Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1516/13.4TBCLD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA – SEUS PRESSUPOSTOS (CUMULATIVOS).
NEGLIGÊNCIA DAS PARTES.
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JC CÍVEL DE LEIRIA – J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 277º, AL. C), E 281º NCPC
Sumário: I- Decorre do texto do artº. 281º do nCPC que são pressupostos (cumulativos) para que a deserção da instância possa ser declarada:
a) Que o processo se encontre parado, a aguardar impulso processual das partes, há mais de 6 (seis) meses;
b) E que essa paragem do processo, por falta de impulso processual, se fique a dever à negligência das partes.
II- A falta de impulso processual pressupõe, desde logo, que as partes (ou alguma delas) não praticaram, durante aquele período de tempo, acto (processual) que condicionava ou do qual dependia o andamento do processo.
III- Sendo assim, não se integra em tal pressuposto o comportamento das partes que após terem visto deferido pelo tribunal o seu pedido, formulado no início da audiência de julgamento, de suspensão da instância, pelo período de 30 dias, com o fundamento de necessitarem de encetar diligências com visando porem termo ao litígio por acordo, nada vieram dizer ao processo decorrido tal prazo.
IV- Em tal situação, e não dependendo o andamento do processo da prática de ato processual das partes (ou de alguma delas) deveria o tribunal, e perante o silêncio das mesmas, declarar oficiosamente a cessação da suspensão da instância que decretara e, em obediência ao dever de gestão processual plasmado no artº. 6º do CPC, designar nova data para a realização da audiência de julgamento.
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Em 26//09/2013, na então Secção (hoje Juízo) Instância Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, a autora, R..., L.da, instaurou contra os réus, J... e C..., S.A., todos com os demais sinais dos autos, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, com os fundamentos e os pedidos ali exarados.
2. Após a contestação dos RR. os autos prosseguiram a sua tramitação legal para julgamento.
3. No dia da audiência de discussão e julgamento (03/06/2015), aberta a mesma, pelos ilustres mandatários das partes foi pedida a palavra e disseram: “Existem fortes possibilidades de acordo, sendo que, para o efeito, terão de efectuar contactos com terceiros, nomeadamente com a exequente no âmbito do processo em que foi realizada a penhora referenciada nestes autos, para o que necessitam do prazo de 30 dias, e, assim sendo, requerem a suspensão da instância pelo referido prazo.
Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho: “Confiando-se que haja possibilidade séria de acordo, ao abrigo do disposto no artigo 272º, nº. 1, parte final do Código de Processo Civil, defere-se o requerido. Suspendendo-se a instância pelo período de 30 dias e assim ficando sem efeito o julgamento para hoje designado.”
Desse despacho foram todos os presentes notificados.
4. Em 14/09/2015 foi proferido o seguinte despacho:
Decorrido que está o prazo de suspensão da instância, às partes incumbe informarem e requererem o que tiverem por conveniente.
Assim, aguardem os autos impulso processual, sem prejuízo do disposto no artigo 281º, nº. 1, do Código de Processo Civil.
Notifique.”
4.1 Despacho esse que foi notificado aos ilustres mandatários das partes.
5. Em 01/04/2016 foi proferido o seguinte despacho:
Conforme decorre do anterior despacho, foi entendido incumbir às partes impulsionar o andamento do processo, o que, decorrido o prazo de seis meses previsto na norma naquele citada (artigo 281º, nº. 1, do Código de Processo Civil), não fizeram.
Perante o sumariamente exposto e nos termos previstos no mencionado artigo 281º, nº 1, considera-se deserta a instância.
Custas pela autora (por ter sido quem deu causa à ação, sendo, nessa qualidade, a principal interessada no andamento do processo – artigo 527º do Código de Processo Civil).
Notifique.”
6. Inconformada com tal despacho decisório (ponto 5.), a autora dele apelou.
6.1 Na apreciação desse recurso, e concedendo provimento ao mesmo - ainda que por fundamentos diferentes daqueles que foram invocados -, o acórdão da 2ª. Secção desta Relação, proferido em 15/11/2016, decidiu revogar aquela decisão, determinando que o tribunal da 1ª. instância ouvisse, previamente, as partes, “de forma a aquilatar se a falta de impulso processual é, ou não, devida a negligência, e, só após essa audição, emitir o despacho tido por adequado.”
7. Baixados os autos à 1ª. instância, em obediência a tal acórdão, por despacho proferido em 10/11/2017 determinou-se ali “a notificação das partes para, em dez dias, dizerem o que tivessem por conveniente acerca da falta de impulso processual dos autos, no seguimento do despacho neles proferido em 14.09.2015.”
8. Na sequência dessa notificação a autora veio, em síntese, dizer que após a suspensão da instância com vista à obtenção de um acordo ficou a aguardar pelo desenvolvimento dos contactos e negociações que o réu e uma sua irmã iriam ter com o credor exequente (pois que dizendo a penhora referida nos autos a uma dívida do irmão do R., os mesmos é que teriam legitimidade para encetar tais negociações com tal credor); sendo que os mesmos não comunicaram à autora qualquer proposta ou diligência que estivessem a fazer ou mesmo se não conseguiriam resolver a questão, todavia, julgando que as negociações poderiam ser demoradas, dado envolverem um banco, foi esperando, “até que se viu surpreendida com o despacho a julgar deserta a instância”.
