Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
767/10.8T2AVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
DEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 01/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 186º, Nº 1, 238º, 243º, Nº 1, AL. B), E 244º, NºS 1 E 2, DO CIRE
Sumário: I – O deferimento liminar da exoneração do passivo restante corresponde à verificação da inexistência, nessa ocasião processual, das causas legalmente previstas que imporiam o indeferimento liminar; no entanto, não significa que a exoneração se efective ou, muito menos, que estejamos já perante ela, tanto mais que será recusada, quer a final, quer antecipadamente, quando se apure a existência de alguma das circunstâncias previstas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, as quais, se conhecidas em tempo, fundamentariam o indeferimento liminar – artigos 243.º, n.º1, alínea b) e 244.º, n.º 2, do CIRE.

II - Importa distinguir com clareza os dois principais momentos processuais que conduzem, eventualmente e ultrapassado o primeiro, à efectiva exoneração do passivo. Dito de outro modo, deve acentuar-se que a exoneração só ocorre, e quando ocorre, com a decisão final (artigo 244.º), isto é, mesmo tendo havido despacho inicial de deferimento, mesmo que não tenha havido (durante o período de cessão) cessação antecipada, ainda assim, no final pode ser concedida ou recusada a exoneração do passivo restante, o que o juiz oportunamente decidirá, depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência (artigo 244.º, n.º1).

III - O prazo de três anos previsto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE igualmente se aplica às situações previstas no n.º 2 do mesmo preceito.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

1.1 Os autos na 1.ª instância

B… e mulher C… vieram requerer a sua declaração de insolvência, alegando a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante, revelam a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das suas obrigações e, com a petição, juntaram os pertinentes documentos. Na mesma ocasião peticionaram a exoneração do passivo restante, invocando o preenchimento dos respectivos requisitos e a tempestividade dessa pretensão.

Na Assembleia de Credores foi unanimemente aprovado o relatório apresentado pelo Administrados da Insolvência, mas, quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, os credores … e Banco … pronunciaram-se desfavoravelmente, nos termos do artigo 238.º, alínea d), do CIRE; a credora A…, Lda., aqui recorrente, igualmente se pronunciou contra a pretensão, agora nos termos do artigo 238.º, alínea e) – por referência ao artigo 186.º, n.º2, alínea a) do CIRE – e com a invocação da seguinte razão: “Por ter conhecimento que em 2006 foram pagos pela sociedade D…, Lda., da qual o insolvente era sócio, juntamente com o seu pai, entretanto falecido, a título de suprimentos, a quantia de 901.657,13€, sendo distribuídos 500.981,00€ ao insolvente e o remanescente ao seu pai, entretanto adjudicados ao insolvente a título de herança.” Os insolventes, em resposta, entenderam que os factos alegados pela credora não se encontram abrangidos pelo disposto no artigo 186.º, n.º1 do CIRE, porquanto se reportam a período temporal anterior aos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e, por isso, não devem ser considerados pelo tribunal.

Conclusos os autos, e no seu prosseguimento, foi proferida decisão que, no que ora importa, concluiu não haver motivos para indeferir liminarmente o pedido, nos termos do disposto no artigo 237.º, al. a) do CIRE” e, por isso, disse que “face ao exposto, admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

  

1.2 O recurso

A sociedade credora, inconformada com o decidido, veio apelar e termina as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

Os recorridos responderam e sustentaram a sua interpretação discordante da que invoca a recorrente, a qual consideram demasiado extensiva e desagregada de todo o espírito do CIRE, “que naturalmente pretende que, mediante o recurso ao processo de insolvência, os credores vejam liquidados os seus créditos, mas sem nunca descurar o intuito de recuperação financeira do devedor, principalmente quando este é uma pessoa singular”. Defendendo que a conduta do devedor tem que ser apreciada no período temporal de três anos, “pois se assim não fosse, poderíamos ter situações em que a conduta dos insolventes poderia ser apreciada até 5,7, 10 ou mesmo 15 anos!” e que essa não foi a intenção do legislador, e acrescentando que a recorrente “não consegue precisar em que data é que tal alegada dissipação terá ocorrido”, terminam a pretender que o despacho sob censura deve ser integralmente mantido.

