Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
983/07.0TBGRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
HIPOTECA
MÁ FÉ
Data do Acordão: 11/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 612.º DO CC.
Sumário: 1. Devido à característica da sua acessoriedade e à sua função de garantia, só é possível determinar rigorosamente se a hipoteca é onerosa ou gratuita recorrendo à sua conexão com o crédito garantido.
2. Sendo o empréstimo anterior à hipoteca e tendo aquele sido concedido sem juros, impõe-se concluir que a hipoteca é gratuita, estando, por isso, dispensado o requisito da má fé na apreciação da impugnação pauliana.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., divorciada, residente na ... – por apenso à execução para pagamento de quantia certa instaurada pelo Banco B..., entretanto substituído pela C..., contra D..., E..., F... e G... – veio deduzir reclamação de créditos[1], alegando, em síntese, que emprestou ao executado E... a quantia de € 45.000,00, que, para garantir tal quantia, lhe “deu” de hipoteca os bens penhorados.

A exequente deduziu impugnação, colocando em crise a existência do crédito da reclamante sobre o executado e alegando, tendo em vista obstar a que a hipoteca sobre tal crédito lhe seja oponível, que tal acto diminuiu a garantia patrimonial do seu crédito, isto é a “impugnação pauliana”.

A reclamante respondeu, mantendo o anteriormente alegado, dizendo desconhecer a “situação de insolvência” do executado E... (seu genro) e acrescentando que este já “devia mais do que esse valor (50.000,00 €) à reclamante no ano de 2005”.

Proferido despacho saneador, seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, foi designado dia para a realização da audiência, após o que a Mm.ª Juíz proferiu a seguinte sentença:

“ (…) julgo parcialmente procedente a presente reclamação de créditos e, em consequência,:

I) Reconheço o crédito reclamado por A..., no montante de quarenta e cinco mil euros (€ 45.000,00);

II) Graduo os créditos reclamados, incluindo o crédito reconhecido na sentença de fls. 7 a 14 (refª ...), com direito a serem pagos pelo produto dos bens penhorados nos autos, melhor identificados a fls. 150 da acção executiva à qual a presente reclamação se encontra apensada, pela seguinte ordem e sem prejuízo das custas da execução que saem precípuas à luz do art. 455º do CPC:

a. Em primeiro lugar, o crédito do ISS, Delegação Regional da ... nos precisos termos reconhecidos na sentença de fls. 7 a 14 (refª ...);

b. Em segundo lugar, o crédito exequendo;

c. Em terceiro lugar, o crédito de A....

 (…)”

Inconformada com tal decisão, interpôs a reclamante recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que gradue o crédito da reclamante em 1.º lugar.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.º - A reclamante emprestou ao executado 45.000,00 €.

2.º - Não ficou provado que este empréstimo tivesse sido posterior ao crédito da exequente pelo que nunca poderia proceder a impugnação pauliana.

3.º - Depois, a hipoteca é uma acto oneroso, in casu, porque representa a garantia de empréstimos dados por provados e não qualquer acto simulado ou truque ou favor.

4.º - O não existirem juros após a constituição da hipoteca não confere ao acto a natureza de gratuito.

5.º - O não haver juros onerou ainda mais a própria reclamante que por tal concedeu contrapartidas – rendimentos – ao executado pelo menos do valor da inflação.

6.º - Mal interpretou pois o tribunal a quo os artigos 610.º, 612.º e 1145.º todos do C. Civil

O recorrido não apresentou contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos com relevo para a apreciação do recurso:

1) Na acção executiva, à qual os presentes autos se encontram apensados, instaurada pelo Banco B..., contra D..., E..., F... e G... a exequente apresentou, como título executivo, uma livrança, com data de emissão de 29-11-1995, com vencimento em 05-04-2007, no valor de € 51.375,96, assinada no verso pelo referido executado E..., após os dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora”.

2) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., com o nº ...-X, freguesia da ... ( ...), uma fracção autónoma – primeira cave esquerda frente – inscrita, a título de aquisição, a favor do executado E... e de H..., casados em regime de separação de bens, inscrição essa decorrente da apresentação 10 de 1987/11/10.