Pelo que defendeu que a falta de impulso processual deve ser imputada ao réu e que os autos devem prosseguir os seus ulteriores trâmites com a marcação de julgamento.
8.1 Por sua vez o R. J... veio, em síntese, dizer que ficara combinado entre ele e a autora que seria esta a apresentar-lhe uma proposta, o que não fez no prazo da suspensão da instância, nem após a prolação do despacho de 14.09.2015, pelo que entende que a falta de impulso processual deverá ser imputada, exclusivamente, àquela, a título negligente, e ser, em consequência, julgada deserta a instância.
9. Foi depois, em 28/11/2017, proferido despacho no qual, considerando verificada a negligência da autora em impulsionar o processo, julgou extinta a instância por deserção.
10. Inconformada novamente com tal despacho decisório, a autora dele apelou, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
...
11. Contra-alegou o R. J..., pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.
12. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
II- Fundamentação
A) De facto.
Com relevância e interesse para a apreciação e decisão do presente recurso devem ter-se como assentes os factos que se deixaram descritos no Relatório que antecede (extraídos das peças processuais que integram os autos):
B) De direito.
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso do exequente, e tal como deflui do que se deixou exarado, a única questão que importará aqui apreciar e decidir traduz-se em indagar da bondade ou não (em termos legais) do despacho recorrido ao ter declarado deserta a instância, com a consequente extinção da mesma, ou seja, e por outras palavras, se se verificam ou não os pressupostos legais para a deserção da instância que foi declarada.
Apreciemos.
Como se sabe, a deserção é uma das formas legalmente previstas que conduz à extinção da instância (artº. 277º, al. c), do CPC).
Dispõe o artº. 281º do CPC que:
1- Sem prejuízo do disposto no nº. 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência da das partes, o processo se encontre a aguardar o impulso processual há mais de seis meses.
2- (...)
3- (…)
4- A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.
5- No processo de execução considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer despacho judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.” (sublinhado nosso)
Decorre do texto de tal normativo que são pressupostos (cumulativos) para que deserção da instância declarativa (que é essa a que se reporta o processo aqui em causa, embora também sejam aplicáveis à instância incidental, executiva ou recursiva) possa ser declarada:
a) Que o processo se encontre parado, a aguardar impulso processual das partes, há mais de 6 (seis) meses;
b) E que essa paragem do processo, por falta de impulso processual, se fique a dever à negligência das partes.
Antes de entrarmos na indagação de saber se no caso se verificam ou não os referidos dois pressupostos legais da deserção da instância, importa deixar referido que vem constituindo jurisprudência prevalecente (na qual o acordão desta Relação acima referido no ponto 6.1 deu mostras de se incluir) que a declaração de deserção da instância não pode ser automática, logo que decorridos os seis meses de paragem do processo, pois que se impõe previamente, à prolação do despacho, que o tribunal aprecie e valore o comportamento processual das partes, por forma a concluir se a referida paragem de processo, por falta de impulso processual, se ficou ou não a dever à negligência das mesmas, o que, num juízo prudencial, e também em obediência ao dever de observância do princípio do contraditório plasmado no artº. 3º, nº3, do CPC, impõe ao tribunal que, previamente, ouça as partes a esse respeito, como no caso acabou de ser feito depois de tal ter sido determinado pelo aludido acordão desta Relação (Vide, neste sentido, entre outros, Acordãos desta Relação de 27/06/2017, proc. 522/05.7TBAGN.C1, de 29/09/2016, proc. 3690/14.3T8CBR.C1, de 06/07/2016, proc.132/11.0TBLSA.C1, de 14/06/2016, proc. 4386/14.1T8CBR.C1, de 07/06/2016, proc. 302/15.6TBLSA.C1, de 18/05/2016, proc. 127/12.6TBVL.C1 e de 07/01/2015, proc. 366/12.6TBVIS.C1; Acs. da RL de 09/07/2015, proc. 3224/11.1TBPDL.L, e de 16/06/2015, proc. 1404/10.6TBPDL.L1-L; Ac. da RP de 14/03/2016, proc. 317/06.0TBLSD.P1, e Ac. da RG de 06/2016, proc. 1128/08.4TBBGC-B.G1, todos publicados in www.dgsi.pt).
Posto isto, vejamos então se mostram preenchidos os dois pressupostos legais de que depende a declaração da deserção da instância (que, como vimos, são cumulativos), começando pela análise do primeiro.
Essa figura processual emana da paralisação do processo (por período superior a 6 meses) em consequência da inatividade (processual) das partes, sendo a isso que se reconduz a falta de impulso processual, constituindo a deserção da instância, conducente à extinção da instância, uma sanção para essa inércia processual.