Depois dos autos terem baixado à 1.ª instância para ser fixado o valor da causa, foi confirmado o recebimento do recurso e foram dispensados os vistos, com o acordo dos Exmos. Adjuntos e ponderando a natureza urgente do recurso. Por tudo, nada vemos que obste ao conhecimento do mérito do recurso.

1.3 Objecto do recurso

Delimitado pelas conclusões da apelante, o objecto deste recurso identifica-se com a apreciação da (in)correcção do deferimento do pedido dos insolventes à exoneração do passivo restante, e desdobra-se juridicamente nas seguintes questões

(1) Da relevância do prazo de três anos, quando é aplicável o n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e,

(2) Mesmo a entender-se aplicável, da relevância da ocasião de dissipação patrimonial, necessariamente ocorrida em período enquadrável naqueles três anos.    

 

2. Fundamentação

2.1 Fundamentação de facto

Os factos que fundamentaram a decisão sob censura não se mostram impugnados. Do que ficou assente nessa decisão e do que resulta dos autos, na conjugação do alegado e do documentado a fls. 89 e ss. (compra e venda) importa considerar o seguinte:

1 – Os recorrentes vieram requerer a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 235.º e seguintes do CIRE.

2 – Os credores Banco …, SA e C…, pronunciaram-se desfavoravelmente, com fundamento na alínea d) do artigo 238.º do CIRE.

3 – A recorrente também se pronunciou desfavoravelmente, agora com o fundamento do disposto no artigo 238.º, al. e) do CIRE, por referência ao disposto no artigo 186.º, n.º2, al. a) do mesmo diploma.

4 – Fundamentando a sua oposição no conhecimento que no ano de 2006 foram pagos pela sociedade D…, Lda., da qual o insolvente marido era sócio, juntamente com o seu pai, entretanto falecido, a título de suprimentos, a quantia de 901.657,13€.

5 – Sendo dessa quantia total distribuídos 500.981,00€ ao insolvente e o remanescente ao seu pai, entretanto adjudicado ao insolvente a título de herança.

6 - A quantia referida em 4. foi recebida pelo insolvente no final de Julho de 2006.   

2.2 Aplicação do Direito

2.2.1 Antes de entrarmos nas questões específicas que a apelação suscita, deixemos algumas notas, as quais, pensamos, contribuem para a melhor compreensão daquelas.

A finalidade do processo de insolvência[1] anuncia-se logo no artigo 1.º do CIRE[2]: é um processo especial, de execução universal, que pretende alcançar a liquidação do património do insolvente e a repartição do respectivo produto pelos credores, ou a satisfação dos credores pelo modo previsto num plano de insolvência que, nomeadamente, se baseia na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.

Com o CIRE, de modo expresso[3] e pensado, modifica-se relevantemente o regime precedente (estabelecido no CPEREF) que dava prevalência à recuperação da empresa sobre a falência[4], para, através de um processo unitário, se dar eficiência à satisfação dos direitos dos credores, ainda que, como decorre do supra referido, a recuperação não passe a estar completamente arredada[5].

A legitimidade para apresentar o pedido de insolvência apenas existe em relação ao devedor (artigos 18.º e 19.º)[6] e constitui mesmo um dever nos casos em que o devedor não seja uma pessoa singular não titular de uma empresa; em relação ao responsável legal pelas dívidas do devedor (artigo 20.º, n.º 1); em relação ao Ministério Público, em relação às entidades cujos interesses lhe estão confiados (artigo 20.º, n.º1); ao administrador de insolvência estrangeiro, no caso de processo secundário de insolvência (artigo 296.º, n.º 2) e, naturalmente, em relação a qualquer credor, mesmo que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito (artigo 20.º, n.º1)[7].

Não estando as pessoas singulares passíveis de recuperação, no sentido técnico e económico que o CIRE, ainda assim, permite, veio a consagra-se neste diploma, além do “plano de pagamentos”, um regime particular da insolvência em benefício[8] desses devedores, a chamada exoneração do passivo restante[9]. Este regime está sujeito a determinados requisitos e segue procedimentos legalmente previstos: Em primeiro lugar, tem que estar em causa a insolvência de pessoa singular; depois, tem que ser o devedor a formular o pedido, seja aquando da apresentação da petição, seja nos dez dias posteriores à citação para o processo, aqui quando a iniciativa não pertenceu ao devedor, mas a terceiro.