3) Pela apresentação 9 de 14-01-2008, foi inscrita, sobre o prédio referido em 2), e a favor da aqui exequente, a penhora da quota de ½ sobre o dito imóvel, inscrição essa lavrada provisória por natureza e convertida em definitiva por averbamento, resultante da apresentação 15 de 16-06-2008 (Alínea C) da matéria de facto assente).

4) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., com o nº ...-F, freguesia da ... ( ...), uma fracção autónoma – primeira cave esquerda com arrecadação F no sótão e aparcamento F na 4ª cave para um automóvel – inscrita, a título de aquisição, a favor do executado E... e de H..., casados em regime de separação de bens, inscrição essa decorrente da apresentação 15 de 1987/04/08 (Alínea D) da matéria de facto assente).

5) Pela apresentação 9 de 14-01-2008, foi inscrita, sobre o prédio referido em 4), e a favor da aqui exequente, a penhora da quota de ½ sobre o dito imóvel, inscrição essa lavrada provisória por natureza e convertida em definitiva por averbamento, resultante da apresentação 15 de 16-06-2008 (Alínea E) da matéria de facto assente).

6) No dia 26-09-2006, compareceram no Cartório Notarial da ... o executado E... e H..., tendo declarado perante Notário, que exarou por escrito as suas declarações, o seguinte: pelo executado foi dito:

 “Que é dono e legítimo possuidor dos seguintes bens: N.º 1 - Metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “F”, correspondente à primeira cave esquerda, com arrecadação “F” no sótão e aparcamento “F” na quarta cave para um automóvel, destinada a habitação, a que atribui o valor de trinta e sete mil euros. N.º 2 -  Metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “X”, correspondente à primeira cave esquerda frente, destinada a atelier, …, ambas do prédio urbano constituído em propriedade horizontal pela inscrição F-um, denominado Lote dezanove, sito na ..., número catorze, freguesia da ... ( ...), deste concelho, descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o número trezentos e cinquenta e cinco, da mesma freguesia da ... …, somente aquelas metades indivisas, registadas a seu favor pela inscrição G-um (…).

“Que, pela presente escritura constitui a favor de A... hipoteca sobre as fracções indivisas atrás identificadas, para garantia de toda e qualquer quantia, até ao montante de quarenta e cinco mil euros, proveniente do empréstimo que esta fez aos primeiro e segunda outorgantes, sem juros, pelo prazo de dez anos”.

Pela segunda foi dito “Que presta o necessário consentimento a seu marido para a outorga deste acto

7) A hipoteca referida em 6), sobre o prédio descrito em 2), foi inscrita no registo predial, a favor da reclamante, pela apresentação 2 de 12-10-2006 (Alínea G) da matéria de facto assente).

8) A hipoteca referida em 6) sobre o prédio descrito em 4) foi inscrita no registo predial, a favor da reclamante, pela apresentação 2 de 12-10-2006 (Alínea H) da matéria de facto assente).

9) A sociedade executada foi declarada insolvente por sentença proferida em 19-04-2007 (Alínea I) da matéria de facto assente).

10) A fim de saldar dívidas do executado E..., a reclamante entregou ao mesmo, a seu pedido, a quantia total de € 45.000,00, sem juros (resposta ao artigo 1º da base instrutória).

11) Tendo o executado se comprometido a restituir tal quantia à reclamante, no prazo de dez anos (artigo 2º da base instrutória).

12) A reclamante, a fim de garantir a restituição da quantia referida em 1º, pediu ao executado que lhe prestasse garantias (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

13) Para garantir a restituição da quantia, foram constituídas as hipotecas referidas em 6), 7) e 8) (artigo 4º da base instrutória).

14) O executado E..., quando emitiu as declarações reproduzidas em 6), sabia da existência do documento descrito em 1) (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

15) O executado E... mais sabia que, os factos descritos em 6), 7) e 8) diminuíam as possibilidades de cobrança do crédito da exequente (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

16) No dia 29-11-1995, o executado E... assinou uma declaração escrita, endereçada ao I...com o seguinte conteúdo:

“Para garantia da operação de Conta Corrente Caucionada nº ... no montante de Esc. 10.000.000$00, de que sou/somos beneficiário(s) Avalista(s), junto remeto/remetemos uma livrança no valor de 10.000.000$00, por mim/nós subscrita/avalizada em branco, a qual desde já autorizo/autorizamos que seja preenchida por esse Banco e apresentada de imediato a pagamento se, na data do vencimento da operação acima identificada, qualquer importância da minha/nossa responsabilidade ficar por liquidar”.

