendo ao caminho, para depois aceder àquele prédio pelo caminho da servidão. 

            A prova do ponto 11, designadamente da sua parte final, e a do facto 12, decorrem, desde logo, e entre o mais, da situação de desavença entre Autores e Reus. ocorrida em  Outubro de 2021, que surge relatada nos pontos 13 a 17 da matéria de facto, e do depoimento da já referida testemunha II, que referiu ter prestado serviços para o Réu e ter feito um desaterro na zona da entrada para o ...06, tendo confirmado que esse acesso, até aí, era composto por um amontoado de terra e pedras, facto este confirmado, aliás, pela generalidade da prova testemunhal. E FF, testemunha a que acima já se fez referência, referiu «ter ajudado no alargamento do acesso entre os prédios ...06 e ...07».

            Por outro lado, que não existe muro ou vedação que impeça o acesso entre os prédios dos Réus desde a entrada do ...09 até ao ...06, resultou, à partida, provado pelo reconhecimento atrás referido dos Autores e Réus após a realização da inspecção judicial, sendo muitas as testemunhas, entre elas FF,  que referiram não existir já o muro que dividia os prédios que hoje são pertença dos Réus.

            Por fim, que os prédios dos Réus. são tratados e utilizados em conjunto, foi também repetidamente referido pela prova testemunhal.

            Assim, HH, que referiu «eles tinham tudo junto».

             Mas essa conclusão advém, com maior consistência, para além da retirada do muro que dividia os prédios, das circunstâncias constatadas na inspeccção judicial relatadas pela Exma Julgadora na motivação da decisão da matéria de facto, ao referir que o que as testemunhas apelidaram de cozinha, se situa no ...06, mas os Réus guardam o tractor e as alfaias agrícolas no armazém situado no ...09.           Acresce que a cozinha está dotada de instalação eléctrica em função da ligação, por cabo, ao prédio urbano, como o referiu a testemunha GG e FF.

            Estas circunstancias físicas, constatáveis in loco, e confirmadas pela prova testemunhal, não resultam abaladas pelas declarações do Réu, quando nelas assinala  que «do outro lado aquilo nem é lavrado», «aquilo está em erva», «não é lavrado sequer com o tractor», ou pelo depoimento da testemunha LL, que referiu que «chegou a passar pelos dois lados», e que «vai buscar ao rústico castanhas  miúdas para os porcos», como o parecem entender os Recorrentes nas “considerações“ que tecem relativamente aos trechos das testemunhas que mencionam.

            Aliás, ao contrário do referido pelo Réu nas declarações prestadas, a fotografia área de fls 42 v, que data de 2014, mostra que o terreno do ...06 está limpo, e que já então, parte do muro divisório com o já, então, urbano ...09, estava derrubado.

            Deste modo, entende-se improceder a impugnação dos factos acima referidos, devendo, consequentemente, os mesmos serem mantidos como factos provados.

           

            Mostra-se transitado o reconhecimento do direito de servidão de passagem em benefício do prédio rústico com o artigo matricial ...06, sobre os prédios dos Autores. ...71 e ...07, servidão essa adquirida por usucapião.  

            Efectivamente, o que foi pedido pelos RR., agora recorrentes, no respectivo pedido reconvencional, foi o reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião.

            Refere o art 1547º do CC,  sob a epígrafe “Princípios gerais”,  no seu nº  1, que “as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família”, e no seu nº 2, que “as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos”, norma esta que permite operar a grande dicotomia entre as servidões prediais, consoante o modo da sua constituição: por um lado, as que se constituem voluntariamente, e que, por isso, se dizem voluntárias; e por outro, as legais.

             Não que estas não se possam também constituir voluntariamente – designadamente, por negócio jurídico, se as partes acordarem nos termos da sua constituição – mas porque, perante determinados requisitos objectivos, lhes subjaz o direito potestativo à respectiva constituição coactiva, por decisão judicial ou administrativa.

            O Código Civil contempla dois tipos de servidões legais – as de passagem, reguladas nos art 1550º a 1560º, e as de águas, reguladas nos arts 117 a 1563º .

            Relativamente à servidão legal de passagem, refere no art 1550º, que, «1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidão de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.  2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio».

            Na situação dos autos, estamos na presença de uma servidão legal de passagem  constituída por usucapião - por isso, uma servidão legal constituída voluntariamente  -como foi acentuado na sentença recorrida: os prédios ...71 e ...07, por um lado, e o prédio ...06, rústico, por outro, são de proprietários diferentes;  o prédio ...06  «não bate com caminho»;  os antepossuidores desse  prédio, hoje dos  Réus,  praticaram actos de passagem (a pé, com animais e de carro de vacas), numa faixa daqueles prédios, que se inicia no caminho público, com que estes confrontam, e se dirige por 64 m de comprimento, àquele, ...06,  para a ele  acederem, fazendo-o com a convicção de estarem a exercer um direito próprio, sem oposição de ninguém, pacificamente, publicamente e, durante, pelo menos, 24 anos (1962 -1986) .

