Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2970/16.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PESSOAS SINGULARES
Data do Acordão: 07/13/2016
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 17º-A DO CIRE.
Sumário: O Processo Especial de Revitalização (PER) é aplicável às pessoas singulares (não comerciantes).
Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- Na Comarca de Coimbra (Inst. Central - Sec.Comércio - J2) , V... e mulher, M..., residentes na Rua (...) , Praia de Mira, instauraram ( 14/4/2016) Processo Especial de Revitalização, com a nomeação de administrador judicial provisório.

Alegaram, em síntese:

Encontram-se numa situação económica quase insustentável, em virtude de terem garantido (nomeadamente como avalistas) dívidas de sociedades comerciais onde detinham participações e onde o requerente marido era gerente.

Não têm conseguido inverter o quadro de dificuldades de liquidez, entraram em incumprimento em algumas obrigações pendentes, não conseguindo suprir obrigações e recuperar as moras nos meses seguintes.

Não têm quaisquer bens, sendo que apenas o requerente marido aufere rendimentos, advindos de uma pensão mensal de reforma no montante de 3.944,19€.

Juntaram declaração assinada por si e por um credor, manifestando a vontade de encetarem negociações conducentes à sua revitalização, por meio de aprovação de um plano de recuperação nos termos dos artigos 17º-C e segs. do CIRE, bem como dos documentos a que alude o artigo 24º, nº 1 do CIRE.

            1.2.- Por despacho de 22/4/2016 decidiu-se indeferir liminarmente o processo especial de revitalização.

            Argumentou-se, em síntese, que o processo não é aplicável às pessoas singulares não comerciantes impondo-se uma interpretação restritiva das nomas, pelo que não se verificam os pressupostos do art.17-A nº1 do CIRE.

            1.3.- Inconformados, os requerentes recorreram de apelação, em cujas conclusões defendem que o PER aplica-se a todo e qualquer devedor e a interpretação do despacho não corresponde nem à letra ( que não faz a distinção), nem ao espírito da norma do art.17-A CIRE, não devendo acolher-se a interpretação restritiva.


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O processo especial de revitalização (PER) foi introduzido pela Lei nº 16/2012 de 20/4, tratando-se de um processo judicial especial, assumindo, no entanto, uma natureza híbrida, assente no primado da recuperação ( arts. 1 nº1 e 17-A CIRE).

            Problematiza-se no recurso a questão de saber se o PER é aplicável às pessoas singulares, não comerciantes, e sobre a qual existem duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais.

            Uma, no sentido de que o PER não se aplica às pessoas singulares não comerciantes, e que foi a acolhida na decisão recorrida, fazendo uma interpretação restritiva das normas dos arts.17-A e segs. do CIRE.

            Apresentam-se, em síntese, os seguintes argumentos:

            A Resolução do Conselho de Ministros nº11/2012 de 19/1 que criou o “Programa Revitalizar” refere no preâmbulo a “revitalização de empresas” e a Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 39/XII de 30/12/2011 mencionam “a manutenção do devedor no giro comercial e “empobrecimento do tecido económico português”;

            A intenção do legislador foi a de revitalizar a actividade do devedor, enquanto “agente económico”, mas não na qualidade de consumidor;

A recuperabilidade do devedor está colimada a titularidade de uma empresa;

Para o devedor não comerciante a lei prevê o “plano de pagamentos” que implica a suspensão da insolvência após a homologação do plano;

            As normas dos arts. 17–A e segs. devem, por isso, ser objecto de interpretação restritiva.

            ( cf. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, pág.143; Paulo Olavo Cunha II Congresso do Direito da Insolvência, pág. 220; Ac STJ de 10/12/2015 ( proc. nº 1430/15), Ac STJ de 5/4/2016 ( proc. nº 979/15), Ac STJ de 12/4/2016 ( proc. nº 531/15),  Ac RP de 23/6/2015 ( proc. nº 1243/15), Ac RE de 9/7/2015 ( proc. nº 718/15), Ac RL de 24/11/2015 ( proc. nº 22219/15), disponíveis em www dgsi.pt )

            A outra corrente que defende a tese da aplicação do PER às pessoas singulares (não comerciantes).

            Enunciam-se, em resumo, os seguintes tópicos de argumentação:

            Os arts. 17-A a 17-I não limitam a aplicação as pessoas colectivas ou equiparadas, prevendo-se expressamente que pode ser utilizado “por todo o devedor”.

            Isto é, as normas dos arts.17-A e segs., inserindo-se no âmbito das “Disposições introdutórias” ( Título I), não impõem qualquer limitação ou condicionamento ao disposto no art.2º ( sujeitos passivos da insolvência ), cuja norma, pela inserção sistemática, se projecta no PER.