III – Fundamentação de Direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da apelante (art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC), circunscreve-se, como claramente resulta das suas conclusões supra transcritas, à questão da natureza – onerosa ou gratuita – da hipoteca alvo da impugnação pauliana.

Historiando e contextualizando, a questão coloca-se nos autos e no recurso nos seguintes termos:

A apelante, no presente apenso, reclamou um crédito, garantido por hipoteca, sobre o executado E....

Ao que a exequente – além de invocar outras meios de defesa a que decisão recorrida deu, sem censura, desfecho definitivo – opôs, contra tal hipoteca[2], a impugnação pauliana.

Assentes os factos e apreciando-os juridicamente, a sentença recorrida percorreu os vários requisitos da invocada impugnação pauliana, oposta à hipoteca, e foi concluindo um após outro pela sua verificação[3]; e, chegada ao último requisito – isto é, à má-fé do art. 612.º do C. civil – considerou não ser o mesmo exigível em virtude “da hipoteca constituída pelo executado a favor da reclamante ter natureza gratuita, pois o acto constitutivo da obrigação garantida, designadamente um mútuo com expressa exclusão de juros remuneratórios, tem a natureza referida (cfr. art. 1145º/1, a contrario, do CC), tendo igual natureza a obrigação de restituição derivada da nulidade deste contrato, sendo certo que a reclamante não alegou expressamente que foi devido à constituição da hipoteca que (eventualmente) perdoou ao executado outras dívidas ou o inverso ou concedeu contrapartidas específicas para o benefício adicionalmente concedido, para além da garantia inerente à sua própria natureza. Está, assim, também dispensada a demonstração da má fé.“

É justamente sobre este passo da sentença que se centra toda a censura recursiva da apelante.

O que está pois em causa no recurso é o requisito da má-fé; ou melhor, a dispensabilidade ou não de tal requisito.

A apelante vem dizer que a hipoteca deve ser considerado um acto oneroso e, por conseguinte, é exigível a verificação, como resulta do art. 612.º, n.º 1, do C. Civil, do requisito da má fé, que no caso não terá ficado provado[4].

Daí o termos começado por dizer que a questão se circunscreve à natureza – onerosa ou gratuita – da hipoteca; o que, no caso, como resulta do que vimos de referir, equivale a dizer que a questão se circunscreve a saber se é dispensável ou não o requisito da má fé do art. 612.º do C. Civil.

Isto dito, enunciada a questão e exposto o seu relevo jurídico, passemos à sua análise:

E começaremos por dizer, antecipando a solução, que a apreciação jurídica que a sentença recorrida deu à questão merece – quer no seu desfecho quer na parte essencial do seu percurso – a nossa concordância.

A questão não é totalmente linear e talvez por isso a apelante classifique de “completamente errado”[5] algo que, a nosso ver, esta completamente certo.

Vejamos:

Define-se como oneroso o contrato em que a atribuição patrimonial efectuada por cada um dos contraentes tem por correspectivo, compensação ou equivalente uma atribuição da mesma natureza proveniente do outro; e como gratuito o contrato em que, segundo a comum intenção dos contraentes, um deles proporciona uma vantagem patrimonial ao outro, sem qualquer correspectivo ou contraprestação.

Daí o dizer-se que a distinção dos negócios jurídicos em onerosos e gratuitos tem como critério o conteúdo e finalidade do negócio[6].

Existe pois um acto oneroso sempre que uma pessoa visa conseguir uma vantagem suportando um sacrifício que esteja numa relação de estrita causalidade com a vantagem que se quer obter; a onerosidade exige duas atribuições patrimoniais em relação de causalidade; e existe na medida em que as partes estão de acordo em considerar as duas prestações ligadas reciprocamente pelo vínculo da causalidade jurídica[7].