Importa distinguir com clareza os dois principais momentos processuais que conduzem, eventualmente e ultrapassado o primeiro, à efectiva exoneração do passivo. Dito de outro modo, deve acentuar-se que a exoneração só ocorre, e quando ocorre, com a decisão final (artigo 244.º), isto é, mesmo tendo havido despacho inicial de deferimento, mesmo que não tenha havido (durante o período de cessão) cessação antecipada, ainda assim, no final, pode ser concedida ou recusada a exoneração do passivo restante, o que o juiz oportunamente decidirá, depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência (artigo 244.º, n.º1). No fundo, o deferimento liminar da exoneração corresponde à verificação da inexistência, nessa ocasião processual, das causas legalmente previstas que impõem o indeferimento liminar, porquanto reveladoras do imerecimento do devedor em vir a ser exonerado; no entanto, não significa que a exoneração se efective ou, muito menos, que estejamos já perante ela, tanto mais que a exoneração é recusada, quer a final, quer antecipadamente, quando se apure a existência de alguma das circunstâncias previstas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, as quais, se conhecidas em tempo, fundamentariam o indeferimento liminar – artigos 243.º, n.º1, alínea b) e 244.º, n.º 2[10].

Uma nota final, esta de natureza jurisprudencial. A recorrente, no corpo das suas alegações, e naturalmente em abono da pretensão revogatória, cita dois acórdãos desta Relação e, ainda que de ambos saliente o facto de a exoneração do passivo não poder ser um instrumento oportunístico, e pressupor a rectidão do comportamento anterior do insolvente (com o que, obviamente, não podemos deixar de concordar e acompanhamos), não poderá esquecer o concreto objecto dessas decisões: no primeiramente citado (acórdão de 2.03.2010, relatado pelo Desembargador Gonçalves Ferreira) considera-se que não é recto o comportamento do insolvente que nos três anos anteriores ao início do processo, doa a nua propriedade do único bem imóvel que possui a um filho menor; no segundo (acórdão de 17.12.2008, relatado pelo Desembargador Gregório de Jesus) diz-se, além do mais, mas para o que ora importa, que o recurso merece provimento porque o pedido de exoneração devia ter sido liminarmente indeferido por ocorrer a verificação da condição da al. d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE (sublinhados nossos). Ou seja, e com todo o respeito por diferente opinião, a jurisprudência invocada não elucida ou esclarece o caso presente, já que, independentemente do mérito que se lhe reconhece, tem objecto diverso do da presente apelação. 

2.2.2 Feitas as considerações pretéritas, avencemos para o específico objecto desta apelação, começando por abordar a conclusão da recorrente no sentido da decisão sob censura ter feito uma errada interpretação da norma do artigo 186.º, n.º 1, na medida em que estende a aplicabilidade do prazo de três anos aí previsto aos casos que conhecem qualificação específica, através das diversas alíneas do n.º 2 do mesmo artigo, porquanto tal entendimento – assim defende -, à luz dos elementos literal, sistemático e teleológico da interpretação das normas, não pode colher, já que nem o n.º 2 do artigo 186.º faz alusão a qualquer limite temporal, nem a aplicação do n.º 1 da mesma disposição seria aplicável in casu, por força da exclusão do artigo 186.º, n.º 4.

O artigo 238.º, n.º 1, alínea e) preceitua que o pedido de exoneração (do passivo restante) será liminarmente indeferido se constarem do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º. Este normativo, por seu turno, refere (no seu n.º1) que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo e (no n.º 2, com referência à sua alínea a) acrescenta que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular quando os administradores (de direito ou de facto) tenham, além do mais, “destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”. Finalmente, o artigo 186.º, n.º4 esclarece que o disposto no seu n.º 2 (número que ora importa) é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação da pessoa singular insolvente.

Um primeiro esclarecimento: parece entender a recorrente que da redacção do n.º 4 do artigo 186.º resulta o afastamento do seu n.º 1 ao devedor que seja pessoa singular. Com o devido respeito, não se acompanha tal interpretação: porque o n.º 1 do artigo 186.º é aplicável a qualquer devedor e o n.º 2 afasta (no corpo do preceito) a aplicação a pessoa singular é que o n.º 4 vem dizer que, de todo o modo, será ainda aplicável, mas com as necessárias adaptações, dito de outro modo, o n.º 4 do artigo 186.º “reaplica” ao devedor singular (com as necessárias adaptações, repete-se) os números 2 e 3; não o faz relativamente ao n.º 1 porque esse “sempre foi” aplicável a qualquer devedor. Acresce que, no que ao caso interessará, o artigo 236.º, na sua alínea e), remete para o artigo 186.º sem qualquer restrição. No fundo, remete necessariamente para o seu n.º 1 e para os números 2 e 3, mas aí com as necessárias adaptações.