            Da redacção do art.17-D nº11 ( “ O devedor, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquele ser uma pessoa colectiva (…)” resulta o âmbito de aplicação ao devedor, pessoa singular.

            Para além do “plano de pagamentos”( art. 249 e segs. ), o PER apresenta-se como meio alternativo para a resolução do endividamento das pessoas singulares, sendo que tanto os pressupostos, como a finalidade, são diferentes. Basta atentar, por exemplo, que o PER é um instrumento que visa obstar à insolvência, e por conseguinte, um procedimento recuperatório, já o “plano de pagamentos” destina-se prioritariamente à satisfação dos credores, razão pela qual com a homologação é também decretada a insolvência do devedor. A circunstância de a lei prever para as pessoas singulares não titulares de empresas o “plano de pagamentos”, não dispensa a abertura de um processo de insolvência, com todas as consequências e estigma social.

            O tópico baseado na Resolução do Conselho de Ministros nº11/12 e da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº39/XII, ao referir designadamente a “manutenção do devedor no giro comercial” nem sequer parece decisivo, porque mesmo na exposição de motivos não se limita ou restringe o devedor ao comerciante ou empresário, mas ao devedor que esteja em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente ( cf. art.1º nº2 CIRE).

            ( cf., neste sentido, Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, 5ª ed., pág. 176, O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, 2016, pág. 33 e segs; Luís Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, vol.1º, 2ª ed., pág. 15 e segs; Fátima Reis, Processo Especial de Revitalização – Notas Práticas e Jurisprudência Recente, 2014, pág. 21 e segs; Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, 2015, pág. 15 e segs; Nuno Casanova/ David Dinis, PER o Processo Especial de Revitalização, pág. 13. Ac RC de 30/6/2015 ( proc. nº 1687/15), Ac RE de 9/7/2015 ( proc. nº 1518/14), Ac RE de 5/11/2015 ( proc. nº 371/15), Ac RP de 16/12/2015 ( proc. nº 2112/15), Ac RC de 7/4/2016 ( proc. nº 3876/15), disponíveis em www dgsi.pt).

            Pese embora a questão seja polémica, no balanceamento dos argumentos adere-se à orientação de que o PER também se aplica às pessoas singulares ( não comerciantes ) por se evidenciar ser a solução mais razoável.

            Como pertinentemente se afirma no voto de vencido ( Des Jorge Leal) aposto no Ac RL de 21/4/2016 ( proc. nº 2238/16), em www dgsi.pt:

“Ora, impressiona que no local que realmente importa, que é o corpo normativo de direito positivo, não exista um sinal, um indício da aludida intenção restritiva. O sistema adotado pelo legislador, no CIRE, é o da aplicabilidade em geral do mesmo regime a todas as espécies de devedores, enunciando-se expressamente, quando é o caso, regras especiais aplicáveis a algum ou a alguns deles, ou excluindo-se regras relativamente a algum ou alguns deles. Assim, quanto às pessoas singulares não titulares de uma empresa, são excetuadas do dever de apresentação à insolvência, nos termos do n.º 2 do art.º 18.º do CIRE. E é-lhes dedicado todo o Capítulo II do Título XII do CIRE. E aí, no art.º 250.º, é estipulado que não lhes será aplicável o regime do plano de insolvência (Título IX) e o da administração pelo devedor (Título X). É, pois, por demais estranho que, não pretendendo o legislador aplicar o PER aos devedores pessoas singulares não titulares de uma empresa, não o tenha dito.

“ Quanto ao teor dos trabalhos preparatórios e do preâmbulo dos diplomas, é verdade que encaram o regime insolvencial e pré-insolvencial preferencialmente na perspetiva da empresa. Basta ler o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE, para verificar que para o legislador o protagonista central do regime é a empresa, enquanto realidade fulcral da atividade económica. Mas tal não obsta a que o CIRE seja aplicável às pessoas singulares, ainda que sem atividade empresarial. Os cidadãos, mesmo que trabalhadores por conta de outrem, são agentes económicos, são destinatários fundamentais da atividade das empresas. A sustentabilidade económica dos consumidores é um fator relevantíssimo da sustentabilidade das empresas, da manutenção do “giro comercial.” Por outro lado o PER tem um campo de aplicação que não se confunde com o plano de pagamentos, pois este processa-se quando o devedor já se encontra em estado de insolvência, ou em insolvência iminente. O PER permite uma intervenção mais precoce, dando ao devedor uma maior margem de manobra na defesa dos seus interesses e possibilitando também aos credores colaborarem no reequilíbrio da situação económica do devedor com mitigação das suas perdas. E é, claramente, bem distinto da exoneração do passivo restante, que é acompanhada da liquidação do património do devedor e, em regra, de elevadas perdas por parte dos credores (artigos 235.º, 239.º e 245.º do CIRE) (…)”.