Inversamente, um acto é a título gratuito quando seja realizado com uma particular intenção ou causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra parte.

Isto dito, importa referir que há situações em que a distinção – que até parece não poder suscitar dificuldades – se apresenta de modo menos nítido.

Quando se está perante negócios cujos efeitos atingem distintamente o património de mais de 2 sujeitos – os chamados negócios com dupla atribuição patrimonial ou negócios “bidireccionais” – a distinção adquire alguma dificuldade, uma vez que tais negócios são susceptíveis de revestir a natureza gratuita ou onerosa consoante a perspectiva pela qual são apreciados[8].

O mesmo acontece nos contratos a favor de terceiro[9].

E identicamente com o dador de hipoteca, que – em princípio, sem obter ou pretender qualquer contrapartida para si próprio – obtém, como contrapartida da hipoteca prestada, o resultado pretendido, a atribuição duma vantagem a outrem, designadamente a concessão dum empréstimo ou a abertura dum crédito ao devedor principal.

Em tal hipótese, nas relações entre o dador da hipoteca e o devedor garantido o negócio de hipoteca apresenta, normalmente[10], uma natureza gratuita; sendo pois, nas relações com o devedor principal, um acto de natureza gratuita.

Porém, ainda em tal hipótese, nas relações entre o prestador de garantia e o credor, verificada a existência de uma relação de causalidade entre a concessão do crédito ao devedor e a hipoteca[11], o negócio de hipoteca não pode deixar de ser considerado como um acto oneroso[12].

Contra o que – contra tal modo de qualificar como onerosa uma hipoteca – não é pertinente argumentar-se que estamos perante negócios jurídicos diversos e não perante atribuições integradas no mesmo tipo negocial.

Efectivamente, o carácter oneroso dum negócio pode resultar e ser o efeito duma coligação ou conexão entre negócios distintos.

“ A onerosidade, característica de atribuições patrimoniais, não se deixa limitar pelo espartilho formal do desenho dos vários tipos negociais, para ser averiguada e decidida dentro desse quadro. A onerosidade revela-se num âmbito mais lato, face ao fluir da vida económica, na conexão causal teleológica entre atribuição patrimoniais inseridas em negócios distintos.”[13]

Ainda na hipótese referida, os negócios de hipoteca e de abertura de crédito (ou de empréstimo) estão em concreto ligados por um nexo económico e teleológico, pois as partes têm intenção de os coordenar por um escopo comum; integram um negócio complexo, produto de uma coligação de negócios, e nesse negócio complexo cada uma das atribuições é um acto oneroso, por, segundo a intenção das partes, ser o correspectivo, a contrapartida da outra atribuição.

E, continua o Prof. Mota Pinto[14], “a constituição de uma garantia prestada como condição para a concessão dum crédito a terceiro é, pois, uma atribuição patrimonial que pode ser qualificada de gratuita ou onerosa, consoante a perspectiva por que é examinada. Trata-se dum acto oneroso nas relações entre dador da garantia e credor; poderá ser um acto gratuito nas relações entre aquele sujeito e o devedor principal.

Perguntando mesmo: “A qual das relações se deve atender para saber se o acto é gratuito ou oneroso (…) para efeitos da impugnação pauliana?”

E respondendo: “A apreciação do carácter gratuito ou oneroso da constituição da garantia deve ser feito em relação ao credor que recebeu a garantia como condição para a concessão do crédito; e, a esta luz, o acto deve manifestamente ser qualificado como oneroso.”

Efectivamente – é este o ponto que interessa salientar como critério para apurar da natureza da hipoteca – o diagnóstico sobre a natureza gratuita ou onerosa do acto faz-se a partir do lado do garantido, atribuindo-se, assim, para efeitos de impugnação pauliana, natureza onerosa ao negócio de constituição de hipoteca por terceiro, quando a mesma é prestada no contexto da concessão do crédito ou como correspectivo de outra vantagem.

Por outras palavras, a constituição duma garantia em simultâneo e em conexão com um negócio de concessão de crédito a um terceiro – ou, posteriormente, em troca duma contrapartida – deve ser qualificada, para efeitos de impugnação pauliana, como acto oneroso.