Feito o esclarecimento anterior, mantém-se a questão: as situações previstas nos úmeros 2 e 3 do artigo 186.º (e para o que importa, a prevista na alínea a) do seu n.º 2) estarão sujeitas ao prazo do artigo do n.º 1?

Com o respeito devido por diferente saber, a resposta deve ser positiva: a cláusula geral enunciada no n.º 1 estabelece um tempo relevante que não faz sentido ignorar quando se tipificam (no n.º 2) situações de presunção de culpa. E se isso é válido, como defendemos, para qualquer insolvente, por maioria de razão valerá para o devedor singular, a quem se aplica o n.º 1 directamente e o n.º 2 apenas com as devidas adaptações. Importa dizer, voltando a considerações com que iniciámos esta análise, que o processo de insolvência é urgente também no seu sentido substantivo, ou seja, pretende acautelar com eficácia – o mais imediatamente possível – os seus fins e, por outro lado (também como se disse) a insolvência pode ser requerida, além do mais, por qualquer credor. Ou seja, quer pela finalidade do processo, quer pela legitimidade activa, mas igualmente pela leitura mais adequada que deve ser feita dos preceitos aqui invocados, não se compreenderia que os exemplos tipificados no n.º 2 do artigo 186.º conduzissem (e conduzissem sempre) a um juízo de culpa, independentemente de terem decorrido há 5, 10 ou 15 anos.

A conclusão a que chegamos não é diferente, assim, daquela que defendem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, quando anotam o CIRE, e tal como é expressamente citado na decisão sob censura: a articulação do n.º 2 com o n.º 1 do artigo 186.º sustenta que se atenda, para efeitos do n.º 2, ao prazo estatuído no n.º 1. E, sem querermos ser repetitivos, não vemos como poderia ser de outro modo, uma vez que o início do processo (termo final do prazo dos três anos) está também na disponibilidade e na cautela do credor e a solução contraria acarretaria uma incerteza e indefinição jurídica tão indesejadas pelo direito falimentar.

Acresce que não pode deixar de ser ponderar que, aqui e no caso concreto, estamos a pensar a aplicabilidade do prazo de três anos a um devedor singular e à questão do deferimento liminar da exoneração do passivo. O reflexo da ausência de prazo mais torna patente a falta de sentido jurídico do resultado, afinal o devedor não está, nem ainda nem brevemente, exonerado do passivo e pode nunca vir a sê-lo. A este propósito parece-nos pertinente uma reflexão processual: se a lei pretendesse que a análise dos casos de indeferimento liminar fosse feita na certeza de um juízo de culpa teria determinado diligências nesse sentido e, necessariamente, a decisão (do indeferimento ou deferimento da exoneração) não poderia ser anterior à decisão sobre a natureza culposa da insolvência. Mas não é assim: artigo 188.º e seus prazos, bem diversos maiores e posteriores) do prazo previsto no artigo 238.º, n.º 2.

Em suma, entendemos que a decisão sob censura decidiu correctamente ao considerar que o prazo de três anos previsto no artigo 186.º, n.º1 igualmente se aplica às situações previstas no n.º 2 do mesmo preceito.

Sem embargo, importa apreciar a questão enunciada em 1.3 (2): mesmo a entender-se aplicável (como acaba de se decidir) o prazo de três anos, a dissipação patrimonial necessariamente ocorreu nesse.

A recorrente, salientando repetidamente o montante recebido (cerca de 1.000.000,00€, quando efectivamente se trata de 901.657,13€) e o tempo próximo aos três anos que antecederam o processo de insolvência (fim de 2006, quando efectivamente se trata de Julho de 2006) constrói um juízo de presunções naturais que, em seu entender, vêm, afinal e no final, a irrelevar o período de três anos: se o insolvente marido recebeu este valor e não o tem, necessariamente o fez desaparecer; se o valor é elevado, necessariamente o fez desaparecer ao longo do tempo e nesse tempo compreende-se o aludido período de três anos.

