Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
75/16.0T9ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
JUIZ NATURAL
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: PEDIDO DE ESCUSA DE JUIZ
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: I – O princípio do Juiz natural só poderá ser afastado quando outros princípios ou regras de igual ou maior dignidade o ponham em causa, como sucede quando o Juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função.

II – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.

III – A concreta intervenção do senhor juiz requerente no processo em que, alegadamente, o ora arguido praticou o crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do CP, pelo qual irá agora ser nos presentes autos, constitui motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade num dos seus aspectos fundamentais.

Decisão Texto Integral:







ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

A..., Juiz de Direito, a exercer funções como titular do Juízo Local Criminal de Alcobaça, veio pedir escusa de intervir no processo comum singular que correm termos sob o nº 75/16.0T9ACB-A, ao abrigo do disposto no art 43º nº 1 e 4 e 45 do CPP.
Invoca para tanto, que o Ministério Público deduziu acusação, no âmbito dos autos principais, contra B...., imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punível pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal.
Estribou tal imputação nos seguintes (transcritos) factos:
«1. O arguido foi arrolado como testemunha de defesa deduzida nos autos de processo sumário n.º 316/15.1GCACB, que correu termos na Secção Criminal da Instância Local de Alcobaça.
«2. No âmbito de tal processo vinha acusado C..., da prática, de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada e 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.
3. No decurso do sobredito processo, no dia 09 de Novembro de 2015, o aqui arguido, B... foi inquirido como testemunha perante o Tribunal.
4. Para efeitos de tal audição, o arguido prestou perante o Tribunal o juramento de dizer a verdade e foi advertido das consequências penais em que incorria caso faltasse à verdade, após o que ali declarou, em suma, o seguinte:

Que se encontrava no restaurante “ x... s” com o ali arguido, C... .

Que o carro estava imobilizado e que o ali arguido C... estava fora do carro, a estudar uma forma de o tirar de cima do passeio.

Afirmou que o ali arguido C... esteve sempre fora do carro, mesmo quando chegou a Guarda Nacional Republicana.

Que não viu o ali arguido conduzir o veículo e que se mantiveram sempre fora do carro.

Que quando a Guarda Nacional Republicana chegou ao local e foram abordados, o ali arguido não estava no interior do carro.

Disse ainda que quando lhe foi perguntado pelos militares da Guarda Nacional Republicana pela identidade da pessoa que conduzia o carro se limitou a dizer que não era ele quem o fazia, mas que não identificou o ali arguido, como sendo o condutor.

5. Porém tais declarações não correspondem à verdade, como bem sabia o arguido.

6. Apurou-se, na referida audiência de julgamento que o ali arguido C... : «No dia 24 de Outubro de 2015, cerca das 23 horas e 45 minutos, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula (...) BS, e realizava a manobra de saída da zona do estacionamento junto do estabelecimento comercial designado de “ x... s”, acedendo ao IC2, ao km 81.600, em Moita do Gavião, Benedita.

Ao tentar dirigir-se para a saída da zona de estacionamento, o arguido embateu com o identificado veículo que conduzia no passeio, subiu-o e ficou imobilizado em cima deste, com a parte frontal a invadir a berma do IC2. (…)».

7. O arguido B... ao afirmar que C... , arguido no Processo Sumário n.º 316/15.1GCACB, não se encontrava a conduzir o veículo automóvel, que se encontrava fora do veículo quando a Guarda Nacional Republicana se aproximou e que não o identificou, perante os militares da Guarda Nacional Republicana como o condutor, sabia que as suas afirmações não correspondiam à verdade.

8. Mais sabia o arguido que prestava tal depoimento após ter prestado juramento de que o faria com verdade.

9. Assim agindo, sabia o arguido B... que prestava depoimento falso, o que quis.
10. O arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta».
Ora, tal como demonstrado pelo teor da acta certificada a fls. 3 a 8, a audiência de julgamento a que alude a citada acusação foi presidida pelo aqui signatário, que de igual modo proferiu a sentença certificada a fls. 9 a 27, na qual, oficiosamente, determinou, a final, o seguinte: «Estando indiciado que a testemunha B... prestou, em julgamento, um depoimento pelo menos parcialmente falso, extraia certidão da acta de fls. 31 a 36 e da presente sentença e, conjuntamente com a cópia da gravação das declarações da testemunha (incluindo em sede de acareação), remeta-a aos serviços do Ministério Público para eventual instauração de procedimento criminal relativo ao crime de falsidade de testemunho».
Na aludida sentença, em sede de apreciação crítica da prova, o signatário referiu-se ao ora arguido (ali testemunha) nos seguintes moldes:

«Ora, não olvidamos que a testemunha B... , que acompanhava o arguido na ocasião, fez um admirável, mas muito pouco sério, exercício de tentativa de colagem à versão daquele.

            Sucede que tal versão, totalmente destituída de credibilidade intrínseca, colidiu frontalmente (mesmo em sede de acareação) com os depoimentos, coerentes entre si, das testemunhas D... e E... , militares da G.N.R. que se dirigiram ao local em decorrência de denúncia feita por um cliente do estabelecimento de café ali existente no sentido de o veículo em causa ter «ido bater no lancil».

            Em relatos genuínos, objectivos e credíveis, afiançaram as duas testemunhas em apreço que, uma vez chegadas ao local, o arguido estava ainda sentado no lugar do condutor do veículo e que, assim que saiu do mesmo, caiu de imediato ao solo.

            Mais referiram que, estando efectivamente presente, a testemunha B... logo lhes confirmou que tinha sido o arguido a conduzir o veículo até ao preciso local em que se encontrava.