            2.2.- Síntese conclusiva

            O Processo Especial de Revitalização (PER ) é aplicável às pessoas singulares ( não comerciantes ).


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento do processo.

2)

            Custas pela parte vencida a final.

Coimbra, 13 de Julho de 2016.


 ( Jorge Arcanjo - Relator por vencimento )

( Manuel Capelo )

 (Jaime Ferreira – vencido, conforme voto):
Voto de vencido:

            Enquanto relator inicial do presente processo, manteria o despacho recorrido, segundo o qual:

            “…  

Foi assim, com este objetivo («de promover a revitalização de empresas, assegurando a produção de riqueza e a manutenção de postos de trabalho» - Resolução do Conselho de Ministros nº 11/2012, de 3/2) que foi criado o processo especial de revitalização, tido como solução eficiente no sentido da referida recuperação e de «combate ao desaparecimento de agentes económicos» e ao inerente «empobrecimento do tecido económico português».

... é a posição de Carvalho Fernandes e João Labareda, para quem a «ideia de recuperabilidade do devedor tem constantemente sido ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e, neste sentido, à sua qualidade de empresário», como sucedia na vigência do CPEREF e também se passa com o CIRE, como «se induz da própria denominação do Código e também se comprova pelo seu art. 1º». Consideram, por outro lado, a principal motivação da criação do processo de revitalização, confessada na aludida Exposição de Motivos, para concluir que «manifestamente, pois, a realidade que preenche o pensamento legislativo é o tecido empresarial, no seu conjunto, e de uma forma muito lata, facilitada, de resto, pelo conceito geral de empresa que, para os efeitos do Código (…) se acolhe no art. 5º». Sustentam, assim, que «o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários, justificando-se a correspondente restrição ao significado literal do texto» (cd. CIRE Anotado, Quid Iuris, 2.ª Ed., p. 143).

No mesmo sentido se pronuncia P. Olavo Cunha, ao defender que: «O PER é exclusivamente aplicável a empresas, só para estas fazendo sentido. Com efeito, apesar de os arts. 17º-A e seguintes serem omissos sobre eventuais restrições à aplicação do procedimento a pessoas singulares que não sejam titulares de empresas, a recuperação a empreender com este procedimento visa essencialmente salvaguardar e viabilizar uma empresa, sendo suficiente aplicar o plano de insolvência ao devedor que seja pessoa singular, visto que a sua situação patrimonial é, por definição, estática relativamente à de uma empresa, em que as variações patrimoniais são constantes.

 Consideramos, pois, o PER aplicável às empresas, incluindo as de titularidade individual, e diferenciando, assim, as empresas (singulares e coletivas) das pessoas singulares que não são titulares de empresas no acesso a este procedimento de revitalização» (em «Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades», II Congresso de Direito da Insolvência, p. 220 e 221).

A jurisprudência que se tem pronunciado sobre a questão da aplicabilidade do PER às pessoas singulares tem enveredado, de forma predominante, por este sentido restritivo (cf., neste sentido, os Acórdãos da Relação do Porto de 23.02.2015, de 23.06.2015 e de 12.10.2015; em sentido contrário, o Acórdão da Relação de Évora de 09.07.2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Como se concluiu no Acórdão da Relação do Porto de 23.02.2015, o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários nem exerçam, por si mesmas, qualquer atividade económica.

Foi para este sentido restritivo que o próprio Supremo Tribunal de Justiça propendeu no seu recente Acórdão de 10.12.2015, publicado também em www.dgsi.pt (e que aqui seguimos de perto), o qual, pela sua convincente argumentação, alterou o entendimento que antes vínhamos seguindo. Na verdade, e tal como é ali defendido, afigurando-se-nos que as normas que regem o PER devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma atividade económica por conta própria.

...

Atendendo aos elementos factuais alegados pelos próprios requerentes no que se refere, especialmente, à sua situação pessoal, verifica-se que os mesmos não são, nem foram, comerciantes, empresários, nem exercem uma atividade económica por conta própria.

Destarte, porque os requerentes não são comerciantes ou empresários, nem desenvolvem uma atividade económica por conta própria, antes o fazendo através de outros sujeitos que são as sociedades comerciais de que são sócios, estão, a nosso ver, excluídos do âmbito subjetivo de aplicação do PER.

Por conseguinte, julgando-se não verificados os pressupostos a que alude o artigo 17.º-A, n.º 1, do CIRE, e ao abrigo do disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE e 549.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente o presente processo especial de revitalização.”.

Sem necessidade ou utilidade de tecer outros considerandos, e apesar do respeito que me merece a tese agora vencedora, entendo, pois, que se deveria confirmar o despacho recorrido, pelo que voto vencido o presente acórdão.

                                   Tribunal da Relação de Coimbra, em 13/07/2016

                                               Jaime Carlos Ferreira