            A diferença entre as servidões voluntárias e as legais, para além de assentar no seu diferente regime de constituição, resulta também do regime de extinção, como decorre do disposto nos nº 2, 3 e 4 do art 1569º, relativamente à desnecessidade e à remição.

            Já a causa da extinção por não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo, referida na al a) dessa norma, se aplica a todas as servidões.

            Na situação dos autos, e transitada que se mostra a sentença da 1ª instância relativamente à não extinção da servidão de passagem em causa nos autos pelo seu não uso, apenas nos importa a causa de extinção que reside na desnecessidade, sustentada pelos Autores/recorridos e negada pelos Réus/recorrentes.

            Resulta do disposto no nº 2 e 3 do acima referido art 1569º, que a desnecessidade é uma causa de extinção privativa das servidões adquiridas por usucapião e das servidões legais, qualquer que seja o seu titulo de aquisição.

            Refere, concretamente, o nº 2 dessa norma, que «as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante».

            Do que resulta que verificada a desnecessidade a lei atribui ao dono do prédio serviente que queira ver extinta a servidão impendente sobre o seu prédio, um direito potestativo extintivo de exercício necessariamente judicial.

            Está em causa a desnecessidade superveniente.

            È que, a originária, implicando à partida que a servidão não envolve qualquer acréscimo de proveito ao prédio dominante, é causa da nulidade do titulo constitutivo da servidão, pela simples razão de implicar a falta de motivo para a respectiva constituição .

            Como o faz notar Carvalho Fernandes  [2], o art 1543º CC, ao definir servidão predial como um encargo imposto num prédio – prédio serviente – em beneficio exclusivo de outro prédio – prédio dominante - pertencente a dono diferente, define servidão pelo lado passivo, e acentua a «coisificação» do direito de servidão predial: «o direito de servidão predial é um direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar das utilidades de prédio alheio em beneficio do aproveitamento das utilidades do primeiro».

            Consequentemente, e como já se afirmou, a desnecessidade, como causa de extinção da servidão tem de se apresentar como superveniente relativamente à constituição da servidão de passagem, e implicará, como a originária, a sem razão da servidão, porque a mesma tenha deixado de ser proveitosa ao prédio dominante.

            A  razão de ser da desnecessidade ´«é a cessação das razões que justificavam a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante».[3], ou, nas palavras de Oliveira Ascensão, «a servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta graças a uma utilização, lato sensu, de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante, surge-nos a figura da desnecessidade».

            E, por isso, a desnecessidade,  porque necessariamente ligada ao prédio dominante e a alterações, juridicamente relevantes, nele ocorridas, ou, em todo o caso,  «em prédios vizinhos ou vias de acesso próximas ou contiguas» [4], tem necessariamente que ser aferida em função desse prédio e não em função das necessidades ou interesses do respectivo proprietário [5], como melhor se verá adiante.

            Tem sido afirmado que a desnecessidade, para o efeito que está em apreço, não se confunde com a indispensabilidade, distinção que se torna tão mais pertinente, quanto é certo que há servidões de passagem que se constituem por usucapião em situações que não preenchem os requisitos para a imposição de um direito de passagem, e nessas situações a servidão constitui-se por ser útil ao prédio dominante e não por lhe ser  indispensável, e nem por isso deixa de se poder extinguir quando essa utilidade desaparece  [6].

            Pelo que o conceito de desnecessidade como causa de extinção da servidão predial, há-de ser paralelo ao interesse que justifica a constituição dessa servidão, que já se viu ser o da utilidade para o prédio dominante.

            E assim, só se justificará a extinção da servidão por desnecessidade quando ela deixa de ter qualquer utilidade para o prédio dominante, em virtude deste ter a possibilidade de alcançar por outra via as mesmas utilidades que aquela servidão lhe proporcionava  [7].

            Como atrás já se referiu, a necessidade ou desnecessidade da servidão há-de ser avaliada em função das utilidades para o prédio dominante  abstraindo da situação pessoal do proprietário do mesmo [8].

            Na expressão de Carvalho Fernandes, «na servidão predial a afectação do prédio serviente não pode ser feita em atenção à pessoa do titular do direito sobre o prédio dominante, individualmente considerado, mas como titular deste direito», sendo que «a fixação do conteúdo da servidão e das condições do seu exercício é dominada por um critério que atende às exigências objectivas do proveito dele emergente para o prédio dominante».

            Longe andam deste conceito de desnecessidade, as razões invocadas pelos Recorrentes para sustentarem a necessidade da servidão, confundindo-se as mesmas como «meros subjectivismos atinentes ao proprietário do prédio dominante», na expressão do Ac STJ de 12/9/2017.[9]

            Com efeito, que os recorrentes navegam em «subjectivismos atinentes aos seus interesses», mostram-no as conclusões 15ª a 18ª, que reflectem uma perspectiva de necessidade/desnecessidade moldada no lucro/ prejuízo de um e outro dos proprietários dos prédios, decorrente de uma possível futura venda do ...06, subordinando a desnecessidade da servidão a critérios de razoabilidade e proporcionalidade assentes meramente nos interesses desses proprietários, para concluírem, sem subterfúgios, que a extinção da servidão em apreço «seria muito onerosa para os Réus.» e que, por isso, «a servidão de passagem é muito útil ao prédio dominante».