Enfim, a questão não tem a simplicidade que a apelante lhe imputa na introdução da sua alegação e dela seguramente não pode ou deve ser dito, como refere mais à frente, “que não há hipoteca gratuita”.

A questão é, em tese, intrinsecamente complexa.

E se há na matéria afirmação segura é justamente a de não poder dizer-se, em tese e em abstracto, que a hipoteca voluntária tem carácter oneroso ou que tem carácter gratuito.

A hipoteca voluntária apresenta-se como uma daquelas figuras negociais susceptível de revestir, em concreto, várias formas, podendo constituir um negócio oneroso ou gratuito[15]; é, para tal efeito, uma acto que alguma doutrina denomina de “neutro”[16], dado que é só na sua conexão com outros negócios, que lhe dão coloração, que é possível determinar o seu carácter oneroso ou gratuito[17].

A hipoteca, na sua “pureza” e isoladamente considerada, comporta apenas uma vantagem para o credor, mas daí não se pode retirar, necessariamente, a gratuitidade.

Devido à característica da sua acessoriedade e à sua função de garantia, só é possível determinar rigorosamente se a hipoteca é onerosa ou gratuita recorrendo à sua conexão com o crédito garantido[18].

Daí o dizer-se que a “hipoteca é seguramente onerosa se for um meio para obter o crédito, isto é, quando os 2 negócios, se bem que estruturalmente distintos, estão numa relação de interdependência, na base dum acordo substancialmente unitário, não tendo relevância os simples motivos internos ou pessoais do concedente, mas sim o nexo entre os dois negócios[19]; daí o também dizer-se – em caso de crédito pré existente – que a hipoteca também é onerosa no caso do credor, como contrapartida da garantia prestada, conceder uma redução de juros ou uma dilação do prazo ou prescindir de outras garantias[20]; e daí o também dizer-se, em sentido diverso, que se a garantia for prestada espontaneamente, isto é, sem qualquer contrapartida ou correspectivo, o negócio jurídico da hipoteca deve considerar-se gratuito.

Isto é, insiste-se, é sempre na relação creditícia subjacente que se têm que procurar e encontrar os elementos que vão conferir gratuitidade ou onerosidade ao negócio de concessão de hipoteca.

Aqui chegados – exposta a “premissa maior” em toda a sua complexidade – revertendo ao caso dos autos e do recurso, importa reconhecer que o silogismo a efectuar nem é, na questão sub-judice, dos mais difíceis.

Em 1.º lugar e desde logo por não estarmos perante uma hipoteca prestada por terceiro; mas antes perante uma hipoteca prestada pelo próprio devedor garantido.

E, em face de tudo o que se expôs, quando a garantia real é prestada pelo próprio devedor, podemos dizer que duas hipóteses se podem colocar:

Ou a garantia for prestada simultaneamente com o acto constitutivo do crédito e, então, ela será onerosa se se verificar a existência de uma relação de causalidade entre a concessão do crédito e a hipoteca

Ou a constituição da garantia ocorre em data posterior à data da constituição do crédito e, então, esse acto – hipoteca – terá natureza onerosa ou gratuita conforme existam ou não contrapartidas específicas – v. g. perdão de juros, moratória ou desistência de arresto de bens – para o benefício adicionalmente concedido.

Ora, tendo a própria apelante alegado – quer na PI (da reclamação) quer na resposta – que o empréstimo foi anterior à hipoteca[21] e que o empréstimo foi concedido sem juros e pelo prazo de 10 anos[22], impõe-se concluir que estamos perante a 2.º hipótese colocada – ter ocorrido a constituição da garantia em data posterior à data da constituição do crédito – e, dentro desta, em face dos termos em que o empréstimo havia sido concedido, perante uma hipoteca prestada sem qualquer contrapartida ou correspectivo.

Ademais, acrescenta-se ainda, o referido nos factos 12) e 13) não tem o menor significado ou relevo para poder-se dar como verificada uma relação de causalidade entre uma qualquer vantagem patrimonial dada pelo credor ao dador da hipoteca no contexto em que esta foi concedida.