Nessa sequência, mais garantiram ser totalmente falso que, ao chegarem ao local, o arguido estivesse no exterior do veículo, nomeadamente a sair do café.

Num tal contexto, e porque ambos os militares da G.N.R. comprovaram toda a demais factualidade ali vertida, é para nós irrefutável a demonstração dos factos provados em 1 a 5, nos quais assenta, através de um mero processo de inferência, a demonstração dos factos do foro interno plasmados em 6 e 7».
Por último, há que salientar que foi aquela determinação constante da parte final da sentença que deu aso à abertura do inquérito que culminou na sobredita acusação dirigida contra o identificado B... .
            O signatário, entende que caso decidisse intervir neste processo, a sua intervenção poderia ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
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É junta certidão extraída dos autos de que constam:
-Acta de Audiência de discussão e julgamento;
- Sentença proferida no processo nº 316/15.1GCACB;
- Transcrição das declarações prestadas pela testemunha B... ;
            - Acusação deduzida contra o arguido B... ;
            - Pedido de escusa;    
                                               x
Foram cumpridas as formalidades legais.
                                   x
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:­
                                   x
Nos termos do preceituado no art. 43°, nºs 1 e 2, do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, podendo constituir fundamento de escusa a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo, fora dos casos do art. 40°, do C. P. Penal”.
Ainda tendo em conta o n° 4, daquela citada disposição legal, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse, verificadas que sejam as condições dos nºs 1 e 2.
Com os institutos de recusa e escusa de juiz, por suspeição, pretende-se salvaguardar a independência do Julgador.
Ora, ..." É extremamente difícil definir em que consiste a independência do juiz, até por se tratar de um conceito de definição negativa, cujo âmbito é dado em forma negativa ( não estar sujeito a...) e com grande amplitude.
Porém, parece que uma das mais válidas definições foi dada pelo Prof. Castro Mendes, de que ...a independência dos juizes é a situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros factores que não os juridicamente adequados a conduzir à legalidade, à justiça da mesma decisão.
Concomitantemente, o art. 4° n° 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26/08) determina (na senda do estatuído n art. 216°, da CRP) que os juízes julgam, apenas, segundo a Constituição e a Lei; a sua independência é assegurada por um órgão privativo de gestão e disciplina da magistratura judicial.
Fazendo apelo ao já acima referenciado nº 4° do art. 43° do CPP por referência aos seus   nºs 1 e 2, pode dizer-se que a causa de escusa de um juiz reconduz-se, essencialmente, a um de dois fundamentos:
- Uma relação especial do juiz com algum dos sujeitos processuais; ou,
-   Algum especial contacto com o objecto da decisão.
            Acresce que, como se decidiu (entre outros e por todos, no Ac. da Relação de Évora, de 5/03/96, CJ, XXI, T. 2, pago 281 ), para o efeito de apresentação de um pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode fundadamente suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixa de ser imparcial e, injustamente, o prejudique.
            Temos, portanto que o princípio do Juiz natural só poderá ser afastado, quando outros princípios ou regras de igual ou maior dignidade, o ponham em causa, como sucede quando o Juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função. No caso vertente, a intervenção do Sr. juiz impõe-se por força do princípio do juiz natural, o que significa que a sua remoção só poderá verificar-se quando ocorram situações excepcionais nomeadamente, que levem a garantir que não oferece garantias de imparcialidade e isenção.
            Como já se referiu de acordo com o estatuído no artº 43 nº 1 do CPP para sustentar a recusa do juiz é necessário verificar-se:
            - se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;
            - e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
            Como decidiu o Ac do STJ de 14/6/2006 no proc. 1286/06.5 (cit no proc. da RP 2/07.6GAAAMT):
            “No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal.
            De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade”.
             O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.
            No caso sub judice é objectivamente justificado o receio do Sr. juiz de que a sua intervenção no processo em causa corra o risco de ser considerada suspeita atendendo á sua intervenção no processo nº 316/15.1GCACB em que o aqui arguido era ali testemunha e devido às suas declarações o Sr. Juiz ordenou a extracção de certidões para efeitos de inquérito.
No caso vertente, a convicção do senhor juiz sobre a falsidade dos depoimentos da testemunha no processo em que interveio anteriormente foi de tal forma clara, detalhada e fundamentada, que não pode deixar de colocar-se seriamente a hipótese de a convicção do senhor juiz no processo anterior condicionar o seu julgamento sobre a culpabilidade do arguido no processo criminal em que aquela testemunha vai ser julgada, precisamente pelo crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360º nºs 1 e 3 do C. Penal.
Neste sentido o Ac. da REL. Évora de 18/04/2017 nº 53/17.2YREVR relatado pelo Exmo Desembargador António João Latas).
Concluímos, pois, que a concreta intervenção do senhor juiz requerente no processo em que, alegadamente, o ora arguido praticou o crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º nºs 1 e 3 do C.Penal, pelo qual irá agora ser nos presentes autos, constitui motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade num dos seus aspectos fundamentais, qual seja o de que o juiz é imparcial se para além de “…distinto [alteridade] e distante das partes [equidistante], está constantemente disponível a pronunciar-se sobre o mérito da causa somente sobre a base da prova legitimamente adquirida”.

Por todo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em deferir o pedido de escusa do senhor juiz em funções no juízo Local Criminal de Alcobaça, escusando-a de intervir no julgamento a realizar no processo-crime com o nº 75/16.0T9ACB-A que corre termos naquele mesmo tribunal.
Sem custas

Coimbra, 28 de Junho de 2017

(Alice Santos- relatora)

(Abílio Ramalho – adjunto)