            Devendo, pois, concluir-se, como se concluiu na sentença recorrida: desde o momento em que os proprietários do prédio dominante também são proprietários de um prédio confinante, que tem acesso a via pública, que a utilização deste prédio permite a passagem nas mesmas circunstâncias da servidão de passagem reconhecida sobre o prédio dos Autores – na medida em que não existe muro ou vedação que impeça o acesso entre os prédios dos Réus, desde a entrada no ...90, com 4 metros de largura, até ao ...06 – e que a desnecessidade é superveniente à constituição da servidão, é inútil - desnecessário – manter um ónus sobre imóveis de terceiro, isto é, sobre os prédios servientes, devendo, pois, confirmar-se a  declaração de extinção da  servidão em apreço.

            Insistem os Réus/apelantes pela condenação dos AA. por litigância de má fé,  evidenciando que os mesmos «sabiam bem, e sabem, da servidão de passagem sobre os seus prédios», não podendo deixar de ter conhecimento pessoal da mesma e, não obstante, negaram-na, tendo-os  obrigado a articular e provar os factos constitutivos da servidão.

            Não se concorda com esta perspectiva dos Réus/apelantes.

            Na verdade, o pedido formulado - seja reconhecido o seu direito de propriedade e determinada a inexistência de qualquer servidão de passagem dos Réus pelos seus prédios, ainda que, pelo não uso ou desnecessidade- mostra suficientemente que os Autores não estão absolutamente certos da inexistência, em tempos, da dita servidão de passagem, mas apenas, que, tendo ela existido, se teria extinto pelo não uso ou pela desnecessidade.

            Avaliados os factos alegados na petição à luz do pedido formulado, há que reconhecer que os Autores não negam rotundamente a existência da servidão.

            Por outro lado, e ainda em desabono do entendimento dos Réus./apelantes, o esforço alegatório e probatório que a petição, nos termos em que foi feita, lhes implicou na contestação e na decorrência da acção, não seria muito diferente daquele que lhes implicaria uma alegação “aberta” por parte dos Autores a respeito da existência da servidão, desde o momento em que o que estava em questão era, afinal, o não uso da mesma, por qualquer motivo, durante 20 anos, e a desnecessidade da mesma.

            Entende-se, pois, que os Autores não deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar – al a) do nº 2 do art 542º CPC - e que a omissão, na petição,  de factos referentes à servidão, porque a entendiam e pretendiam extinta, se não configura como omissão de factos relevantes para a decisão da causa – al b), 2º parte, da norma referida.

            Com o se exclui a má fé material que os Réus lhes imputam, devendo, também aqui, confirmar-se a decisão recorrida.

            V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

 

            Custas pelos apelantes.

                                                                      

Coimbra, 28 de Março de 2023

(Maria Teresa Albuquerque)

(Falcão de Magalhães)

(Pires Robalo)

(…)



               [1] - A referência, aqui, ao prédio ...27, feita na sentença, foi-o, claramente, por lapso, estando em causa o prédio ...17
               [2] - «Lições de Direitos Reais», Quid Juris,1996, p 383
               [3] - Carvalho Fernandes, obra referida, p 399
               [4] -Cfr., entre outros, Ac STJ 16/3/2011, processo n.º 263/1999.P1.S1 e Ac de 16/1/2014, proc. n.º 695/09.0TBBRG.G2.S1
               -[5] Neste sentido, entre muitos outros, para além dos acórdãos do STJ atrás referidos, os de 5/5/2015, proc. n.º 273/07.8TBENT.E1.S1 e de 12/9/2017, proc. n.º 120/12.9TBMGD.G1.S1; Ac STJ de 1/3/2007; Ac STJ 16/3/2011; 2/7/2009, proc. nº 08B3995; 1/3/2007, proc. n.º 07A091; Ac R P 21/10/2021  (Proc nº 2233/15.6T8PRD.P2 ), Ac R P  17/12/2019,  Ac R G  3/11/2011 (Proc 6294/08.6TBBRG.G1,  Ac R C  24/4/2018  
               [6] -Cfr Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1984, pág. 676 e Boletim do Ministério da Justiça nº 64, págs. 34-35.
               [7]- Cfr Ac STJ 16/1/2014
               [8] - Cfr Ac STJ 21/2/2006; Ac STJ 5/5/2015 e de 12/9/2017

               [9] - Relatora, Ana Paula Boularot, e em cujo sumário se refere: «II. O conceito de desnecessidade da servidão não se extrai de meros subjectivismos atinentes ao proprietário do prédio dominante, devendo ser valorado com base na ponderação da superveniência de factos, que, por si e objectivamente, tenham determinado uma mudança juridicamente relevante nesse mesmo prédio por forma a concluir-se que a servidão deixou de ter, para ele, qualquer utilidade».