Está provado, é certo, em tais factos, que a reclamante, a fim de garantir a restituição da quantia, pediu ao executado que lhe prestasse garantias e que as hipotecas[23] foram prestadas.

Porém, verdadeiramente, tais factos nada acrescentam ao que de imediato é extraível quer do negócio jurídico unilateral formalizado na escritura junta quer do documento que espelha o registo da hipoteca – registo que, promovido como a lei exige pela reclamante/apelante, retrata a anuência desta à hipoteca unilateralmente dada.

Mais, o facto 12 até provém duma resposta restritiva ao quesito 3.º, em que se perguntava se “ a reclamante, para entregar a quantia referida em 1), pediu ao executado que lhe prestasse garantias”; tendo sido justamente esta imprescindível[24] relação de causalidade – entre o empréstimo[25] e a prestação da garantia – que ficou “in totum” não provada.

Enfim – a pedido ou espontaneamente, pouco importa – a hipoteca foi prestada, pelo executado à reclamante/apelante, sem qualquer contrapartida ou correspectivo, razão pela qual bem andou a sentença recorrida ao considerar o negócio jurídico da hipoteca como gratuito[26] e, por via disso, ao dispensar, para efeitos de impugnação pauliana, a verificação do requisito da má-fé (cfr. 612.º do C. Civil); como bem andou ao, verificados os demais requisitos[27], julgar verificada a impugnação pauliana, no caso deduzida por via de excepção, e ao, em face da ineficácia relativa gerada pela sua verificação, graduar o crédito da reclamante/apelante atrás do crédito exequendo.

Em conclusão, improcede “in totum” o que a apelante invocou e concluiu nas sua alegações recursiva, o que determina o completo naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.


*

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante


*

Barateiro Martins( Relator)
Arlindo Oliveira
Emídio Santos


[1] A 2.ª reclamação deduzida nos autos. Anteriormente, o ISS, Delegação Regional da ..., havia reclamado um seu crédito que, inclusivamente, já havia sido reconhecido em sentença anteriormente proferida – cfr. fls. 7 a 14 dos autos.
[2] Ou melhor, contra a preferência, em relação à exequente, conferida por tal hipoteca.

[3] Escreveu-se, a dado momento, que a impugnação pauliana está dependente dos seguintes requisitos legais: a) aquele que invoca a impugnação pauliana tem de ser titular de um crédito; b) a prática, pelo devedor, de um acto que envolva a diminuição da garantia patrimonial desse crédito e não seja de natureza pessoal; c) ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; d) resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa possibilidade; e) a existência de má fé da parte do devedor e do terceiro, caso o acto seja oneroso, não se exigindo este requisito nos actos gratuitos. Após o que se procedeu à sua análise e se conclui – e bem – pela verificação dos 4 primeiros requisitos.
[4] Em face da resposta restritiva/negativa dada aos quesitos 8.º e 9.º.
[5] Com maiúsculas, isto é, “aos gritos”, que é interpretação que corresponde à utilização isolada de palavras maiúsculas num texto escrito no resto de modo normal.

[6] Geralmente, a doutrina chama a atenção para o relevo da intenção das partes, a sua vontade ou intento, quando se trata de determinar a natureza onerosa ou gratuita do negócio.

[7] Reciprocidade de prestações que pressupõe apenas um nexo causal entre ambas, não significando a sua equivalência objectiva ou mesmo subjectiva; isto é “o negócio não deixa de ser oneroso se as duas prestações, pelas mais variadas razões, não têm uma valor equivalente, desde que as partes as consideram contrapartida uma da outra” – Cfr. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 210.