Embora o montante recebido possa ajudar a um juízo culposo, não pode, salvo o devido respeito permitir a construção (de presunção em presunção) pressuposta na conclusão da recorrente. É que, no indeferimento liminar, como resulta do artigo 238.º, n.º1, alínea e), os factos fornecidos ou constantes do processo têm que indiciar com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência. Ora, salvo o devido respeito, não foi fornecido ao processo nenhum facto revelador da destruição, ocultação ou danificação do património, apenas se presumiu (a recorrente)[11] a dissipação, num juízo linear que se traduz em “se não tem, destruiu” e acrescentando-se que tal dissipação ou destruição teria que ter ocorrido também no período dos três anos.

Mesmo que não seja tecnicamente correcto falar-se de ónus de prova, não deixa de ser clara a exigência do artigo 238.º, n.º 1 alínea e), a qual tem de conjugar-se, também nesta questão, com a finalidade da insolvência, a legitimidade activa e, em especial, a circunstância (importa repeti-lo) de não estarmos perante a decisão de exoneração, mas apenas perante o seu deferimento liminar.

Em conclusão, entendemos que o processo não dispunha, nem lhe foram fornecidos, elementos que permitam com toda a probabilidade dizer que os insolventes destruíram ou ocultaram parte considerável do seu património nos três anos anteriores ao processo.

Por tudo quanto se deixa dito, entendemos que o presente recurso deve improceder e deve confirmar-se o despacho sob censura.         

   

3. Sumário

- O deferimento liminar da exoneração do passivo restante corresponde à verificação da inexistência, nessa ocasião processual, das causas legalmente previstas que imporiam o indeferimento liminar; no entanto, não significa que a exoneração se efective ou, muito menos, que estejamos já perante ela, tanto mais que será recusada, quer a final, quer antecipadamente, quando se apure a existência de alguma das circunstâncias previstas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, as quais, se conhecidas em tempo, fundamentariam o indeferimento liminar – artigos 243.º, n.º1, alínea b) e 244.º, n.º 2

- O prazo de três anos previsto no artigo 186.º, n.º 1 do CIRE igualmente se aplica às situações previstas no n.º 2 do mesmo preceito.

4. Decisão

Pelas razões ditas, acorda-se no Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente esta apelação, interposta pela sociedade A…, Lda. contra os insolventes B… e C… e, em conformidade, confirmar o despacho que deferiu liminarmente a exoneração do passivo restante.


[1] Sobre a natureza do processo, como processo contencioso especial, e o conflito de interesses que justificam as medidas jurisdicionais que o caracterizam, Catarina Serra, A falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito – O Problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português, Coimbra Editora, 2009, págs. 318 e ss. e, em especial, conclusivamente, pág. 448.
[2] Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março de 2004, com as alterações dos Decretos-lei. 200/2004, de 18 de Agosto, 76-A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho e 185/2009, de 12 de Agosto. Desse diploma serão todas as normas citadas sem referência diversa.
[3] Como resulta do seu Preâmbulo.
[4] Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, Estudos Sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 65.
[5] Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência – Uma Introdução, 4.ª edição, Almedina, 2010, pág. 20.
[6] Podendo coligar-se activamente marido e mulher, salvo se o regime de bens for o da separação, ou ser contra ambos instaurado o processo, a menos que, perante o requerente, só um deles seja responsável – artigo 264.º, n.º1. Sobre a insolvência dos cônjuges, Luís carvalho Fernandes/João Labareda, Estudos…, cit., págs. 311 e ss.
[7] Isabel Alexandre, “O processo de insolvência: pressupostos processuais, tramitação, medidas cautelares e impugnação da sentença”, Themis – 2005, Edição Especial (Novo Direito da Insolvência), Almedina, 2005, págs. 43 e ss.
[8] Nas palavras de Luís Carvalho Fernandes, Estudos…, cit., pág. 276
[9] Ou, como refere Assunção Cristas, “exoneração do devedor pelo passivo restante”, Themis… cit., págs. 165 a 182.
[10] Assunção Cristas, Themis…, cit., pág. 171.
[11] Sintomaticamente, nenhum dos outros credores que se opuseram ao deferimento invocou a dissipação. De todo o modo, a invocação feita pelos outros credores não é objecto da apelação.