Ou seja, a falta de impulso processual pressupõe que as partes (ou alguma delas) não praticaram, durante aquele período de tempo, o ato (processual) que condicionava o andamento do processo, deixando, assim, de promover o andamento do processo quando se lhe incumbia fazê-lo (Neste sentido apontam, entre outros, os profs. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil anotado, Vol. 1º., 3ª. edição, Coimbra Editora, págs. 556 e 557”; Ac. da RE de 19/05/2016, proc. 2455/06.0TBLLE.E1; Ac. da RL de 28//04/2016, proc. 437/07.0TTBRR-4; Ac. da RC de 29/09/2016, proc. 3690/14.3T8CBR.C1 e Ac. da RP de 20/10/2014, proc. 189/13.9TJPRT.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Revertendo-nos ao caso em apreço verifica-se que quando os autos se encontravam já em fase de julgamento, a instância foi suspensa (no início da audiência) pela sra. juíza a quo, pelo período de 30 dias, a pedido das partes, com o fundamento de existirem fortes possibilidades de porem termo ao litígio mediante acordo, necessitando, todavia, de efetuar para o efeito diligências junto de terceiros, o que levou a que, em consequência, fosse dada sem efeito a audiência de julgamento.
Acontece, porém, que decorrido esse prazo as partes não só lavraram o acordo para terminarem litígio que as opunha, como nada vieram dizer a tal respeito (o mesmo sucedendo, aliás, durante os 6 meses que se seguiram), quedando-se por absoluto silêncio, e nessa medida é claro estarmos perante um comportamento negligente de ambas as partes.
Todavia esse seu silêncio não constituía obstáculo ao andamento do processo. Ou seja, no caso o andamento do processo não estava condicionado ou dependente da prática de qualquer ato ou diligência processual de qualquer das partes, pois que decorrido o prazo que fora fixado pelo tribunal para a suspensão da instância (que constituía, in casu, uma causa de cessação da suspensão da instância – cfr. artºs. 269º, nº. 1, al. c), e 276, nº. 1, al. c), do CPC), sem que as partes tenham vindo aos autos juntar acordo/transação destinado a por termo ao litígio ou requerido por porventura a prorrogação para o efeito do prazo da suspensão, a sra. juíza a quo podia e devia, em obediência ao dever de gestão processual plasmado no artº. 6º do CPC e que impende sobre si, ter declarado cessada a suspensão da instância e designado nova data para a realização da audiência de julgamento (que fora dada sem efeito, em consequência daquela decretada suspensão da instância), em vez de ter proferido, como o fez, o despacho de 14/09/2015 (ponto 4.) a ordenar que os autos ficassem a aguardar o impulso processual, sem prejuízo do disposto no artigo 281º, nº. 1, do CPC.
Em suma, no caso em apreço os autos poderiam (e deveriam) perfeitamente prosseguir os seus trâmites legalmente previstos sem para que isso estivessem dependentes de qualquer atuação das partes, e particularmente da autora.
E sendo assim não pode falar-se de falta de impulso processual das partes, responsabilizando-as pela paragem do processo, ou seja, não pode concluir-se que foi exclusivamente devido ao comportamento (processual) das partes, e particularmente da autora, que o processo ficou sem andamento (processual), e daí que não se mostre preenchido o primeiro pressuposto legal acima enunciado para que possa declarar-se a instância deserta, com a consequente extinção da instância (Neste sentido, e propósito de um caso verosimilhante ao destes autos, vide Ac. da RP de 04/02/2016, in “CJ, Ano XLI/2016, T1, pág. 166”).
E nesses termos julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando que os autos prossigam os seus ulteiores termos de acordo com a tramitação legalmente prevista, com a prolação de despacho a designar dia para a realização da audiência de discussão e julgamento.
Aliás, diga-se que, face ao que se deixou exposto, esta solução, para além de ser aquela que, a nosso ver, se mostra mais conforme à lei, à aquela que se mostra mais conforme à jurisprudência dos interesses, e nomeadamente à luz da economia processual, pois que a extinção, por deserção, da instância (que no caso se encontrava já pela fase do julgamento) só produziria, como é sabido, efeitos no que concerne à relação jurídico processual estabelecida dentro deste processo, sem qualquer influência no correspondente direito material nele discutido, não produzindo a decisão que a declarasse efeito de caso julgado material, pelo que sempre, logo a seguir – como tudo apontaria – poderia a autora instaurar nova ação (Neste sentido vide, por todos, Ac. do STJ de 20/03/2014, proc. 1364/04, Sumários, 2014, pág. 17”. e Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª. ed., 2017. Ediforum, pág. 403”).

III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se, na procedência do recurso, em revogar o despacho recorrido e determinar que autos prossigam os seus ulteriores termos de acordo com a tramitação legalmente prevista, com a prolação de despacho a designar dia para a realização da audiência de discussão e julgamento.
Custas do recurso pelo réu/apelado J..., que contra-alegou e ficou vencido (artºs. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC e 7º, nº 2, do RCP).
Coimbra, 2018/06/05
Isaías Pádua
Manuel Capelo
Falcão de Magalhães