[8] Nos negócios chamados multidireccionais – refere Cura Mariano, in obra e local citados – formam-se várias relações jurídicas de diferente sentido, em que alguns sujeitos são comuns, podendo algumas das relações ter natureza gratuita e outras onerosa. Nestas figuras complexas deve atender-se às relações que permitam apurar se o terceiro ou terceiros beneficiados pelo acto de disposição do devedor pagaram ou não alguma contrapartida pelo bem alienado por este. Isso poderá conduzir a que o acto tenha uma natureza simultaneamente gratuita e onerosa, conforme a relação perspectivada.
[9] V. G., nos contratos de seguro, em que há um segurado, um segurador e um terceiro beneficiário.
[10] Nem sempre, porém, uma vez que podem ocorrer situações em que o devedor garantido concede alguma espécie de compensação ou vantagem ao dador de hipoteca.
[11] Ou uma relação de causalidade entre outra qualquer vantagem patrimonial e a hipoteca.
[12] A possibilidade duma dupla qualificação dos negócios é expressa pela doutrina dizendo que a onerosidade é um “conceito de relação” - Carlos Mota Pinto, RDES, Ano XXV, n.º 3 e 4, pág. 238.

[13] Carlos Mota Pinto, local citado, 240/1.
[14] Carlos Mota Pinto, local citado, pág. 243/4
[15] Mais – e como já se referiu – pode uma mesma hipoteca ser simultaneamente gratuita e onerosa, conforme a relação por que é perspectivada; isto é, por paradoxal que pareça, não pode dizer-se, em tese e em abstracto, que a hipoteca voluntária tem carácter oneroso ou que tem carácter gratuito, mas pode dizer-se, duma concreta hipoteca, que ela é, simultaneamente, gratuita e onerosa.

[16] Cfr. Maria Isabel Campos, in “Da Hipoteca”, pág. 163; e Cura Mariano, obra citada, pág. 214, que acrescenta que “ (…) esta 1.ª aparência não filiada, que ocorre nalgumas situações, só sucede por o encararmos desacompanhado do negócio constitutivo da obrigação garantida”.

[17] “A onerosidade pode pois resultar duma coligação ou conexão de negócios formal e substancialmente distintos, desde que exista uma relação de interdependência entre as atribuições que aqueles negócios realizam.” - Cura Mariano, obra citada, pág. 213.

[18] A atribuição patrimonial efectuada pela hipoteca pode ter causas de tipo variado, consoante o negócio que lhe serve de base.
[19] Cfr. Maria Isabel Campos, in “Da Hipoteca”, pág. 163.

[20] Em tal hipótese continua a ocorrer uma atribuição patrimonial que é o correspectivo da concessão da garantia.
[21] Cfr. art. 19.º da resposta, em que se diz que o executado, em 2005, já devia mais de 50.000 € à reclamante. Aliás, não será despiciendo referi-lo, a hipoteca dos autos foi constituída por declaração unilateral do concedente, como o art. 712.º do C. Civil o permite; e o documento (714.º do C. Civil) que formaliza tal hipoteca contém até um segundo – além da constituição de hipoteca – negócio jurídico unilateral receptício, isto é, contém ainda um reconhecimento de dívida (art. 458.º do C. Civil). Ora, o reconhecimento de dívida corresponde à inversão do ónus da prova (e não a um negócio abstracto) duma relação/causa fundamental, no caso os anteriores empréstimos, que a própria reclamante/apelante reconhece que já teriam mais de um ano - o executado, em 2005, já devia mais de 50.000 € à reclamante.
[22] Com refere, designadamente, no art. 7.º da reclamação
[23] Como são duas fracções autónomas, fala-se em hipotecas.
[24] Para haver onerosidade.
[25] E quando se fala em empréstimo está a pensar-se no seu carácter de “negócio real”.

[26] Em todo o caso, refere-se, não concordamos com a parte em que se argumenta que a hipoteca é gratuita por o mútuo ser gratuito. Na linha do que expendemos, o mútuo pode ser gratuito e a hipoteca onerosa se, por ex., a hipoteca for uma condição do mútuo. A nosso ver, insiste-se, a hipoteca dos autos é gratuita por a sua prestação não estar ligada, em termos de causalidade jurídica, a uma qualquer vantagem concedida ao devedor principal (que, no caso, é também o dador da hipoteca).
[27] Chama-se a atenção, a propósito da conclusão 2.ª do recurso, que para a impugnação do acto da constituição de hipoteca não interessa, para efeitos da anterioridade aludida no art. 610.º, a), do C. Civil, a data dos empréstimos; o “confronto” é entre a data da constituição do crédito da exequente e a data da constituição da hipoteca (26/09/2006).